22 de maio de 2019

Sobre a existência dos Espíritos: diferença entre percepção e observação (I)

Cena do livro "Emperor of Thorns"  (Arte da obra por
Broken Empire Omnibus ed. Jason Chan)
Podemos dizer com toda a certeza que o problema da aceitação da existência dos Espíritos - enquanto forças externas a nós - pode ser colocado em uma forma semelhante ao problema da aceitação da existências de coisas não observáveis pela Ciência. Já discutimos esse problema aqui neste blog, quando apresentamos um artigo de P. Churchland [1] onde esse autor descreve o chamado "movimento Browniano" como uma das evidências para a existência de átomos. Por muito tempo, a questão sobre a existências de átomos foi debatida, mas somente foi definitivamente aceita com avanços mais recentes da física moderna. 

A questão da existência dos Espíritos parece ser um capítulo parecido numa obra sobre a "aceitação dos invisíveis", ou seja, sobre a existência de entidades que não sensibilizam diretamente os sentidos humanos comuns. Assim, há coisas no mundo que, não obstante existirem, não são percebidas por nós diretamente. Mas, como podemos estar certos de que elas de fato existem?  Quais são as condições de sua aceitação? 

A história recente da Ciência é uma progressão de evidências que acabaram por nos separar definitivamente da ideia de que somente aquilo que podemos perceber diretamente existe [2]. A existência dos Espíritos adiciona um novo capítulo porque não parece haver por enquanto qualquer meio (instrumento, [2b]) capaz de transmitir a nós a sensação da existência deles.

Obviamente, o problema não existe para os que sentiram ou sentem a presença os Espíritos. Os sentidos humanos, desde que expandidos (como no caso da mediunidade) podem percebê-los. Em nossa discussão inicial, nos referimos aos sentidos humanos ordinários para depois abordar a questão dos sentidos expandidos. Trataremos disso em um último post de uma série de três. 

O assunto é interessante e envolve uma mudança mais ou menos radical na noção do senso comum de acreditar nas coisas. De fato, essa mudança se verificou ao longo de diversas ciências (como a física e a química), que foram "obrigadas a crer" em coisas que não podem ser observadas diretamente, mas que existem. 

Diferença entre percepção e observação

É necessário, antes de tudo, distinguir entre 'percepção' e 'observação' dos fenômenos da Natureza. 
Uma percepção nada mais é que um estado mental (ou seja, um estado privado ao indivíduo que percebe) que não implica diretamente em qualquer conhecimento próprio sobre aquilo que é percebido [2c]. 
Exemplo: vejo um lápis em um copo com água, ele parece quebrado. Mas sei que o lápis não está quebrado de fato. A visão do lápis quebrado é uma imagem que se forma na minha mente, mas que não corresponde ao conhecimento que tenho sobre o lápis. 

As ciências antigas (antes do renascimento) eram muitas vezes baseadas em percepções dos sentidos. Mas, mesmo os antigos já sabiam que os sentidos são facilmente enganados. Para que uma percepção gere conhecimento, ela deve estar acompanhada de outras informações sobre a coisa percebida. Esse conhecimento pregresso é muitas vezes obtido de diferentes maneiras e representa um tipo de concepção própria pré-existente do mundo (que pode ser herdado, aprendido etc). De certa forma,  nossa percepção é revestida dessa informação adicional para que aquilo que sentimos seja aceito como verdadeiro de fato.

As ciências modernas são baseadas nas chamadas 'experiências sensíveis' que são, verdadeiramente, observações [3]. De forma geral, podemos dizer que observações incluem as percepções dos sentidos, mas não se restringem a elas [2c] porque as observações são guiadas por algo mais.

Entretanto, podemos argumentar que as ciências modernas em nada modificaram a necessidade das percepções quando instrumentos foram desenvolvidos para permitir que os invisíveis (no sentido amplo) se tornasse 'visíveis', ou seja, acessíveis aos sentidos humanos.  De fato, instrumentos são úteis em Ciência porque eles permitem [2c]: 
  • Melhorar a acurácia da percepção;
  • Padronizar as observações feitas através deles.
Considere a imagem da Figura 1. Ela é o registro de vírus da Hepatite A conseguida por meio de um microscópio eletrônico. Se não tenho como ver um vírus com meus olhos, com o microscópio posso inclusive medir o seu tamanho em uma escala e compará-lo ao de outros objetos igualmente invisíveis a sua volta. 
Fig. 1 Imagem de um microscópio mostrando vírus da Hepatite A. Como posso estar certo de que  essa imagem realmente corresponde a um vírus da Hepatite A? Mais ainda, ela é uma prova de vírus existem? 
Entretanto, penso de forma ingênua quando acredito que minha percepção foi apenas expandida quando observo essa imagem do vírus pelo microscópio. Somente devo acreditar que a imagem corresponde mesmo ao vírus se souber como o microscópio funciona, ou seja, sou obrigado a crer em uma sequência grande de suposições, aproximações e informações que justificam categoricamente que aquela imagem é mesmo da tal entidade (o vírus) invisível. 

