23 de setembro de 2022

Experiências de quase-morte: considerações sobre explicações convencionais recentes.

 

Uma proposta nos chegou para divulgar experiências mais recentes de EQM (ou "experiências de quase-morte", em ingle NDE ou "near death experiences"). De fato, posts sobre essas experiências são um pouco antigos aqui (um deles já tem 10 anos...[1]). Desde então, o que mudou? Ao longo do tempo, muitas outras experiências foram relatadas. Os leitores poderão acessar, por exemplo, os sites da International Association for Near-Death Studies (IANDS e sua revista especializada Journal of Near-Death Studies) ou da Near-Death Experience Research Foundation (NDERF). Esses locais na rede dedicam-se ao acúmulo e estudo de relatórios de experiências de quase-morte de uma maneira sistemática.

De forma mais específica, de 2012 até 2022, o que a comunidade acadêmica disse a respeito do assunto? Por "comunidade acadêmica" entendemos aqueles que não comungam das mesmas explicações de alguns dos investigadores pioneiros do assunto, como é o caso de R. Moody, S. Parnia [3], ou o Dr. Bruce Greyson [4]. Esses pesquisadores têm sido em parte responsáveis pela divulgação desses eventos na grande mídia. Eles chamam atenção para o caráter anômalo dos reportes de EQM; ao fato de que elas "sugerem" continuidade da vida após a morte.

Um debate tem se estabelecido naturalmente entre os adeptos da explicação "sobrevivencialista" (de que as experiências informam sobre uma realidade maior além da vida) e os que negam qualquer coisa nesse sentido. Exemplos de opiniões nessa última direção podem ser lidos em [2], [2b], [5], [6] e [7]. Isso é plenamente compreensível porque não existe uma teoria completa sobre a consciência, que é considerada um subproduto da atividade do cérebro. De acordo com essa visão acadêmica majoritária, as EQMs seriam apenas reações normais de um cérebro em perigo de vida, algo como as reações de "tanatose" dos insetos.

O problema da falta e uma teoria da consciência

Problemas começam com as definições apropriadas de "morte cerebral". Essa definição é fundamental para se entender o fenômeno, uma vez todos que reportaram a experiência sobreviveram. Ou seja, o cérebro não estava "morto" de fato, não obstante a parada cardíaca. 

Para se ter uma ideia da confusão reinante, devemos considerar trabalhos extensivos de mapeamento de regiões cerebrais e sua associação com funções cognitivas fundamentais. Diz-se que tais funções são "geradas" ou "processadas" em regiões super específicas do cérebro. Isso  não é diferente de dizer que a causa para as operações do pensamento está no tecido neural dessas regiões. Essa explicação, porém, é abalada pelo conceito de "plasticidade cerebral" nos casos de pacientes com lesões sérias em determinadas parte do cérebro, mas sem qualquer impacto em seu comportamento cognitivo. Essa plasticidade é definida como a "capacidade do cérebro de alterar sua estrutura e função" [8]. Ora, diante disso, o que de fato, gera as funções cognitivas? Ao invés de regiões e tecidos específicos, a explicação envolve reconhecer que o cérebro em seu conjunto é a própria origem, o que torna o mapeamento inócuo de um ponto de vista fundamental. Toma-se o próprio fenômeno como a causa. 

A identificação mais profunda da causa é ainda obscurecida pela "complexidade" das conexões entre os bilhões e bilhões de neurônios que formam o cérebro. Essa complexidade seria a própria causa, como parece ser a explicação vigente, sendo que a variedade, riqueza e multiplicidade das experiências conscientes é resultado de uma organização inacessível na escala microscópica. Oculto na complexidade qualquer explicação é possível e talvez indique um problema na metodologia de pesquisa dos fenômenos de EQM.

Essas dificuldades metodológicas são evidentes diante de um dos primeiros monitoramentos aparentemente completos da atividade cerebral durante um episódio de óbito. Como descrito em [9], ele foi realizado apenas em 2022. Há claras dificuldades operacionais e éticas, como conseguir autorização da família para realizar estudos científico em um parente querido com quadro clínico constatado como irreversível. 

