7 de abril de 2018

Kardec sobre reformas sociais e discussões políticas no movimento espírita (1862)

Reconhecei, pois, o verdadeiro espírita pela prática da caridade 
em pensamentos, palavras e atos, e dizei a vós mesmos 
que aquele que em sua alma nutre sentimentos de animosidade, 
de rancor, de ódio, de inveja e de ciúme mente para si mesmo 
se pretende compreender e praticar o Espiritismo [1].
O que se pode dizer de alguns espíritas que, a pretexto de seguirem modas políticas atuais, falam em nome da doutrina e pretendem arrastar todo o movimento para dentro de discussões que não lhes dizem respeito? Certamente muito poderia ser escrito. A nós, porém, basta o que escreveu o próprio Allan Kardec em quem muitos desses espíritas "politizados" pretendem se escorar. E o que disse ele? Uma rápida pesquisa na herança escrita de Kardec é suficiente para resgatar o ponto de vista do Codificador sobre assuntos paralelos promovidos por aqueles de seu tempo que fizeram a mesma coisa.

A análise dessas questões à luz de Kardec conclui tanto pelo preparo que o verdadeiro espírita deve ter não só para propagar determinadas ideias, como também pela atenção devida a certos escândalos promovidos por pessoas que passam a falar em nome do Espiritismo, pregando o engajamento de seus adeptos em partidos políticos ou na defesa de personalidades políticas de moral duvidosa. O exaltamento de opiniões que leva a separação dos grupos é velho estratagema conhecido [1]:
A tática ora em ação pelos inimigos dos espíritas, mas que vai ser empregada com novo ardor, é a de tentar dividi-los, criando sistemas divergentes e suscitando entre eles a desconfiança e a inveja. Não vos deixeis cair na armadilha, e tende certeza de que quem quer que procure, seja por que meio for, romper a boa harmonia, não pode ter boas intenções. Eis por que vos advirto para que tenhais a maior circunspeção na formação dos vossos grupos, não só para a vossa tranquilidade, mas no próprio interesse dos vossos trabalhos [1a, grifos meus].
Quantas vezes será necessário citar "Porquanto cada árvore é conhecida pelo seu fruto. Porque nem os homens colhem figos dos espinheiros, nem dos abrolhos vindimam uvas. O homem bom, do bom tesouro do seu coração tira o bem; e o homem mau, do mau tesouro tira o mal. Porque, do que está cheio o coração, disso é que fala a boca". (Lucas, VI: 43-45) ? 

Discussões políticas e reforma social: o que disse Kardec sobre isso?

Como não existe limites para a criatividade dos homens quando em serviço de seus interesses particulares, é necessário ainda mais uma vez citar Kardec [1] quanto às variedades de táticas usadas pelos que pregam a divisão no movimento:
Devo ainda assinalar-vos outra tática dos nossos adversários, a de procurar comprometer os espíritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da doutrina, que é o da moral, para abordarem questões que não são de sua alçada e que, a justo título, poderiam despertar suscetibilidades e desconfianças. Não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reuniões tudo quando se refere à política e a questões irritantes; a tal respeito, as discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar à moral, quanto esta for boa. [1b, todos os grifos são meus]
Eis a verdade sobre o ponto de vista de Kardec a respeito de discussões políticas e outras "irritantes" no âmago de um movimento. Mas, no que se funda essa opinião? Também responde Kardec:
Procurai no Espiritismo aquilo que vos pode melhorar: eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais realmente úteis serão uma consequência natural; trabalhando pelo progresso moral, lançareis os verdadeiros e mais sólidos fundamentos de todas as melhoras, e deixareis a Deus o cuidado de fazer com que cheguem no devido tempo. No próprio interesse do Espiritismo, que é ainda jovem, mas que amadurece depressa, oponde uma firmeza inquebrantável aos que quiserem vos arrastar por uma via perigosa.[1c, grifos meus]
É bastante claro que Kardec não nutria nenhuma ilusão com relação à natureza moral dos homens. Assim,  qualquer reforma dificilmente pode ser imposta "de cima para baixo", tanto por força de lei como de ação política de qualquer natureza. Dai a necessidade incessante de os verdadeiros espíritas "trabalharem para o progresso moral" através do que as "sementes" ou "fundamentos" para os melhores dias virão. Esse trabalho se dá inicialmente pelo esclarecimento em que as próprias ações em direção ao bem são rigorosamente observadas pelas pessoas e que dizem muito mais sobre as reais intenções do adepto.

