24 de dezembro de 2011

Ciência e Fé

“A Ciência e a Religião são as duas alavancas da inteligência humana: uma revela as leis do mundo material e a outra as do mundo moral. Tendo, no entanto, essas leis o mesmo princípio, que é Deus, não podem contradizer-se.” (Allan Kardec)

Há opinião generalizada de que não é possível haver acordo entre a Ciência e a Fé. Para muitos, Ciência e Religião jamais poderão ser integradas, posto que se colocam hoje em dia em posições diametralmente opostas no que diz respeito à maneira como o Mundo deve ser visto e interpretado. Como a Ciência - entendida como conhecimento e não meramente como opinião acadêmica - foi capaz de prodigalizar avanços nunca imaginados e de produzir conhecimento útil a respeito desse Mundo, enquanto que a Religião estabelecida é herdeira de um passado pouco memorável, prevalece o ponto de vista de que a Ciência deve substituir a Fé em todos os setores da vida humana.

Semelhante estado de coisas é apenas produto de um ponto de vista muito particular sobre o que Ciência e Fé realmente são. Quase sempre a última é descrita como filha da ignorância e herdeira da presunção humana que assume uma imagem do Universo sem a necessidade de provas. Os exageros pintados em cores escuras que cercam a noção de Fé, se contrapõem aos exageros semelhantes mas em tons coloridos que se formam em torno da Ciência. Esta é vista como produto da exação e da lógica, da aplicação rigorosa de um método isento de erros e acima de todos os interesses humanos. A favor desse quadro apresentaram-se versões de fatos históricos, que se cristalizaram como verdades absolutas seguindo a opinião de maior gosto e interesse de nossa época.

Entretanto, esse estado de tensão desaparece ao se encontrar uma nova noção de Fé que se completa a partir de uma nova visão da Ciência, nascida da compreensão integral de como esta opera e se estabelece realmente.  Tal mudança de ponto de vista com relação às noções de Ciência e Fé são parte dos fundamentos que deverão estabelecer uma nova sociedade, mais equânime e menos dogmática em seus pontos de vista. 

Pois, apenas a uma causa deve-se imputar o aparente conflito que existe entre Ciência e Fé: ao dogmatismo que ainda existe na sociedade humana. É a opinião dogmática que devemos combater como sendo o pior dos vícios quando a questão é fazer verdadeiramente Ciência e Religião caminharem lado a lado. Elimine o dogmatismo e veremos aparecer uma nova Ciência e uma nova Religião prontas as se darem as mãos em direção à Verdade. Elimine o dogmatismo e teremos uma síntese perfeita do que pode a alma humana alcançar em termos do que é belo e verdadeiro em sua plenitude: a respeito de nossas origens como espécie, de nossa posição no Mundo, sobre nossas aptidões em realizar o ideal de beleza no campo das artes, com relação a nossa 'religação' com a fonte primordial da Vida, que constitui Religião no sentido mais exato do termo. 

Repetimos que o dogmatismo é o responsável por todos os desvirtuamentos da Religião: ele pode ser encontrado em todas as decisões a respeito de assuntos que não eram de sua alçada, mas que se ligaram a ela por puro interesse. E, quando se trata de defender seus maiores interesses (ainda que tais interesses sejam inúteis e imaginários) é preciso ser dogmático. É o dogmatismo o responsável por negar à Ciência sua capacidade de estudar e compreender assuntos transcendentes porque tais assuntos fogem aos interesses imediatos de se fazer Ciência. Logo é preciso alimentar o dogmatismo. 

Em essência, nunca houve conflito genuíno entre o conhecimento puro a respeito do mundo e a necessidade humana de se conectar à fonte geradora desse mesmo mundo. Ambas são forças que nascem da ânsia de transcender a nossa vida cotidiana, em procurar e se ligar a nossa verdadeira origem. Mas, por causa dos interesses que se multiplicaram no meio do caminho que se traçou para essa busca, Ciência e Fé tornaram-se, de acordo com esse ponto de vista popular, pontos de vista antagônicos para se interpretar o Mundo. 

Um novo continente haverá de surgir desse oceano profundo, de águas escuras e enodoadas por sangrentas e cruéis batalhas de outrora. Que morram os interesses mesquinhos e veremos nascer uma nova Terra como uma nova síntese de estado de coisas, de noções mais perfeitas e conhecimentos ainda mais exatos.  Nesse novo mundo, desaparecerão as concepções de 'Religião' e 'Ciência', confundidas em uma mesma busca, em um mesmo método de procura da Verdade que é por si mesma a fonte de tudo que existe.

11 de dezembro de 2011

Entrevista IV - Dra. Ana Carolina Xavier fala sobre o câncer infantil e as consequências da visão espiritualista no trato com a doença.

Apresentamos aqui uma entrevista com a Dra. Ana Carolina Xavier que é professora assistente em hematologia pediátrica e oncologia no Medical University of South Carolina em Charlestown, Carolina do Sul, Estados Unidos, que nos conta um pouco de sua visão  e experiência no tratamento de uma doença como o câncer, principalmente quando ela afeta crianças. Ana Xavier tem Bacharelado e Residência médica pela Universidade de São Paulo, além de Doutorado em medicina pela mesma instituição.

Talvez os leitores já possam imaginar porque escolhemos esse tema dentro do contexto das consequências práticas da visão espiritualista do mundo. Torna-se bastante evidente que é fácil defender uma visão cética em relação à realidade espiritual quando não se passa por um problema que lida diretamente com a ameaça à vida ou, melhor ainda, com a necessidade da  existência da continuidade dela. Devemos analisar, pois os efeitos da visão oposta, a que sabe que aqueles seres que ontem estavam conosco, na esperança de vencerem uma batalha gigantesca contra uma enfermidade que não lhes ouviu os apelos infantis, hoje não mais estão mas que, não obstante isso, continuam vivos.

Ao invés de discutir fundamentos sobre esse ou aquele aspecto do mundo conforme a concepção de mundo adotada, podemos nos perguntar sobre quais seriam as consequências práticas de cada uma delas, sabendo que 'árvores boas produzem bons frutos, enquanto que árvores más produzem péssimos frutos'. Neste caso, preferimos analisar as consequências da visão espiritualista da vida.

Perguntas

EE - 1) Ana, conte-nos um pouco de seu dia a dia e do seu trabalho.

Meu dia a dia no trabalho é bastante interessante. Eu divido minhas atividades entre a clínica e enfermaria, onde passo visita a cerca de 15 a 20 pacientes e supervisiono médicos residentes e estudantes de medicina. A rotina diária da enfermaria pode ser bastante intensa e temos uma estrutura organizada que permite que as coisas funcionem um pouco mais eficientemente. Nosso time é composto não apenas do médico, mas também das enfermeiras, um farmacologista, uma assistente social e uma nutricionista. Cada caso é discutido detalhadamente e cada um contribui com sua experiência e opinião, objetivando o melhor para cada um dos nossos pacientes.

Costumamos ver pacientes com variadas patologias hematológicas ou oncológicas, mas a maioria deles são pacientes com alguma forma de câncer ou pacientes que vão receber transplante de medula óssea. De maneira semelhante ao Brasil, temos também um grande numero de pacientes com doença falciforme.

Na clínica, além dos pacientes recebendo algum tipo de terapia oncológica, tenho 2 sextas-feiras do mês dedicadas apenas a pacientes que completaram quimioterapia há pelo menos 5 anos e estão “oficialmente” curados. Esse é um grupo muito especial de crianças, porque eles são sobreviventes de uma doença que pode ser fatal e de um tratamento bastante intenso, que, muito frequentemente, causa sérios problemas mentais ou físicos que podem se estender pelo resto da vida.

Eu posso ter dias muito bons ou extremamente ruins, quando nada parece dar certo para os pacientes. De qualquer maneira, eu me sinto bastante privilegiada de fazer parte da vida dessas crianças e poder atender a tais grupo de pacientes.

EE - 2) Sabemos que o trabalho do médico, principalmente quando ele escolhe como serviço o atendimento a doentes infantis de câncer, é pontuado de muitas vitórias, mas um número igualmente grande de aparentes derrotas. Como você encara isso?

