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23 de abril de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - III

Fig 1. Ilustração do interior de um laboratório (provavelmente de química) no Século XIX (Wikipedia). 

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - II". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

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Kardec faz uma breve introdução à química como resultado do reconhecimento de sua importância para a gênese orgânica. Enumera alguns dos elementos químicos, inclusive o nitrogênio que é o termo técnico para "azoto" [1], ainda presente no Português europeu. Kardec também cita um conjunto de condições externas necessárias para que algumas reações químicas ocorram como o calor, a presença de água, a agitação etc.  Modernamente, pode-se falar em "condições ambientais" tais como temperatura, pressão, presença de elementos catalíticos e outras substâncias pelas quais uma determinada reação ocorre da forma mais eficiente possível. 

O resultado de uma reação é sempre um "terceiro corpo" (ou mais corpos) que se pode chamar "produto da reação", com eliminação total ou parcial dos elementos iniciais conhecidos como "insumos" ou "ingredientes". Pode-se citar como prova, por exemplo, a reação de fotosíntese pela qual as plantas convertem o dióximo de carbono e a água em glicose e oxigênio. Para funcionar, a reação precisa de energia luminosa que, para as plantas, vem do sol:

Luz do sol + 6CO2(g) + H2O(l) = C6H12O6(aq) + 6O2(g)

Na descrição acima, CO2(g) é o dióximo de carbono na forma gasosa, H2O é água na forma líquida. Os produtos são oxigênio na forma gasosa e a glicose na forma aquosa (ou seja, o substrato onde a reação ocorre deve conter água como solvente). Esse exemplo permite compreender todos os elementos descritos por Kardec como participando de uma reação química associada à vida.

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A decomposição e formação da água são apresentados por Kardec como exemplo de reações que podem ser feitas indefinidamente. Ou seja, as propriedades dos insumos e dos produtos são sempre recobradas após a reação, sem nenhum limite identificável. Logo, essas propriedades ligam-se exclusivamente aos elementos, não se esgotam ao longo de vários ciclos de reações. A decomposição da água pode ser feita por meio da eletrólise (Fig. 2), enquanto que a formação da água é uma reação química facilmentte obtida ao se combinar os dois gases na proporção certa (hidrogênio e oxigênio) usando calor. 

Fig. 2 Diagrama da decomposição da água (Wikipedia).

As propriedades das substâncias químicas depende do arranjo molecular delas. Esse arranjo define como ela interage com o ambiente (com outros gases, com a luz etc) e as propriedades sensíveis, isto é, como seres humanos percebem cada coisa formada por elas. 

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É uma introdução sumária ao conceito de "afinidade química". Essa afinidade existe em determinados graus e depende do tipo de combinação, ou seja, dos compostos químicos que entram em reação. Em termos modernos:

Na química física, a afinidade química é uma propriedade eletrônica pela qual espécies químicas diferentes são capazes de formar compostos químicos. A afinidade química pode também se referir à tendência de um átomo ou composto combinar por meio de reação química com atomos e compostos de composição diferente [2].

O leitor deve observar que essa definição moderna considera a afinidade química como uma "propriedade eletrônica". No Século XIX, quando "A Gênese" foi publicada, o elétron não era ainda conhecido. De fato, a teoria atômica tinha caráter especulativo, visto que se entendia não haver "provas diretas" da existência dos átomos. A definição de afinidade química dada por Kardec está, porém, completamente de acordo com o conhecimento empírico da química, que não se alterou desde então.

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Dessa forma, era conhecimento empírico que, nas reações químicas, as quantidades têm que ser adicionadas em certas proporções entre os elementos. Kardec novamente usa como exemplo a água, que, nas condições normais de temperatura e pressão, se forma na proporção de dois volumes de hidrogênio para um de oxigênio. Hoje sabemos que essas combinações se devem à natureza atômica dos constituintes dos insumos. Mas, na época, isso era apenas uma especulação entre os cientistas. Essa teoria (chamada "atômica") foi lançada por J. Dalton (1766 – 1844) em 1803 e tinha como princípios [3]:

Elementos são feitos de particula extremamente pequenas chamadas átomos;

Átomos de um certo elemento são idênticos em tamanho, massa e outras propriedades; átomos de diferentes elementos diferem em tamanho, massa e outras propridades;

Átomos não podem ser subdivididos, criados ou destruídos;

Átomos de diferentes elementos combinam-se em razões inteiras para formar compostos químicos;

Nas reações químicas, átomos são combinados, separados ou rearranjados.