Opinião convencional vigente

A referência [2b] resume o estado de ânimo reinante nos defensores das explicações convencionais. A autora pondera:

Aceito a realidade dessas experiências intensamente vivenciadas. Elas são tão autênticas quanto qualquer outra percepção ou sentimento subjetivo. Como cientista, entretanto, opero sob a hipótese de que todos os nossos pensamentos, memórias, percepções e experiências são consequências inevitáveis de causas naturais em nosso cérebro ao invés de experiências sobrenaturais. Essa premissa serve muito bem a ciência e suas criações tecnológicas ao longo dos últimos séculos. A menos que existam evidências objetivas, convincentes e extraordinárias ao contrário, não vejo razão para abandonar esse pressuposto.

Há claramente um problema de percepção das causas aqui. A sobrevivência é considerada uma "experiência sobrenatural" sem se especificar o que isso significa: seria uma quebra da ordem natural completamente desnecessária na teoria da sobrevivência? De resto, é evidente que todas as experiências de EQM são filtradas pelo cérebro, tal como o são as experiências cognitivas normais. Não obstante isso, a essas últimas é conferido o caráter de "realidade" que existe independende da "recriação" cerebral. Mas não há nada nas explicações neurológicas convencionais que explique como isso é possível. Tanto faz, neurologicamente falando se "o cérebro vê uma lâmpada externa acesa" ou "imagina ver uma lâmpada" (as mesmas regiões do cérebro são usadas na percepçao e na imaginação de algo).

Desprovido de qualquer referência de informação da realidade externa, a explicação convencional é resumida por esta passagem em [2]:

Sem surpresa, muitos consideram as EQMs como evidências de vida após a morte, do céu ou da existência de deus. As descrições de deixar o corpo ou de uma bem-aventurada união com o universal parecem ter origem em crenças religiosas sobre almas deixando o corpo na morte e subindo em direação a um céu das bem-aventuranças. Mas, essas experiências são compartilhadas entre uma ampla gama de culturas e religiões de forma que não é improvável que elas sejam reflexo de expectativas religiosas específicas. Ao invés disso, esse caráter comum sugere que as EQMs se originam de algo mais fundamental do que expectativs religiosas e culturais. Talvez as EQM reflitam mudanças em como o cérebro funciona quando nos aproximamos da morte.

Em suma: a regularidade e uniformidade de relatos é atribuido a uma "crença religiosa generalizada", que tem como causa nada além de ocorrências comuns no cérebro. A universalidade da experiência tem como origem a universalidade da bioquímica do que ocorre no cérebro moribundo.

A extraordinariedade, objetividade e convencimento das EQM devem ser buscadas no caráter de "realidade externa" independente que alguns relatos demonstram e que é um mistério para as explicações convencionais. 

A ligação entre EQMs e a realidade externa

Assim, é bastante claro que, se as EQM permanecerem como "experiências vividas e significativas" para quem as experimenta, elas permanecerão também indistinguíveis de estados fantasiosos "normais". Esse caráter significativo e impactante é irrelevante para a explicação convencional da mente como produto do cérebro.  Qualquer coisas que se imagine, se vivencie será sempre uma experiência privada e, portanto, uma fantasia produzida pelos neurônios cerebrais.

Mas, será apenas isso o que as EQMs relatam?  O interesse contemporâneio de neurocientistas pelos casos de EQM passam muitas vezes longe de relatos anteriores na literatura especializada de EQMs verídicas [10].  Por esse nome se designam EQMs em que os pacientes descrevem coisas no mundo externo que seria impossível a eles descrever no estado e na posição de seus corpos no momento da experiência. Existem inúmeros casos reportados e um deles já foi descrito aqui [10b]. Porém, uma peculiaridade do meio de pesquisa simplesmente considera tais casos como "pura ficção".

Em um trabalho recente [11], Stripp considera que os relatos de EQM verídicas são desprezados intencionalmente pela comunidade acadêmica conforme o "viés reducionista" dominante. Sobre as "falácias ontológicas e epistemológicas" associadas a NDEs, Stripp pondera corretamente [12]:

Tais declarações são baseadas em suposições ontológicas materialistas. Essas são suposições para as quais os autores não conseguem mencionar nem discutir, dando origem a um falácia de pensamento circular: uma vez que tudo está na biologia, as EQMs tem um objetivo biológico. Não estou a argumentar contra esses aspectos comuns em todos os humanos, mas sugiro que tais aspectos podem não resultar integralmente dos componentes biológicos do corpo humano. Simplesmente não conhecemos tudo o que nos mantem coesos. Além disso, objetividade pura é, em muitos cenários, impossível, considerando que sempre haverá alguma subjetividade e decisões humanas em toda pesquisa. Essa subjetividade introduz um viés que deve ser criticamente avaliado. Mesmo os axiomas mais comuns da ciência são construções humanas e devem ser considerados como tal.

Em outras palavras: quando evidências verídicas são fornecidas, os relatos não são considerados suficientemente "objetivos" para merecerem "crédito acadêmico", sob uma suposta exigência de objetividade. Mas isso é imcompatível com a natureza do fenômeno estudado. 

Essa falta de consideração é cuidadosamente selecionada para que apenas os relatos que se adequam à visão materialista vigente façam sentido. Muitas abordagens convencionais acabam, portanto, apenas se dedicando aos aspectos do fenômeno que podem ser aparentemente explicados justamente por aquilo que pesquisadores acreditam desde o início. Por exemplo: reduzir NDEs a experiências semelhantes a  "alucinações provocadas por drogas" é uma das estratégias de desconstrução da rica fenomenologia dos relatos [12]. Alguns pesquisadores [13] têm denunciado essa postura que não pode ser considerada científica.

No nosso entendimento, esse estado de coisa é lamentável como postura "científica", mas perfeitamente compreensível. Não será possível promover uma revolução na maneira de pensar da academia sem estudos sistemáticos sejam conduzidos com os fenômenos de EQM. Aliás, sobre isso, o que será mais "extraordinário" realizar é a completa mudança de mentalidade a respeito do assunto. Por serem fatos que devem ser "colhidas de passagem" (como diria Kardec), será muito difícil estabelecer qualquer tipo de controle rigoroso  na sua frequência, ocorrência e avaliação. Seria o mesmo que querer validar em laboratórios fenômenos esporádicos que somente ocorrem na Natureza em grande escala. Entretanto, as EQM fornecem e sempre fornecerão evidências bastante convincentes da realidade da continuidade da vida a despeito das tentativas de acomodá-la a concepções preconcebidas.

Referências

[1] Reflexões sobre o contexto de experiências de quase-morte: artigo de Michael Nahm (2011). https://eradoespirito.blogspot.com/2012/11/reflexoes-sobre-o-contexto-de.html

[2] R. Martone (2019). "New Clues Found in Understanding Near-Death Experiences".https://www.scientificamerican.com/article/new-clues-found-in-understanding-near-death-experiences/

[2b] C. Koch (2020). What Near-Death Experiences Reveal about the Brain. https://www.scientificamerican.com/article/what-near-death-experiences-reveal-about-the-brain/

[3] Livro III - O Que Acontece Quando Morremos (Dr. Sam Parnia). https://eradoespirito.blogspot.com/2011/11/livro-iii-o-que-acontece-quando.html

[4] Near-Death Experiences (NDEs). https://med.virginia.edu/perceptual-studies/our-research/near-death-experiences-ndes/

[5] Evrard, R., Pratte, E., & Rabeyron, T. (2022). Sawing the branch of near‐death experience research: A critical analysis of Parnia et al.’s paper. Annals of the New York Academy of Sciences.

[6] Hannah Flynn (2022). When are we really dead? New study sheds lighthttps://www.medicalnewstoday.com/articles/when-are-we-really-dead-new-study-sheds-light

[7] Martial, C., Gosseries, O., Cassol, H., & Kondziella, D. (2022). Studying death and near-death experiences requires neuroscientific expertise. Annals of the New York Academy of Sciences. https://orbi.uliege.be/bitstream/2268/293819/1/comment%20on%20parnia%20et%20al_final.pdf

[8] Kolb, B., & Whishaw, I. Q. (1998). Brain plasticity and behavior. Annual review of psychology, 49(1), 43-64.

[9] Vicente, R., Rizzuto, M., Sarica, C., Yamamoto, K., Sadr, M., Khajuria, T., ... & Zemmar, A. (2022). Enhanced interplay of neuronal coherence and coupling in the dying human brain. Frontiers in aging neuroscience, 80.

[10] Ring, K., & Lawrence, M. (1993). Further evidence for veridical perception during near-death experiences. Journal of Near-Death Studies, 11(4), 223-229.

[11] Stripp, T. K. (2022). Near-death experiences and the importance of transparency in subjectivity, ontology and epistemology. Brain Communications, 4(1), fcab304.

[12] Van Lommel, P. (2011). Near‐death experiences: the experience of the self as real and not as an illusion. Annals of the New York Academy of Sciences, 1234(1), 19-28.

