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1 de fevereiro de 2024

Novidades sobre o Eletroma e campos morfogênicos

 

...todo remédio da farmacopeia humana é, até certo ponto, projeção de elementos quimioelétricos sobre as agregações celulares, estimulando-lhes as funções ou corrigindo-as, segundo as disposições do desequilíbrio em que a enfermidade se expresse.
A. Luiz [1]

Uma grande variedade de corpos se interpenetram e formam o corpo humano: o genoma como agregado de genes distribuídos, o proteonoma como agrupamento de elemento proteicos e muitos outros. O mais recente deles foi batizado de "Eletroma" [2] e é formado pelo agrupamento de elementos biológicos que são atuados pela eletricidade própria do organismo. Trata-se de um conceito relativamente novo em sua aplicação médica, porém, um assunto que já tem certa história. O objetivo de Luigi Galvani (1737-1798) com suas experiências elétricas e pernas de rã era estabelecer o papel da eletricidade nos organismos vivos.

A história porém está sendo reeditada com novas descobertas. Um exemplo são as pesquisas realizadas pela equipe do Dr. Michael Levin, que é diretor do Allen Discovery Center na Universidade Tufts [2b]. A reedição pode criar em uma verdadeira revolução na biologia e na medicina.

A equipe do Dr. Levin ressaltou o papel fundamental de campos elétricos na matéria viva que orientam o processo de formação de estruturas funcionais em embriões (girinos). Apresentam demonstrações experimentais em que a eletricidade é um tipo de "campo morfogênico" [3] para as células que participam da formação de embriões. 

Mas o que causa esses campos? Por enquanto, segundo a interpretação do Dr. Levin, eles são gerados pelas próprias células que, graças a um instinto inteligente primitivo  - uma espécie de "inteligência coletiva" - produz correntes elétricas e separação de cargas. Os campos criados pela separação das cargas induzem a formação apropriada de órgãos e outras estruturas menores "orientados" pelos campos elétricos. 

Uma parte considerável da explicação do Dr. Levin é que células contêm inteligência pela sua capacidade de resolver problemas no meio em que vivem. Cada célula de um tecido vivo sabe assim o que fazer conforme o ambiente em que seja colocada. Segundo esse pesquisador, elas "resolvem um problema computacional" enorme (como se tivem um tipo de "inteligência artificial") por meio dessa inteligência coletiva. Nesse processo, induzem à formação de padrões eletromagnéticos ou "campos bioelétricos configuracionais endógenos" [3] que foram registrados por equipamentos especiais desenvolvidos no centro coordenado pelo Dr. Levin. 

Para adiantar essas e outras conclusões, o emintente pesquidor utiliza a definição operacional de inteligência do famoso cientistas espiritualista ingles Willian James (1842-1910):
Inteligência é a capacidade de alcançar o mesmo objetivo usando meios diferentes.
Segundo o Dr. Levin [2b], um video de microscópio da bactéria Lacrymaria olor demonstra esse conceito. Um ser que não tem cérebro e nem sistema nervoso possui elevada competência na solução de problemas complexos em seu meio o que é intrigante, no mínimo. Assim, não importa o tipo de corpo em que a inteligência se manifeste: se o ser é inteligente ele tem competência para resolver problemas desde que confrontado com dificuldades e os estímulos apropriados. 

William James (1842-1910) pode ser invocado em uma definição operacional de inteligência que permite reconhecer essa propriedade mesmo em organismos unicelulares. 

Da Farmacêutica para a "Eletrocêutica"

Toda essa estória nos faz lembrar dos "campos morfogênicos" de R. Sheldrake [4] e, mais para trás no tempo, do "modelo organizador biológico" de Carlos A. Tinoco [5] e Hernani G. Andrade (1913-2003) [6] ou os campos "L" de Harold Saxton Burr (1889-1973). Antes, porém, que espíritas vejam nos campos elétricos morfogênicos do Dr. Levin uma comprovação das ideias de Sheldrake, Burr, Tinoco e Andrade, é preciso compreender as motivações das pesquisas do Dr. Levin que são bastante práticas. 

O objetivo é desenvolver novas formas de tratamento e regeneração de tecidos humanos, visando o projeto de futuros orgãos ou até membros no corpo humano. Não seria possível fazer crescer um novo braço em um amputado como aconteces nos axolotes? Além disso, algumas doenças como tumores poderiam ser tratados fazendo com que células tumorais reconhecessem o ambiente e passassem a se comportar como células normais com já se demonstrou em girinos... 

Para isso, separação de cargas (polarização) e campos elétricos específicos seriam "desenhados" ou "induzidos" por drogas específicas ou "quimioelétricas". Essas drogas seriam supridas por uma "eletroceutica" específica que começa pelo projeto de campos elétricos morfogênicos induzidas por elas. 

Consequências para a visão espírita

Feita essa introdução é possível especular com respeito à amplitude dessas descobertas recentes sobre o eletroma e o "corpo elétrico". Inicialmente, as conclusões sobre a importância dos "canais iônicos" [10] me fizeram lembrar do fragmento de texto citado no início deste post. Parece ser uma validação de uma ideia trazida por André Luiz em seu livro "A Evolução em dois mundos" [1]. Seria por isso que o autor espiritual já falava em 1958 sobre os "elementos quimioelétricos"? Mas nessa época, a descoberta do DNA e os avanços na genética destacavam a importância do "genoma" na formação do corpo humano. Não se via qualquer importância para a eletricidade no contexto da formação do corpo humano ou das doenças.

Notem bem a distância que essas novas descobertas [9] colocam a biologia: a morfogênese não se deve unicamente à ação de "genes" no "genoma" e reações bioquímicas, mas faz uso de um elemento invisível orientador e intermediário que é gerado no interior da matéria viva. Lembramos que campos elétricos são entidades físicas invisíveis e sem fronteiras definidas. O mecanismo de ação à distância que move íons e proteinas no citoplasma das células [8] é o conhecido "efeito de dieletroforese". Para a biologia, trata-se de um efeito "epigenético" que atua sobre as células fazendo-as modificar seu comportamento muito além do que está "programado"  pelos genes.

O primeiro passo dado em direção às consequências dos estudos do grupo do Dr. Levin para a visão espírita está na própria noção de inteligência que usa. Pois, se essa é definida como uma propridade sem referência ao tipo de "veículo de manifestação" (que é material), é que a inteligência é um princípio independente, o próprio "princípio inteligente" encontrado nas Questões 23-25 de "O Livro dos Espíritos" de A. Kardec.

