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14 de agosto de 2013

Reflexões sobre uma pseudociência espírita (crítica a um texto CEPA 2012)

Muitos indivíduos, entretanto, mantêm uma visão ingênua da ciência baseado nas seguintes assunções: i) Fatos estão disponíveis diretamente a observadores sem preconceito por meio dos sentidos; ii) Fatos vem antes e não dependem de uma teoria; iii) Fatos constituem uma base sólida e confiável para o conhecimento. Essas assunções tentam explicar a certeza na ciência. Se analisadas com cuidado, entretanto, elas não não têm sentido. (The theory laden observation, super fun...?. Mikesphilosophyblog)

O texto "Reflexões sobre uma ciência espírita" (1), que foi publicado na última reunião da CEPA em 2012, é uma tentativa de se construir uma crítica à ciência espírita, conforme definida por Kardec. Mas, essa crítica parte de uma noção de ciência ultrapassada, que não pode ser aplicada à ciência tal como a conhecemos hoje em dia.

É importante ressaltar que este post é sobre teorias da ciência, sobre teorias do conhecimento, a chamada 'epistemologia da ciência', que pode ser aplicada tanto ao estudo do que está bem estabelecido (as chamadas 'ciências ordinárias') como aquelas que ainda não tiveram tanta sorte, como no caso das ciências psíquicas. Essa aplicação exige considerável tempo de estudo e meditação, conhecimento abrangente do assunto, que é inerentemente complexo. Em suma, é necessário, muitas vezes, formação em uma ciência em particular (2) para que o candidato a epistemólogo 'sinta na pele' o que é verdadeiramente fazer ciência.

O autor de (1) pede que não se cite Kardec em qualquer réplica ao trabalho dele. Ele, certamente, tem razão, uma vez que isso realmente não é necessário. Iremos nos concentrar exclusivamente nos conceitos epistemológicos aventados nesse texto, que podem ser comparados ao que é modernamente conhecido sobre eles.

Uma visão indutivista ingênua

Destacamos algumas frases colhidas de (1) que demonstra um ponto de vista indutivista ingênuo (naïve inductivism):
...a ciência possui características que a distinguem das demais instâncias do conhecimento e a posicionam de forma clara como um saber essencialmente objetivo, experimental e metódico. (p. 2) 
Uma ciência deve pautar-se pelo exame dos fenômenos observados, seu objeto, por meio de experimentos orientados por métodos rigorosos que sustentem alguma garantia demonstrativa das hipóteses formuladas. (p. 4) 
Enfim, para uma proposta científica, que não prescinde de observações que garantam a adequada aplicação da indução, não parece que o tamanho da amostra seja significativo para a consecução de qualquer conclusão acerca do objeto estudado. (grifos meus, p. 8)
A ênfase na 'objetividade', no caráter metódico e experimental caracteriza e define o preconceito indutivista e sua visão de ciência. O indutivista realmente acredita que conhecimento científico genuíno e verdadeiro pode ser gerado a partir de suas 'induções' que requerem um grande número de observações e induções, se possível feitas da maneira mais 'isenta' e 'controlada' possível. Isso é patente no texto (1), onde a palavra 'teoria' ou 'paradigma' não é utilizada pelo autor em suas concepções de ciência. Um indutivista jamais concederá a uma teoria qualquer valor, porque ele acha que abordagem dos fenômenos deve ser feita 'sem preconceito' e uma teoria é uma visão preconceituosa da natureza para ele.

É importante que nossos leitores prestem atenção para essa visão de ciência, pois ela é a base que será usada em (1) para acusar Kardec de ter criado um 'imbróglio epistemológico'. Um verdadeiro imbróglio realmente surge ao se adotar a visão indutivista e ultrapassada de ciência, que não concede às teorias a importância que têm na gênese do conhecimento científico.