[13] Moreira-Almeida, A., Costa, M. D. A., & Coelho, H. S. (2022). Cultural Barriers to a Fair Examination of the Available Evidence for Survival. In Science of Life After Death (pp. 73-77). Springer, Cham.

4 de setembro de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - V

Ilustrações de seres marinhos por Ernst Haeckel (1834-1919).

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - IV". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

O princípio vital

16

Do ponto de vista de seus ingredientes materiais, seres vivos podem ser decompostos pela química em elementos que são indistinguíveis daqueles que formam os minerais. Assim, a síntese de compostos orgânicos constituiu um duro golpe aos que acreditavam que seres vivos eram feitos de uma matéria especial. Neste parágrafo, Kardec pergunta se seres vivos podem ser reduzidos ainda mais aos elementos puramente materiais em um sentido mais profundo:

Sem falar do princípio inteligente, que é questão à parte, há, na matéria orgânica, um princípio especial, inapreensível e que ainda não pode ser definido: o princípio vital. Ativo no ser vivente, esse princípio se acha extinto no ser morto; mas nem por isso deixa de dar à substância propriedades que a distinguem das substâncias inorgânicas.

Em uma lógica que ainda não é apreciado pelas ciências estabelecidas, o Espiritismo tem no princípio inteligente um elemento fundamental que justifica a existência da própria vida. Os seres vivos abrigam o princípio inteligente que evolui ao longo dos séculos em consórcio com a evolução das formas vivas até que ele alcançe o estado da razão. Entretanto, não é esse o tema principal do Parágrafo ora em análise, mas sim o "princípio vital". 

Para se ter entendimento mais exata do motivo para se propor a existência desse terceiro elemento nos seres vivos é relevante uma revisão histórica, inclusive para compreender o debate então vigente sobre ele até o Século XIX. Adiantamos aqui que, em tese, a biologia moderna aboliu completamente a necessidade do princípio vital em suas explicações sobre a vida. Apresentaremos essa revisão mais para a frente.

Para que se tenha uma noção aproximada da relevância do princípio vital (ou como assim parecia sua manifestação aos téoricos da biologia no Século XIX) fazemos aqui uso de uma comparação. Ninguém duvida que um processador eletrônico moderno (que existe em computadores, tablets e telefones celulares) é formado de elementos químicos bem conhecidos. Diversas substânias minerais entram na composição dos "chips" eletrônicos: elementos como o silício, o ferro, o alumínio, germânio e outros. Entretato, a estrutura, composição e arranjo desses elementos nos equipamentos eletrônicos não é suficiente para explicar como esses dispositivos se comportam. Tomo de um telefone celular ligado e corretamente configurado, toco em uma determinada janela que abre um "aplicativo" que me permite ler um mapa onde eu me localizo. Que mágica é essa capaz de conhecer minha posição de forma automática e instantânea ? 

Para compreender como se comportam computadores, celulares e outros dispositivos eletrônicos complexos (Fig. 1), que respondem ao ambiente e realizam funções sofisticadas, precisamos da ideia dos "algoritmos". Esses são longas sequências de comandos inscritos em linguagem lógica que são "decodificados" em arranjos de correntes elétricas que percorrem os circuitos desses equipamentos. Os algoritmos representam estruturas de nível hierárquico superior capazes de controlar a matéria que compõe os equipamentos sem, entretanto, alterar sua estrutura. Além deles, a eletricidade é um importante ingrediente que flui nos equipamentos eletrônicos causando determinados comportamentos. 

Assim, um paralelo entre seres vivos e equipamentos eletrônicos pode ser traçado de forma grosseira, ao se identificar as estruturas orgânicas dos seres com o hardware dos equipamentos, a eletricidade com o princípio vital e os algoritmos com o princípio inteligente. Dessa forma, fica mais fácil compreender a afirmação de Kardec:

Ativo no ser vivente, esse princípio se acha extinto no ser morto; mas nem por isso deixa de dar à substância propriedades que a distinguem das substâncias inorgânicas.

Um equipamento sem fonte de energia não funciona. Da mesma forma, seres vivos são obrigados a extrair do meio a energia que permite a eles viver. Entretanto, a eletricidade (que se caracteriza pela intensidade, modulação e temporização com que flui nos circuitos integrados) permite um paralelo mais preciso com a ideia do princípio vital nos seres vivos. A eletricidade confere aos equipamentos propriedades que não existem naqueles em que esse fluxo for inconforme ou inexistente, ainda que estejam plenamente "carregados". 

Fig. 1 Equipamentos eletrônicos modernos funcionam sob princípios que não dependem apenas dos componentes químicos que os formam. Assim, eles fornecem um paralelo para se compreender as questões ligadas à necessidade do princípio vital nos seres vivos, como apresentadas a partir do Parágrafo 16 no Capítulo X. 

Esse paralelo corresponde à proposta de se entender um ser vivo como um "sistema" organizado de forma hierárquica em que estruturas nos níveis mais inferiores (o "hardware") são operados pelos níveis superiores intangíveis (software). Para isso, "informação" flui entre os níveis, de forma que não é possível decompor e explicar um ser vivo tão somente em termos dos seus elementos químicos. A biologia moderna possui outras paradigmas para explicar as correntes de informação responsável pelo funcionamento dos seres vivos como, por exemplo, a ideia de que informação está "codificada" nos genes que instruem as células na realização de tarefas específicas. Entretanto, haverá sempre uma causa anterior subjacente à organização dos genes como, por exemplo, a fonte de informação responsável pelos próprios genes.

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Neste parágrafo algumas perguntas sobre o princípio inteligente são apresentadas:

Será o princípio vital alguma coisa particular, que tenha existência própria? Ou, integrado no sistema da unidade do elemento gerador, apenas será um estado especial, uma das modificações do fluido cósmico, pela qual este se torne princípio de vida, como se torna luz, fogo, calor, eletricidade?

Como resposta preliminar, Kardec cita as mensagens do Cap. VI em "Uranografia Geral" (ver nossa análise em "Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - CONCLUSÃO") que parecem indicar que o princípio vital não é um elemento a parte, ou seja, não seria um "terceiro princípio", além do material e inteligente. 

Ao contrário, ele é extraído do meio como uma modificação do fluido cósmico universal. De novo nosso paralelo com os equipamentos eletrônicos permite compreender essa proposta uma vez que corrrentes elétricas são extraídas do meio por uma transformação dos recursos energéticos disponibilizados ao equipamento. O princípio vital seria um recurso extraído do meio por meio de transformações especiais específicas aos seres vivos.  

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Na análise dos corpos orgânicos, a Química encontra os elementos que os constituem: oxigênio, hidrogênio, azoto e carbono; mas não pode reconstituir aqueles corpos, porque, já não existindo a causa, não lhe é possível reproduzir o efeito, ao passo que possível lhe é reconstituir uma pedra.

Kardec chama a atenção para outro aspecto que permite compreender a necessidade do princípio vital. Como veremos mais tarde, essa impossibilidade de se reproduzir o efeito apenas pela reunião dos ingredientes fundamentals visíveis ainda continua. Até hoje ainda não foi possível sintetizar um ser vivo - por mais simples que seja - por meios químicos. 

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Neste Parágrafo, Kardec parece apoiar a identificação do princípio vital com a eletricidade:

Os corpos orgânicos seriam, então, verdadeiras pilhas elétricas, que funcionam enquanto os elementos dessas pilhas se acham em condições de produzir eletricidade: é a vida; que deixam de funcionar, quando tais condições desaparecem: é a morte. Segundo essa maneira de ver, o princípio vital não seria mais do que uma espécie particular de eletricidade, denominada eletricidade animal, que durante a vida se desprende pela ação dos órgãos e cuja produção cessa, quando da morte, por se extinguir tal ação.

Não só isso, mas seria possível identificar o princípio com o próprio fluxo de energia no corpo vivo. Essa energia se manifesta de várias formas: química, elétrica e mecânica. Porém, a noção de ''conservação de energia" foi praticamente contemporânea da publicação de "A Gênese" [1]. Dessa forma, na época de Kardec, não seria possível fazer uma distinção clara entre o conceito emergente de energia [2] e o princípio vital. Da mesma forma, quando biologistas aboliram esse princípio da Biologia no início do Século XX, eles não tinham ideia de que ele poderia retornar, anos mais tarde, sob uma nova roupagem teórica e conceitual.

Referências

1. CAHAN, David. The awarding of the Copley Medal and the ‘discovery of the law of conservation of energy: Joule, Mayer and Helmholtz revisited. Notes and Records of the Royal Society, v. 66, n. 2, p. 125-139, 2012.
2. HARRER, Benedikt W. On the origin of energy: Metaphors and manifestations as resources for conceptualizing and measuring the invisible, imponderable. American Journal of Physics, v. 85, n. 6, p. 454-460, 2017.