1 de julho de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - IV

Imagem da referência: Les merveilles de l'industrie ou, Description des principales industries modernes por Louis Figuier. - Paris : Furne, Jouvet, (1873-1877)

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - III". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

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A questão da origem dos compostos orgânicos é considerada neste parágrafo por Kardec. Essa indagação é relevante porque, nas diversas teorias sobre a vida que surgiram no Século XIX, havia os que achavam que apenas a Natureza poderia criar compostos orgânicos. A síntese em laboratório de compostos orgânicos foi um passo importante para se entender que, nos fundamentos que sustentam a vida, estão regras que se aplicam a qualquer tipo de matéria. 

De qualquer forma, era necessário explicar a origem dos compostos químicos desde a gênese da Terra. Estariam os materiais já disseminados ou eles teriam sido formados pelas inúmeras modificações ocorridas no planeta? De fato, considerando que, em sua origem, a Terra se encontrava aquecida com todos os elementos volatilizados:
no ar se encontravam, em estado gasoso, todas as substâncias primitivas. Precipitadas por efeito do resfriamento, essas substâncias, sob o império de circunstâncias favoráveis, se combinaram, segundo o grau de suas afinidades moleculares.
Dado esse princípio geral, é objeto da pesquisa científica presente determinar as rotas de síntese que percorreram séculos desde a gênese e que explicam as presente constituição química dos materiais encontrados de forma natural no planeta. 

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O desenvolvimento científico não ocorre de forma independente nos diversos ramos de especialização. Uma determinada área pode contribuir substancialmente com o desenvolvimento de outra. Foi assim que a química se tornou fundamental para o avanço da geologia, da mesma forma como essa última com a astronomia contribuíram para compreender a gênese.

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Um exemplo da importância do conhecimento das leis que regem a relação entre átomos e moléculas é no fenômeno da cristalização, apresentado por Kardec neste parágrafo. Um cristal é um sólido regular formado por átomos, íons ou moléculas que se arranjam conforme uma configuração geométrica que se repete. Para ilustrar que a formação desses "corpos sólidos" é regido por leis específicas, Kardec aqui cita alguns exemplos. O açúcar candi (C12H22O11) forma cristais cúbicos que exigem de 5 a 15 dias para formação em uma solução resfriada e saturada de açúcar. A sílica forma cristais de seis faces. O diamante é formado de carbono que forma uma estrutura cúbica. Finalmente, o exemplo dos cristais de gelo e sua estrutura hexagonal é também citado como um fenômeno popularmente conhecido. 
  
Fig. 1 As 7 formas geométricas dos cristais. Algumas delas são citadas no Parágrafo 11 como estruturas regulares de corpos minerais que surgem na Natureza. Fonte: [1]

A forma dos cristais pode ser organizada em 7 classes como mostradas na Fig. 1. Nessa figura também são fornecidos outros exemplos. A organização muito regular dos cristais é explicada assim:
A disposição regular dos cristais corresponde à forma particular das moléculas de cada corpo. Essas partículas, para nós infinitamente pequenas, mas que não deixam por isso de ocupar um certo espaço, solicitadas umas para as outras pela atração molecular, se arrumam e justapõem segundo o exigem suas formas, de maneira a tomar cada uma o seu lugar em torno do núcleo ou primeiro centro de atração e a constituir um conjunto simétrico.
Modernamente a disposição regular é conhecida como resultado da maneira como se arranjam as ligações químicas entre as moléculas, átomos ou íons que formam cada substância. Para que seja possível o arranjo simétrico e a repetição da estrutura por milhares de distâncias na escala atômica, condições especiais devem existir. No caso da formação dos cristais de açúcar, por exemplo, o meio aquoso não pode estar aquecido. A redução da temperatura justamente corresponde à redução da agitação entre as moléculas, o que permite a elas encontrar um ponto de menor energia para a formação do cristal. Essa descrição em termos de "minimização de energia" ainda não era conhecida na época em que "A Gênese" foi publicada. 