Embora possa soar natural a nós hoje em dia, essa era apenas uma das teorias existentes para explicar o comportamento das reações químicas. 

Como evidência da necessidade de combinações em proporções inteiras e corretas, Kardec considera que, se um volume adicional de oxigênio for adicionado à reação inicial para formação da água, essa não se formará, mas, ao invés dela, o peróximo de hidrogênio (deutoxyde d'hydrogène na versão original em Francês), que é a água oxigenada.

Fig. 3 Ilustração moderna da molécula de água oxigenada
ou o deutoxyde d'hydrogène citado por Kardec.

Essa é uma substância líquida, viscosa e altamente tóxica, com propriedades bem diferentes da água (que, não é tóxica para o organismo humano).

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Kardec ilustra a "inumerável variedade" de compostos que resulta de "um número pequeno de princípios elementares" pela combinação desses princípios "em proporções diferentes". Na tabela abaixo, apresentamos as representações modernas dos compostos citados neste Parágrafo por Kardec com o objetivo de ilustrar seus exemplos de combinações químicas inorgânicas. 

Citações de compostos químicos do Parágrafo 8 do Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

Oxigênio (O)

Combinado a

Formação

Observação

Carbono (C)

Ácido Carbônico (H2CO3)

Também chamado "dihidroxicabonila".

Enxofre (S)

Ácido Sulfúrico (H2SO4).

Ou "sulfato de hidrogênio".

Fósforo (P)

Ácido Fosfórico (H3PO4).

Ou "ácido ortofosfórico".

Ferro (Fe)

É citado o óxido de ferro da ferrugem que é formado de Fe III (Fe3O4).

Exisem ao menos 16 formas diferentes de óxidos de ferro.

Chumbo (Pb)

PbO em diversas formas.

Litargírio: é o óxido de chumbo II com elevado grau de pureza, altamente tóxico e encontrado na natureza [4]. Alvaiade:  carbonato de chumbo (2PbCO3·Pb(OH)2) [5]. Mínio: também conhecido como Zarcão, é o tetróxido de chumbo (Pb3O4).

Cálcio (Ca)

Óxido de cálcio (CaO).

Cal viva ou cal virgem [6].

Sódio (Na)

Óxido de sódio ( Na2O). Hidróxido de sódio (NaOH).

O óxido de sódio é raramente encontrado [7]. NaOH também é conhecido como soda cáustica. A soda é formada irreversivelmente pelo óxido pela combinação com a água.

Potássio (K)

O hidróxido de potássio (KOH), mas também pode-se falar do óxido de potássio (K2O).

Também chamda potassa cáustica. O óxido de potássio reage violentamente com a água. Raramente é encontrado.

Cal (CaO)

Ácido Carbônico (H2CO3)

H2CO3 + CaO → CaCO3 + H2O

Referência à formação do carbonato de cálcio. Cré (craie em Francês): também conhecido como giz (chalk em Inglês)

Ácido Sulfúrico (H2SO4)

CaO + H2SO4 → CaSO4 + H2O

Referência à reação de produçao de sulfato de cálcio também conhecido como gesso. Alabastro pode tanto referir-se ao gesso (sulfato) como à calcita (carbonato).

Ácido Fosfórico (H3PO4)

CaO + 2 H3PO4 → Ca(H2PO4)+ H2O

O fosfato de monocálcio (diortofosfato de monocálcio) é usado como fertilizante. Os fosfatos de cálcio são de grande importância para os ossos.

Cloro (Cl)

Hidrogênio (H)

Cloreto de hidrogênio (HCl)

Em condições ambientais é um gás que, ao contato com o ar úmido forma o ácido hidroclórico (ou "ácido muriático").

Sódio (Na)

Cloreto de Sódio (NaCl)

Principal composto do sal de cozinha.

Referências

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Azoto

[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Chemical_affinity

[3] https://en.wikipedia.org/wiki/John_Dalton

[4] Litargírio: https://pt.wikipedia.org/wiki/Litarg%C3%ADrio

[5] Alvaiade: https://pt.wikipedia.org/wiki/Alvaiade

[6] Cal: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cal

[7] Óxido de sódio: https://en.wikipedia.org/wiki/Sodium_oxide

7 de fevereiro de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - II

Detalhe de "Remanescentes orgânicos restaurados" conforme a Penny Magazine de 1833. Extraído de uma digitalização do documento original em archive.org.

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - I". Estudo sobre o Cap. X de "A Gênese" de A. Kardec.