É claro que não se trata de uma promessa para a vida presente e nem poderia ser, uma vez que o Espiritismo prega a imortalidade da alma e as vidas sucessivas. Reconhecida essa realidade, a força do materialismo - que promovo muito do ardor e da exaltação por reformas imediatas - desaparecerá. 

 Sobre divergência de opinião

O principal problema no acúmulo de discussões inúteis no âmago do movimento é o desvio de finalidade e falta de zelo para com os verdadeiros princípios espíritas. Mas, o que fazer com as divergências de opinião? O orgulho e a vaidade exacerbada de alguns nutrem a disseminação de discussões em torno de questões irritantes que, para Kardec, pode ser decididas por meio de um apelo à autoridade da maioria:
Repetirei aqui o que disse noutras ocasiões: em caso de divergência de opinião, o meio fácil de sair da incerteza é ver qual a que reúne mais partidários, pois há nas massas um bom-senso inato que não se poderia enganar. O erro só seduz alguns espíritos enceguecidos pelo amor próprio e por um falso julgamento, mas a verdade sempre acaba vencendo. Tende certeza, portanto, que o erro deserta das fileiras que se esclarecem e que há uma obstinação irracional em crer que um só tenha razão contra todos. [1d, grifos meus]
A razão, segundo Kardec, está no aprendizado: a verdade prevalecerá entre os adeptos que se esclarecem. Um exemplo: as redes sociais em todo mundo testificam o surgimento de pessoas que ainda creem que a Terra é plana. Teorias de conspiração espalham pânico entre as massas, baseando-se em crenças ridículas e claramente falsas. Como isso pode acontecer depois de tantos anos de progresso científico? O orgulho e a vaidade de alguns, que querem fazer valer suas opiniões particulares e adquirir adeptos, criam e disseminam discussões irrelevantes em torno de questões já bastante resolvidas. Enquanto isso, o essencial, o que deve ser aprendido é desprezado. O remédio é o conhecimento: a medida que se esclarece as massas passam a ignorar sistematicamente os "falsos profetas" que exploram a excesso de credulidade e a ignorância.

Um exemplo de debate inútil recente: o reaparecimento dos que pregam que a Terra é plana. Segundo Kardec, apenas o esclarecimento poderá isolar os falsos profetas que exploram o excesso de credulidade e ignorância das massas. Da mesma forma, em questões sem consenso científico, o verdadeiro espírita deve ter cautela com as opiniões de certas pessoas que pregam a divisão no seio do movimento espírita.
Se com questões já resolvidas ainda se veem discussões inúteis e teorias de conspirações serem criadas, o que diremos daqueles problemas mal resolvidos para os quais inexiste qualquer apoio científico ou base natural de decisão? Isso é o que se observa presentemente no âmago do movimento espírita que promove assuntos em clara dissonância com os princípios e fundamentos do Espiritismo.
Eis por que vos digo com toda a segurança para que marcheis com passo firme na via que vos é traçada. Dizei aos antagonistas que se eles querem que os sigais, que vos ofereçam uma doutrina mais consoladora, mais clara, mais inteligível, que melhor satisfaça à razão e que, ao mesmo tempo, seja uma garantia melhor para a ordem social. Pela vossa união, frustrai os cálculos dos que vos queiram dividir; provai, enfim, pelo vosso exemplo, que a doutrina nos torna mais moderados, mais dóceis, mais pacientes, mais indulgentes, o que será a melhor resposta a dar aos seus detratores, ao mesmo tempo que a visão de seus resultados benéficos é o mais poderoso meio de propaganda. [1e, grifos meus]
Moderação, docilidade, paciência e indulgência não estão de acordo com a propagação de ideias que exigem  mudanças imediatas a todo custo. O recado de Kardec é bastante claro e não poderá ser ignorado por todos os que dizem segui-lo verdadeiramente.