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Como resultado da descoberta da grande unidade de princípios que governam as leis naturais, as mesmas regras que organizam minerais também imperam sobre a formação dos corpos orgânicos. Isso mostrará que,  do ponto de vista do elemento material, não há diferenças entre seres vivos e minerais. Neste parágrafo, Kardec explica que a química já demonstrou serem os corpos orgânicos formados majoritariamente por quatro elementos químicos principais:
  • Carbono
  • Nitrogênio
  • Oxigênio
  • Hidrogênio
e que outros elementos "entram acessoriamente". Igualmente relevante é o fato de que a enorme variedade e diversidade de aparências e comportamentos das substâncias orgânicas ser explicado pela química como resultado das diferentes proporções como cada um dos quatro elementos principais (e seus acessórios) entram em cada substância. Tanto assim que Kardec inclui uma tabela contendo uma análise química da época das proporções de cada elemento em diversas substâncias. No caso, o "açúcar de cana" (que contém um teor de sacarose maior), a proporção da tabela é: 42,47% de C, 6,9%  de H, 50,63% de N. 

Conforme já citado acima, a fórmula química do açúcar é C12H22O11. Hoje sabemos que a massa atômica do C é de 12u (unidades atômicas), a do H é 1u e a do O é 16u. Portanto, em termos de unidades de massa atômica, o açúcar (puro) teria o equivalente a 342u. Cada elemento de sua composição entraria nas seguintes razões:
  • C: 12 x 12u ou 144u: razão de 144/342 = 42,1%,
  • H: 22 x 1u ou 22u: razão de 22/342 = 6,4%,
  • O: 11 x 16u ou 176u, razão de 176/342 =  51,4%
o que corresponde aproximadamente aos valores que constam para o açúcar da cana na tabela de "A Gênese". Portanto, a tabela mostra a "proporção de massa" de cada elemento nas diversas substâncias citadas. 

Fig.2 "Forma" da molécula da fibrina (segundo 2), substância citada por Kardec na Tabela que acompanha o parágrafo em estudo. 
Um exercício (de química e álgebra) que deixamos para o leitor é encontrar as quantidades em unidades atômicas de cada elemento da quadrupla (C, N, O, H) para a fibrina usando as proporções de massa dadas na tabela. Depois disso, ele pode comparar seu resultado com a fórmula mais contemporânea para a Glicil-N-Metilglicinamida [2] (Fig. 2) que é um outro nome pelo qual  fibrina é conhecida hoje em dia.

Um princípio geral que deve ser lembrado aqui é expresso na parte final do parágrafo:
Assim, na formação dos animais e das plantas, nenhum corpo especial entra que igualmente não se encontre no reino mineral.
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Esse princípio tem importância fundamental para explicar como surgem as inúmeros "tecidos orgânicos" na Natureza e como podem eles ser tão diversos em aparência. Um exemplo de reação química citada por Kardec para explicar a criação de compostos orgânicos muito específicos a partir de ingredientes bastante diferentes do produto  final é a reação de fermentação ("no suco de uva, não há vinho, nem álcool, mas apenas água e açúcar"). Em sua forma mais simplificada [3], essa reação pode ser escrita como:

C6H12O6 → 2 C2H5OH + 2 CO2

que expressa a conversão de um mol de açúcar em dois moles de etanol e dióximo de carbono. Essa reação não ocorre de forma simples, mas é resultado de uma cadeia de reações em que entram outros compostos chamados "enzimas" (e que também fazem parte das "condições necessárias" segundo Kardec). 

Kardec também se refere (sem citar referências) às concepções pueris antigas que acreditavam preexistir em cada material orgânico "animálculos" (sob "microscópica forma") responsáveis pela  aparência e função completa do ser no futuro. Essas teorias foram conhecidas como "preformacionistas" (final do Século XVII) das quais a chamada "tese do homúnculo" (Fig. 3) pretendia explicar o ser humano como resultado do crescimento de um ser preexistente e plenamente formado em sua "semente" ou sêmen.
Fig. 3 O homúnculo de Hartsoeker. Fonte [4]
Ao contrário,  Kardec enfatiza que, no crescimento dos vegetais:
Esse gérmen se desenvolve por efeito dos sucos que haure da terra e dos gases que aspira do ar.
Disso segue que toda a matéria que compõe os seres vivos foi acumulada a partir de elementos externos do meio em que ele vive e transformada por reações químicas em um "trabalho íntimo" que ocorre no interior de cada ser.  Conforme [5], o preformacionismo somente foi descartado no final do Século XIX com o desenvolvimento da teoria da célula, o que nos leva a concluir que Kardec estava aqui bem informado sobre os progressos científicos de sua época a ponto de defender, em "A Gênese", as ideias mais avançadas. 

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Resume-se o que foi anteriormente afirmado e enfatiza-se o papel das "condições propícias", que hoje são conhecidas como as "condições do ambiente" a favorecer a formação não só de compostos orgânicos mas também dos seres vivos. Essas condições surgem por causa da lei das afinidades que permite a combinação dos elementos químicos nas proporções corretas para a formação de produtos mais complexos, desde que verificadas as condições externas. 

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Kardec reafirma a "imutabilidade das leis da Natureza". Portanto, para conhecer o que se passou há milhares de anos - nas questões da gênese material e orgânica - basta observar seu comportamento na atualidade. Esse é outro importante princípio que subjaz à lógica científica moderna. 

Portanto, conclui Kardec, a formação dos seres vivos, assim como dos minerais, seguiu essas leis imutáveis sob condições específicas que se tornaram ativas à medida que a geologia e o clima da Terra se modificaram. "Miraculosamente" essa modificação nas condições foi para intensificar a combinação entre as substâncias e, portanto, a formação dos seres que delas dependiam direta ou indiretamente. 

Por fim, Kardec compara a reprodução dos seres ao processo de cristalização dos minerais, o que indica que, operando com base nas mesmas leis, essa semelhança de "forma e de cores" pode ser explicada novamente pela presença de átomos ou moléculas a se combinarem em proporções específicas verificadas as "condições propícias".

Referências

23 de abril de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - III

Fig 1. Ilustração do interior de um laboratório (provavelmente de química) no Século XIX (Wikipedia). 

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - II". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

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Kardec faz uma breve introdução à química como resultado do reconhecimento de sua importância para a gênese orgânica. Enumera alguns dos elementos químicos, inclusive o nitrogênio que é o termo técnico para "azoto" [1], ainda presente no Português europeu. Kardec também cita um conjunto de condições externas necessárias para que algumas reações químicas ocorram como o calor, a presença de água, a agitação etc.  Modernamente, pode-se falar em "condições ambientais" tais como temperatura, pressão, presença de elementos catalíticos e outras substâncias pelas quais uma determinada reação ocorre da forma mais eficiente possível. 

O resultado de uma reação é sempre um "terceiro corpo" (ou mais corpos) que se pode chamar "produto da reação", com eliminação total ou parcial dos elementos iniciais conhecidos como "insumos" ou "ingredientes". Pode-se citar como prova, por exemplo, a reação de fotosíntese pela qual as plantas convertem o dióximo de carbono e a água em glicose e oxigênio. Para funcionar, a reação precisa de energia luminosa que, para as plantas, vem do sol:

Luz do sol + 6CO2(g) + H2O(l) = C6H12O6(aq) + 6O2(g)

Na descrição acima, CO2(g) é o dióximo de carbono na forma gasosa, H2O é água na forma líquida. Os produtos são oxigênio na forma gasosa e a glicose na forma aquosa (ou seja, o substrato onde a reação ocorre deve conter água como solvente). Esse exemplo permite compreender todos os elementos descritos por Kardec como participando de uma reação química associada à vida.

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A decomposição e formação da água são apresentados por Kardec como exemplo de reações que podem ser feitas indefinidamente. Ou seja, as propriedades dos insumos e dos produtos são sempre recobradas após a reação, sem nenhum limite identificável. Logo, essas propriedades ligam-se exclusivamente aos elementos, não se esgotam ao longo de vários ciclos de reações. A decomposição da água pode ser feita por meio da eletrólise (Fig. 2), enquanto que a formação da água é uma reação química facilmentte obtida ao se combinar os dois gases na proporção certa (hidrogênio e oxigênio) usando calor. 

Fig. 2 Diagrama da decomposição da água (Wikipedia).

As propriedades das substâncias químicas depende do arranjo molecular delas. Esse arranjo define como ela interage com o ambiente (com outros gases, com a luz etc) e as propriedades sensíveis, isto é, como seres humanos percebem cada coisa formada por elas. 

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É uma introdução sumária ao conceito de "afinidade química". Essa afinidade existe em determinados graus e depende do tipo de combinação, ou seja, dos compostos químicos que entram em reação. Em termos modernos:

Na química física, a afinidade química é uma propriedade eletrônica pela qual espécies químicas diferentes são capazes de formar compostos químicos. A afinidade química pode também se referir à tendência de um átomo ou composto combinar por meio de reação química com atomos e compostos de composição diferente [2].

O leitor deve observar que essa definição moderna considera a afinidade química como uma "propriedade eletrônica". No Século XIX, quando "A Gênese" foi publicada, o elétron não era ainda conhecido. De fato, a teoria atômica tinha caráter especulativo, visto que se entendia não haver "provas diretas" da existência dos átomos. A definição de afinidade química dada por Kardec está, porém, completamente de acordo com o conhecimento empírico da química, que não se alterou desde então.

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Dessa forma, era conhecimento empírico que, nas reações químicas, as quantidades têm que ser adicionadas em certas proporções entre os elementos. Kardec novamente usa como exemplo a água, que, nas condições normais de temperatura e pressão, se forma na proporção de dois volumes de hidrogênio para um de oxigênio. Hoje sabemos que essas combinações se devem à natureza atômica dos constituintes dos insumos. Mas, na época, isso era apenas uma especulação entre os cientistas. Essa teoria (chamada "atômica") foi lançada por J. Dalton (1766 – 1844) em 1803 e tinha como princípios [3]:

Elementos são feitos de particula extremamente pequenas chamadas átomos;

Átomos de um certo elemento são idênticos em tamanho, massa e outras propriedades; átomos de diferentes elementos diferem em tamanho, massa e outras propridades;

Átomos não podem ser subdivididos, criados ou destruídos;

Átomos de diferentes elementos combinam-se em razões inteiras para formar compostos químicos;

Nas reações químicas, átomos são combinados, separados ou rearranjados.

Embora possa soar natural a nós hoje em dia, essa era apenas uma das teorias existentes para explicar o comportamento das reações químicas. 

Como evidência da necessidade de combinações em proporções inteiras e corretas, Kardec considera que, se um volume adicional de oxigênio for adicionado à reação inicial para formação da água, essa não se formará, mas, ao invés dela, o peróximo de hidrogênio (deutoxyde d'hydrogène na versão original em Francês), que é a água oxigenada.

Fig. 3 Ilustração moderna da molécula de água oxigenada
ou o deutoxyde d'hydrogène citado por Kardec.

Essa é uma substância líquida, viscosa e altamente tóxica, com propriedades bem diferentes da água (que, não é tóxica para o organismo humano).

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Kardec ilustra a "inumerável variedade" de compostos que resulta de "um número pequeno de princípios elementares" pela combinação desses princípios "em proporções diferentes". Na tabela abaixo, apresentamos as representações modernas dos compostos citados neste Parágrafo por Kardec com o objetivo de ilustrar seus exemplos de combinações químicas inorgânicas. 

Citações de compostos químicos do Parágrafo 8 do Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

Oxigênio (O)

Combinado a

Formação

Observação

Carbono (C)

Ácido Carbônico (H2CO3)

Também chamado "dihidroxicabonila".

Enxofre (S)

Ácido Sulfúrico (H2SO4).

Ou "sulfato de hidrogênio".

Fósforo (P)

Ácido Fosfórico (H3PO4).

Ou "ácido ortofosfórico".

Ferro (Fe)

É citado o óxido de ferro da ferrugem que é formado de Fe III (Fe3O4).

Exisem ao menos 16 formas diferentes de óxidos de ferro.

Chumbo (Pb)

PbO em diversas formas.

Litargírio: é o óxido de chumbo II com elevado grau de pureza, altamente tóxico e encontrado na natureza [4]. Alvaiade:  carbonato de chumbo (2PbCO3·Pb(OH)2) [5]. Mínio: também conhecido como Zarcão, é o tetróxido de chumbo (Pb3O4).

Cálcio (Ca)

Óxido de cálcio (CaO).

Cal viva ou cal virgem [6].

Sódio (Na)

Óxido de sódio ( Na2O). Hidróxido de sódio (NaOH).

O óxido de sódio é raramente encontrado [7]. NaOH também é conhecido como soda cáustica. A soda é formada irreversivelmente pelo óxido pela combinação com a água.

Potássio (K)

O hidróxido de potássio (KOH), mas também pode-se falar do óxido de potássio (K2O).

Também chamda potassa cáustica. O óxido de potássio reage violentamente com a água. Raramente é encontrado.

Cal (CaO)

Ácido Carbônico (H2CO3)

H2CO3 + CaO → CaCO3 + H2O

Referência à formação do carbonato de cálcio. Cré (craie em Francês): também conhecido como giz (chalk em Inglês)

Ácido Sulfúrico (H2SO4)

CaO + H2SO4 → CaSO4 + H2O

Referência à reação de produçao de sulfato de cálcio também conhecido como gesso. Alabastro pode tanto referir-se ao gesso (sulfato) como à calcita (carbonato).

Ácido Fosfórico (H3PO4)

CaO + 2 H3PO4 → Ca(H2PO4)+ H2O

O fosfato de monocálcio (diortofosfato de monocálcio) é usado como fertilizante. Os fosfatos de cálcio são de grande importância para os ossos.

Cloro (Cl)

Hidrogênio (H)

Cloreto de hidrogênio (HCl)

Em condições ambientais é um gás que, ao contato com o ar úmido forma o ácido hidroclórico (ou "ácido muriático").

Sódio (Na)

Cloreto de Sódio (NaCl)

Principal composto do sal de cozinha.

Referências

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Azoto

[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Chemical_affinity

[3] https://en.wikipedia.org/wiki/John_Dalton

[4] Litargírio: https://pt.wikipedia.org/wiki/Litarg%C3%ADrio

[5] Alvaiade: https://pt.wikipedia.org/wiki/Alvaiade

[6] Cal: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cal

[7] Óxido de sódio: https://en.wikipedia.org/wiki/Sodium_oxide

2 de abril de 2022

Videos de fantasmas "reais" que circulam a internet

Basta digitar palavras de busca como "fantasmas reais" ou "casas mal-assombradas" para se acessar um repositório imenso de vídeos supostamente registrando o que muitos chamam "manifestações sobrenaturais"  ou "demoníacas", e que outros acham ser material de interesse espírita. Um exemplo é [1]. 

O que se pode dizer desses videos do ponto de vista espírita?

É certo que fenômenos de efeitos físicos existem sejam eles associados ou não a médiuns aparentes. Entretanto, é preciso ponderação na aceitação desses videos como provas de manifestações físicas (que são tão antigas quanto a Humanidade). Pois, tão certo e antigo como o fenômeno é a existência de uma multidão de mistificadores, farsários e pessoas interessadas nos lucros que videos com essas supostas manifestações podem trazer. 

Antes da invenção da internet, sempre houve mistificadores em busca de sensacionalismo ou na venda de um "furo de reportagem" com uma "manifestação sobrenatural". Esses videos eram exibidos na TV (então aberta), onde recebiam tratamento condizendo com o interesse da emissora e o tipo de programa em que apareciam. Uma vez exibidos, a agitação pública em torno deles durava apenas alguns dias e permanecia apenas na memória dos mais interessados. Não existiam então os meios de armazenamento privado de imagens e videos. Com a internet e a possiblidade de qualquer pessoa ter seu próprio canal de entretetimento online, uma indústria de dimensões inimagináveis surgiu.

Em certo sentido, não importa muito o que esses vídeos querem dizer do ponto de vista espírita. Assim, a palavra "real" associada a "fantasmas", que aparecem em plataformas como youtube e outros, não vale nada de seu significado original. É apenas uma maneira de atrair a atenção de uma multidão ávida por entretetimento.

Da impossibilidade de se saber o que é verdade nos videos

Considerando o interesse comercial, a precariedade das gravações e a enorme disponibilização de softwares de edição de imagem, a única verdade é que é impossível hoje em dia tentar conhecer a fenomenologia de efeitos físicos por meio desses videos. Qualquer pessoas minimamente bem informada em sistemas de informação pode facilmente gerar um vídeo do tipo (ou modificar, manipular e exageraar outros existentes).  Em termos da pura lógica, isso significa que:

  • Do ponto de vista evidencial, esses vídeos contém indícios fraquíssimos que não podem ser levados a sério;
  • Porém, isso não exclui a possibilidade de alguns deles serem autênticos. 
  • Mas, é impossível "separar da imensa montanha de joio do trigo verdadeiro" nesses vídeos.

É uma grande feira livre, onde a verdade se mistura com a mentira numa tentativa de fazer a audiência acreditar ou simplesmente se emocionar com a impressão de verdade. E não faltam pessoas que acreditam (ou dizem acreditar) estar "divulgando o Espiritismo" com a exibição desse tipo de conteúdo de entretetimento. 

Mais do que um fenômeno isolado, esses videos são uma manifestação pura da situação presente em que vivemos, o chamado "mundo da pós-verdade". Uma definição desse termo pode ser lida na Wikipedia [2]:

Pós-verdade é um neologismo que descreve a situação na qual, na hora de criar e modelar a opinião pública, os fatos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais.

De fato, não só os fenômens espíritas podem ser objeto de manipulações em que a verdade é menos relevante do que a crença pessoal das massas. Todo e qualquer fenomeno físico está sujeito a esse tipo de desvirtualmento. É muito fácil forjar imagens e sons para imitar qualquer ocorrência natural. Por exemplo: o que dizer das inúmeras imagens estáticas que chegam a nós "supostamente" do planeta Marte, enviadas por sondas espaciais? Seriam elas verdadeiras? 

No meu ponto de vista, as imagens da NASA e de outras agências espaciais têm seu status de verdade muito mais ameaçado do que a dos vídeos de fantasmas. Pois, com esses últimos, sempre há a chance de a pessoa experimentar o fenômeno por si, de ser testemunha dele (sem a intervenção de nenhum vídeo). Mas, jamais teremos a chance de pisar em Marte. 

A grande questão é: como nos livraremos do mundo da pós-verdade? O maior risco é o de recursos financeiros serem desvirtuados da pesquisa e do interesse científico genuíno em nome da aparente fraqueza das evidências registradas. Por causa disso, a educação científica (no Espíritismo, o estudo doutrinário) surgem como remédios indispensáveis. Eu sei da existência dos Espíritos e das manifestações de efeitos físicos mesmo sem nunca ter visto ou presenciado qualquer fenômenos por mim mesmo. Eu sei que as imagens são do planeta Marte, mesmo sem nunca ter pisado lá. Esse resultado é fruto de uma imensa cadeia de estudos e meditações onde muitos ingredientes intangíveis são necessários. 

Saber lidar com a verdade e com a mentira é uma das lições que nós, como Espíritos encarnados, temos que aprender. 

Referências

[1] "Sinistro" de #HenridrickAlves (https://www.youtube.com/c/SINISTROHenridrickAlves). O leitor poderá acessar milhares de outros canais se expandir sua busca com termos em inglês. 

[2] Wikipedia (2022). "Pós-verdade" (https://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%B3s-verdade)

7 de fevereiro de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - II

Detalhe de "Remanescentes orgânicos restaurados" conforme a Penny Magazine de 1833. Extraído de uma digitalização do documento original em archive.org.

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - I". Estudo sobre o Cap. X de "A Gênese" de A. Kardec.

Formação primária dos seres vivos

1

A "formação primária" é a própria criação original da vida. A "formação secundária" se dá pelo conhecido processo de reprodução, pelos quais as espécies se propagam. Neste parágrafo Kardec apresenta o problema do aparecimento da vida, visto que "tempo houve em que não existiam animais" [1]. O problema se apresenta porque não é certo que a origem primária tenha se dado pelo mesmo processo de reprodução a partir de um primeiro casal (a crença bíblica da criação por ato divino dos primeiros casais). No começo, não existiam as mesmas "condições necessárias à existência delas". Esse é, em termos simples, o problema científico da origem das espécies e da própria vida. Por fim, Kardec declara o status do problema em sua época:

A Ciência ainda não pode resolver o problema; pode entretanto, pelo menos, encaminhá-lo para a solução.

Passados mais de 150 anos dessa declaração e não obstante todo o avanço em diferentes áreas do conhecimento (bioquímica, genética, evolução etc), com relação à questão da origem da vida, a situação não se alterou como veremos numa sequência de posts. 

2

Talvez por uma questão didática para os espíritas conhecedores das crenças cristãs, Kardec apresenta neste Parágrafo o problema da vida em termos do nascimento de: um "casal primitivo", em um certo e único lugar na Terra, ou de muitos casais em lugares diferentes. É uma referência ao antigo enclave entre a "poligenia" e a "monogenia", ou debate cristão sobre a criação de muitos ou apenas um único casal na origem dos tempos.

