19 de abril de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - IV

Ilustração das várias formas das nebulosas conhecidas em 1853.
(Working Men's Educational Union, Museu Marítimo Nacional, Greenwich, Londres, UK) 
 

Continuação do post anterior: Comentários sobre "Uranografia geral" de "A gênese" de A. Kardec - III.

Obra completa contendo todos os comentários e a conclusão.

Comentários sobre "A criação universal"

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Retoma-se o tema sobre o  fluido (cósmico) universal. Essa matéria é descrita como contendo "os elementos materiais, fluídicos e vitais de todos os Universos" já que, como vimos, o Universo presente não é a manifestação física e una do Universo real, que sempre existiu. Criada desde o princípio, essa substância descrita como a "avó" e "eterna geratriz" de tudo, nunca deixou de criar e receber os despojos das criações em estágios avançados de decomposição de "mundos que se apagam do livro eterno".

O autor ilustra o tema com exemplos da Astronomia: 
...esse fluido cósmico que enche o mundo, mais ou menos rarefeito, nas regiões imensas, ricas de aglomerações de estrelas; mais ou menos condensado onde o céu astral ainda não brilha; 
O que quereria o autor implicar com essa passagem? Trata-se provavelmente da descrição dos diversos tipos de densidade observáveis nas chamadas "nebulosas" que enchem o céu e que podem ser observadas com ou sem instrumentos ópticos. Em especial, a referência ao "céu astral" nos faz lembrar da famosa "nebulosa do Saco de Carvão" (Coalsack nebula) ou "Macula Magelani" (a mancha de Magalhães) encrustada na região do Cruzeiro do Sul, como mostra a Fig. 1. Ela é a mais extensa região escura pertencente à Via-Láctea, descoberta em 1499, e pode ser vista no hemisfério sul em regiões sem poluição luminosa [19].

Fig. 1 Região "onde o céu astral ainda não brilha" mostrando uma nebulosa de absorção na região do Cruzeiro do Sul. É uma prova da distribuição de uma matéria primitiva no espaço, responsável por criar novas estrelas e mundos.

Essa grande região no céu está localizada a 590 anos-luz de distância e ilustra bem a presença de uma matéria espalhada por vastas regiões do céu e que, por ser bastante densa, bloqueia a luz das estrelas. Hoje sabemos que, da condensação de nuvens como essa, nascem novas estrelas e novos mundos, em concordância com o texto do "Uranografia geral".

O comentário de Kardec prove uma comparação que nos permite entender como é possível que o fluido universal, como princípio, possa estar na "substância mesma que o produz". Kardec fornece como exemplo a elasticidade (princípio), que é uma propriedade da mola e, ao mesmo tempo, depende da maneira como os átomos se agregam na matéria. Com isso, ele ilustra como, de um mesmo princípio, é possível extrair tantos comportamentos ou "aparências" diversas. Em consonância com o ensino do autor de "Uranografia Geral", há dependência tanto com a densidade como com a maneira pela qual a matéria se distribui  ou "é modificada", o que explica a variedade dos efeitos.

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A criação da vida é proposta em “Uranografia Geral” a ocorrer no interior das nuvens interestelares pela presença do fluido:
Esse fluido penetra os corpos, como um oceano imenso. É nele que reside o princípio vital que dá origem à vida dos seres e a perpetua em cada globo, conforme a condição deste, princípio que, em estado latente, se conserva adormecido onde a voz de um ser não o chama.
Essa seção contém afirmativas que merecem um texto de análise, pois se referem ao processo de criação da vida, mencionando uma forma de vitalismo que, aparentemente, foi “suplantado” pela teoria da abiogênese. Sou do entendimento, entretanto, que é necessário reinterpretar essas concepções antigas, considerando que a abiogênese não foi ainda demonstrada, embora seja a crença dominante. 

O fluido cósmico, de fato, já contém esse princípio que resulta na vida:
Muito importa nos compenetremos da noção de que a matéria cósmica primitiva se achava revestida, não só das leis que asseguram a estabilidade dos mundos, como também do universal princípio vital que forma gerações espontâneas em cada mundo, à medida que se apresentam as condições da existência sucessiva dos seres e quando soa a hora do aparecimento dos filhos da vida, durante o período criador.
Coincidentemente, técnicas modernas detectaram a presença de inúmeras moléculas orgânicas complexas em nuvens interestelares. Por exemplo, o álcool etílico foi detectado por meio de assinaturas espectrais em nuvens cósmicas por meio de radiotelescópios [20]. Esse é um exemplo de composto encontrado na Terra como subproduto do metabolismo de seres vivos, mas que também está disseminado no espaço. 

Algumas outras moléculas encontradas nas vastidões do espaço foram: acetona, éter dimetílico, acetato de metila, benzeno, ácido acético, metilacetileno, metanol, etileno, acetona, benzonitrila etc [21]. Finalmente, ácido cianídrico foi encontrado no espaço. Essa molécula é uma importante ingrediente para a formação da guanina, um dos elementos do ácido desoxirribonucleico (DNA) conhecido como a "hélice da vida". 

Nada disso era sequer imaginado na época em que "A Gênese" de Kardec foi publicada, e hoje podemos afirmar que, de fato, os "elementos da vida" estão disseminados no espaço. 

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Finalmente a descrição da criação toca na difícil questão da origem dos Espíritos. O autor deixa claro que não é autoridade no assunto “em virtude de sua própria ignorância”. Como que pressentindo ecos de debates acirrados em um futuro distante, exorta o leitor a não tomar suas palavras de forma literal. O dilema até hoje não resolvido é sobre o papel dos animais na criação dos Espíritos. As questões 606, 607 e 607(a) de "O Livros dos Espíritos" (Capítulo 11) estabelecem de alguma forma a origem comum da alma humana e a dos animais. Consoante esse princípio também declara o autor:
O Espírito não chega a receber a iluminação divina, que lhe dá, simultaneamente com o livre-arbítrio e a consciência, a noção de seus altos destinos, sem haver passado pela série divinamente fatal dos seres inferiores, entre os quais se elabora lentamente a obra da sua individualização.
Tudo isso está de acordo com o que já havia sido passado a Kardec quando da preparação de “O Livro dos Espíritos”. Ainda assim, o auto teria preferido calar-se “sobre tão elevadas questões, tão acima das nossas meditações ordinárias” a desnaturar o sentido do estudo que procura desenvolver.

Referências

[20] Zuckerman, B.; et al. (1975), "Detection of interstellar trans-ethyl alcohol", Astrophysical Journal, 196 (2): L99–L102.
[21] Wikipedia. List of interstellar and circumstellar molecules. https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_interstellar_and_circumstellar_molecules#cite_note-apj196-165