Continuando nesse caminho, lemos em (1):
A experiência é a pedra angular do conhecimento científico. Todas as hipóteses jamais passarão disso se não forem corroboradas por experimentos que demonstrem sua pertinência. (p.2)
Toda e qualquer ciência começa com uma teoria e não uma
observação experimental. Em física, por exemplo, é impossível
montar experimentos sem uma teoria que diga como fazer isso.
Como dissemos, a palavra 'teoria' não tem nenhum papel a desempenhar em (1). Ela é substituída por 'hipóteses' que devem ser rigorosamente 'corroboradas por experimentos'. Acontece que qualquer estudante de epistemologia sabe que 'experimentos' só podem ser feitos na linguagem de uma teoria (3). Por causa disso, aprendizes de uma ciência passam anos sendo 'doutrinados' no domínio de várias teorias em particular (um curso de física, por exemplo, dura, no mínimo quatro anos)  Apenas depois que eles demonstrarem domínio da teoria, é que conseguem propor e executar experimentos.
Destarte, é necessário que o objeto a ser perscrutado pelo pesquisador seja passível de verificação empírica, caso contrário não se poderá falar em ciência. (p.2)
O que é passível de verificação empírica é dependente demais da teoria e do estágio de desenvolvimento tecnológico para que seja erguido a 'objeto' de uma ciência. O autor de (1) não percebe que esse empiricismo extremado já se demonstrou em desacordo (3) com o desenvolvimento das ciências. Felizmente, epistemólogos modernos já conseguiram desatar esse 'nó empiricista' que limita severamente o que pode ser estudado cientificamente, além de algemar o processo de pesquisa a uma noção idealizada de rigor e objetividade. Porém, entusiastas do cientificismo ainda acreditam piamente nele.
O método é o que faz um conjunto de fatos observados tornar-se conhecimento científico, pois é o método científico que estipula um conjunto de regras e técnicas com base nas quais devem ser feitos os estudos que se proponham científicos. (p. 3)
Não é o 'método' que torna fatos em ciência, mas uma teoria. Conforme já aventamos (4):
...é a teoria ou paradigma que confere status de ciência a um conjunto de fatos observados, é o paradigma que estipula as regras e procedimentos que devem ser seguidos para se montar experimentos, propor instâncias de observação etc. E, conforme a teoria, tal é a visão que se tem dos fatos. Na grande maioria dos empreendimentos científicos, foi a assunção preliminar de hipóteses e a tentativa de elaboração de teorias que permitiram a construção de novos equipamentos e métodos de investigação. Um exemplo clássico foi o desenvolvimento da teoria atômica na química, não obstante os blocos constituintes da matéria – os átomos – (que são hoje os ingredientes fundamentais de qualquer descrição química da Natureza), não tivessem sido “observados” experimentalmente até a década de 1930.  A doutrina do atomismo, desenvolvida a partir de noções elementares de antigos filósofos gregos, tornou-se crença científica nos séculos que se seguiram ao renascimento na Europa. Reações químicas eram vistas como evidência indireta da natureza fragmentada da matéria a partir de elementos que se combinavam microscopicamente , embora provas diretas dos átomos jamais existissem. (p. 3) 
Ainda sobre a questão de objeto de estudo, encontramos em (1):
É interessante notar que em todas essas ciências particulares o objeto é empírico, ou seja, passível de verificações factuais a partir de metodologias específicas adequadas a cada objeto. As especialidades científicas conseguem “fazer falar” seus respectivos objetos." (p. 4)
Claramente confunde-se o 'objeto' de uma ciência em particular com os fenômenos que ele gera. É objetivo da física estudar 'átomos' ou 'moléculas', desvendar as leis que regulam a interação entre esses constituintes não observáveis do universo (5). Isso é feito através do estudo de fenômenos. Não é objetivo da física simplesmente 'estudar fenômenos' (isso é apenas uma maneira polissêmica de se usar a palavra 'estudo'), mas sim as suas causas. Repetimos: o objeto de estudo da física é, na verdade, os átomos ou suas leis de interação, através dos fenômenos. O leitor deve se atentar para essa importante distinção de escopo, porque ela é a base para a confusão que analisamos a seguir.