O fato é que, desde meados do Século XVIII já se sabia da existência de animais que podiam se reproduzir de forma assexuada, a partir de pesquisas feitas pelo cientista suíço Charles Bonnet (1720-1793), Figura 1. Esse é o fenômeno da partenogênese que Bonnet descobriu em pulgões. Posteriormente, também se descobriu que muitos outros animais podem se reproduzir sem sexo. A existência de reprodução assexuada é uma importante contraposição à crença bíblica da "criação de casais" (como inferido da arca de Noé em Geneses 7:2*) porque mostra que o sexo não é condição necessária para a reprodução das espécies. 

Fig. 1 Charles Bonnet (1720-1793), naturalista e filósofo suíço
que descobriu a reprodução assexuada.

Considerando a existência em larga escada da reprodução assexuada, também parece fazer sentido admitir que o sexo não nasceu junto com a vida, mas veio muito tempo depois, tal como fez Kardec em admitir a maior plausibilidade da poligenia - e isso com base em evidências científicas:
Com efeito, o estudo das camadas geológicas atesta, nos terrenos de idêntica formação, e emproporções enormes, a presença das mesmas espécies em pontos do globo muito afastados uns dos outros. Essa multiplicação tão generalizada e, de certo modo, contemporânea, fora  impossível com um único tipo primitivo.

Essa não seria apenas uma evidência da poligenia, mas também (como foi descoberto bem mais tarde) da chamada deriva dos continentes ou tectônica das placas continentais [2]. Kardec apresenta, porém, uma justificativa muito mais lógica para a criação poligênica que foi a chance muito maior que a vida teve em sobreviver em vários lugares da Terra do que teria tido em apenas um único ponto:

Doutro lado, a vida de um indivíduo, sobretudo de um indivíduo nascente, está sujeita a tantas vicissitudes, que toda uma criação poderia fcar comprometida, sem a pluralidade dos tipos, o que implicaria uma imprevidência inadmissível da parte do criador supremo.

3

Neste parágrafo Kardec estabelece uma base para a pesquisa da origem da vida, que é a química orgânica. O motivo, prossegue Kardec, é que os seres vivos são compostos por substâncias orgânicas. Portanto, antes de querer encontrar uma origem dos seres é necessário compreender a gênese dessas substâncias. Essa princípio foi validada posteriormente, quando se desobriu a "hélice da vida" e seus blocos constituintes na forma de cadeias de nucleotídeos [3], assim como todo o desenvolvimento da bioquímica. Depois, com o famoso experimento de Oparin [4] que será descrito neste blog mais adiante, foi possível traçar parte de uma rota para a síntese natural das bases da vida a partir de um ambiente primitivo possível da Terra depois de sua formação. O experimento de Oparin, entretanto, não resolveu o problema da "formação primária" dos seres vivos. 

Porém, como se pode perceber, a lógica de Kardec não é outra senão a própria lógica da ciência que não mudou desde sua época, não obstante o que a ciência específica diz ter mudado. Tendo as evidências científicas e a química orgânica como base, Kardec em "A Gênese" tece um relato em que a origem da vida será descrita em termos de uma nova fronteira do conhecimento. Essa fronteira avançou desde então, sem que seus fundamentos se modificassem. Esses aspectos imutáveis tornam possível entender "A Gênese" como um texto ainda atual, inobstante as atualizações que sofreram algumas teorias da vida defendidas pela ciência da época em que "A Gênese" foi publicada.

Notas

* "De todos os animais limpos tomarás para ti sete e sete, o macho e sua fêmea; mas dos animais que não são limpos, dois, o macho e sua fêmea." (Gênese 7:2)

Referências

[1] Kardec. "A Gênese. Os milagres e as predições segundo o Espiritismo". 34a Edição. FEB.Trad. de Guillon Ribeiro. (1991).
[2] Frankel, H. R. (2012). The continental drift controversy (Vol. 2). Cambridge University Press.
[3] Ver, por exemplo, o que a Wikipei descreve sobre o DNA: a https://en.wikipedia.org/wiki/DNA
[4] Tirard, S. (2010). Origin of life and definition of life, from Buffon to Oparin. Origins of life and evolution of biospheres, 40(2), 215-220.