Referências

[1] Kardec A. "Cumprimentos de Ano Novo". Revue Spirite, Fevereiro de 1862. (versão IPEAK www.ipeak.com). O artigo original em Francês tem como título "Les souhaits de nouvel an: Réponse à l'adresse des Spirites Lyonnais à l'occasion de la nouvelle année".
[1a] Original em Francês:
La tactique déjà mise en œuvre par les ennemis des Spirites, mais qu'ils vont employer avec une nouvelle ardeur, c'est d'essayer de les diviser en créant des systèmes divergents et en suscitant parmi eux la défiance et la jalousie. Ne vous laissez pas prendre au piège, et tenez pour certain que quiconque cherche, par un moyen quel qu'il soit, à rompre la bonne harmonie, ne peut avoir une bonne intention. C'est pourquoi je vous invite à mettre la plus grande circonspection dans la formation de vos groupes, non seulement pour votre tranquillité, mais dans l'intérêt même de vos travaux.
[1b] Original em Francês:
Je dois encore vous signaler une autre tactique de nos adversaires, c'est de chercher à compromettre les Spirites en les poussant à s'écarter du véritable but de la doctrine, qui est celui de la morale, pour aborder des questions qui ne sont pas de son ressort, et qui pourraient à juste titre éveiller des susceptibilités ombrageuses. Ne vous laissez pas non plus prendre à ce piège; écartez avec soin, dans vos réunions, tout ce qui à rapport à la politique et aux questions irritantes; les discussions, sous ce rapport, n'aboutiraient à rien qu'à vous susciter des embarras, tandis que personne ne peut trouver à redire à la morale quand elle est bonne.
[1c] Original em Francês:
Cherchez, dans le Spiritisme, ce qui peut vous améliorer, c'est là l'essentiel; lorsque les hommes seront meilleurs, les réformes sociales vraiment utiles en seront la conséquence toute naturelle; en travaillant au progrès moral, vous poserez les véritables et les plus solides fondements de toutes les améliorations, et laissez à Dieu le soin de faire arriver les choses en leur temps. Opposez donc, dans l'intérêt même du Spiritisme qui est encore jeune, mais qui vieillit vite, une inébranlable fermeté à ceux qui chercheraient à vous entraîner dans une voie périlleuse.
[1d] Original em Francês:
Je répéterai ici ce que j'ai dit en d'autres occasions: en cas de divergence d'opinion, il est un moyen facile de sortir d'incertitude, c'est de voir celle qui rallie le plus de partisans, parce qu'il y a dans les masses un bon sens inné qui ne saurait tromper. L'erreur ne peut séduire que quelques esprits aveuglés par l'amour-propre et un faux jugement, mais la vérité finit toujours par l'emporter; tenez donc pour certain qu'elle déserte les rangs qui s'éclaircissent, et qu'il y a une obstination irrationnelle à croire qu'un seul a raison contre tous.
[1e] Original em Francês:
C'est pourquoi je vous dis en toute sécurité de marcher d'un pas ferme dans la voie qui vous est tracée; dites à vos antagonistes que, s'ils veulent que vous les suiviez, ils vous offrent une doctrine plus consolante, plus claire, plus intelligible, qui satisfasse mieux la raison, et qui soit en même temps une meilleure garantie pour l'ordre social; déjouez, par votre union, les calculs de ceux qui voudraient vous diviser; prouvez enfin, par votre exemple, que la doctrine rend plus modéré, plus doux, plus patient, plus indulgent, et ce sera la meilleure réponse à faire à ses détracteurs, en même temps que la vue de ses résultats bienfaisants est le plus puissant moyen de propagande.