Consequências para a ciência espírita.

É com essa visão de ciência que o autor de (1) passa a criticar a proposta de Kardec:
Afinal, não há demonstrações objetivas da existência de espíritos, pois, em verdade, os espíritos seriam uma hipótese a ser verificada, se possível, do fenômeno observado por Kardec e por tantos outros, jamais um “ponto de partida”.(p. 5) 
No caso espírita, o fenômeno observado não é o espírito, que se enquadraria então não como objeto, mas como hipótese daquilo que se pesquisa. (p. 6)
Que objeto poderia, então, fundamentar uma ciência espírita? Aquilo que Kardec chama de fenômeno mediúnico. E apenas isso. (p. 15)
A crítica nesses moldes feita a Kardec, poderia se aplicar plenamente à existência de átomos, conforme discutimos anteriormente. Afinal, quais são as 'demonstrações objetivas' para a existência de átomos e moléculas? Imagens modernas de microscópio de força atômica? Mas, esses microscópios, eles mesmos jamais teriam sido construídos se a 'hipótese' (na terminologia do artigo (1)) da existência átomos não tivesse sido admitida à principio. Essas entidades foram assumidos como existindo na criação de partes e componentes dos microscópios, o que, ou torna a existência delas suspeita, ou invalida a ideia de que o objeto de estudo de uma ciência corresponde apenas aos fenômenos. Portanto, espíritos não tem demonstração sensorial, assim como várias outras entidades não têm: não apenas em átomos, mas campos magnéticos, elétricos, partículas elementares, forças escuras, campos gravitacionais, energias, genes etc. Mas, isso não é problema algum para a ciência ao contrário do que pensa o autor de (1).
Manifestações “inteligentes” podem e são estudadas por outras especialidades científicas, que propõem hipóteses mais coerentes com o fenômeno observado, haja vista não lançarem mão de proposições imateriais para a explicação desses fatos, que caracteriza o princípio lógico da navalha de Ockham. (p. 6)
Não se detalha quais seriam as 'outras especialidades científicas' que estudariam as manifestações inteligentes, mas, diante do quadro apresentado em (1), as causas dessas manifestações podem todas ser reduzidas aos átomos e suas interações que seriam as 'hipóteses mais coerentes', afinal, se não são espíritos ou forças inteligentes independentes, só podem ser os próprios átomos (igualmente invisíveis, mas materiais) nas diversas teorias materialistas da mente em moda na atualidade. É interessante ver o conceito 'navalha de Ockham' (6) na frase acima. Ela parece corroborar a noção simplória de que teorias não são necessárias em ciência, mas que experimentos devem ser feitos para se decidir sobre 'hipóteses' e de que, quando mais de uma hipótese está no páreo, deve-se escolher a mais simples, sem se especificar o que é 'simplicidade' nesse caso (6).

Conclusões

A visão exposta em (1) condena não só a ciência espírita de Kardec, mas toda a ciência moderna ao obscurantismo, a uma época onde apenas aquilo que se podia olhar, ouvir, cheirar ou degustar seria chamado de 'objeto digno de pesquisa'. Julgamos que essa proposta descaracteriza o conhecimento científico tal como o conhecemos, o que explica o título deste post.

Um microscópio de força atômica para 'ver' átomos .
 Esses dispositivos só puderam ser concebidos, 
montados e testados porque uma teoria
que assumia a existência de átomos foi aceita por princípio. 

O erro de se considerar como escopo de uma ciência somente seus fenômenos está na base de várias tentativas fracassadas de se tratar fenômenos psíquicos, dentre elas a metapsíquica de Richet (4) e a parapsicologia (7). O horror a hipóteses e teorias nesse último caso é a causa principal da estagnação desse campo de pesquisa (8).