Ora, todas essas coisas adicionais não são obtidas exclusivamente por meio de observações e, muito menos, percepções. Elas resultam de estudos em inúmeras outras ciências que, muitas vezes, nada tem a ver com o objeto que percebo através do instrumento. Esse conjunto de raciocínios, aproximações e informações é conhecido como teoria e constitui elemento fundamental de uma observação científica:
Uma observação é um procedimento complexo no qual tanto a percepção como um prejulgamento de natureza teórica concorrem para produzir uma afirmação a respeito da coisa observada, o que inclui sua própria existência, caso ela não seja percebida pelos sentidos [2c]. 
Uma maneira de tentar salvar nossa crença exclusiva nas percepções (o popular "ver para crer") é justamente só aceitar como existindo aquilo que é validado por nossas percepções e rejeitar qualquer coisa que venha por meio de uma teoria. Mas, ao se fazer isso:
  • Somente aquilo que é percebido é real;
  • Qualquer observação, para ser válida, deve ser reduzida a uma percepção.
Portanto, aceitar esse ponto de vista leva a rejeição de quase tudo que a ciência moderna descobriu. Não é possível aceitar uma observação por instrumentos porque elas não envolvem apenas percepções. Logo, não há como escapar à conclusão:
Ao se aceitar a existência de entidades não observáveis (os invisíveis) estamos também obrigatoriamente aceitando a teoria que postula sua existência e as teorias por meio das quais os instrumentos de sua observação são validados.
De forma simbólica:
A existência de uma entidade I (invisível) implica na aceitação da teoria T para a qual I existe. O oposto também vale: ao se aceitar uma teoria T para a qual I existe, também aceitamos a existência de I
Assim, a imagem do vírus da Hepatite A (Fig. 1) não constitui a única prova da existência desse vírus. De fato, se ela não estivesse disponível, a medicina ainda acreditaria na existência dos vírus como entidades necessárias para explicar uma quantidade grande de patologias. Em ciência muitas vezes não é necessário que provas sensíveis existam (de forma a sensibilizar os sentidos humanos, ainda que por meio de aparelhos) para que as causas dos fenômenos sejam aceitas.

Esse tipo de postura é chamada realista, mas trata-se de um tipo específico de realismo que agora nada tem a ver com o realismo ingênuo das meras percepções. Assim, por exemplo, tenho toda razão em rejeitar que aquela imagem seja mesmo a da entidade invisível (o vírus da Hepatite A na Figura 1) se a teoria que explica como ela é gerada estiver errada. Isso pode acontecer se o instrumento de medida estiver com defeito, por exemplo [5]. A maior parte das pessoas aceita a imagem, entretanto, por uma crença ingênua que dispensa entender os aspectos teóricos envolvidos.

Por causa de certo preconceito adquirido, nossa tendência é desejar que o "senso de realidade" das coisas invisíveis seja o mais parecido possível com aquilo que percebemos através das percepções. Essas estão originalmente associadas à maneira primitiva como nós aprendemos sobre o mundo a nossa volta. Trazemos uma representação desse mundo na mente que foi inteiramente adquirida por meio das percepções. Essa representação é reforçada por estímulos externos que frequentemente nos alcançam (pelos mesmos sentidos), de forma que tomamos como real apenas aquilo que nos chegam exatamente por eles.

A dependência de nossa crença pelas teorias

A conclusão que tiramos sobre a dependência crucial que a crença em coisas invisíveis tem da teoria que as postula aumenta consideravelmente a importância das teorias como mecanismos de apreensão da realidade a nossa volta.

De fato, uma teoria tem como características [2c]:
  • Uma explicação logicamente suficiente sobre fatos ou objetos observados,
  • O máximo que se pode exigir de uma teoria é que ela seja compatível com os dados existentes,
  • Não necessariamente, uma teoria é uma explicação "cogente" [4] do objeto que explica.
Em outras palavras, quando aceitamos uma teoria como base para a crença na existência de coisas invisíveis (os não observáveis) estamos de fato dando um "salto no escuro" porque não temos meios adicionais (exceto pelos próprios dados disponíveis que são limitados) de "comprovar" que aquela teoria é, de fato, verdadeira.

Fig. 2 Síntese dos conceitos descritos aqui: a observação como resultado das percepções guiadas com argumentos de natureza teórica que leva ao conhecimento.
Entretanto, nem tudo o que uma determinada teoria admite como existindo para explicar um ou mais fenômenos na Natureza necessariamente tem sua existência na realidade. Assim a entidade I postulada pode ser apenas um "instrumento teórico" necessário para a explicação e nada mais. A questão do realismo é presentemente um debate com aspectos profundos porque levanta dúvidas por parte dos que são céticos dessa postura realista. Entretanto, permanece com grande força o argumento: se as entidades teóricas postuladas não existem de alguma forma, como é possível que teorias científicas tenham tamanho sucesso preditivo?

No próximo post: realismo e ceticismo.

Referências e Comentários

[1]  Como a parapsicologia poderia se tornar uma ciência. (P. Churchland).

[2] Uma ponto de vista sobre as coisas conhecido como "realismo do senso comum": somente o que pode ser observado é "real".

[2b] Há diversas evidências sobre a ação dos Espíritos em equipamentos eletrônicos. O fenômeno das "Vozes Eletrônica" é um desses casos que merecem melhor investigação. Entretanto, salvo contrário, não se pode deixar de qualificá-los como um tipo de mediunidade de efeitos físicos que ainda prescinde da presença humana para sua manifestação.

[2c] Agazzi, E., & Pauri, M. (Eds.). (2000). The reality of the unobservable: Observability, unobservability and their impact on the issue of scientific realism (Vol. 215). Introduction by E. Agazzi e M. Pauri. Springer Science & Business Media.

[3] Eis uma importante face da revolução do renascimento: a invenção da ciência moderna que viria a fundamentar a crença na observação (como definido acima) e na teoria.

[4] Diz-se de um argumento expresso de forma clara e que é capaz de persuadir as pessoas. Suas premissas são verdadeiras, mas a conclusão é apenas provavelmente verdadeira.

[5] Nesse caso, a imagem produzida terá sido alterada de forma mais ou menos substancial por outros fatores que não fazem parte da "explicação normal" da teoria do microscópio. É óbvio que uma teoria verdadeiramente abrangente do microscópio conseguirá prever inclusive o efeito de fatores que gerem os defeitos.