Formação primária dos seres vivos

1

A "formação primária" é a própria criação original da vida. A "formação secundária" se dá pelo conhecido processo de reprodução, pelos quais as espécies se propagam. Neste parágrafo Kardec apresenta o problema do aparecimento da vida, visto que "tempo houve em que não existiam animais" [1]. O problema se apresenta porque não é certo que a origem primária tenha se dado pelo mesmo processo de reprodução a partir de um primeiro casal (a crença bíblica da criação por ato divino dos primeiros casais). No começo, não existiam as mesmas "condições necessárias à existência delas". Esse é, em termos simples, o problema científico da origem das espécies e da própria vida. Por fim, Kardec declara o status do problema em sua época:

A Ciência ainda não pode resolver o problema; pode entretanto, pelo menos, encaminhá-lo para a solução.

Passados mais de 150 anos dessa declaração e não obstante todo o avanço em diferentes áreas do conhecimento (bioquímica, genética, evolução etc), com relação à questão da origem da vida, a situação não se alterou como veremos numa sequência de posts. 

2

Talvez por uma questão didática para os espíritas conhecedores das crenças cristãs, Kardec apresenta neste Parágrafo o problema da vida em termos do nascimento de: um "casal primitivo", em um certo e único lugar na Terra, ou de muitos casais em lugares diferentes. É uma referência ao antigo enclave entre a "poligenia" e a "monogenia", ou debate cristão sobre a criação de muitos ou apenas um único casal na origem dos tempos.

O fato é que, desde meados do Século XVIII já se sabia da existência de animais que podiam se reproduzir de forma assexuada, a partir de pesquisas feitas pelo cientista suíço Charles Bonnet (1720-1793), Figura 1. Esse é o fenômeno da partenogênese que Bonnet descobriu em pulgões. Posteriormente, também se descobriu que muitos outros animais podem se reproduzir sem sexo. A existência de reprodução assexuada é uma importante contraposição à crença bíblica da "criação de casais" (como inferido da arca de Noé em Geneses 7:2*) porque mostra que o sexo não é condição necessária para a reprodução das espécies. 

Fig. 1 Charles Bonnet (1720-1793), naturalista e filósofo suíço
que descobriu a reprodução assexuada.

Considerando a existência em larga escada da reprodução assexuada, também parece fazer sentido admitir que o sexo não nasceu junto com a vida, mas veio muito tempo depois, tal como fez Kardec em admitir a maior plausibilidade da poligenia - e isso com base em evidências científicas:
Com efeito, o estudo das camadas geológicas atesta, nos terrenos de idêntica formação, e emproporções enormes, a presença das mesmas espécies em pontos do globo muito afastados uns dos outros. Essa multiplicação tão generalizada e, de certo modo, contemporânea, fora  impossível com um único tipo primitivo.

Essa não seria apenas uma evidência da poligenia, mas também (como foi descoberto bem mais tarde) da chamada deriva dos continentes ou tectônica das placas continentais [2]. Kardec apresenta, porém, uma justificativa muito mais lógica para a criação poligênica que foi a chance muito maior que a vida teve em sobreviver em vários lugares da Terra do que teria tido em apenas um único ponto:

Doutro lado, a vida de um indivíduo, sobretudo de um indivíduo nascente, está sujeita a tantas vicissitudes, que toda uma criação poderia fcar comprometida, sem a pluralidade dos tipos, o que implicaria uma imprevidência inadmissível da parte do criador supremo.

3

Neste parágrafo Kardec estabelece uma base para a pesquisa da origem da vida, que é a química orgânica. O motivo, prossegue Kardec, é que os seres vivos são compostos por substâncias orgânicas. Portanto, antes de querer encontrar uma origem dos seres é necessário compreender a gênese dessas substâncias. Essa princípio foi validada posteriormente, quando se desobriu a "hélice da vida" e seus blocos constituintes na forma de cadeias de nucleotídeos [3], assim como todo o desenvolvimento da bioquímica. Depois, com o famoso experimento de Oparin [4] que será descrito neste blog mais adiante, foi possível traçar parte de uma rota para a síntese natural das bases da vida a partir de um ambiente primitivo possível da Terra depois de sua formação. O experimento de Oparin, entretanto, não resolveu o problema da "formação primária" dos seres vivos. 

Porém, como se pode perceber, a lógica de Kardec não é outra senão a própria lógica da ciência que não mudou desde sua época, não obstante o que a ciência específica diz ter mudado. Tendo as evidências científicas e a química orgânica como base, Kardec em "A Gênese" tece um relato em que a origem da vida será descrita em termos de uma nova fronteira do conhecimento. Essa fronteira avançou desde então, sem que seus fundamentos se modificassem. Esses aspectos imutáveis tornam possível entender "A Gênese" como um texto ainda atual, inobstante as atualizações que sofreram algumas teorias da vida defendidas pela ciência da época em que "A Gênese" foi publicada.

