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17 de junho de 2019

Crenças Céticas XIX: casos modernos e seus paralelos

Cristo carregando a cruz (detalhe). H. Bosch (~1500).
Abrimos um parêntese na nossa exposição aos espíritas sobre o problema da aceitação da existência dos espíritos. Lembramos nossos antigos posts sobre crenças céticas [1][2], considerando os debates populares em redes sociais sobre a 'Terra plana' e do 'geocentrismo'. Lembramos tudo isso, e não podemos deixar de fazer um paralelo com o problema da aceitação de alguns princípios espiritualistas. Jamais imaginaríamos que o ceticismo ingênuo poderia se revestir de aspectos tão dramáticos na atualidade.

Se em pleno Séc. XXI temos gente que defende "Terra Plana", que esperança há na Humanidade em aceitar as realidades maiores do espírito? 

Do ponto de vista espírita, penso que as manifestações aparentemente grandes dos crentes modernos em Terra Plana e no geocentrismo se explicam pelo retorno ainda tardio de milhões de Espíritos que não tiveram a chance de entender melhor o assunto. Têm eles dificuldades enormes de raciocínio a ponto de serem incapazes de compreender abstrações mesmo que bem simples. Mas, nas redes sociais, talvez pela primeira vez em suas vidas imortais, encontraram a chance de manifestar publicamente uma opinião, capitaneados por gente inescrupulosa que lhes exploram as deficiências intelectivas.

Princípio unificador X conspiração

O que caracteriza a ciência modera sempre foi a descoberta de um princípio ou fundamento unificador muitas vezes inacessível aos sentidos ordinários. Tomemos o caso da 'Terra esférica': esse princípio unifica e coordena a explicação de um grande grupo de fenômenos celestes (as variações de luz entre dia e da noite, a posição do sol em vários lugares, etc). Entretanto, não é possível ver com os próprios olhos a esfericidade da Terra, a menos que se vá para o espaço exterior, o que é possível, mas não a todas as pessoas do mundo. Da mesma forma, a gravitação universal: por meio do uso de uma única expressão de força entre corpos massivos (dai sua universalidade), um vasto conjunto de fenômenos celestes foi explicado. Entretanto, não se sente nem se vê a força de gravitação que o Sol exerce sobre a Terra e os outros planetas. 

Assim, quase sempre no final da maturação de um paradigma científico, leis ou princípios são declarados, mas não são sensorialmente acessíveis. Sua força como ciência vem da sua capacidade de explicar e unificar fenômenos, a ponto de ser possível classificá-los em domínios diversos, bem como prever outros ainda desconhecidos. Para fazer ciência, eles são admitidos desde o início a fim de se prover tal unificação e previsão fenomenológica.

Com os crentes céticos, entretanto, o único princípio unificador que existe é a conspiração sobre o mundo, que é a base de sua crença. Tomamos 'mundo' aqui não como o planeta inteiro, mas como um aspecto da realidade. Assim, um crente cético necessariamente é um crente na conspiração e um cético em relação a uma realidade, seja ela bem estabelecida cientificamente ou não. É por isso que crentes na Terra Plana, por exemplo, rejeitam qualquer evidência que, de outra forma, é prova do princípio unificador da esfericidade da Terra. Ao invés disso, cada evidência é explicada por causas independentes entre si ou se invocando a conspiração, que é um gigantesco conluio entre agentes mal- intencionados para justamente enganar o crente cético.

No caso em que o ceticismo é contrário ao que está bem estabelecido, os céticos se comportam de forma ridícula para os que participam da crença compartilhada escorada na ciência. Porém, a reação negativa de uma maioria ao conspiracionismo e à crença cética pueril constituem, na cabeça desses crentes, a própria prova da conspiração. Assim, o conspiracionismo se torna uma 'profecia autorealizada', afinal a maioria não tem condições de oferecer contra-evidências 'simples' ou 'práticas' às crenças pueris céticas, as pessoas apenas repetem o que aprenderam. Mas, para os crentes céticos, tudo acontece como se, de fato, estivesse em curso uma conspiração.

No segundo caso, porém, a situação é muito mais complicada porque não é fácil distinguir cada grupo. A comparação aqui cai bem, pois a ideia da sobrevivência da alma - assim como sua existência e continuidade tal como apresentada por A. Kardec - é um princípio unificador que pode explicar uma variedade imensa de fenômenos e paradoxos de natureza religiosa ou filosófica. Porém, ele não está disseminado como crença compartilhada (a menos pelos espíritas obviamente), porque popularmente não tem o selo de  'cientificamente provado' e não é propagado por meio da educação formal. 

Entretanto, o paralelo se aplica porque:
  • O princípio unificador explica inúmeros fenômenos, e está, por isso, harmonicamente relacionado a eles que formam sua base empírica;
  • A fenomenologia, mesmo que publicamente acessível, somente pode ser compreendida de posse do princípio unificador;
  • O princípio unificador envolve certo grau de abstração, pois ele não pode ser acessado diretamente pelos sentidos ordinários. Em particular, para compreender esse estado de coisa, é necessário estudar toda a teoria do princípio unificador, inteirar-se de detalhes de sua ação etc. Isso requer muito esforço, boa-vontade e tempo;
  • A conspiração aqui é criada contra os fatos, contra os que os apoiam ou geram ou contra o princípio unificador. Para os céticos endurecidos, todos os médiuns mentem - uma prova da conspiração dos que geram. Para outros, qualquer fato ou fenômeno têm uma explicação pronta (quase sempre na base do 'engano', 'erro', 'experimento mal feito' etc), como uma conspiração de falhas. Para outros céticos mais sofisticados, ideias do senso comum, crenças compartilhadas ou próprias, má vontade no estudo etc, obstam o pleno entendimento do princípio unificador. 
Dessa forma, o tipo de 'prova' que crentes céticos nos fatos psíquicos exigem não pode ser obtido se não se percorrer exaustivamente toda a explicação que eles justamente querem refutar a qualquer custo. Isso implica em conhecer o assunto melhor do que o mais fervoroso adepto, coisa que crentes céticos nunca o fazem, seja porque têm má-vontade ou porque são simplesmente incompetentes

Podem ser grandes os prejuízos à educação que ceticismo cético traz com questões já resolvidas cientificamente - como a esfericidade da Terra ou sua posição no sistema solar. Poderíamos citar ainda outras controvérsias algo mais sofisticadas, como o Darwinismo ou a teoria do 'Big Bang' [3]. 

Nosso paralelo, porém, facilita muito entender e defender a ideia de que o ceticismo cético, se aplicado a questões que não se consideram cientificamente resolvidas, tem um efeito ainda mais deletério. Com essas questões, o ceticismo cético é indistinguível, muitas vezes, de uma postura supostamente científica ou rigorosa. É por isso que não se veem avanços em muitas áreas do conhecimento consideradas  'limítrofes' ao bem estabelecido, porque o 'conhecimento compartilhado' se confunde com esse ceticismo e impede sua livre investigação. 

Referências

[1] Primeiro post sobre 'crenças céticas': Crenças Céticas I: Introdução (2010)  

[2] Último post sobre 'crenças céticas': Crenças céticas XXVII: a Navalha de Ockham (2017) 

[3] Tanto quando sei, crentes céticos não se revoltaram ainda contra a noção moderna dos átomos e a física quântica  - todos exemplos de princípios unificadores inacessíveis aos sentidos ordinários (tal como os espíritos). Provavelmente é uma questão de tempo para que isso aconteça. 

22 de maio de 2019

Sobre a existência dos Espíritos: diferença entre percepção e observação (I)

Cena do livro "Emperor of Thorns"  (Arte da obra por
Broken Empire Omnibus ed. Jason Chan)
Podemos dizer com toda a certeza que o problema da aceitação da existência dos Espíritos - enquanto forças externas a nós - pode ser colocado em uma forma semelhante ao problema da aceitação da existências de coisas não observáveis pela Ciência. Já discutimos esse problema aqui neste blog, quando apresentamos um artigo de P. Churchland [1] onde esse autor descreve o chamado "movimento Browniano" como uma das evidências para a existência de átomos. Por muito tempo, a questão sobre a existências de átomos foi debatida, mas somente foi definitivamente aceita com avanços mais recentes da física moderna. 

A questão da existência dos Espíritos parece ser um capítulo parecido numa obra sobre a "aceitação dos invisíveis", ou seja, sobre a existência de entidades que não sensibilizam diretamente os sentidos humanos comuns. Assim, há coisas no mundo que, não obstante existirem, não são percebidas por nós diretamente. Mas, como podemos estar certos de que elas de fato existem?  Quais são as condições de sua aceitação? 

A história recente da Ciência é uma progressão de evidências que acabaram por nos separar definitivamente da ideia de que somente aquilo que podemos perceber diretamente existe [2]. A existência dos Espíritos adiciona um novo capítulo porque não parece haver por enquanto qualquer meio (instrumento, [2b]) capaz de transmitir a nós a sensação da existência deles.

Obviamente, o problema não existe para os que sentiram ou sentem a presença os Espíritos. Os sentidos humanos, desde que expandidos (como no caso da mediunidade) podem percebê-los. Em nossa discussão inicial, nos referimos aos sentidos humanos ordinários para depois abordar a questão dos sentidos expandidos. Trataremos disso em um último post de uma série de três. 

O assunto é interessante e envolve uma mudança mais ou menos radical na noção do senso comum de acreditar nas coisas. De fato, essa mudança se verificou ao longo de diversas ciências (como a física e a química), que foram "obrigadas a crer" em coisas que não podem ser observadas diretamente, mas que existem. 

Diferença entre percepção e observação

É necessário, antes de tudo, distinguir entre 'percepção' e 'observação' dos fenômenos da Natureza. 
Uma percepção nada mais é que um estado mental (ou seja, um estado privado ao indivíduo que percebe) que não implica diretamente em qualquer conhecimento próprio sobre aquilo que é percebido [2c]. 
Exemplo: vejo um lápis em um copo com água, ele parece quebrado. Mas sei que o lápis não está quebrado de fato. A visão do lápis quebrado é uma imagem que se forma na minha mente, mas que não corresponde ao conhecimento que tenho sobre o lápis. 

As ciências antigas (antes do renascimento) eram muitas vezes baseadas em percepções dos sentidos. Mas, mesmo os antigos já sabiam que os sentidos são facilmente enganados. Para que uma percepção gere conhecimento, ela deve estar acompanhada de outras informações sobre a coisa percebida. Esse conhecimento pregresso é muitas vezes obtido de diferentes maneiras e representa um tipo de concepção própria pré-existente do mundo (que pode ser herdado, aprendido etc). De certa forma,  nossa percepção é revestida dessa informação adicional para que aquilo que sentimos seja aceito como verdadeiro de fato.

As ciências modernas são baseadas nas chamadas 'experiências sensíveis' que são, verdadeiramente, observações [3]. De forma geral, podemos dizer que observações incluem as percepções dos sentidos, mas não se restringem a elas [2c] porque as observações são guiadas por algo mais.

Entretanto, podemos argumentar que as ciências modernas em nada modificaram a necessidade das percepções quando instrumentos foram desenvolvidos para permitir que os invisíveis (no sentido amplo) se tornasse 'visíveis', ou seja, acessíveis aos sentidos humanos.  De fato, instrumentos são úteis em Ciência porque eles permitem [2c]: 
  • Melhorar a acurácia da percepção;
  • Padronizar as observações feitas através deles.
Considere a imagem da Figura 1. Ela é o registro de vírus da Hepatite A conseguida por meio de um microscópio eletrônico. Se não tenho como ver um vírus com meus olhos, com o microscópio posso inclusive medir o seu tamanho em uma escala e compará-lo ao de outros objetos igualmente invisíveis a sua volta. 
Fig. 1 Imagem de um microscópio mostrando vírus da Hepatite A. Como posso estar certo de que  essa imagem realmente corresponde a um vírus da Hepatite A? Mais ainda, ela é uma prova de vírus existem? 
Entretanto, penso de forma ingênua quando acredito que minha percepção foi apenas expandida quando observo essa imagem do vírus pelo microscópio. Somente devo acreditar que a imagem corresponde mesmo ao vírus se souber como o microscópio funciona, ou seja, sou obrigado a crer em uma sequência grande de suposições, aproximações e informações que justificam categoricamente que aquela imagem é mesmo da tal entidade (o vírus) invisível. 

Ora, todas essas coisas adicionais não são obtidas exclusivamente por meio de observações e, muito menos, percepções. Elas resultam de estudos em inúmeras outras ciências que, muitas vezes, nada tem a ver com o objeto que percebo através do instrumento. Esse conjunto de raciocínios, aproximações e informações é conhecido como teoria e constitui elemento fundamental de uma observação científica:
Uma observação é um procedimento complexo no qual tanto a percepção como um prejulgamento de natureza teórica concorrem para produzir uma afirmação a respeito da coisa observada, o que inclui sua própria existência, caso ela não seja percebida pelos sentidos [2c]. 
Uma maneira de tentar salvar nossa crença exclusiva nas percepções (o popular "ver para crer") é justamente só aceitar como existindo aquilo que é validado por nossas percepções e rejeitar qualquer coisa que venha por meio de uma teoria. Mas, ao se fazer isso:
  • Somente aquilo que é percebido é real;
  • Qualquer observação, para ser válida, deve ser reduzida a uma percepção.
Portanto, aceitar esse ponto de vista leva a rejeição de quase tudo que a ciência moderna descobriu. Não é possível aceitar uma observação por instrumentos porque elas não envolvem apenas percepções. Logo, não há como escapar à conclusão:
Ao se aceitar a existência de entidades não observáveis (os invisíveis) estamos também obrigatoriamente aceitando a teoria que postula sua existência e as teorias por meio das quais os instrumentos de sua observação são validados.
De forma simbólica:
A existência de uma entidade I (invisível) implica na aceitação da teoria T para a qual I existe. O oposto também vale: ao se aceitar uma teoria T para a qual I existe, também aceitamos a existência de I
Assim, a imagem do vírus da Hepatite A (Fig. 1) não constitui a única prova da existência desse vírus. De fato, se ela não estivesse disponível, a medicina ainda acreditaria na existência dos vírus como entidades necessárias para explicar uma quantidade grande de patologias. Em ciência muitas vezes não é necessário que provas sensíveis existam (de forma a sensibilizar os sentidos humanos, ainda que por meio de aparelhos) para que as causas dos fenômenos sejam aceitas.

Esse tipo de postura é chamada realista, mas trata-se de um tipo específico de realismo que agora nada tem a ver com o realismo ingênuo das meras percepções. Assim, por exemplo, tenho toda razão em rejeitar que aquela imagem seja mesmo a da entidade invisível (o vírus da Hepatite A na Figura 1) se a teoria que explica como ela é gerada estiver errada. Isso pode acontecer se o instrumento de medida estiver com defeito, por exemplo [5]. A maior parte das pessoas aceita a imagem, entretanto, por uma crença ingênua que dispensa entender os aspectos teóricos envolvidos.

Por causa de certo preconceito adquirido, nossa tendência é desejar que o "senso de realidade" das coisas invisíveis seja o mais parecido possível com aquilo que percebemos através das percepções. Essas estão originalmente associadas à maneira primitiva como nós aprendemos sobre o mundo a nossa volta. Trazemos uma representação desse mundo na mente que foi inteiramente adquirida por meio das percepções. Essa representação é reforçada por estímulos externos que frequentemente nos alcançam (pelos mesmos sentidos), de forma que tomamos como real apenas aquilo que nos chegam exatamente por eles.

A dependência de nossa crença pelas teorias

A conclusão que tiramos sobre a dependência crucial que a crença em coisas invisíveis tem da teoria que as postula aumenta consideravelmente a importância das teorias como mecanismos de apreensão da realidade a nossa volta.

De fato, uma teoria tem como características [2c]:
  • Uma explicação logicamente suficiente sobre fatos ou objetos observados,
  • O máximo que se pode exigir de uma teoria é que ela seja compatível com os dados existentes,
  • Não necessariamente, uma teoria é uma explicação "cogente" [4] do objeto que explica.
Em outras palavras, quando aceitamos uma teoria como base para a crença na existência de coisas invisíveis (os não observáveis) estamos de fato dando um "salto no escuro" porque não temos meios adicionais (exceto pelos próprios dados disponíveis que são limitados) de "comprovar" que aquela teoria é, de fato, verdadeira.

Fig. 2 Síntese dos conceitos descritos aqui: a observação como resultado das percepções guiadas com argumentos de natureza teórica que leva ao conhecimento.
Entretanto, nem tudo o que uma determinada teoria admite como existindo para explicar um ou mais fenômenos na Natureza necessariamente tem sua existência na realidade. Assim a entidade I postulada pode ser apenas um "instrumento teórico" necessário para a explicação e nada mais. A questão do realismo é presentemente um debate com aspectos profundos porque levanta dúvidas por parte dos que são céticos dessa postura realista. Entretanto, permanece com grande força o argumento: se as entidades teóricas postuladas não existem de alguma forma, como é possível que teorias científicas tenham tamanho sucesso preditivo?

No próximo post: realismo e ceticismo.

Referências e Comentários

[1]  Como a parapsicologia poderia se tornar uma ciência. (P. Churchland).

[2] Uma ponto de vista sobre as coisas conhecido como "realismo do senso comum": somente o que pode ser observado é "real".

[2b] Há diversas evidências sobre a ação dos Espíritos em equipamentos eletrônicos. O fenômeno das "Vozes Eletrônica" é um desses casos que merecem melhor investigação. Entretanto, salvo contrário, não se pode deixar de qualificá-los como um tipo de mediunidade de efeitos físicos que ainda prescinde da presença humana para sua manifestação.

[2c] Agazzi, E., & Pauri, M. (Eds.). (2000). The reality of the unobservable: Observability, unobservability and their impact on the issue of scientific realism (Vol. 215). Introduction by E. Agazzi e M. Pauri. Springer Science & Business Media.

[3] Eis uma importante face da revolução do renascimento: a invenção da ciência moderna que viria a fundamentar a crença na observação (como definido acima) e na teoria.

[4] Diz-se de um argumento expresso de forma clara e que é capaz de persuadir as pessoas. Suas premissas são verdadeiras, mas a conclusão é apenas provavelmente verdadeira.

[5] Nesse caso, a imagem produzida terá sido alterada de forma mais ou menos substancial por outros fatores que não fazem parte da "explicação normal" da teoria do microscópio. É óbvio que uma teoria verdadeiramente abrangente do microscópio conseguirá prever inclusive o efeito de fatores que gerem os defeitos.


1 de junho de 2017

Crenças céticas XXVII: A Navalha de Ockham (e comentários sobre super-psi)

Não é comum, nos embates entre crentes e céticos, que conceitos ou princípios epistemológicos sejam aplicados indiscriminadamente, muitas vezes em apoio de argumentações mal feitas ou inválidas. Um desses princípios - de que se tem abusado bastante - é a famosa "Navalha de Occam" (ou Ockham, em inglês, Occam's razor). A apresentação feita na Wikipedia (1) é suficiente para introduzir o "princípio da parsimônia", como também chamada essa regra, que pode ser usada erroneamente  em defesas pouco válidas de opinião. Há várias maneiras de se enunciar esse princípio:
Se em tudo o mais forem idênticas as várias explicações de um fenômeno, a mais simples é a melhor (1).
Entidades não devem ser multiplicadas sem necessidade (2).
Não se deve admitir mais causas para as coisas naturais do que aquelas que são tanto verdadeiras como suficientes para explicar as aparências. Portanto, aos mesmos efeitos naturais devemos, tanto quanto possível, associar as mesmas causas. (I. Newton, 3)
Colocado dessa forma, as chances de sucesso maior desse princípio pode acontecer com fatos para os quais nenhum paradigma bem estabelecido exista e estamos diante de decisão quanto a melhor explicação inicial. Se um tal paradigma existir, a aplicação da navalha é muito limitada; ela jamais poderá ser invocada para desqualificar o paradigma, que adquire status de verdade até que seja sobrepujado por teoria mais completa.

O princípio pode ser usado diante de embates entre teorias rivais que resultam nas mesmas "evidências experimentais", sem nenhuma garantia que leve à teoria "correta". De fato, há casos que mostram que isso não acontece. Podemos dizer que esse princípio tem alguma chance orientadora, desde que as causas subjacentes sejam realmente simples, o que dificilmente ocorre nos fenômenos naturais ou desconhecidos do homem.

Uma das grandes críticas à aplicação da navalha é o conceito de "simplicidade". Aquilo que nos parece "simples" depende de nossa visão do mundo, daquilo que acreditamos, de onde estamos etc. Portanto, sua aplicação está condicionada a certo preconceito por parte do experimentador. Com certeza, nas ocorrências ordinárias, do dia-a-dia, a navalha não falhará porque as causas subjacentes para os fenômenos são simples, banais ou amplamente conhecidas. Assim, se chego em minha casa e encontro a porta arrombada, com móveis revirados etc, dificilmente concluo que isso foi obra do acaso, de uma "tempestade" e não que, de fato, minha residência tenha sido furtada, que um ou mais indivíduos entraram nela etc.

Mas, o mundo da ocorrências banais dos homens não guarda semelhança com a dos fenômenos da natureza. A Fig. 1 contém um exemplo exagerado de má aplicação do princípio de Ockham. É uma comparação da tabela periódica moderna com a teoria dos quatro elementos, que estaria certa, segundo Occam, por ser a explicação mais simples. O erro aqui está em contrapor visões completamente diferentes da natureza, demonstrando que a noção de simplicidade depende dessa visão ou das circunstâncias que cercam o fenômeno:
Ao ouvir o trotar de cascos, pense em cavalos e não em zebras, a menos que esteja na África, quando então, certamente, trata-se de zebras. 
Fig. 1 Exemplo de aplicação incorreta da navalha de Occam: contrapor a tabela periódica como uma explicação para a origem das propriedades da matéria e a teoria antiga dos quatro elementos. O mais simples nem sempre é o "verdadeiro", mas, também, a noção de simplicidade depende da época e da visão de mundo que se tem.
Ernst Mach formulou uma versão diferente da navalha de Occam pelo seu "princípio de economia":
Cientistas devem usar os meios mais simples para se chegar aos resultados e excluir tudo que não seja percebido pelos sentidos. (2)
A exclusão daquilo que não é "percebido pelos sentidos" é um desastre nas ciências naturais, já que a maior parte das causas dos fenômenos é inacessível aos sentidos humanos comuns. Notamos, porém, que a navalha de Occam nada diz sobre a questão da "percepção pelos sentidos", de forma que essa reformulação de Mach nada tem a ver com o princípio original.

Da aplicação da navalha de Occam aos fenômenos espíritas: a hipótese de super-psi.

A navalha de Occam tem sido uma rota de desqualificação, por parte de céticos da fenomenologia chamada "paranormal" ou dos fenômenos espíritas. Aplicada de forma exagerada, torna-se uma ferramenta de negação sistemática dos fenômenos, que se reduzem a "alucinações", falhas de interpretações ou percepção, exageros psicológicos etc, tudo em nome da simplicidade do mundo.

Como pretensão teórica, busca-se refutar as "entidades desnecessárias", cumprindo aparentemente a regra de Ockham de simplicidade. Trata-se de flagrante desvio do princípio porque reduz uma ocorrência extraordinária a um fenômeno banal. Mas, "afirmações extraordinárias não exigem evidências extraordinárias ?" (4). À parte da questionabilidade desse aforismo - que é uma maneira diferente de se afirmar a navalha de Occam - o núcleo de negação está na própria refutação das evidências que já passaram do ponto e se tornam irrefutáveis. Aqui, o papel da navalha é dar um ar de "sofisticação" a uma reafirmação de uma crença que, em suma, trata esses fenômenos como produtos de uma gigantesca fraude consciente ou não. Não há dúvidas da aplicação incorreta desse princípio aqui, de forma que não há razão para se preocupar com ela.

Mas, há uma famosa controvérsia, entre "Super-Psi" versus "sobrevivência" que forneça um exemplo talvez de aplicação da navalha.  Algumas referências sobre esse embate são (5, 6, 7, 8). Em termos mais simples, trata-se de comparar a explicação espírita (sobrevivência após a morte, existência dos desencarnados como fonte de informação mediúnica etc) com algumas teses que refutam a sobrevivência pela admissão de faculdades quase oniscientes à mente humana (a chamada "tese super-psi"). "Super-psi" é uma causa teoricamente admitida como disseminada em alguns humanos, e que seria responsável por todos os fenômenos chamados "paranormais", sem a necessidade de postular a sobrevivência. De fato, "super-psi" é a única alternativa para os que aceitam a realidade dos fenômenos extraordinários do Espiritismo, sem, entretanto, aceitar sua real causa, o espírito.

Fig. 2 Respostas: "Simples, mas erradas; complexas, mas corretas".

Para os leitores que ainda não se inteiraram completamente do debate, oferecemos um resumo. As referências (6) e (8) são favoráveis a "hipótese super-psi" (HSP) e contrárias à "hipótese da sobrevivência" (HSV), como a chamam. Avançando na apresentação desse refinado ceticismo, adiantamos alguns pontos (ver 6) sobre HSP:
  1. As evidências fornecidas pelos chamados "fenômenos anômalos" são aceitas tais quais são ou, ao menos, acredita-se que uma base de fenômenos verídicos pode ser levantada em torno da qual se dá a disputa pela melhor explicação. O contenda de HSP X HSV não se dá mais em um ambiente cético em relação aos fenômenos, mas em relação a explicação representada por HSV;
  2. Muitos desqualificam a ideia da sobrevivência por considerá-la ininteligível e, portanto, estar além de uma solução científica; 
  3. Como não existe um mecanismo detalhado que explique como se dá a manifestação mediúnica, assume-se que não existiriam limites para a manifestação de "super-psi". Dessa forma, essa faculdade pode produzir qualquer tipo de fenômeno, em qualquer momento, lugar ou intensidade. Essa é a hipótese  mais importante e mais forte feita pelos proponentes de HSP;
  4. A operação de HSP não exige esforço por parte de seu agente, ela sequer exige intenção: é a hipótese da varinha mágica de Braude (6). Essa assunção é importante porque os fenômenos psíquicos são reconhecidamente incontroláveis;
  5. Como consequência disso, não existem "indicadores fenomenológicos" que permitiriam distinguir HSP de outra causa meramente fortuita, isto é, que HSP pode ocorrer de forma generalizada, sem que saibamos disso. É necessário admitir isso, pois, se não fosse assim, seria possível ostensivamente separá-la de ocorrências com causas comuns;
  6. HSV deve ser vista com reservas, porque ela implicitamente requer uma identificação forte entre a personalidade que viveu e aquela que se comunica. Seria importante "provar"  isso antes de se desprezar uma forma mais fraca de sobrevivência, como aquela que diz que a personalidade sobrevive "dissipando-se em um grande todo" ou existindo em uma realidade completamente separada da existência ordinária: é como acreditam alguns cristão com a ideia de céu e inferno. Portanto, não é contra qualquer ideia de sobrevivência que se colocam os adeptos da HSP, mas contra aquela que implica em um fenomenologia especial como produto da sobrevivência e da manifestação da personalidade desencarnada (em suma, é contra o Espiritualismo e o Espiritismo que HSP é proposta);
  7. A operação da faculdade de super-psi é admitida tanto quando o fenômeno manifesta informação que pode ser transmitida entre pessoas (chamado "informação sobre o quê") como com manifestação de habilidades, tendências, gostos típicas do personalidade desencarnada -  a chamada "informação sobre como". Aqui, Braude (6) tece várias considerações sobre isso e busca rejeitar o princípio de que "aquilo que não pode ser comunicado de forma normal, não pode comunicado de forma paranormal". Sua principal explicação para não limitar HSP em "comunicar habilidades" usa o próprio fenômeno paranormal e diz que nossas capacidades (e obstáculos) normais de aprendizado são "suspensas" no estado alterado, como, por exemplo, durante uma hipnose (ver p. 139 em 6). Assim, de novo, HSP seria capaz de fazer qualquer coisa;
  8. Com base em algumas falsas "identificações" de desencarnados em sessões conduzidas por pesquisadores, Braude se pergunta como HSV pode ajudar a entender como o comportamento exibido por algumas personalidades durante o transe se mostra tão diverso daquela historicamente conhecida. Para os proponentes de HSP, isso levanta dúvidas quanto à validade da sobrevivência, já que uma identificação completa não é possível em alguns casos. Dessa forma, HSP não estaria descartada como explicação;
Como podemos resolver a questão? No entendimento dos proponentes de HSP, a sobrevivência é admitida de uma forma muito específica. O que sobrevive necessariamente deve se manifestar como essa ou aquela personalidade pregressa, considerando os registros históricos disponíveis tais quais são. Assim, Braude em (6) rejeita alguns fenômenos notórios de manifestação de desencarnado com base na falta de evidências históricas. Ora, a maioria das ocorrências e personalidades históricas jamais deixaram quaisquer evidências (considere as personalidades históricas de Jesus, Buda, Moisés  etc), o que não é prova da inexistência dessas mesmas personalidades.

A incontrolabilidade e independência dos fenômenos psíquicos se deve à inteligência da fonte. Isso segue de forma natural de HSV, mas é uma hipótese a ser admitida forçosamente e sem justificativas no  cerne de HSP como diz a assunção 4 para se adequar a incontrolabilidade dos fenômenos.

A suspensão dos bloqueios normais de aprendizado das "habilidades como", que é feita na assunção 7 acima, certamente colide com a hipótese de que HSP não precisaria de condições "especiais" (transe etc) para se manifestar. Não há explicação sobre isso.

Ademais, uma leitura  atenda das explicações fornecidas em apoio a HSP mostra que seus proponentes misturam fenômenos que têm origem diferente: uma coisa é a manifestação mediúnica e outra as lembranças de vidas passadas. Em (6) as duas são supostamente explicáveis via HSP, porém, as circunstâncias com que se manifestam (memória de vida passada em crianças X xenoglossia com transe etc) sugerem fortemente que se tratam de fatos com causas diferentes. Isso acontece porque supõem-se que HSP não tem limites de ação, logo, ela pode dar origem a qualquer comportamento "paranormal".

Com relação a problemas de identificação, toda a dificuldade está relacionada com a ideia que se faz sobre como os desencarnados se manifestam: supõe-se sempre que - obrigatoriamente - devam se comportar exatamente como eram antes de sua morte. Como Kardec argumentou, não existem garantias que determinado nome que assine uma mensagem seja exatamente daquela personalidade a qual ele se refira. Aqui, certamente, os detalhes e mecanismos específicos que regem o fenômeno mediúnico têm papel fundamental e a explicação correta está nas mãos daqueles que fizerem melhor ideia sobre esses mecanismos.

Seria possível invocar a navalha de Occam e resolver a questão? Certamente, nesse nível superficial de abordagem, HSP seria a explicação "mais simples", pelo menos no número de causas (ela só postula a existência de "super-psi"), mas à custa de quê? De se imaginar a mente humana produzindo fenômenos aleatoriamente, em substituição a causas naturais, como uma faculdade praticamente onisciente? De se desprezar as circunstâncias e peculiaridades das manifestações, já que não conhecemos os detalhes do fenômeno e, portanto, tudo vale? Não é cômodo admitir HSP como fenomenologicamente indistinguível de uma causa natural para um fenômeno físico banal como diz a assunção 3?  Será mesmo que não existem os tais "indicadores fenomenológicos" de que fale a hipótese 5? Seria mesmo concebível que habilidades e capacidades possam ser "comunicadas" como admite 7? Diante de todas essas hipóteses "ad hoc", é impossível querer aplicar a navalha.

Somos da opinião que é preciso sondar com muito cuidado os fatos e os dados antes de se aceitar teorias baratas como HSP. No nível de esforço presentemente gasto na investigação dos fatos psíquicos, HSP se apresenta como uma alternativa que "salva as aparências" para aqueles que rejeitam a sobrevivência completamente, mas tem o mérito de aceitar os fenômenos. Ela existe graças a essa falta de esforço e por causa da raridade de alguns fatos psíquicos que não receberam a devida atenção ou adequado tratamento, mas que podem hoje ser "explicados" com base nas escarças descrições remanescentes. Nas palavras de A. Conan Doyle:
É um erro capital teorizar antes de se ter dados. Inconscientemente, começamos a torcer os fatos para se acomodar a teorias e não as teorias aos fatos.
Referências

(1) https://pt.wikipedia.org/wiki/Navalha_de_Occam
(2) https://en.wikipedia.org/wiki/Occam%27s_razor
(3) Newton, Isaac (2011) [1726]. "Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica" (3a edição). Londres: Henry Pemberton. ISBN 978-1-60386-435-0.
(4) Sobre isso ver nosso post: Crenças Céticas XIV.
(5) H. Hart. "Survival versus Super psi". http://www.survivalafterdeath.info/articles/hart/superpsi.htm
(6) S. Braude (1992). Survival or Super-psi? Journal of Scientific Exploration, 6(2), pp. 127-144. http://www.sgha.net/library/jse_06_2_braude.pdf
(7) J. Beischel e A. J. Rock. Addressing the survival versus psi debate through process-focused mediumship research. http://windbridge.org/papers/JP73BeischelRock2009.pdf
(8) M. Sudduth (2009). Super-Psi and the survivalist interpretation of mediumship. Journal of Scientific Exploration, 23(2), pp. 167-193. http://michaelsudduth.com/wp-content/uploads/2016/01/SurvivalMediumship.pdf

30 de dezembro de 2010

Crenças Céticas IX - Como refutar qualquer coisa que você não gostar.


Uma das melhores lições que se pode ter da literatura cética é sobre como tratar a evidência, fatos ou dados que estejam em conflito com suas próprias crenças, de forma tal que apenas o seu ponto de vista seja válido.

Uma estratégia comum de desmascaramento é apresentar conjecturas 'ad hoc' para descartar qualquer evidência de uma afirmação X. Essa estratégia funciona como método retórico para se ganhar uma argumentação (especialmente se os leitores estiverem inclinados a pensar como você), mas está longe de ser um argumento científico, porque, em ciência, hipóteses alternativas devem ser testadas, não meramente assumidas como possíveis.

Por exemplo, se cientistas estiverem buscando a causa do mal de Parkinson e a evidência confirmar a hipótese de que níveis de dopamina tem um papel fundamental nessa causa, não cai bem para um 'cético da Dopamina' dizer "Bem, é possível que outras causas desconhecidas existam, você não pode concluir que a dopamina seja importante, porque há outras explicações. Você está apenas manipulando as estatísticas."

Com certeza outras explicações são possíveis, mas nosso cético aqui não pode esperar que cientistas levem a sério o que diz, a menos que ele forneça evidências a favor de sua alternativa (antidopamina), isto é, a menos que ele forneça evidência de que 'outras explicações' podem dar conta da doença de Parkinson e tornar a hipótese da dopamina desnecessária ou implausível.

Uma opinião gerada no conforto do sofá sobre cenários imaginários ou possibilidades 'ad hoc' não é nem hipótese científica nem mesmo uma alternativa de hipótese. Somente se deve tomar tais alternativas seriamente se forem testadas ou confirmadas, ou, ao menos, se existir evidências independentes que façam a hipótese alternativa algo plausível ou relevante para aquele caso específico.

Por exemplo, para confirmar a 'hipótese psi' (sobre a existência de capacidades paranormais), você não precisa excluir qualquer outra possibilidade lógica ou cenário imaginário, porque possibilidades lógicas são, por definição, sempre possíveis e a imaginação é livre e ilimitada.

Hipóteses são confirmadas por suas consequências e predições. Se a 'hipótese psi' prediz, por exemplo, que certos cães irão manifestar determinados comportamentos (como no caso da pesquisa de R. Sheldrake), então a hipótese fica confirmada se tais cães manifestarem aquele comportamento por ela previsto. (Confirmado não significa que seja verdade absoluta, mas simplesmente que os dados empíricos a confirmam, pedem por mais pesquisa e que ela seja aceita de forma provisória).

Será que isso exclui outras alternativas ou outras possibilidades imaginárias? Não, mas possibilidades alternativas tem que ser confirmadas e testadas (ou demonstradas como plausíveis naquele caso específico) para que sejam aceitas como reais e pertinentes, não simplesmente assumidas com verdade porque um crítico de sofá não quer aceitar - por quaisquer razões ideológicas - o que a hipótese diz. Caso contrário, seria possível então rejeitar de forma arbitrária um resultado empírico a favor de qualquer hipótese usando de trucagem retórica com base em qualquer outra possibilidade ad hoc imaginável.

Para deixar esses pontos ainda mais claros, vamos supor que estamos examinando a afirmação "Jader Sampaio é o autor do blog espiritismocomentado.blogspot.com".

Uma foto e evidências facilmente refutáveis: será mesmo que Jader Sampaio é o autor de espiritismocomentado ?

Mas suponha que, dado minha filosofia pessoal, ideologia ou visão do mundo, eu queira desacreditar tal afirmação porque, para mim, é simplesmente impossível (isto é., estou certo que Jader Sampaio não existe, ou porque eu acho que ele não sabe usar um computador e, portanto, jamais poderia ter um blog).

Evidências são fornecidas a favor da ideia de que Jader Sampaio é na verdade o autor de tal blog:
  • O blog tem uma foto dele e um logo que ele criou;
  • Em uma determinada entrevista, um sujeito chamado 'Jader Sampaio' diz que aquele blog é dele mesmo;
  • O endereço IP (e outras informações técnicas) mostram que o blog pertence a alguém chamado 'Jader Sampaio';
  • Outros sites têm links para esse blog com a frase 'Blog de Jader Sampaio';
Se eu quiser refutar a tese de que espiritismocomentado é de Jader Sampaio, posso usar o truque da 'possibilidade lógica/explicação ad hoc/cenário imaginário de sofá' e descartar ou rejeitar as evidências acima:
  • Com relação ao nome e ao logo, posso dizer que isso nada prova porque qualquer pessoa pode fazer um blog e colocar como autor 'Jader Sampaio' e ainda fazer um logo parecido;
  • Com relação à entrevista, posso dizer que se trata de uma evidência anedótica e, portanto, inválida. Além disso, é possível que o sujeito em questão esteja simplesmente mentindo que seu nome seja Jader Sampaio. E, ainda que eu aceite que seu nome seja este, isso nada prova que o blog é dele. De qualquer forma, é apenas 'um testemunho' e, portanto, sem muito valor do ponto de vista científico;
  • Com relação ao endereço IP, posso afirmar que isso nada prova, porque é possível falsificar um endereço IP ou qualquer outra informação técnica como aquelas relativas a computadores ou um servidor específico;
  • Com relação aos links de outros sites para o tal blog e a referência como um 'blog de Jader Sampaio', posso mais uma vez dizer que isso nada prova, porque isso pode ser forjado também. De qualquer forma, é uma evidência anedótica (para um cético empedernido e racional como eu, isso nunca prova nada).
Note que os argumentos acima podem muito provavelmente ser motivados pelo meu desejo de desacreditar (especialmente, se eu sou alguém que mantém uma ideologia ou filosofia que pregue a inexistência de um tal Jader Sampaio). Mas, também, esses são argumentos baseados em especulações de sofá não provadas relativas a outras 'possibilidades' ou cenários imaginários que eu uso para invalidar qualquer evidência ou fato que me é apresentado. 

Note também que todas as possibilidades apresentada por mim são perfeitamente possíveis. Mas isso não as faz verdadeiras em nenhum caso específico. Para saber se tais especulações são verdadeiras, evidências que as suportem devem ser apresentadas (por exemplo, que um hacker tenha forjado um endereço IP em um servidor específico para falsificar também um nome como 'Jader Sampaio').

Se eu afirmar que um fator X causa um 'habilidade psi' em laboratório, então estou fazendo uma afirmação empírica positiva e, se eu sou um cientista, tenho que testar minha afirmação a respeito desse tal fator X para saber se isso é certo ou não (se não estiver correta, minha afirmação é cientificamente inútil contra objeções válidas de cientistas que obtenham evidências positivas para a hipótese psi); não basta simplesmente assumir isso sem evidência empírica. Obviamente, se eu quiser desacreditar a existência de uma habilidade psi, então estarei bastante motivado a aceitar qualquer alternativa ad hoc, mesmo que ela não tenha sido testada  ou confirmada. Mas, nesse caso, não estou mais a fazer ciência, estou simplesmente protegendo minhas crenças com especulações ad hoc e post hoc. Basicamente, estou racionalizando minha fé contra a existência de uma determinada coisa que eu não goste. Isso é, em essência, chamado de wishful thinking disfarçado como retórica científica.

Finalmente, como um exercício intelectual, imagine que você não acredite em uma determinada afirmação (você é livre para escolher qual afirmação será). Você descobrirá, então, se usar especulações ad hoc criativas, que sempre será capaz de se livrar de evidências que sejam contrárias as suas crenças. Quanto mais inteligente e esperto você for, tanto mais criativas e persuasivas serão suas 'especulações ad hoc'. Mas isso não muda o fato de que você está se enganando a si mesmo com um método sofisticado de racionalização de dados, fatos e evidências que desafiem suas crenças.

Em outras palavras, você está usando sua própria inteligência e razão para se enganar. Ao invés de usar isso para encontrar a verdade, você está usando sua capacidade para racionalizar ou proteger suas tendências, preconceitos ou preferências pessoais contra qualquer possibilidade de refutação. É um processo sofisticado de auto ilusão (que também impede que você perceba que esta se enganando).

Ninguém pode estar 100% livre de ser tendencioso ou de truques mentais para evitar essa 'dissonância cognitiva'. Mas, se você ama realmente a verdade, você certamente fará um esforço para controlar sua mente e manter seus preconceitos sob controle consciente. Aprenderá então bastante sobre sua própria mente, e também sobre a mente dos outros.

Este é um texto traduzido  e adaptado do original 'How to debunk any claim that you want to disbelieve', acessível em http://subversivethinking.blogspot.com/2009/04/how-to-debunk-any-claim-that-you-want.html

21 de dezembro de 2010

Crenças Céticas VIII - Alfred Wegener e a fraude dos continentes flutuantes.

Alfred Wegener.
O "impossível" é geralmente fixado por nossas teorias, não definido pela Natureza. Teorias revolucionárias habitam no inesperado.

(...) À medida que a ortodoxia Darwinista varria a Europa, seu mais brilhante oponente, o embriologista já velhinho Karl Ernst von Baer disse com amarga ironia que toda teoria triunfante passa por três estágios: primeiro ela é descartada como uma inverdade, então é rejeitada como contrária à Religião e, finalmente, é aceita como dogma e todos os cientistas dizem que sempre lhe apreciaram a verdade. Stephen J. Gould ("Ever since Darwin", Penguin books, 1991)

Continentes que flutuam como barcos no oceano? Então, o solo que pisamos não se mostra firme, robusto, desde a criação da Terra? Talvez a imensa maioria das pessoas não saiba, mas o chão que nós pisamos todos os dias, sobre o qual dirigimos nossos carros ou praticamos esportes está em movimento. Quando criança, me divertia ao constatar, olhando os mapas das aulas de geografia, que a costa oriental da América do Sul encaixava-se, como se fosse um quebra-cabeças, com a costa ocidental da África. Na minha falta de compreensão, não achava que isso seria mera coincidência, mas ignorava totalmente como aquilo poderia ter acontecido.

Essa observação infantil talvez não tenha passado em vão aos primeiros cartógrafos que, da mesma forma que eu, não conseguiram imaginar uma causa simples para semelhante “coincidência”.

De qualquer maneira, a ideia de que os continentes flutuam sempre foi considerada uma heresia científica ou, usando termo mais modernos dos céticos, uma "pseudociência". Evidências alinhadas por seu grande proponente, Alfred Wegener (1880-1930), foram completamente desprezadas e ridicularizadas como erros, incongruências de alguém que, não sendo geólogo, jamais poderia se aventurar em tal campo. Avaliar e estudar a saga de Wegener na defesa da teoria dos continentes flutuantes oferece ao estudioso uma oportunidade para compreender a maneira como a ciência é fabricada e as consequências do ceticismo no seu desenvolvimento.

Diz-se que o ceticismo é importante nas ciências. Ele teve um impacto relativamente profundo na história desse herói que foi Wegener. Ninguém melhor que o paleontólogo e biólogo evolucionista S. J. Gould (1941-2002) para nos contar essa estória, que fala tanto das certezas como das dúvidas no processo de fabricação do conhecimento. O texto abaixo (em azul) é uma tradução nossa de trechos do Cap. 10, Continental Drift, de 'Even Since Darwin' (Penguin books, 1991):

Por que tal profunda mudança (no pensamento científico) teria ocorrido em tão curto espaço de tempo, como em uma década? (Referindo-se à mudança na opinião dos cientistas sobre a teoria de Wegener) 
Muitos cientistas sustentam - ou ao menos argumentam opinião para o público - que sua profissão marcha para a verdade sob a orientação de um procedimento infalível chamado 'método científico'. Se isso fosse verdade, minha questão teria fácil resposta. Os fatos, tais como se apresentavam 10 anos atrás, falavam contra o deslocamento dos continentes; desde então, aprendemos mais e revisamos nossa opinião de acordo com tal aprendizado. Argumentarei que tal cenário não pode ser aplicado de forma geral e é profundamente impreciso nesse caso. (...)

Considero essa estória como típica do progresso científico. Novos fatos, colecionados de forma antiga sob a orientação de velhas teorias raramente resultam em qualquer revisão substancial do pensamento. Fatos "não falam por si mesmos"; são interpretados à luz da teoria. O pensamento criativo, tanto nas ciências como nas artes, é o motor da mudança de opinião. A Ciência é uma atividade quintessencialmente humana, não é algo mecânico, uma acumulação robótica de informação objetiva, guiada por leis de lógica para uma interpretação inescapável. 
Duas são as fortes evidências a respeito da deriva dos continentes, que eram 'varridas para baixo do tapete' quando a teoria de Wegener era herética:

1. A glaciação no Paleozóico tardio. Cerca de 240 milhões de anos atrás, geleiras cobriam partes do que é agora a América do Sul, Antártida, Índia, África e Austrália. Se os continentes fossem fixos, tal ocorrência torna difícil explicar certos fatos. (...). Todas essas dificuldades evaporavam se os continentes austrais (incluindo a Índia) estivessem unidos durante o grande período de glaciação, e localizados mais abaixo, cobrindo o polo sul; as geleiras sul americanas moveram-se da África, não de um oceano aberto; a África 'tropical' e a Índia 'Semitropical' estavam próximas do polo sul; o pólo Norte localizava-se no meio de um grande oceano, de forma que geleiras não poderiam ter se produzido no polo norte; 

2. A distribuição de trilobitas cambrianos (artrópodes fósseis que viviam entre 500 a 600 milhões de anos atrás). Os trilobitas cambrianos da Europa e da América do Norte dividiam-se em duas faunas diferentes com uma distribuição bem peculiar nos mapas modernos. Trilobitas da província 'Atlântica' viviam por toda a Europa e em algumas áreas da costa mais oriental da América do Norte - (oriental e não ocidental). Newfoundland e o sudoeste de Massachusetts, por exemplo. Trilobitas da província 'Pacífica' viviam por toda a América e em alguns locais da costa ocidental da Europa - norte da Escócia e o noroeste da Noruega, por exemplo. É muito difícil dar conta dessa distribuição se os dois continentes estivessem distantes 3000 milhas um do outro.  
Mas a deriva dos continentes sugere uma estranha solução. Em épocas Cambrianas, a Europa e a América do Norte estavam separadas: trilobitas atlânticos viviam em águas pela Europa; trilobitas pacíficos em águas na América. Os continentes (agora incluindo sedimentos com trilobitas encrustados) moveram-se um na direção do outro até se juntarem. Mais tarde, se separaram novamente, mas não exatamente ao longo da linha de onde haviam se juntado. Restos espalhados da Europa antiga, contendo trilobitas atlânticos permaneceram na parte mais oriental da América do Norte, enquanto que algumas restos da velha América do Norte ficaram grudados na parte mais ocidental da Europa.


Em apenas alguns segundos, assista milhões 
de anos de deslocamentos nunca antes imaginados pelas gerações anteriores.
Tais exemplos são citados como "provas" da deriva hoje, mas eram sumariamente rejeitados nos anos anteriores, não porque os dados fossem menos completos do que hoje, mas porque ninguém imaginava um mecanismo que fizesse mover os continentes.

(...) Na verdade, a superfície da Terra parece estar dividida em menos de uma dezena de "placas" maiores, limitadas em ambos os lados por zonas de criação e destruição. Os continentes estão congelados entre tais placas movendo-se com elas à medida que o solo oceânico se afasta de zonas de criação. A deriva dos continentes não é mais orgulhosa de si, ela se tornou conseqüência passiva de nossa nova ortodoxia - a tectônica de placas.
Entretanto, até ganhar o status de ortodoxia, a teoria de Wegener sofreu o escárnio e a desconsideração. Ela hoje nos apresenta como um exemplo vivo que se contrapõe  a qualquer tentativa de estabelecer métodos rígidos na pesquisa científica e de que a Natureza não revela tão facilmente seus mais profundos segredos. Considerado como uma fraude, seu proponente não viu em vida sua aceitação pela comunidade científica, mas morreu acreditando nela e que, dentro em breve, todos haveriam de considerá-la seriamente.




11 de dezembro de 2010

Crenças Céticas VII - A vida além da vida e a necessidade de uma nova Ciência.


Vimos anteriormente que, para que haja Ciência, são necessárias ao menos três coisas: um objeto de estudo, uma linguagem e um método. O pseudoceticismo, em geral, invoca a autoridade da Ciência para si para desqualificar determinadas afirmações sobre o mundo, justamente aquelas que não se alinham com as crenças pseudocéticas.

Vejamos uma afirmação clássica do pseudoceticismo:
A Ciência não comprova a existência de vida depois da morte. A Ciência não comprova a existência de Espíritos.
Qual o significado aqui da palavra 'Ciência'? Em quase todas as discussões que vemos sobre o assunto, parece que podemos interpretar 'Ciência' como o corpo de pesquisadores, o conjunto de cientistas, a opinião de técnicos ou especialistas em assuntos considerados científicos. Se este for o caso, já vimos anteriormente que a opinião dos cientistas não pode ser tomada como autoridade, principalmente no que diz respeito àquilo que foge à especialidade deles. Se não, vejamos:

Qual pode ser o 'objeto de estudo' dessa ciência que desaprova a vida além da vida? Será que a ciência contemporânea, entendida como opinião dos cientistas, tem se debruçado sobre essa questão específica que é negada pelos céticos? A resposta é claramente um não, uma vez que a comunidade científica tem coisas muito bem definidas - objetos de estudo específico - com que se ocupar.

Mas não podemos interpretar como 'comunidade de cientistas' a palavra 'Ciência' na afirmação em análise, mas sim esta como o corpo de conhecimento, sem apelo algum à autoridade de seus principais executores e responsáveis.

Nesse caso, somos obrigados a apontar o objeto de estudo, o método e a linguagem que seriam responsáveis por tal negação... Onde, na ciência contemporânea poderemos encontrar isso? Que ramo da Física, Astronomia, Biologia, Química poderia ser invocado para afirmar que, de fato, inexiste vida após a morte?

Muitos céticos dizem que é isso que vemos ocorrer todos os dias quando animais são mortos ou pessoas deixam a vida em hospitais. Não há evidências - repetem eles - diante de um corpo inanimado, que nunca mais demonstrará nenhum sinal de vida após os momentos derradeiros, de qualquer coisa além. Fisiologistas e bioquímicos de renome poderiam ser invocados para descrever os processos celulares internos que ocorrem após a morte de tecidos biológicos, neurofisiologistas poderiam enfileirar imagens de tomográficas mostrando o apagar das luzes na massa encefálica e chegaríamos realmente a formar uma imagem completa da morte?

Sobre as consequências dela para o corpo: sim, o corpo, eis aqui o objeto de estudo que procurávamos. Aqui há ciência positiva, há uma linguagem descritiva e há um método de pesquisa muito bom. Mas será que isso nos autoriza a dar o passo que permite negar a afirmação que analisamos? Será que não estão fazendo como o Cardeal Bellarmino - do caso Galileu - que afirmou não existir evidências diante de uma Terra que parecia bem fixa, imóvel, e do movimento do Sol, todos os dias a se levantar a leste e se por a oeste?

Ao se tentar ir além, afirmarão: isso é metafísica...Mesmo sem saber o significado dessa palavra, aprenderam sua conotação negativa. O problema aqui é simples: trata-se de uma deficiência na compreensão da existência de uma multiplicidade de objetos de estudos no mundo em que vivemos. Se não se reconhece a existência de um determinado objeto de estudo, não pode haver Ciência. Mas o que fazer para que a questão não se prenda às fronteiras da mera especulação metafísica? O fato de eles, os céticos (veja que não estou me referindo aos pseudocéticos, mas aos céticos bem intencionados), não se darem ao trabalho de buscar, pesquisar e procurar.  Muitos céticos não sabem que a Natureza oculta muito bem os seus segredos. Mas uma das coisas que a nova visão do mundo revela pela Ciência é que existem muitos objetos de estudo que não sensibilizam diretamente nossos sentidos.

Tomemos o exemplo do vírus (figura abaixo) e façamos o exercício mental de nos colocar em uma época onde microscópios eletrônicos não estavam disponíveis. Hoje é  fácil acreditar na existência desses seres. Eles foram 'revelados' pela Ciência e são a causa de muitas patologias. Mas, ao dizer isso, estamos numa posição privilegiada. Há razões para acreditarmos que, no que diz respeito à continuidade da vida além da vida, não detemos tantos privilégios.

Imagem do vírus da gripe espanhola. Se microscópios eletrônicos não estivessem disponíveis, como poderíamos ter 'evidências' sobre a existência desses seres microscópicos? Hoje, estamos numa situação privilegiada em relação ao conhecimento da existência desses seres,  mas o mesmo não é verdade com muitas outras proposições a respeito do Universo.
Se não conseguem 'encontrar' o Espírito, sede da consciência, é porque dele formaram uma ideia errada. Usam concepção arcaica, antiga, de uma época quando nosso conhecimento do mundo era muito pequeno, tão pequeno que ainda nos julgávamos no centro dele. Como se recusam a postular a existência de um novo objeto de estudo, não podem aceitar novos fatos, não podem ir além.

Entretanto... ela se move! afirmaria Galileu. Precisamos de uma nova ciência para nos revelar nosso futuro. Novos Galileus, novos Newtons e novos Laplaces deverão se debruçar sobre esse novo tema, a fim de descobrir suas leis, desenvolver uma nova linguagem e um novo método. Essa será o principal tema da Ciência do futuro.