Um dos experimentos do Dr. Levin  fornece a prova [2b]. Ao isolar células embrionárias que se tornariam a pele de um sapo, os pesquisadores da Universidade de Tufts descobriram que, ao invés de morrerem ou se desenvolverem como uma massa disforme de células de pele, elas se transformam em seres multicelulares novos, os Xenobots [7]. Esses nadam, se viram sozinhos em labirintos e até conseguem gerar novos xenobots pela assimilação de células da pele! Ou seja, é como se Xenobots tivessem uma "memória" de experiências passadas (que nunca teriam tido pela evolução Darwinista) quando não eram células de pele...

Assim, além da existência de um interface morfogênica, esses experimentos demonstram a existência do princípio inteligente em cada célula que compõe um organismo complexo. Cada célula de nosso corpo tem memória, inteligência e competência para resolver problemas desde que estimulada. É um ser a parte, que contribui com a sua "parte" no ambiente multicelular que  o envolve e cujo comportamento está apenas parcialmente "programado" nos genes que  carrega.

Ao mesmo tempo em que essas descobertas recentes parecem colocar um ponto final nos debates sobre "camposo morfogênicos", no meu entendimento, elas têm consequências tremendas para uma nova visão da vida e do papel do princípio inteligente (o espírito) na matéria.

Referências e comentários

[1] A. Luiz (1958). Evolução em dois Mundos, 2a  Parte 4a Ed. FEB.  Ver Cap. XIX.

[2]  V. Smink (2023) O que é electroma, rede do corpo humano recém-descoberta que pode revolucionar tratamento do câncer. Saúde "G1". Acessível em: https://g1.globo.com/saude/noticia/2023/03/04/o-que-e-electroma-rede-do-corpo-humano-recem-descoberta-que-pode-revolucionar-tratamento-do-cancer.ghtml 

[2b] Youtube (2023). From Mind to Matter - Dr. Michael Levin. Ver vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=Ed3ioGO7g10      

[3] Levin, M., Pezzulo, G., & Finkelstein, J. M. (2017). Endogenous bioelectric signaling networks: exploiting voltage gradients for control of growth and form. Annual review of biomedical engineering, 19, 353-387. Acesso aqui.



[6] H. G. Andrade. O psi quântico. Ed. Casa Editora Espírita "Pierre-Paul Didier". H. G. Andrade chamou esse campo de "CBM" ou "campo biomagnético" e acreditava ser possível induzir campos eletrostáticos em um "continuum" quadridimensional a partir de campos magnéticos. As descobertas modernas apontam para algo bem mais simples: os campos são eletrostáticos, porém, são estabelecidos por correntes de íons (os tais "canais iônicos") que existem em torno e dentro de qualquer célula viva. 

[7] Blackiston, D., Lederer, E., Kriegman, S., Garnier, S., Bongard, J., & Levin, M. (2021). A cellular platform for the development of synthetic living machines. Science Robotics, 6(52). Acesso aqui.

[8] Henslee, E. A. (2020). Dielectrophoresis in cell characterization. Electrophoresis, 41(21-22), 1915-1930.

[9] Nunn, A. (2023). We Are Electric: The New Science of Our Body's Electrome, by Sally Adee. Bioelectricity, 5(2), 147-149.

[10] Funk, R. H., Monsees, T., & Özkucur, N. (2009). Electromagnetic effects–From cell biology to medicine. Progress in histochemistry and cytochemistry, 43(4), 177-264.



4 de janeiro de 2023

Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - VIII

Gorila e borboleta. Fonte: Wikipedia (Ana L. Araújo).

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - VII". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec. Última parte.

O homem corpóreo

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Do ponto de vista corpóreo e puramente anatômico, o homem pertence à classe dos mamíferos, dos quais unicamente difere por alguns matizes na forma exterior. Quanto ao mais, a mesma composição de todos os animais, os mesmos órgãos, as mesmas funções e os mesmos modos de nutrição, de respiração, de secreção, de reprodução.

Com essa descrição, Kardec coloca a Humanidade em seu devido lugar de natureza. Finalmente a Humanidade havia sido destronada como objetivo único da criação pelas mãos da ciência. Não há mais o que falar sobre qualquer privilégio natural; fisicamente o Homem não se distingue de um animal, pelo menos do ponto de vista "corpóreo". Além disso:

É tão grande a analogia que suas funções orgânicas são estudadas em certos animais, quando as experiências não podem ser feitas nele próprio.

É o caso das inúmeras pesquisas em farmacologia que resultaram em drogas importantes para o tratamento de humanos, drogas que foram experimentadas nos animais durante seu desenvolvimento. 

A questão agora é: diante desse quadro de semelhanças físicas, como é possível "resgatar" o destino espiritual do homem? A resposta passa pelo reconhecimento de que os animais têm seu princípio espiritual, o que depende de uma lei de evolução estendida também a esse princípio.

27

A referência da Wikipedia apresenta a classificação (árvore) científica moderna dos humanos: 

  1. Reino: Animalia, 
  2. Filo: Cordata, 
  3. Classe: Mamalia, 
  4. Ordem: Primata, 
  5. Subordem: Halorfini, 
  6. Infraordem: Simiforme, 
  7. Família: Hominidae, 
  8. Subfamília: Homininae, 
  9. Tribo: Hominini, 
  10. Genus (Gênero): Homo, 
  11. Espécie: Sapiens.

Essa classificação apresenta o elo comum dos humanos com os símios como pertencente à Ordem dos primatas e com ramificações até a Infraordem "simiforme" ou antropóides. A Família dos hominídeos inclui  4 Gêneros: Pongo, Gorila, Pan e Homo. Para ficar mais clara essa classificação, a Fig. 1 apresenta uma representação dos ramos a partir de Hominidae.

Fig. 1 Posição do Gênero Homo a partir da Família Hominidae. Fonte Wikipedia.

Hoje acredita-se que a espécie Homo Sapiens surgiu entre 300 mil e 200 mil anos atrás e não foi a única. Habilis, Erectus,  Ergaster, Naledi, Neanderthalensis e outras todas desaparecidas precederam os humanos modernos. Entre esses não mais existem quaisquer espécies. Não obstante a variedade de tons de pele e de outras características, tais diferenças não justificam a classificação em mais de uma espécie e nem mesmo a ideia de raça. Todos os quase 8 bilhões de indivíduos no mundo pertencem rigorosamente ao mesmo tipo humano.

Sobre os símios, Kardec comenta:
Como o homem, esses macacos caminham eretos, usam cajados, constroem choças e levam à boca, com a mão, os alimentos: sinais característicos.
Esses são sinais de inteligência, uma evidência do elemento espiritual a eles associado.

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Kardec reconhece a existência de um princípio de evolução nas formas como um aperfeiçoamento entre as espécies:
Acompanhando-se passo a passo a série dos seres, dir-se-ia que cada espécie é um aperfeiçoamento, uma transformação da espécie imediatamente inferior.
Com isso ele ecoa noções de evolução pré-Darwinistas [1] de sua época que já reconheciam uma mudança gradual entre as espécies de animais, ainda que não se soubesse exatamente o mecanismo responsável por isso. Essas noções tiveram início com a constatação de que as espécies não eram fixas. Pioneiros dessas ideias foram Georg L. Leclerc (Comte de Buffon 1707-1788); Erasmus Darwin (1731-1802), avô de Charles Darwin; Jean-Baptiste C. de Lamarck (1744-1829); Charles Lyell (1797-1875) e George Cuvier (1769-1832). 

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Ainda que isso lhe fira o orgulho, tem o homem que se resignar a não ver no seu corpo material mais do que o último anel da animalidade na Terra. Aí está o inexorável argumento dos fatos, contra o qual seria inútil protestar.
Muitos  têm o orgulho ferido, pois alguns cristão ainda hoje se recusam a aceitar a evolução das espécies como o mecanismo que resultou na formação da espécie humana. Acreditam que a Humanidade tem um lugar especial, se não exclusivo, na Criação. 

É o excessivo valor dado ao corpo que leva a esse preconceito. Ao contrário, o corpo é a plataforma física a partir da qual se eleva sem fim o espírito imortal. 

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O Espiritismo, entretanto, reconhece as descobertas da ciência sobre a evolução corpórea e as incorpora em seus ensinos. Estende, porém, essa compreensão ao princípio espiritual que colhe da evolução das formas os elementos para seu aprimoramento. Assim, o Espiritismo descortina "um mundo novo" que permite a nós compreender também a existência dos animais como companheiros de jornada evolutiva, o derradeiro golpe à vaidade humana.
Pois bem! o Espiritismo, a loucura do século XIX, segundo os que se obstinam em permanecer na margem terrena, nos patenteia todo um mundo, mundo bem mais importante para o homem, do que a América, porquanto nem todos os homens vão à América, ao passo que todos, sem exceção de nenhum, vão ao dos espíritos, fazendo incessantes travessias de um para o outro.
Esclarecida de alguma forma o aparecimento do elemento material, permance a questão da origem do princípio espiritual.  Ao colher informes e vivências em sua associação com a matéria, segue por tempo desconhecido a evoluir até o destino final ainda inacessível ao nosso grau de entendimento presente. 

Referências

[1] Pre-Darwinian Theories: https://www2.palomar.edu/anthro/evolve/evolve_1.htm













18 de novembro de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - VII

Artforms of Nature, 1899–1904, Ernst Haeckel.

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - VI". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

Escala dos seres orgânicos

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Fora ainda do contexto da teoria da evolução (que se consolidaria muito depois da publiação de "A Gênese"), Kardec pinta um quadro descritivo da variedade dos seres vivos apontando para uma crescente especialização das formas.

Um exemplo que econtramos neste Parágrafo é a referência aos zoófitos. Mas a palavra "zoófito" se tornou obsoleta com o tempo e designava "animais-plantas" ou seres que, não obstante considerados como animais, têm aparência de planta. Sua existência dava aos antigos biologistas um elo de ligação entre animais e plantas. Ela explicava como certas espécies dessas últimas (como o algodão) produziam coisas que animais também pareciam produzir. O termo e o que ele implicava foi assunto de inúmeros debates [1]. Kardec ecoa esse conhecimento antigo ao declarar que:

O zoófto tem a aparência exterior da planta. Como planta, mantém-se preso ao solo; como animal, a vida nele se acha mais acentuada: tira do meio ambiente a sua alimentação.

É importante considerar que mesmo Darwin utilizou o termo. Modernamente se sabe que não existe essa ligação. Os zoófitos dos antigos são hoje encontrados em muitos seres marinhos como as anêmonas e outras criaturas de "simetria radiada", ou seja, que apresentam estruturas distribuídas em torno de um centro.

Kardec apresenta uma escala de seres na seguinte ordem: pólipos, helmintos, moluscos, crustáceos, insetos, vertebrados e mamíferos:

Pólipos representam hoje o filo Cnidaria dentro os quais se encontram as medusas e as anêmonas. 

Helminto é o termo derivado do grego para "verme". Kardec cita os "vermes intestinais" em uma referência ao uso dessa palavra na medicina. Modernamente "se entende como verme o animal com o corpo alongado e/ou achatado e sem esqueleto interno ou externo" (ver ref. Wikipedia: Verme). Eles são quase que onipresentes na Natureza. Englobam vários tipos de organismos, mas o termo antigo caiu em desuso. 

Os moluscos são classificados modernamente como pertencentes ao filo Mollusca e representam animais invertebrados, tanto de água doce e marinha como também terrestres (p. ex., os caracóis). 

Os crustáceos são invertebrados (sem coluna vertebral) artrópodes (com exoesqueleto duro) dentre os quais se destacam os siris, caranguejos e camarões (mas não somente animais marinhos). 

Insetos também pertencem ao filo Arthropoda e são invertebrados com características morfológicas únicas como possuirem um exoesquelo quitinoso. Representam mais de 70% em termos de multiplicidade de espécies animais. 

Ao desenvolverem uma coluna vertebral e um sistema nervoso, os vertebrados formam uma subdivisão dos animais cordados. Em termos temporais, sua origem remonta ao aparecimento dos primeiros fósseis de vertebrados há 450 milhões de anos. O que caracteriza os vertebrados é a presença de uma coluna vertebral, crânio, a presença de um sistema muscular e um sistema nervoso. 

Finalmente, como uma subdivisão do ramos dos vertebrados, chegamos aos mamíferos. Kardec os descreve como animais com uma "organização mais completa". Em termos descritivos, os mamíferos são animais com temperatura interna regulada (endotérmico), cujas fêmeas produzem leite por meio de glândulas mamárias. 

Os humanos pertencem a essa subclasse. Os humanos são assim descritos modernamente como seres do domínio Eukariota, no reino Animalia, com filo Chordata e subfilo Vertebrada, subdivididos na superclasse dos Tetrapoda, de classe Synapsida e subclasse Mammalia. Porém, a classificação não termina aqui. Até o gênero Homo da espécie Sapiens, há ainda mais 11 subdivisões...

Fig. 1 Linha do tempo simplificada em bilhões de anos mostrando os principais eventos naturais conforme a visão moderna da evolução. Nesse quadro imenso, destacam-se: a formação dos organismos com núcleo celular (Eucariontes), a "revolução Cambriana" e o aparecimento dos primeiros hominídeos. O uso do fogo, por exemplo, ocorreu em um milésimo de bilhão de anos atrás, ou seja, há aproximadamente 1 milhão de anos. Fonte original: wikipedia. (clique na imagem para ampliar)

Em termos atuais essa escala pode ser apreciada por meio das classificações taxonômicas modernas. Essas objetivam reduzir a variabilidade observada entre diferentes animais agrupando-os em "taxa" que acabam por formar uma grande árvore. Partindo-se de uma divisão em "reinos", esses são subdivididos em "filos". Os filos são subdividios em "classes", essas em "ordens", essas em "famílias", as famílias são separadas por "gêneros" e, finalmente, os gêneros são subdivididos em espécies. Dentro de cada espécie admite-se também subdivisões em "subespécies".  

O aumento da complexidade nos mamíferos (chamada frequentemente "diversidade") se manifesta pela existência de um número grande de espécies, e os ramos da árvore se tornam mais preenchidos. Entretanto, essas classificações refletem muito aspectos morfológicos, tanto que os insetos acabam por formar o maior ramo da árvore dos animais pela enorme diversidade com que se manifestam. 

25

A noção de que os organismos com funções e organizações complexas são modificações gradativas de espécies anteriores é descrito por Kardec:

Compreende-se então a possibilidade de que os animais de organização complexa não sejam mais do que uma transformação, ou, se quiserem, um desenvolvimento gradual, a princípio insensível, da espécie imediatamente inferior e, assim, sucessivamente, até o primitivo ser elementar.

Uma imagem resumida da evolução ao longo de bilhões de anos pode ser vista na Figura 1.  Nada se sabia na época sobre como tais transformações ocorriam. Ao questionamento de Kardec:

Ora, se a glande encerra em latência os elementos próprios à formação de uma árvore gigantesca, por que não se daria o mesmo do ácaro ao elefante?

podemos responder hoje que os "elementos próprios" que unificam a escala dos seres, do ponto de vista material, está no material genético que os compõem.  Assim, o grande elo de ligação reconhecido entre todos os seres, dos mais primitivos aos mais complexos e especializados, são seus constituintes genéticos.

Como vimos anteriormente [2], a tese da geração espontânea era aceita por grande parte dos acadêmicos na época de Kardec. Ele reporta esse estado ao comentar que essa teoria "é a que tende evidentemente a predominar hoje na ciência". Neste Parágrafo, Kardec segue assim a ciência de seu tempo e considera a ideia das "transformações gradativas" entre os seres diante da noção de geração espontânea. As transformações seriam assim um modo alternativo da Natureza de gerar novas espécies porque cada uma delas adquiriu "a faculdade de reproduzir-se" e "os cruzamentos acarretaram inúmeras variedades". Os seres mais simples se reproduziriam espontaneamente, enquanto que os organismos mais complexos transformavam-se com o tempo.

Essas noções sofreram mudanças profundas com a teoria da evolução de Darwin, o mutacionismo e a moderna genética. A geração espontânea foi expurgada da Biologia enquanto que o único mecanismo possível de criação de novas espécies está na evolução e nos inúmeros detalhes que operam seu mecanismo. As provas da evolução com organismos muito simples foram amplamente coletadas e constantemente monitoradas. Um exemplo que se tornou popular são as descrições da evolução do vírus da Covid-19, ver por exemplo, um trabalho recente em [3]. 

Essa mudança na maneira de se descrever o surgimento dos seres vivos não altera uma compreensão maior que devemos ter sobre a ligação espiritual que os une e que, um dia, também será reconhecida. Talvez seja possível dizer que uma consequência dessa ligação espiritual seja o elo material na forma das estruturas comuns que os conectam em uma grande hierarquia de criaturas. 

Referências

[1] Gibson, S. (2012). On Being an Animal, or, the Eighteenth-Century Zoophyte Controversy in Britain. History of science, 50(4), 453-476.

[2] Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - VI

[3] Li, F. (2016). Structure, function, and evolution of coronavirus spike proteins. Annual review of virology, 3(1), 237.



20 de outubro de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - VI

Frasco do experimento de Pasteur. Imagem colhida em [1].

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - V". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

Geração espontânea

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A questão proposta por Kardec ainda preocupa a ciência atual:
Formam-se, nos tempos atuais, seres orgânicos pela simples reunião dos elementos que os constituem, sem germens, previamente produzidos pelo modo ordinário de geração, ou, por outra, sem pais nem mães?
Antes que se levante uma voz dissonante, falando sobre uma respostas já fornecida pela ciência, pedimos que o leitor dilate seu pensamento. Veremos aqui que permanece como questão atual, pois a solução dada para o problema antigo da geração espontânea não resolveu o dilema da origem da vida: ainda se formam seres vivos, em qualquer lugar do Universo, tão só pela simples reunião dos elementos que os constitutem? Reformulada em termos de um problema do início da vida, a "geração espontânea" recebeu modernamente um novo nome: abiogênese.

E o debate também continua, ao lado dos que são a favor da abiogênese ou da "biologia sintética" [1] podemos encontrar seus opositores [3]. Como a comunidade acadêmica se apoia em princípios mecanísticos, a abiogênese é a crença dominante. De qualquer forma, o problema da origem da vida, já transparecia a Kardec pois, neste parágrafo, ele declara:

Esta maneira de entender deixa sempre em aberto a questão da formação dos primeiros tipos de cada espécie.

Referia-se ele ao debate de sua época, sobre se a Natureza ainda produziria (obviamente na Terra) seres de forma espontânea.

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Demonstrando estar bem informado sobre o debate científico de sua época, Kardec pondera corretamente que a geração espontânea somente poderia ocorrer em seres "rudimentares", ou seja, organismos compostos de poucas ou apenas uma célula. Ele reafirma o caráter "espontâneo" do aparecimento da vida em sua origem e separa o problema em dois, deixando claro a querela entre biologistas de seu tempo sobre se ainda essa criação estaria ocorrendo:

Foram esses, com efeito, os primeiros que apareceram na terra e cuja formação houve de ser espontânea. Assistiríamos assim a uma criação permanente, análoga à que se produziu nas primeiras idades do mundo.

Obviamente, a ponderação continua válida, se não nos limitarmos ao planeta Terra, mas à possibilidade de surgimento da vida em outros planetas. É um despropósito acreditar que a Terra, em todo o Universo com trilhões e trilhões de planetas, seja o único que tenha apresentado as condições de gerar vida.

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Em paralelo à possibilidade de geração espontânea em organismos unicelulares, por que ela não ocorreria com seres mais complexos? Essa questão era um obstáculo claro à ideia da geração espontânea. Por isso, seria "imprudente e prematuro apresentar meros sistemas como verdades absolutas".

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Neste parágrafo temos uma curiosa afirmação de Kardec:

Se a geração espontânea é fato demonstrado, por muito limitado que seja, não deixa de constituir um fato capital, um marco de natureza a indicar o caminho para novas observações.

Como assim que a geração espontânea seria "fato demonstrado"? Infelizmente, não era costume nos textos do Século XIX apresentar mais citações que embasassem o que se afirmava. Por isso, no presente, poderemos tão só especular sobre quais teriam sido as fontes usadas, nesse caso por Kardec, para sustentar essa afirmação. Isso nos leva a uma revisão histórica do debate sobre a geração espontânea.

Breve revisão da história do debate da geração espontânea no Século XIX.

Para isso, usamos pesquisas recentes sobre o tema. Uma delas é o excelente estudo de Lilian Al-Chueyr P. Martins (2009, [4]) sobre equívocos na maneira como a história do debate sobre a geração espontânea é apresentada hoje em dia.

Félix Archimède Pouchet (1800-1876), imagem segundo [4], realizou experimentos cuidadosos em 1856 que pareciam demonstrar a geração espontânea.

Ficamos sabendo, por exemplo, das pesquisas realizadas por Félix Archimède Pouchet (1800-1876), diretor do Museu de História Natural de Rouen, que realizou diversas demonstrações cuidadosas e bastante favoráveis à geração espontânea em 1856. Por serem bem feitos, os experimentos de Pouchet provocaram forte impressão na Academia de Ciências de Paris. Estaria Kardec se referindo, na passagem citada acima, aos experimentos de Pouchet?

Segundo [4]:

Depois de três anos de pesquisas, Pouchet publicou um livro sobre o assunto, denominado "Hétérogénie ou traité de la génération spontanée". Essa obra tem um longo histórico da questão (quase 100 páginas), seguido por uma discussão filosófica sobre o tema. Depois discute a questão da origem da vida na Terra, defendendo que os primeiros organismos se formaram espontaneamente – mas esclarecendo que isso não era uma concepção anti-religiosa. Por fim, o livro apresenta um grande número de experimentos nos quais parecia estar ocorrendo geração espontânea de microorganismos.

Além disso, os experimentos de Pouchet foram confirmado por outros cientistas. Essas observações demonstram que o ambiente acadêmico sobre o assunto não se definiu facilmente como contrário à geração espontânea como descrevem livros textos educacionais modernos sobre o assunto [4]. O papel de Pasteur e sua participação no prêmio Alhumbert também é esclarecido em [4]:

Como a questão das gerações espontâneas trazia conseqüências não apenas científicas mas também de âmbito filosófico, religioso e até mesmo político, em janeiro de 1860 a Academia de Ciências de Paris ofereceu um prêmio no valor de 2.500 francos (o Prêmio Alhumbert) para o melhor trabalho sobre o assunto. Provavelmente foi a pesquisa de Pouchet que levou à criação desse prêmio.

O objetivo do prêmio era favorecer pesquisas contrárias à geração espontânea, tanto que, entre seus julgadores, todos eram oponentes da ideia. Seu apoiadores, no outro lado, sabendo das condições do prêmio, recusaram-se a participar dele. Tendo Pasteur adotado posição contrária à geração espontânea e sendo o únido participante, recebeu o prêmio em 1862, realizando um conjunto de experimentos que pareceram, para a Academia Francesa, demonstrar a impossibilidade de criação espontânea da vida.

A tese defendida em [4] é que os relatos históricos apresentados em muitos livros modernos é de uma história contada de trás para diante. Como hoje em dia sabemos da impossibilidade da geração espontânea na Terra, o relato é montado de forma a parecer que o experimento de Pasteur conferiu o último golpe à teoria, o que é falso. Isso permite compreender a afirmação apresentada logo no início do Parágrafo 23, se os trabalhos de Pouchet pareceram a Kardec como de maior impacto em sua época. Essa hipótese tem apoio em [4]:

É relevante mencionar que, na época, uma grande parte das pessoas cultas acreditou que Pouchet estava correto e que a Academia havia cometido um erro. A Enciclopédia Larousse, por exemplo, considerava em 1865 que os heterogenistas haviam vencido a disputa. Portanto, a posição da Academia não levou a uma decisão sobre o assunto e continuaram a surgir trabalhos de pesquisa favoráveis à geração espontânea, tanto na França quanto em outros países, durante muito tempo. (grifos nossos)

Os "heterogenistas" eram os adeptos da teoria da geração espontânea. Os debates sobre o assunto continuaram até, pelo menos, 1900. Entretanto, livros didáticos modernos de Biologia dificilmente fazem referência a tais experimentos em apoio à geração espontânea que foram realizados depois do prêmio oficial de Pasteur.

Em suma, na época da publicação de A Gênese, as "pessoas cultas" na França consideravam que a geração espontânea havia sido demonstrada. No extremo oposto, Pasteur tinha ganhado um "prêmio de consolação" concedido por um torneio suspeito e esvaziado da Academia Francesa, que não foi suficiente para convencer a maioria. O debate sobre a geração espontânea, misturado ao ambiente de discussão política, talvez impedisse um visão mais clara do assunto. Por essa razão, Kardec finaliza o citado Parágrafo com a bela ponderação:

No estado atual dos nossos conhecimentos, não podemos estabelecer a teoria da geração espontânea permanente, senão como hipótese, mas como hipótese provável e que um dia, talvez, tome lugar entre as verdades científcas incontestes.

Muito provavelmente, a motivação dos cientistas favoráveis à geração espontânea na época de Kardec era resolver o problema da origem da vida. Demonstrado que a vida poderia surgir espontaneamente em qualquer lugar da Terra, ficava dissolvido o problema de decidir quando a vida ocorreu pela primeira vez. Como a questão se definiu pela impossibilidade da geração espontânea presente (sem impedir sua ocorrência em  outros planetas), o problema da origem da vida permanece como um dos mais intricados embróglios científicos presentes. 

Recomendamos também a leitura de  "A geração espontânea e a Gênese" [5] de julho de 1868.

Referências

[1] Pasteur's "col de cygnet" (1859). British Society for Immunology. https://www.immunology.org/pasteurs-col-de-cygnet-1859

[2] Attwater, J., & Holliger, P. (2014). A synthetic approach to abiogenesis. nature methods, 11(5), 495-498. https://www.nature.com/articles/nmeth.2893 

[3] Bergman, J. (2000). Why abiogenesis is impossible. Creation Research Society Quarterly, 36(4), 195-207.    http://herbertarmstrong.org/Miscellaneous/Why%20Abiogenesis%20is%20Impossible.pdf

[4] Martins, L. A. C. P. (2009). Pasteur e a geração espontânea: uma história equivocada. Filosofia e História da Biologia, 4(1), 65-100.    http://www.abfhib.org/FHB/FHB-04/FHB-v04-03.html 

[5] Ver: https://www.ipeak.net/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=6191&&idioma=1

4 de setembro de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - V

Ilustrações de seres marinhos por Ernst Haeckel (1834-1919).

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - IV". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

O princípio vital

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Do ponto de vista de seus ingredientes materiais, seres vivos podem ser decompostos pela química em elementos que são indistinguíveis daqueles que formam os minerais. Assim, a síntese de compostos orgânicos constituiu um duro golpe aos que acreditavam que seres vivos eram feitos de uma matéria especial. Neste parágrafo, Kardec pergunta se seres vivos podem ser reduzidos ainda mais aos elementos puramente materiais em um sentido mais profundo:

Sem falar do princípio inteligente, que é questão à parte, há, na matéria orgânica, um princípio especial, inapreensível e que ainda não pode ser definido: o princípio vital. Ativo no ser vivente, esse princípio se acha extinto no ser morto; mas nem por isso deixa de dar à substância propriedades que a distinguem das substâncias inorgânicas.

Em uma lógica que ainda não é apreciado pelas ciências estabelecidas, o Espiritismo tem no princípio inteligente um elemento fundamental que justifica a existência da própria vida. Os seres vivos abrigam o princípio inteligente que evolui ao longo dos séculos em consórcio com a evolução das formas vivas até que ele alcançe o estado da razão. Entretanto, não é esse o tema principal do Parágrafo ora em análise, mas sim o "princípio vital". 

Para se ter entendimento mais exata do motivo para se propor a existência desse terceiro elemento nos seres vivos é relevante uma revisão histórica, inclusive para compreender o debate então vigente sobre ele até o Século XIX. Adiantamos aqui que, em tese, a biologia moderna aboliu completamente a necessidade do princípio vital em suas explicações sobre a vida. Apresentaremos essa revisão mais para a frente.

Para que se tenha uma noção aproximada da relevância do princípio vital (ou como assim parecia sua manifestação aos téoricos da biologia no Século XIX) fazemos aqui uso de uma comparação. Ninguém duvida que um processador eletrônico moderno (que existe em computadores, tablets e telefones celulares) é formado de elementos químicos bem conhecidos. Diversas substânias minerais entram na composição dos "chips" eletrônicos: elementos como o silício, o ferro, o alumínio, germânio e outros. Entretato, a estrutura, composição e arranjo desses elementos nos equipamentos eletrônicos não é suficiente para explicar como esses dispositivos se comportam. Tomo de um telefone celular ligado e corretamente configurado, toco em uma determinada janela que abre um "aplicativo" que me permite ler um mapa onde eu me localizo. Que mágica é essa capaz de conhecer minha posição de forma automática e instantânea ? 

Para compreender como se comportam computadores, celulares e outros dispositivos eletrônicos complexos (Fig. 1), que respondem ao ambiente e realizam funções sofisticadas, precisamos da ideia dos "algoritmos". Esses são longas sequências de comandos inscritos em linguagem lógica que são "decodificados" em arranjos de correntes elétricas que percorrem os circuitos desses equipamentos. Os algoritmos representam estruturas de nível hierárquico superior capazes de controlar a matéria que compõe os equipamentos sem, entretanto, alterar sua estrutura. Além deles, a eletricidade é um importante ingrediente que flui nos equipamentos eletrônicos causando determinados comportamentos. 

Assim, um paralelo entre seres vivos e equipamentos eletrônicos pode ser traçado de forma grosseira, ao se identificar as estruturas orgânicas dos seres com o hardware dos equipamentos, a eletricidade com o princípio vital e os algoritmos com o princípio inteligente. Dessa forma, fica mais fácil compreender a afirmação de Kardec:

Ativo no ser vivente, esse princípio se acha extinto no ser morto; mas nem por isso deixa de dar à substância propriedades que a distinguem das substâncias inorgânicas.

Um equipamento sem fonte de energia não funciona. Da mesma forma, seres vivos são obrigados a extrair do meio a energia que permite a eles viver. Entretanto, a eletricidade (que se caracteriza pela intensidade, modulação e temporização com que flui nos circuitos integrados) permite um paralelo mais preciso com a ideia do princípio vital nos seres vivos. A eletricidade confere aos equipamentos propriedades que não existem naqueles em que esse fluxo for inconforme ou inexistente, ainda que estejam plenamente "carregados". 

Fig. 1 Equipamentos eletrônicos modernos funcionam sob princípios que não dependem apenas dos componentes químicos que os formam. Assim, eles fornecem um paralelo para se compreender as questões ligadas à necessidade do princípio vital nos seres vivos, como apresentadas a partir do Parágrafo 16 no Capítulo X. 

Esse paralelo corresponde à proposta de se entender um ser vivo como um "sistema" organizado de forma hierárquica em que estruturas nos níveis mais inferiores (o "hardware") são operados pelos níveis superiores intangíveis (software). Para isso, "informação" flui entre os níveis, de forma que não é possível decompor e explicar um ser vivo tão somente em termos dos seus elementos químicos. A biologia moderna possui outras paradigmas para explicar as correntes de informação responsável pelo funcionamento dos seres vivos como, por exemplo, a ideia de que informação está "codificada" nos genes que instruem as células na realização de tarefas específicas. Entretanto, haverá sempre uma causa anterior subjacente à organização dos genes como, por exemplo, a fonte de informação responsável pelos próprios genes.

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Neste parágrafo algumas perguntas sobre o princípio inteligente são apresentadas:

Será o princípio vital alguma coisa particular, que tenha existência própria? Ou, integrado no sistema da unidade do elemento gerador, apenas será um estado especial, uma das modificações do fluido cósmico, pela qual este se torne princípio de vida, como se torna luz, fogo, calor, eletricidade?

Como resposta preliminar, Kardec cita as mensagens do Cap. VI em "Uranografia Geral" (ver nossa análise em "Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - CONCLUSÃO") que parecem indicar que o princípio vital não é um elemento a parte, ou seja, não seria um "terceiro princípio", além do material e inteligente. 

Ao contrário, ele é extraído do meio como uma modificação do fluido cósmico universal. De novo nosso paralelo com os equipamentos eletrônicos permite compreender essa proposta uma vez que corrrentes elétricas são extraídas do meio por uma transformação dos recursos energéticos disponibilizados ao equipamento. O princípio vital seria um recurso extraído do meio por meio de transformações especiais específicas aos seres vivos.  

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Na análise dos corpos orgânicos, a Química encontra os elementos que os constituem: oxigênio, hidrogênio, azoto e carbono; mas não pode reconstituir aqueles corpos, porque, já não existindo a causa, não lhe é possível reproduzir o efeito, ao passo que possível lhe é reconstituir uma pedra.

Kardec chama a atenção para outro aspecto que permite compreender a necessidade do princípio vital. Como veremos mais tarde, essa impossibilidade de se reproduzir o efeito apenas pela reunião dos ingredientes fundamentals visíveis ainda continua. Até hoje ainda não foi possível sintetizar um ser vivo - por mais simples que seja - por meios químicos. 

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Neste Parágrafo, Kardec parece apoiar a identificação do princípio vital com a eletricidade:

Os corpos orgânicos seriam, então, verdadeiras pilhas elétricas, que funcionam enquanto os elementos dessas pilhas se acham em condições de produzir eletricidade: é a vida; que deixam de funcionar, quando tais condições desaparecem: é a morte. Segundo essa maneira de ver, o princípio vital não seria mais do que uma espécie particular de eletricidade, denominada eletricidade animal, que durante a vida se desprende pela ação dos órgãos e cuja produção cessa, quando da morte, por se extinguir tal ação.

Não só isso, mas seria possível identificar o princípio com o próprio fluxo de energia no corpo vivo. Essa energia se manifesta de várias formas: química, elétrica e mecânica. Porém, a noção de ''conservação de energia" foi praticamente contemporânea da publicação de "A Gênese" [1]. Dessa forma, na época de Kardec, não seria possível fazer uma distinção clara entre o conceito emergente de energia [2] e o princípio vital. Da mesma forma, quando biologistas aboliram esse princípio da Biologia no início do Século XX, eles não tinham ideia de que ele poderia retornar, anos mais tarde, sob uma nova roupagem teórica e conceitual.

Referências

1. CAHAN, David. The awarding of the Copley Medal and the ‘discovery of the law of conservation of energy: Joule, Mayer and Helmholtz revisited. Notes and Records of the Royal Society, v. 66, n. 2, p. 125-139, 2012.
2. HARRER, Benedikt W. On the origin of energy: Metaphors and manifestations as resources for conceptualizing and measuring the invisible, imponderable. American Journal of Physics, v. 85, n. 6, p. 454-460, 2017.




23 de abril de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - III

Fig 1. Ilustração do interior de um laboratório (provavelmente de química) no Século XIX (Wikipedia). 

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - II". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

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Kardec faz uma breve introdução à química como resultado do reconhecimento de sua importância para a gênese orgânica. Enumera alguns dos elementos químicos, inclusive o nitrogênio que é o termo técnico para "azoto" [1], ainda presente no Português europeu. Kardec também cita um conjunto de condições externas necessárias para que algumas reações químicas ocorram como o calor, a presença de água, a agitação etc.  Modernamente, pode-se falar em "condições ambientais" tais como temperatura, pressão, presença de elementos catalíticos e outras substâncias pelas quais uma determinada reação ocorre da forma mais eficiente possível. 

O resultado de uma reação é sempre um "terceiro corpo" (ou mais corpos) que se pode chamar "produto da reação", com eliminação total ou parcial dos elementos iniciais conhecidos como "insumos" ou "ingredientes". Pode-se citar como prova, por exemplo, a reação de fotosíntese pela qual as plantas convertem o dióximo de carbono e a água em glicose e oxigênio. Para funcionar, a reação precisa de energia luminosa que, para as plantas, vem do sol:

Luz do sol + 6CO2(g) + H2O(l) = C6H12O6(aq) + 6O2(g)

Na descrição acima, CO2(g) é o dióximo de carbono na forma gasosa, H2O é água na forma líquida. Os produtos são oxigênio na forma gasosa e a glicose na forma aquosa (ou seja, o substrato onde a reação ocorre deve conter água como solvente). Esse exemplo permite compreender todos os elementos descritos por Kardec como participando de uma reação química associada à vida.

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A decomposição e formação da água são apresentados por Kardec como exemplo de reações que podem ser feitas indefinidamente. Ou seja, as propriedades dos insumos e dos produtos são sempre recobradas após a reação, sem nenhum limite identificável. Logo, essas propriedades ligam-se exclusivamente aos elementos, não se esgotam ao longo de vários ciclos de reações. A decomposição da água pode ser feita por meio da eletrólise (Fig. 2), enquanto que a formação da água é uma reação química facilmentte obtida ao se combinar os dois gases na proporção certa (hidrogênio e oxigênio) usando calor. 

Fig. 2 Diagrama da decomposição da água (Wikipedia).

As propriedades das substâncias químicas depende do arranjo molecular delas. Esse arranjo define como ela interage com o ambiente (com outros gases, com a luz etc) e as propriedades sensíveis, isto é, como seres humanos percebem cada coisa formada por elas. 

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É uma introdução sumária ao conceito de "afinidade química". Essa afinidade existe em determinados graus e depende do tipo de combinação, ou seja, dos compostos químicos que entram em reação. Em termos modernos:

Na química física, a afinidade química é uma propriedade eletrônica pela qual espécies químicas diferentes são capazes de formar compostos químicos. A afinidade química pode também se referir à tendência de um átomo ou composto combinar por meio de reação química com atomos e compostos de composição diferente [2].

O leitor deve observar que essa definição moderna considera a afinidade química como uma "propriedade eletrônica". No Século XIX, quando "A Gênese" foi publicada, o elétron não era ainda conhecido. De fato, a teoria atômica tinha caráter especulativo, visto que se entendia não haver "provas diretas" da existência dos átomos. A definição de afinidade química dada por Kardec está, porém, completamente de acordo com o conhecimento empírico da química, que não se alterou desde então.

7

Dessa forma, era conhecimento empírico que, nas reações químicas, as quantidades têm que ser adicionadas em certas proporções entre os elementos. Kardec novamente usa como exemplo a água, que, nas condições normais de temperatura e pressão, se forma na proporção de dois volumes de hidrogênio para um de oxigênio. Hoje sabemos que essas combinações se devem à natureza atômica dos constituintes dos insumos. Mas, na época, isso era apenas uma especulação entre os cientistas. Essa teoria (chamada "atômica") foi lançada por J. Dalton (1766 – 1844) em 1803 e tinha como princípios [3]:

Elementos são feitos de particula extremamente pequenas chamadas átomos;

Átomos de um certo elemento são idênticos em tamanho, massa e outras propriedades; átomos de diferentes elementos diferem em tamanho, massa e outras propridades;

Átomos não podem ser subdivididos, criados ou destruídos;

Átomos de diferentes elementos combinam-se em razões inteiras para formar compostos químicos;

Nas reações químicas, átomos são combinados, separados ou rearranjados.

Embora possa soar natural a nós hoje em dia, essa era apenas uma das teorias existentes para explicar o comportamento das reações químicas. 

Como evidência da necessidade de combinações em proporções inteiras e corretas, Kardec considera que, se um volume adicional de oxigênio for adicionado à reação inicial para formação da água, essa não se formará, mas, ao invés dela, o peróximo de hidrogênio (deutoxyde d'hydrogène na versão original em Francês), que é a água oxigenada.

Fig. 3 Ilustração moderna da molécula de água oxigenada
ou o deutoxyde d'hydrogène citado por Kardec.

Essa é uma substância líquida, viscosa e altamente tóxica, com propriedades bem diferentes da água (que, não é tóxica para o organismo humano).

8

Kardec ilustra a "inumerável variedade" de compostos que resulta de "um número pequeno de princípios elementares" pela combinação desses princípios "em proporções diferentes". Na tabela abaixo, apresentamos as representações modernas dos compostos citados neste Parágrafo por Kardec com o objetivo de ilustrar seus exemplos de combinações químicas inorgânicas. 

Citações de compostos químicos do Parágrafo 8 do Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

Oxigênio (O)

Combinado a

Formação

Observação

Carbono (C)

Ácido Carbônico (H2CO3)

Também chamado "dihidroxicabonila".

Enxofre (S)

Ácido Sulfúrico (H2SO4).

Ou "sulfato de hidrogênio".

Fósforo (P)

Ácido Fosfórico (H3PO4).

Ou "ácido ortofosfórico".

Ferro (Fe)

É citado o óxido de ferro da ferrugem que é formado de Fe III (Fe3O4).

Exisem ao menos 16 formas diferentes de óxidos de ferro.

Chumbo (Pb)

PbO em diversas formas.

Litargírio: é o óxido de chumbo II com elevado grau de pureza, altamente tóxico e encontrado na natureza [4]. Alvaiade:  carbonato de chumbo (2PbCO3·Pb(OH)2) [5]. Mínio: também conhecido como Zarcão, é o tetróxido de chumbo (Pb3O4).

Cálcio (Ca)

Óxido de cálcio (CaO).

Cal viva ou cal virgem [6].

Sódio (Na)

Óxido de sódio ( Na2O). Hidróxido de sódio (NaOH).

O óxido de sódio é raramente encontrado [7]. NaOH também é conhecido como soda cáustica. A soda é formada irreversivelmente pelo óxido pela combinação com a água.

Potássio (K)

O hidróxido de potássio (KOH), mas também pode-se falar do óxido de potássio (K2O).

Também chamda potassa cáustica. O óxido de potássio reage violentamente com a água. Raramente é encontrado.

Cal (CaO)

Ácido Carbônico (H2CO3)

H2CO3 + CaO → CaCO3 + H2O

Referência à formação do carbonato de cálcio. Cré (craie em Francês): também conhecido como giz (chalk em Inglês)

Ácido Sulfúrico (H2SO4)

CaO + H2SO4 → CaSO4 + H2O

Referência à reação de produçao de sulfato de cálcio também conhecido como gesso. Alabastro pode tanto referir-se ao gesso (sulfato) como à calcita (carbonato).

Ácido Fosfórico (H3PO4)

CaO + 2 H3PO4 → Ca(H2PO4)+ H2O

O fosfato de monocálcio (diortofosfato de monocálcio) é usado como fertilizante. Os fosfatos de cálcio são de grande importância para os ossos.

Cloro (Cl)

Hidrogênio (H)

Cloreto de hidrogênio (HCl)

Em condições ambientais é um gás que, ao contato com o ar úmido forma o ácido hidroclórico (ou "ácido muriático").

Sódio (Na)

Cloreto de Sódio (NaCl)

Principal composto do sal de cozinha.

Referências

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Azoto

[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Chemical_affinity

[3] https://en.wikipedia.org/wiki/John_Dalton

[4] Litargírio: https://pt.wikipedia.org/wiki/Litarg%C3%ADrio

[5] Alvaiade: https://pt.wikipedia.org/wiki/Alvaiade

[6] Cal: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cal

[7] Óxido de sódio: https://en.wikipedia.org/wiki/Sodium_oxide