Notas

* "De todos os animais limpos tomarás para ti sete e sete, o macho e sua fêmea; mas dos animais que não são limpos, dois, o macho e sua fêmea." (Gênese 7:2)

Referências

[1] Kardec. "A Gênese. Os milagres e as predições segundo o Espiritismo". 34a Edição. FEB.Trad. de Guillon Ribeiro. (1991).
[2] Frankel, H. R. (2012). The continental drift controversy (Vol. 2). Cambridge University Press.
[3] Ver, por exemplo, o que a Wikipei descreve sobre o DNA: a https://en.wikipedia.org/wiki/DNA
[4] Tirard, S. (2010). Origin of life and definition of life, from Buffon to Oparin. Origins of life and evolution of biospheres, 40(2), 215-220.

15 de janeiro de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - I

Ilustração representando diferentes ordens de "Intestina et Mollusca Linnaei"  do "The Genera Vermium" de Charles Linneus (1707-1778). Fonte: Wikipedia.

Continuamos nosso estudo online de "A Gênese", desta vez com o Capítulo X. Exploraremos esse capítulo em uma nova contextualização, trazendo algumas novidades mais recentes sobre o assunto.

Ao se consultar a organização em que alguns temas sobre a criação do mundo estão expostos em "A Gênese", vemos que Kardec conferiu uma sequência pedagógica e temporal a eles:

  1. A "Uranografia Geral" (que foi tema de nossos comentários em uma sequência de posts anteriores, ver "Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - CONCLUSÃO") está o Capítulo VI. Contextualiza a origem dos sistemas estelares e do Universo, que deram origem à Terra;
  2. O "Esboço geológico da Terra" até "Revoluções do globo" dos Capítulos VII a IX que continuam a gênese para tratar de um imenso período que existiu entre a formação da Terra e a origem da Vida;
  3. A "Gênese Orgânica" no Cap. X sobre a origem dos seres vivos;
  4. A "Gênese Espiritual" no Cap. XI, não que tenha ocorrido depois da criação dos seres, mas para demarcar o início da consciência entre os animais com a junção da matéria ao princípio espiritual;
  5. A "Gênese Moisaica" no Cap. XII que discorre sobre as concepções religiosas dominantes com relação à origem do mundo com base na Bíblia. 

A existência de um capítulo inteiro dedicado à "Gênese Moisaica" tem relevância moderna, considerando os debates recentes entre os proponentes do "Desenho Inteligente" (em essência, uma "teoria" simplista que credita a origem da vida a uma intervenção direta de Deus) e os cientistas. Discutiremos sobre esse debate oportunamente em nossa releitura do Capítulo X.

O Capítulo X está dividido em vária seções que se iniciam plea "Formação primária dos seres vivos" e termina em "O homem corpóreo", considerando também uma possível "escala dos seres orgânicos". Vale a pena rever o que Kardec escreveu, tendo com base a 5a edição que foi publicada no Brasil pela FEB com tradução de Guillon Ribeiro.

Importante considerar que esse capítulo passa pela apresentação feita por Kardec sobre a teoria da "geração espontânea", uma concepção inicial sobre a criação dos seres típicas do ambiente "pré-evolucionista" do Século XIX que culminaram com a publicação em 1859 de "A Origem das Espécies" de C. Darwin (1809-1882) . 

Se o famoso tratado de Darwin foi publicado antes de "A Gênese", qual a razão para não existir nenhuma referência a ele no texto de Kardec? Essa é uma das questões que responderemos. Já tocamos nesse assunto quando publicamos o post "Será que Kardec leu Darwin ?" Agora aprofundaremos o assunto no contexto do Capítulo X.

Nossa estudo revisitará esse período da história da ciência e mostrará que, não obstante a geração espontânea não ter hoje qualquer papel a desempenhar nas modernas teorias científicas da biologia, as questões sobre a origem dos seres colocadas por Kardec em "A Gênese" ainda permanecem sem resposta. Assim, de certa forma, podemos reviver o debate sobre a origem da vida, considerando agora os princípios majoritariamente aceito da abiogênese

O problema da origem da vida é muito pouco falado pela mídia especializada em divulgação científica, pois quase sempre se admite que ele já foi resolvido, o que não é verdade.  Por causa disso, o assunto certamente continua no cerne dos objetivos de "A Gênese" de A. Kardec e é relevante para os princípios do Espiritismo.

Aguardem!