Esse é uma questão fundamental. Na verdade, todo estudante de medicina ou residente que está seriamente interessado no campo da pediatria oncológica deve avaliar sua própria capacidade de lidar com constantes derrotas no dia-a-dia para tomar a decisão final na escolha da carreira. Você está certo quando diz que temos muitas vitórias: hoje é possível se curar quase 80% das crianças que são diagnosticadas com câncer. O grande problema é que o caminho até a cura é bastante tortuoso e longo, e representa um grande sofrimento não só para a criança, mas como para toda a família e pode durar anos a fio. A derrota maior é obviamente quando perdemos um paciente. Como profissional médico, compreendo bem o problema fisiológico, e me é bastante fácil saber quando as coisas não vão tão bem assim como gostaríamos. O problema é que todo esse processo pode ser emocionalmente desgastante. Quando perdemos um paciente, todos os que estiveram envolvidos no cuidado daquele paciente sofrem muito. A fé individual ajuda bastante. No meu caso, penso que a vida continua e que o sofrimento atual é, como disse uma vez Chico Xavier, um meio para expurgar as culpas que trazemos em nós mesmos, e eles saem dessa vida em uma condição superior àquela em que entraram. Isso me conforta e ajuda, mas mesmo assim, muitas vezes choro bastante…

EE - 3) Como você lida com o processo de separação dos familiares das crianças quando a 'sorte' se coloca contra as expectativas?

Geralmente tento estar por perto. Isso pode ser difícil também, porque não quero interferir naquele momento tão único da família e sua criança. É um balanço delicado, e temos que ser bastante cuidadosos. Na grande maioria das vezes, conheço bem a família e sei de suas crenças e o que pode ou não ser apropriado para uma determinada família. Procuro falar pouco e ficar ao lado deles, porque sei que o momento é de dor intensa. Também tento ir a todos os funerais, mas confesso que algumas vezes não consigo, porque dói bastante. 

É impossível ser absolutamente impassível diante de tamanho sofrimento. O que funciona como uma “vantagem” aqui é o fato de que esses pacientes, na maioria das vezes, passam por um longo período de sofrimento ate o evento final, caso esse seja o destino. Isso é certamente desgastante, mas ao mesmo tempo dá tempo para as pessoas aceitarem o fato de maneira mais pacífica, sem muito do desespero que acentua demasiadamente o sofrimento do paciente. Além do mais, muitas das crianças já sabem que o finzinho delas esta próximo, e muitas vezes, elas avisam.

EE - 4) Você acha que a visão espiritualista do ser humano, aquela que postula a continuidade da vida, pode ajudar no processo de separação?

Sim, certamente. É muito mais fácil acreditar que nos uniremos novamente após a “longa viagem”, como se diz no Brasil. Tambem acredito que os pais, mesmo sem acreditar que a vida continua, anseiam desesperadamente por isso. A Doutrina Espirita tal como conhecemos no Brasil, não é bem divulgada nos EUA, de maneira que o conceito de vida após a morte é um tanto diferente por aqui. Muitas pessoas já me perguntaram o porquê de tamanho sofrimento. Geralmente respondo que, por ser Deus justo, Sua causa deve ser igualmente justa.

EE - 5) Em que grupos de familiares (personalidade ou visão de vida) a dor da separação se mostra menos pungente? Em qual grupo ela é maior?

Acredito que a intensidade da dor de se perder um filho é a mesma para os pais independente do credo ou religião  O que é diferente é a maneira com que as pessoas lidam com a situação. Muito raramente a postura é de completo desespero ou revolta diante dos fatos. A aceitação sem muita revolta é uma característica comum a várias familias que passam pelo problema. Isso acontece porque o curso da doença é bastante prolongado, o que confere tempo para que as pessoas aceitem de maneira um pouco mais pacífica. Muito recentemente tivemos um caso de um adolescente com câncer terminal que faleceu cercado por seus familiares mais próximos e que estavam ao seu lado rezando para que o momento de transição fosse o mais calmo e pacífico possível. Quando ele finalmente expirou, os pais estavam certamente tristes, mas aliviados e agradecidos a Deus pela passagem aparentemente tranquila de seu filho. Diante do fato consumado, muitas vezes os pais querem ver os seus filhos libertos de todo aquele sofrimento.

EE - 6) Você pode nos descrever o comportamento característico de seus pequenos pacientes quando eles sabem do destino que os aguarda, ou seja, no momento em que a separação se mostra inexorável? Tem algum caso especial que gostaria de nos relatar?

Crianças de uma maneira geral são bastante resilientes (1). Elas aceitam as dificuldades de modo mais fácil que adultos. Crianças com doenças crônicas são ainda mais especiais. Acho que intimamente sofrem muito, pois sabem que não podem fazer a maioria das coisas que as outras crianças da mesma idade fazem – como ir a escolar, ou praticar esportes, ou brincar com os amiguinhos. Mas eles entendem, independentemente da idade, que a situação delas é especial naquele momento. 

Crianças com câncer são geralmente altruístas, muito preocupadas com o bem de outras crianças e de sua própria família, e os mais velhos tendem a “fazer de conta” que estão muito bem para acalmar os pais. Quando a doença se torna incurável,  muitas das crianças comunicam à familia que vão morrer, ou que tiveram um sonho em que estavam no céu ou que um anjo veio visitá-las no quarto. Esses fatos são para mim bastante interessantes. 

EE - 7) Você acha que a sua visão espiritualista ajuda você no dia a dia e no trato com seus pacientes? No que ela mais te ajuda?

Sim, sem dúvida. Eu estou completamente consciente de minhas próprias limitações em meu trato diário. Entendo bem que o que define o destino de cada um é algo muito superior a mim mesma. Mesmo ao dar o melhor de mim e oferecer o que há de melhor em termos de tratamento e apoio médico, lido constantemente com derrotas, sem me revoltar ou me sentir ofendida. Além do mais, acreditar que a vida continua e que o sofrimento existe para nos fazer melhor é sempre reconfortante.


EE - 8) Quais os maiores obstáculos, na sua visão, contra a efetiva aceitação da realidade espiritual do ser humano?

Acredito que o maior obstáculo contra a efetiva aceitação da realidade espiritual do ser humano seja nós mesmos. Nós ainda temos dificuldades enormes em aceitar algo que nao pode ser sentido através de nossos 5 sentidos elementares. Ainda precisamos sentir em nossa pele o abraço daquele filho ausente, ouvir a voz da filha distante para acreditar que aqueles que se foram estão realmente vivos.

EE - 9) Você tem algumas palavras finais para famílias que estejam hoje com pacientes infantis de câncer?

O que eu gostaria de dizer é que me sinto profundamente honrada de poder ajudar no tratamento dessas crianças e suas famílias. Obviamente, não gostaria que ninguém tivesse que passar por isso. A grande maioria dos pais me pergunta o porquê de sua criança ter desenvolvido câncer. Sentem-se culpados e procuram entender no que falharam. Porém, a causa fundamental do câncer é ainda um mistério médico a ser desvendado com a ajuda e permissão de Deus. A aceitação pacífica dos fatos ajuda a compreender melhor o que é preciso ser feito e a providenciar o melhor cuidado para a criança. Além do mais, é muito importante que se comunique com a criança o que esta acontecendo com ele ou ela. Percebo que os pais que tentam esconder o diagnóstico do filho tendem a ter maiores dificuldades no dia a dia. Também acredito que esses momentos terríveis de dificuldades que temos que passar são grandes oportunidades de melhorar a nós mesmos, nossa família, nossas relações e provar o nosso amor aos que estão ao nosso lado. Tenho certeza que no final, de uma maneira ou de outra, todos sairão vencedores. 

Notas

(1) Resiliência (ref. resiliente): diz respeito à capacidade que se tem de lidar com uma situação angustiante, superar obstáculos e vencer dificuldades.  No caso aqui, uma doença.


3 de dezembro de 2011

Física Quântica e os espiritualistas no século 21 (análise preliminar)

Representação gráfica da molécula de DNA.
Do ponto de vista filosófico, espiritualista é todo aquele que acredita haver algo além da matéria, que justifique os fenômenos da consciência, do ser e da personalidade humana (e, porque não dizer, dos animais). Deixa de ser espiritualista aquele que acredite que a matéria seja a base para se compreender os fenômenos psíquicos e psicológicos. Essa é uma maneira muito didática de apresentar conceitos que sempre geram muita confusão e é de autoria de Allan Kardec (*).

Mas, no que consiste esse materialismo? Já que a física moderna demonstrou que existem modalidades de matéria muito distantes dos nossos sentidos, deixa de ser viável acreditar que fenômenos como o da consciência sejam explicáveis por meio de interação simples entre átomos entendidos como blocos rígidos de matéria. Além desses 'blocos constitutivos', existem outras entidades na forma de campos ou forças que atuam à distância, além de outros conceitos fundamentais que são necessários para explicar como a matéria pode se organizar para constituir algo vivo primeiro e, então, como esse ser vivo pode manifestar consciência. O materialismo moderno, portanto, deve fazer uso dessas ideias e conceitos abstratos para explicar como a vida e a consciência podem existir em nosso mundo. Mas então, a raiz da palavra 'materialismo' na forma de 'matéria' ou aquela coisa sólida e tangível deixa de ter seu significado original.

Visto meramente do ponto de vista das definições que se faz para coisas e conceitos, pode-se defender a ideia hoje em dia que há menos distância entre as noções espiritualistas do ser do que antes, durante o século 19, por exemplo. No auge do positivismo lógico, a matéria que impressionava os sentidos era tudo o que poderia existir. Hoje, há meios de se compreender que o espírito (Nota 1) seria também uma força, outro elemento, inacessível aos sentidos ordinários como  ingrediente fundamental para a formação da consciência. Entretanto, há uma clara dificuldade quando se trata de validar essa noção do ponto de vista considerado 'científico'.

A visão de Mundo pelos cientistas modernos (início do século 21)

Em paralelo com tal constatação, existe uma queixa por parte do mundo acadêmico com relação a qualquer tentativa de explicação do mundo a nossa volta por meio de conceitos que não nascem diretamente do  processo considerado adequado de se fazer ciência. É que o pensamento científico de nossa época se desenvolveu a partir da ideia de que noções como a existência de deuses ou forças invisíveis conscientes que atuariam diretamente no mundo são desnecessárias. No passado, a religião organizada ditava as normas sobre o que seria considerado razoável e não havia problema em se acreditar que o mundo era de fato regido diretamente pelas mãos de Deus. Desde que a física clássica conseguiu explicar muitos dos fenômenos mecânicos e elétricos do Universo com base na existência de leis cegas e sempre operantes (não são leis arbitrárias como arbitrário pareciam ser os caprichos de Deus), todas as outras ciências (principalmente a Biologia e a Medicina) também buscaram desenvolver suas teorias dentro da noção de que leis cegas são suficientes para explicar os fenômenos naturais.

Essa visão do mundo, conjugada à maneira positiva de se encarar as entidades (coisas que existem no mundo, de fato) que trabalham como 'atores' nas teorias científicas, levou a uma situação onde aparentemente não mais seria possível acreditar na possibilidade de forças inteligentes (além daquelas que tem como causa a existência dos seres humanos) atuarem diretamente no Universo. Há uma imensa categoria de fenômenos naturais (que são objeto de estudo das ciências físicas) que são claramente produto de forças ou leis cegas. Entretanto,  a comunidade acadêmica acabou se especializando neles e são hoje  incapazes de aceitar que há uma limitação de escopo na ciências que trabalham. Por se referirem a fenômenos simples, colecionáveis, reprodutíveis etc, as teorias deles derivados são necessariamente limitadas a esses objetos que criam uma visão de mundo igualmente limitada. Acrescenta-se a isso o espírito corporativista das associações científicas e teremos um ambiente notoriamente cético em sua maneira de considerar determinados fenômenos e avesso a qualquer tentativa de mudança ou novidade, que é mal vista como um enxerto desnecessário e suspeito.

Surge a psicologia quântica

No que a física quântica mudou esse quadro? Uma resposta a essa questão pareceria envolver necessariamente grande conhecimento dessa nova física. Mas, no que nos interessa aqui, não deixa de ser interessante observar o fenômeno recente de como essa nova física tem sido invocada para justificar a crença de determinados grupos espiritualistas, psicólogos e até de grupos de acadêmicos marginalizados (Zohar, 1999). O exemplo que encabeça a lista é a do físico e escritor Amit Goswami que, numa série de livros, palestras e congressos, se fez conhecido como um 'ativista quântico' e propõe uma 'interpretação' radicalmente quântica do ser humano.  Além disso, vários parapsicólogos (Kugel, 2000) aderiram à ideia de que é preciso utilizar a física quântica para explicar os fenômenos psíquicos. Essa física também surge como uma novidade capaz de motivar uma nova psicologia (Zohar, 1990).

O fenômeno é curioso porque a física quântica, não obstante ter introduzido uma modificação bastante radical na maneira de se encarar as entidades que fazem parte das teorias da física anterior, apenas é aplicável ao mundo infinitamente pequeno. Trata-se da microfísica ou física das partículas e agregados atômicos, que só atua em escalas muito pequenas. Como então que essa nova física veio parar em compêndios de psicologia e artigos de parapsicologia?

Nossa introdução procurou fornecer um quadro muito resumido da atual maneira de se encarar o mundo por parte dos cientistas. Uma vez que a física quântica é um mistério - sua interpretação ainda é motivo de calorosos debates entre os especialistas - parece ser conveniente para tais grupos invocar a física quântica na psicologia, parapsicologia e até ecologia que também lidam com mistérios. Como a física quântica é um mistério e a consciência é um mistério, então o cérebro é quântico... Dessa forma, a física quântica surge como uma validação científica de mistérios para uma ciência que aprendeu a encarar os fenômenos naturais como se eles não o fossem. É compreensível a irritação de muitos acadêmicos com a 'onda quântica' na psicologia e outras disciplinas.

Desvantagens da abordagem quântica em assuntos espiritualistas

Alguns de nossos leitores poderiam nos questionar porque alguém que se afirma espiritualista poderia ser contra essa abordagem 'quântica'. Minha argumentação, em ordem de importância é conforme segue:
  1. Embora concorde que a física quântica alterou nossa visão do mundo (microscópico), não é possível querer extrapolar essa nova física para a psicologia porque os objetos de estudo dessa disciplina podem não ser quânticos (Jahn, 2011, ver Nota (2)). Abusa-se demais de analogias e interpretações para forçar uma nova maneira de ver o mundo derivada de coisas que não são os objetos da vida cotidiana. Isso tem consequências ainda maiores quando buscamos descrever os fenômenos oriundos da atuação do espírito sobre a matéria. Para mim o princípio inteligente (que é a fonte de toda informação dos seres) não é quântico, os que assim pensam ainda precisam demonstrar que é possível levar adiante essa ideia não apenas como uma simples extrapolação; 
  2. Ao se buscar descrever o comportamento da mente, do espírito ou da consciência com base em analogias da física quântica, será que poderemos também exportar diretamente os métodos de pesquisa da microfísica para esses objetos de estudo? A tarefa de criar uma nova ciência não está apenas em encontrar uma nova explicação para certos fatos, mas criar um método de pesquisa que seja consistente, dê resultados práticos e possibilite relacionamento harmônico entre diversas disciplinas correlacionadas. Em suma: é preciso demonstrar a fertilidade heurística das analogias quânticas nos estudos da consciência e psicologia;
  3. A psicologia e até doutrinas espiritualistas de forma geral não precisam de interpretações quânticas para descrever o principal objeto de seus estudos. É possível conceber aplicações e métodos de grande valor prático para essas disciplinas sem que seja necessário se recorrer à analogia com a física quântica. Podemos argumentar que recorrer a analogias da nova física pode prejudicar o desenvolvimento de novas ideias e novos métodos de investigação nesses campos de conhecimento;
O conhecimento completo dos fundamentos da física quântica, ao ponto que seria possível fazer propostas de aplicações inovadoras na pesquisa corrente da física é uma atividade que leva anos de estudo e exige conhecimento nada elementar de álgebra, geometria e cálculo. Será que as propostas de se interpretar o fenômeno da consciência desde o ponto de vista da física quântica chegarão ao ponto de incorporar também a necessidade de se conhecer e aplicar esses métodos de pesquisa? De outra forma, como a ciência do 'psi quântico' irá se desenvolver? Essas são questões que devem ser respondidas de forma satisfatória, antes que se propague uma ideia que pode estar condenada desde seu princípio.

Além das justificativa pouco convincentes do ativista quântico Goswami (Fonseca, 2010), sabemos que é um fenômeno mais de aceitação, da necessidade de se ter o endosso da ciência - que se crê popularmente ser a guardiã da verdade sobre o mundo - do que qualquer outra coisa. Ao aplicar conceitos da microfísica na psicologia humana, estamos diante de um quadro nunca visto antes de desespero intelectual, um quadro sem nenhum respaldo de evidência possível, permitido por uma brecha de interpretação surgida dentro da própria física.

E que brecha é essa?  As forças admitidas cegas que guiam os fenômenos naturais continuam cegas nos fenômenos quânticos. Mas, mesmo assim, por sugerir fortemente que podemos estar enganados com relação à maneira como vemos o mundo, a física quântica fornece um contexto de conhecimento que se coloca fortemente em desacordo com uma visão mecânica e puramente sensorial do mundo. Nossa visão do mundo macroscópica (não quântica) pode ser apenas um epifenômeno sensorial, não estamos vendo a realidade que é manifestamente oculta. É principalmente isso que os 'ativistas quânticos' querem chamar atenção.  Mas duvido que isso seja um caminho prático para se gerar conhecimento útil no que concerne à realidade do Espírito.

Referências
  • (*) Ver a Introdução de "O Livro dos Espíritos", Parte I.
  • Fonseca, A. F. (2010), Uma análise espírita da obra "A Física da alma" de Amit Goswani, O Espiritismo visto pelas áreas de conhecimento atuais, Textos selecionados Ed. por CCDPE-ECM, São Paulo.
  • Goswami, A. (1993) The self-awere universe. New York, Puttnam’s Sons;
  • Goswami, A. (1998). O universo autoconsciente. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos;
  • Jahn R. G., Dunne B. J. (2011), Journal of Scientific Exploration, Vol. 25, No. 2, pp. 339–341.
  • Kugel,W. (2000) Quantum correlation as a potencial detector for Psi-phenomena. Proceeding of 43rd Annual Convention of Parapsychological Association, Frieburg, Alemanha;
  • Zohar, D (1999), O Ser quântico, Editora Best Seller.
Notas


(1) espírito; de acordo com 'O Livro dos Espíritos' (Questão #23) o espírito é o princípio inteligente, necessário para 'espiritualizar' a matéria.  

(2) Os pesquisadores pioneiros em interpretações quânticas para a consciência Robert Jahn e Brenda Dunne alertaram recentemente (Jahn, 2011):
Muitas pessoas envolvidas em áreas de fronteira de estudo científico mostram uma tendência de invocar a nomenclatura da mecânica quântica para aumentar sua credibilidade acadêmica tanto com o público leigo como acadêmico. Embora essa estratégia seja efetiva no esclarecimento de conceitos sutis e podem ser caminhos úteis para se enfatizar a necessidade de perspectivas alternativas à realidade, se levado ao excesso pode se tornar contra produtivo e deve ser cuidadosamente evitado. Primeiro de tudo, existe uma tendência compreensível, se não totalmente legítima, das comunidades das 'ciências exatas' em evitarem a aplicação  do que entendem ser suas conceituações e classificações quânticas a outras áreas menos precisas e rigorosas do conhecimento, especialmente quando tais apropriações são escandalosamente vazias, se não totalmente incorretas.  Em nossa luta continua para o desenvolvimento de um referencial conceitual capaz de acomodar a dimensão subjetiva da realidade, tais tentativas ingênuas parecem ser mais ofensivas do que persuasivas. Mas, além disso, elas tentam obscurecer o fato importante de que a mecânica quântica, como qualquer estrutura teórica, é, em si mesma, uma técnica metafórica para se formalizar e comunicar representações objetivas de observações e interpretações de dados subjetivos. (...)