Para se apreciar corretamente a fenomenologia mediúnica é preciso aceitar integralmente a teoria espírita criada por Kardec, da mesma forma que, para se apreciar corretamente fenômenos físicos é preciso conhecer e aceitar a teoria física que os explique. Infelizmente, no caso das ciências da matéria, estudantes passam anos se dedicando a absorver conceitos e princípios teóricos antes de vislumbrarem qualquer contribuição que possam fazer, muito menos ainda ousar contestar a teoria. Não nos parece fazer sentido rejeitar todo um paradigma científico e querer contribuir, de fato, na explicação de seus fenômenos particulares sem apoio de uma teoria. Repetimos, não existe ciência sem aceitação tácita de uma teoria.

O espírito ou princípio espiritual tem propriedades que não se confundem com a matéria ordinária. Por isso, uma ciência especial deve ser desenvolvida para lidar com ele e com sua interação com a matéria. Os princípios dessa ciência estão contidos na teoria espírita (queiram ou não, é o melhor que temos, por enquanto). Por causa dessa diferença de objeto, é um absurdo querer julgar o caráter científico dessa nova teoria simplesmente invocando-se um empiricismo a partir dos sentidos ordinários que servem exclusivamente à matéria.

Invocar a navalha de Ockham para decidir questões em ciência sem antes conhecer a fundo suas consequências e diversas interpretações pode ser altamente enganoso. Deve-se levar em conta a complexidade das teorias científicas modernas, onde o 'mais simples' parece ser uma questão de estética,  gosto pessoal, preconceito ou falta de conhecimento de um assunto. Graças a Deus, a natureza é o que é e não nos pede permissão para decidir sobre o que deve existir ou não no universo.

Notas e referências

(1) S. Maurício Pinto (2012). Reflexões sobre uma ciência espírita, XXI Congresso Espírita Pan-Americano, Santos, São Paulo.

(2) Por causa da natureza peculiar e independente de seu objeto de estudo, recomenda-se formação em uma "ciência da Natureza" (física, química, biologia etc) e não qualquer outra disciplina que receba essa denominação independente desse objeto.

(3) Chalmers, A. (1999). What is this thing called Science, 3rd Edition. Cambridge: Hackett Publishing Company, Inc.

(4) Xaver A. (2013, Reflexões sobre a ciência espírita, J. Est. Esp. 1, 010202.

(5) Da mesma forma, diríamos que é papel da genética estudar os 'genes' e suas leis (entidades invisíveis responsáveis pelas características de seres vivos) e não apenas os seres que carregam esses genes. Na química, é objeto de estudo estudar as leis que regulam a interação entre moléculas em diversos meios, soluções etc através de reações químicas etc.

(6) O que é conhecido como 'navalha de Ockam' parece ter sido criado como mito no Século 17 e atribuído ao filósofo medieval Guilherme de Ockham (1287-1347), e pode ser expressada pelo aforismo "Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem". Em outras  palavras, que se deve manter a simplicidade e não se multiplicar desnecessariamente o número de causas numa explicação. Ao longo do tempo, esse princípio foi estudado na filosofia por vários pesquisadores. Fora dos círculos acadêmicos e, mais especificadamente nos debates que ocorrem na web entre céticos e os proponentes da fenomenologia psíquica, a 'navalha de Ockam' é usada como arma retórica para defender determinados pontos de vista. Um materialista, por exemplo, pode invocar esse princípio para negar a existência da alma ou princípio espiritual, porque assim não se estaria 'multiplicando as causas'. Entretanto, há vários contra exemplos que desqualificam o argumento ou que o modificam para invocar um ideal de 'simplicidade' de outra maneira. Por exemplo, um espiritualista, por outro lado, poderia invocar a navalha de Ockham e postular a existência da alma ou espírito para salvar qualquer teoria da mente que se tornaria extremamente complexa sem o princípio espiritual. Quem tiver interesse em estudar seriamente a navalha de Ockham deve consultar:
(7) Esse assunto foi tema de vários posts aqui: