31 de dezembro de 2020

O idioma da esperança para um novo mundo


Comecei a sentir que talvez a morte não fosse um desaparecimento, 
mas um milagre, e que há um tipo de lei na Natureza 
que nos guie para algum destino... L. L. Zamenhof [1b]

Essas foram algumas dos últimos escritos de Zamenhof, o criador do Esperanto, registrado em sua obra Mi estas homo (“Eu sou uma pessoa”, [1c] conforme citado em [1]). Esse trecho sintetiza um dos últimos pensamentos antes da morte de Zamenhof em 1917. Não é novidade que diversas línguas artificiais foram criadas para motivar a comunicação internacional humana. Entretanto, nenhuma delas teve maior apoio internacional do que o Esperanto, criado por Ludwik Lejzer Zamenhof (1859-1917). Neste post exploramos algumas das razões para isso.

Quase sempre quando se fala em uma língua internacional, todos nos lembramos que já dispomos de uma: o inglês. Por isso, a proposta de uma nova língua sempre enfrenta críticas aparentemente robustas. No mais, o desenvolvimento sem precedentes de sistemas de inteligência artificial projeta a possibilidade de sistemas de tradução em tempo real que tornariam – em tese – desnecessário sequer a existência de uma língua universal. Não obstante isso, pessoas continuam a escolher e estudar um idioma para sua comunicação internacional, porque não parece fazer sentido se comunicar face a face via aparelhos.

Entretanto, de tempos em tempos, perturbações mais ou menos severas na ordem econômica e social chamam a atenção mais uma vez para o problema linguístico entre nações. A ameaça do deslocamento do eixo econômico do mundo para o oriente dispara um alerta: com base no poderio econômico, seria possível ao inglês perder seu status de língua internacional, assim como aconteceu ao Grego, ao Latim, ao Francês para citar os casos mais famosos? Estaríamos nossos filhos fadados a ter que aprender o Mandarim [5] como próxima língua dos negócios e da técnica?

Visto como um “divertimento” inconsequente por uns ou como perda de tempo por outros, por razões diversas o Esperanto sobreviveu a perseguições e zombarias. Recentemente, recebeu um grande impulso: a plataforma Duolingo de aprendizado de línguas online disponibilizou as duplas Inglês-Esperanto, Português-Esperanto e Espanhol-Esperanto. Ao todo aproximadamente 2,9 milhões de pessoas começaram a aprender Esperanto por meio desta plataforma, 1,6 milhões do Inglês, 870 mil do Espanhol e 366 mil do Português. [2]. Esses números referem-se aos komencantoj (iniciantes), não necessariamente os que terminam os cursos.


Se toda língua humana carrega uma bagagem cultural e se impõe com base na economia (todos queremos imitar os povos mais adiantados economicamente), qual poderia ser a força do Esperanto? Sem nenhum país a apoiá-lo e nem recursos financeiros, o Esperanto se apresenta como uma proposta de comunicação, mas ligada ao desejo de seu criador: o de um meio de propagação da fraternidade universal.

A origem superior do Esperanto

Se nós, os primeiros defensores do Esperanto, 
somos forçados a evitar qualquer coisa espiritual em nossas atividades, 
seria melhor que rasgássemos e queimássemos 
tudo o que temos escrito para o Esperanto, que desfizéssemos dolorosamente 
o trabalho e o sacrifício de nossas vidas, 
que arremessássemos longe de nós 
a estrela verde que ostentamos em nosso peito para gritar com repugnância: 
"Nada temos a ver com esse Esperanto, que existirá apenas a serviço do comércio e das coisas práticas". (L. L. Zamenhof, citado em [1], p. 31.

Todos conhecemos o apoio dado pelo movimento espírita ao ensino do Esperanto no Brasil. Esse apoio se estabeleceu principalmente com as palavras de Emmanuel [3] em uma mensagem em 1940:
Também o Esperanto, amigos, não vem destruir as línguas utilizadas no mundo para o intercâmbio dos pensamentos. A sua missão é superior, é da união e da fraternidade rumo à unidade universalista. Seus princípios são os da concórdia e seus apóstolos são igualmente companheiros de quantos se sacrificaram pelo ideal divino da solidariedade humana, nessas ou naquelas circunstâncias. A língua auxiliar é um dos mais fortes brados pela fraternidade, que ainda se ouve nesse Planeta empobrecido de valores espirituais, neste instante de isolacionismo, de autarquia, de egoísmo e de nacionalismo adulterado. 
Para compreender a justificativa desse apoio, basta consultar a história do desenvolvimento do idioma. Muito antes de se tornar oftalmologista, Zamenhof apresentou um “proto versão” de sua língua universal em dezembro de 1878 aos seus alunos. A “canção do batizado”, entoada como um hino por eles depois de aprenderem seus fundamentos, dizia:
Caiam, caiam as barreiras hostis entre as pessoas. 
É chegado o tempo! 
Toda Humanidade deve se reunir como uma única família. [1, p. 8].
Mais tarde, quando o Esperanto já se encontrava na forma como o conhecemos presentemente, no primeiro congresso universal de Esperanto de dezembro de 1905 na França com participantes de vinte países, Zamenhof fez um discurso bastante emocionado em que declarou:
...Pela primeira vez na história da humanidade, nós, cidadãos das mais diversas nações, permanecemos lado a lado, não como estrangeiros, nem competidores, mas como irmãos que, compreendendo-se mutuamente sem forçar nosso próprio idioma entre nós, não nos consideramos com suspeição porque a ignorância não nos divide, mas nos amamos uns aos outros; e apertamos nossas mãos, não com a insinceridade de um estrangeiro para com outro, mas de forma sincera, de um humano para com outro humano. Que não haja dúvida sobre a importância deste dia, pois hoje, dentro das fronteiras hospitaleiras de Boulogne-sur-mer, não testemunhamos o encontro de franceses com ingleses, de russos com poloneses, mas de seres humanos com outros seres humanos. Louvado seja este dia, assim como grandes e gloriosos sejam os dias que virão! [1, p. 24]

O caminho futuro do projeto de Zamenhof e sua língua haveria, porém, de colher muitos dissabores. As tensões começaram desde o início, quando Zamenhof pretendeu dar esse “aspecto espiritual” ao Esperanto, o que foi imediatamente interpretado como suspeito por causa de sua origem judaica. De fato, o idioma artificial era apenas uma parte de um projeto maior de Zamenhof para os povos, o que incluía uma nova religião: o Hilelismo. Tendo vivido em um lugar de conflitos raciais constantes, Zamenhof abominava toda e qualquer forma de discriminação, inclusive a de origem religiosa. O Hilelismo se baseava nos seguintes princípios:
  1. Sentimos e acreditamos na existência de uma “força superior” que governa o mundo e que chamamos “Deus”;
  2. Deus escreveu sua lei no coração de cada pessoa, por meio da sua consciência;
  3. A essência de todas as leis dadas por Deus é expressa pela regra áurea: Amar ao seu próximo e fazer aos outros o que gostaria que fosse feito a si mesmo; nunca se envolver com atos que sua voz interna diga estar em desacordo com os desejos de Deus.
  4. Quaisquer outros ensinos que se ouçam de professores ou guias religiosos e que não estejam de acordo com esses três princípios anteriores são construções meramente humanas que podem estar certas ou erradas.
      Zamenhof raciocinava que seria necessário reformar o Judaísmo pelo Hilelismo de forma a abrir aquele para todas as etnias, tal como já se abriram as grandes religiões, o Cristianismo, o Budismo e o Islamismo. 

      Desnecessário dizer que essa motivação religiosa à linguagem se tornou um estorvo: para ateus ela era muito religiosa, para religiosos não-judeus, era muito judaica e, para judeus, constituía uma negação do Judaísmo. Por isso, Zamenhof mudou seu nome para Homaranismo que poderíamos traduzir como “Humani-ismo”, um credo que teria a pessoa humana como elemento central. Os “Homaranistas” seriam membros da “raça humana”, despidos de qualquer diferença étnica, cultural ou religiosa. 

      Colocado dessa forma, é possível entender as palavras de Emmanuel que citamos acima. Movido por um ideal claramente superior, Zamenhof não conseguiu fazer do Homaranismo a religião praticada pelos esperantistas. Entretanto, seu idioma iria se tornar a língua artificial mais querida e aprendida no mundo, em parte por um esforço incansável de seus seguidores igualmente movidos pelo mesmo ideal. 

      Uma língua para um novo contexto internacional?

      O Esperanto foi o único idioma artificial que "pegou" de fato. Porém, na atualidade, as intenções de Zamenhof continuam a aquecer debates, principalmente se mal colocadas por pessoas preconceituosas ou incapazes de entender seus motivos superiores. É fácil misturar esses objetivos com movimentos políticos. 

      Historicamente, porém, foram registradas perseguições a esperantistas em países com os mais variados credos políticos [4]. A existência de pessoas que falam uma língua desconhecida em uma comunidade é terreno fértil para incontáveis teorias de conspiração. E Zamenhof, assim como muitos esperantistas, foram acusados de conspiração.

      Além disso, toda ideia original se torna corrompida quando sofre com supostos adeptos que pretendem torná-la exclusiva e que são incapazes de entender a pureza dos objetivos originais. Frequentemente, esses adeptos mal intencionados se tornam maioria e desviam o movimento completamente. Nesse sentido, a revelação do Esperanto também foi corrompida por atos e condutas divisionistas dentro do movimento original, como resultado da inferioridade do espírito humano. Até aqui, nada de novo.

      Importa, hoje em dia, que nos concentremos nas vantagens que o aprendizado do Esperanto pode ter, porque as “coisas práticas” podem ser decisivas para o sucesso futuro de uma proposta de língua universal efetiva. Alguns pontos recentemente observados na literatura, estão resumidos abaixo:

      • O ensino do Esperanto tem sido descrito na literatura como promotor do aprendizado multilinguístico [4c, 4d]. Ele é, portanto, uma excelente ferramenta de aprendizado de línguas;
      • Soa suspeito dizer que o “Inglês é fácil” depois de se ter investido décadas no seu aprendizado, de se ter consumido milhares de horas ouvindo músicas, filmes e discursos nessa língua. É preciso fazer realmente as contas de quanto países investem de recursos próprios [4a] no aprendizado do Inglês como uma contabilidade necessária de planejamento futuro. Além disso, as distancias linguística entre o Inglês para os idiomas não anglo-saxões tornam seu aprendizado, de fato, difícil.
      • A acusação de “falta de neutralidade” do Esperanto é consequência da opção de ação política de alguns grupos esperantistas, porém, nenhuma língua humana estará isenta da mesma acusação, que também pode se estender a presente língua franca, o Inglês. A recente saída do Reino Unido da Comunidade Europeia reaviva debates sobre o uso do Esperanto como língua dessa comunidade [4a].
      • O uso do Esperanto obedece a um princípio de “justiça linguística” [4b] pela não imposição de uma cultura associada a uma língua. Sua “falta de contexto” – como colocam os críticos – é justamente sua maior vantagem [2b]. Por outro lado, seu contexto é a fraternidade universal que tem com base a justiça, primeiramente a linguística.
      • Considerando tudo isso, também não é verdade que o Esperanto seja uma “língua fácil”. É um idioma com regras simples, mas isso não se traduz em facilidade imediata de aprendizado como muitos esperantistas afirmam. Como ferramenta de comunicação, sua eficiência já está provada. Como mecanismo de propagação da fraternidade universal, até agora, o Esperanto também demonstrou sua relevância [2b].

      Em tese o Esperanto poderia ser usado para promover relações internacionais em um cenário em que uma língua nacional perdesse sua importância por questões econômicas. A imagem mostra o Décimo Congresso Nacional de Esperanto, realizado na Província de Shandong, na China. Para saber mais sobre a curiosa trajetória e interesse dos Chineses pelo Esperanto, consulte [6].

      Conclusão

      Que uma língua só ajuda na administração de um vasto território não há dúvida: basta ver a praticidade de se usar o Português por 200 milhões de habitantes em um gigantesco país como o Brasil, ou o inglês nos Estados Unidos com idêntico território. Não se contesta o benefício de uma língua comum disseminada entre os povos. 

      Porém, preconceitos e hostilidades não desaparecem entre as pessoas pelo fato de adotarem uma língua única. Essas barreiras, entretanto, são reduzidas entre povos se eles passam a se compreender. Um idioma universal é, portanto, um primeiro passo para a concretização da fraternidade universal que exigirá nada menos que a reforma do coração humano. Contribui para essa reforma, antes de tudo, a educação.

      Nesse sentido, é importante considerar que o Esperanto não tem como objetivo substituir qualquer língua. Ele sempre será uma língua auxiliar. Passado tanto tempo do uso do inglês – que cumpre, por enquanto, o papel de língua franca e os objetivos previstos por Zamenhof – a proposta do Esperanto se apresenta num contexto de “justiça linguística” e de ameaças de perda do eixo econômico do mundo, o que enfraqueceria o Inglês (como aconteceu no passado com outros idiomas internacionais). 

      Isso resgata a necessidade de se planejar globalmente o ensino de idiomas, ou seja, é uma atividade a ser feita com base na cooperação entre os povos, o uso de um só idioma. Por outro lado, todos os outros idiomas usados internacionalmente se impuseram com base em poderio econômico ou influência política. 

      De qualquer forma, o Esperanto somente vingará em um ambiente onde a educação seja valorizada. Ou seja, desde que se prevejam todos os recursos típicos de educação de qualidade, onde seja possível estudar um idioma como complemento de sua familia lingvo (língua familiar, como diria Zamenhof), e onde haja boa vontade e prazer em estudar. Nesse sentido a combinação “Esperanto-internet” com todos os recursos de comunicação em plataformas rápidas ainda devem demonstrar seus efeitos. O Duolingo é um exemplo recente do poder da tecnologia no aprendizado de idiomas e poderá popularizar o Esperanto como nunca visto antes. 

      Restará, porém, tornar evidente a mensagem de fraternidade universal imaginada pelo seu criador, que contribuiu para que o sonho do Esperanto como língua universal não se extinguisse. Em um mundo em transição como a Terra, temos certeza que a mensagem de fraternidade imprimida por Zamenhof ao Esperanto se faz completamente necessária e disputará sua importância bem acima de qualquer outra motivação de ordem política ou econômica.

      Referências

      [1] A. Korzhenkov (2009) Zamenhof: the life, works, and ideas of the author of Esperanto. Mondial; Abridged Edition (4 maio 2010).

      [1b] Citado em [1], p. 50.

      [1c] Zamenhof L.-L. Mi estas homo / Komp., koment. A. Korĵenkov. Kaliningrado: Sezonoj, 2006.

      [2] R. Nielsen (2020). Kie estas la Duolinganoj?   https://www.liberafolio.org/2020/03/31/kie-estas-la-duolinganoj/

      [2b] P. Murphy. A Language for Idealists. Princenton Alumni Weekly. Janeiro de 2017.

      [3] “A missão do Esperanto. Mensagem psicografada por Francisco Cândido Xavier na cidade de Pedro Leopoldo (MG), em 19 de janeiro de 1940. Disponível em: https://www.febnet.org.br/blog/geral/estudos/a-missao-do-esperanto/

      [4] Lins, U., & Tonkin, H. (2016). Dangerous language: Esperanto under Hitler and Stalin. London: Palgrave Macmillan.

      [4a] Utri, R., & Warszawski, U. Could Esperanto be the Common Language in TheEuropean Union? Researchgate.net

      [4b] Brosch, C., & Fiedler, S. (2018). Esperanto and Linguistic Justice: An EmpiricalResponse to Sceptics. In Language Policy and Linguistic Justice (pp. 499-536). Springer, Cham.

      [4c] Roehr-Brackin, K., & Tellier, A. (2018). Esperanto as a tool in classroom foreign language learning in England. Language Problems and Language Planning, 42(1), 89-111.

      [4d] Tellier, A. (2012). Esperanto as a starter language for child second-language learners in the primary school. Esperanto UK.

      [5] "China deve se tornar a maior economia do mundo em 2028, diz centro de estudos britânico". Jornal "O Estado de São Paulo". Notícia de 26 de dezembro de 2020.

      [6] Chan, G. (1986). China and the Esperanto movement. The Australian Journal of Chinese Affairs, (15), 1-18.

      2 de novembro de 2020

      Comentários a um trabalho recente sobre psicografias


      Fazemos aqui alguns comentários ao trabalho recente de Freire et al "Testando a alegada escrita mediúnica: um estudo experimental controlado", apresentado na lista de referências como a Ref. [1] e citado em [1b]. Nosso objetivo é fazer uma apreciação inicial dele, sobre como seus resultados podem ser interpretados diante de eventuais críticas ou contra-críticas - tanto espíritas como céticas.

      Resumo

      Por ser bastante elucidativo como apresentação, traduzimos abaixo o resumo de [1]:

      Contexto: a mediunidade é entendida como um tipo de experiência espiritual em que uma pessoal (isto é , um médium) diz estar em comunicação com, ou sob o controle de seres espirituais. Nas últimas décadas, ressurgiram estudos sobre aspectos psicológicos, psiquiátricos e neurocientíficos da mediunidade, assim como estudos avaliando alegações de que médiuns podem obter informação anômala de pessoas falecidas.

      Objetivo: avaliar a evidência da recepção de informação anômala de pessoas falecidas em textos produzidos através da alegada mediunidade de escrita (cartas psicografadas) sob rigorosas condições eperimentais de controle.

      Método: oito médiuns e 94 consulentes participaram no estudo. Dezoito sessões de escrita mediúnica foram realizadas usando consulentes organizados em protocolo duplo-cego. Depois, cada consulente recebeu uma carta alvo e cinco cartas de controle pareadas por gênero e idade. Os consulentes pontuaram às cegas a acurácia das seis cartas tanto com conforme uma escala global como para cada um dos itens objetivamente verificáveis de informação apresentada nas cartas. Pontuações de cartas de controle e tratamento foram comparadas. 

      Resultados: não houve diferenças na avaliação global e adequação específica das pontuações entre cartas de controle e alvo. Os médiuns envolvidos na pesquisa não foram capazes de mostrar evidências de fornecer informação anômala sobre pessoas falecidas sob condições de controle rigoroso. Discutimos sobre o estabelecimento de um compromisso razoável entre condições ecologicamente válidas e de controle.  

      ​Não foram poucos as pesquisas desde a época de Kardec que provaram que a mediunidade "não existe" com base em resultados negativos de experimentos. Mas, cada nova negativa sempre foi pontuada por manifestações mais ou menos extraordinárias, obtidas em condições de "inexistência de controle" ou com médiuns igualmente extraordinários que são, entretanto, muito raros.  O consenso presente, envolvendo as chamadas "ciências psi" é de que não é possível reproduzir facilmente (leia-se "replicar à vontade") o fenômeno. De qualquer forma, não foi objetivo do trabalho [1] "provar" qualquer coisa em relação à realidade do fenômeno ou demonstrar sua inexistência.

      A seção "Discussão" de [1] discorre sobre três possíveis causas para o resultado negativo: i) que a mediunidade não existe; ii) que os médiuns usados não são, de fato, (bons) médiuns para produzir  fenômeno e; iii) não observância das "condições ecológicas" da manifestação pelo uso das condições de controle rigoroso. Os autores de [1] tomam a maior parte do espaço da seção citada discutindo sobre tais condições ecológicas, e sobre a influência negativa da presença dos consulentes "representantes" (proxy sitters).

      Os autores propõem ser desnecessário usar de tais representantes porque "não há realimentação imediata enquanto um médium está escrevendo uma carta psicográfica", ou seja, não ocorreria "cold reading" (leitura fria), supostamente existente em sessões em que médiuns, estando face a face com seus consulentes, "leem mensagens ocultas" nas expressões e gestos  desses últimos, o que permitiria aos primeiros escreverem sobre os parentes falecidos. 

      Em síntese: o protocolo usado é uma exigência da teoria cética da leitura fria como causa da mediunidade. Obviamente que isso gerou consequências para o resultado da pesquisa.

      O problema da replicabiliade de "psi"

      No contexto da parapsicologia, fenômenos psíquicos são explicados pela chamada "hipótese psi". Psi é concebido como uma causa difusa e desconhecida, que é supostamente captada pela mente humana nos "sensitivos".  Alguns parapsicólogos associam faculdades praticamente oniscientes a psi, que pode acessar o passado, o presente e o futuro, e é independente da distância. 

      Além disso, psi se comporta como um deus caprichoso: não é possível garantir que atuará da mesma forma em todos os experimentos em que supostamente atuou, nem mesmo se agirá de fato. No trabalho "Porque a maior parte das descobertas em psi são falsas: a crise da replicabilidade, o paradoxo de psi e o mito de Sísifo" [2],  T. Rabeyron explora e fornece uma descrição atualizada das principais interpretações e trabalhos sobre psi. 

      O problema da replicabilidade é a tendência observada em estudos (não só em parapsicologia, mas em psicologia e em medicina) de um determinado efeito "deixar de ser observado" ao se tentar replicá-lo posteriormente. Uma das causas imaginadas para isso são as chamadas "práticas de pesquisa questionáveis" que existiriam nos trabalhos iniciais de um pesquisa e deixariam de existir - com o suposto efeito - em trabalhos aprimorados posteriores. 

      Conforme analisado por Rabeyron, esse não é, entretanto, o problema de psi. Houve muitas tentativas de replicação em parapsicologia, algumas em que o fenômeno se manifestou, enquanto outras não. O problema parece se relacionar com uma interferência do "observador" (ou experimentador), porque psi supostamente também interage com ele. O experimento do artigo [1], se interpretado segundo psi, seria mais uma instância do problema da replicabilidade. A situação é tão grave que o autor de [2] conclui ser impossível, simplesmente por repetição exaustiva de experimentos (dai a referência ao "Mito de Sísifo"), demonstrar de forma satisfatória o efeito e nem sua causa:

      O problema subjacente é que, mesmo se um efeito significativo seja encontrado a cada passo, não há como concluir nada sobre a natureza do efeito e, consequentemente, não há como se produzir conhecimento científico sobre a fonte de psi: ele provém dos participantes? Do experimentador? Ele tem origem em cada experimentador separadamente? Ou ele é uma influência mais forte do primeiro que analisa os dados? Ou, talvez, daquele que projetou o experimento? [2]
      O "efeito do declínio" ou "desparecimento de "psi" é então entendido como um problema de replicabilidade genuíno devido à interação do experimento com o experimentador:  
      Um experimento de psi é como um ovo onde a casca encerra um sistema organizado fechado. Pode ser possível manter o efeito psi desde que esse envólucro organizacional não seja rompido, isto é, desde que o ovo não seja quebrado para ver o que há dentro. Nessa interpretação, as interações de psi são possíveis desde que o observador não interfira no sistema. Uma vez feito isso, "o jogo acabou". Isso explicaria porque a fonte de psi não pode ser determinada precisamente porque o processo de determinação destruiria as condições necessárias para a emergência de psi. [2]

      É importante reconhecer que, em nenhum momento, o trabalho [1] considera a hipótese "psi". Porém, para a comunidade científica em que ele se insere, o resultado podem ser interpretados em função da replicabilidade de psi (ou seja, fora da "hipótese da sobrevivência").

      Apelo a Kardec

      Numa época em que se fala tanto de Kardec nos meios espíritas (o que é muito bom), como ele procedia nesse tipo de pesquisa? Certamente, não usava o método de "grupo de controle e tratamento" para analisar mensagens psicografadas. Seu procedimento foi desenvolvido ao longo de 15 anos de investigações. Consistia essencialmente  na observação comparada do ambiente onde o fenômeno ocorria na presença de médiuns. Kardec sempre esteve ciente de que o fenômeno, para acontecer, depende de inúmeros detalhes e não apenas do(s) médiun(s). 

      Sua advertência justificada em fatos é:

      Os fenômenos espíritas diferem essencialmente dos das ciências exatas: não se produzem à vontade; é preciso que os colhamos de passagem; é observando muito e por muito tem­po que se descobre uma porção de provas que escapam à pri­meira vista, sobretudo, quando não se está familiarizado com as condições em que se pode encontrá-las, e ainda mais quando se vem com o espírito prevenido. (Grifos nossos) [3]
      Ao longo de mais de uma década, Kardec desenvolveu uma espécie de intuição ou sensibilidade sobre quem seria um bom médium para cada tipo de mediunidade possível. Então, passou a convidar pessoas que ele julgava por essa intuição para as sessões da Sociedade Espírita. É óbvio que, dispondo de bons médiuns desde essa perspectiva e conhecendo as condições de ocorrência do fenômeno [3b], ele conseguiu resultados extraordinários. 

      Finalmente, é importante ressaltar a postura de Kardec em suas pesquisas. Ele não considerava a sobrevivência como uma mera "hipótese de trabalho", nem buscou orientar seu trabalho de forma a ressaltar a comunicação com "supostos falecidos". O impacto que essa postura tem sobre o sucesso das manifestações ainda merece ser estudado.

      Os médiuns julgados

      Recomendamos vivamente ao leitor a leitura do artigo "Médiuns julgados" na Revue Spirite de janeiro de 1858 [4]. Nele Kardec analisa um caso de não replicabilidade obtida com médiuns americanos (ou seja, isso não acontece apenas com "médiuns brasileiros" como destacado em [1b]). Para não cansar nosso leitor, destacamos desse artigo um importante comentário de Kardec:
      Essa experiência prova, uma vez mais, da parte de nossos adversários, a absoluta ignorância dos princípios sobre os quais repousam os fenômenos das manifestações espíritas. Entre eles há a idéia fixa de que tais fenômenos devem obedecer à vontade e reproduzir-se com a precisão de uma máquina. Esquecem completamente ou, melhor dizendo, não sabem que a causa deles é inteiramente moral e que as inteligências, que lhes são os agentes imediatos, não obedecem ao capricho de ninguém, sejam médiuns ou outras pessoas. Os Espíritos agem quando e na presença de quem lhes agrada; freqüentemente, quando menos se espera é que as manifestações ocorrem com mais vigor, e quando as solicitamos elas não se verificam. (Grifos nossos) [4]
      Eis ai boa parte da razão para a não replicabilidade dos fenômenos psi dada por Kardec em 1858. O leitor deve notar que não estamos a falar nada novo, mas de algo que, logo nas primícias da Codificação, era conhecido. 

      Essa descoberta original de Kardec confirma as conclusões do trabalho de Rabeyron [2], porque nunca se produzirá conhecimento sobre a verdadeira causa de psi enquanto não se souber exatamente o que ele é. E não há como saber o que ele é, pois, em grande parte dos experimentos "projetados" para isso, ele se recusa a manifestar...

      Conclusão

      Com relação ao trabalho [1] nossa conclusão, baseada na seção "Discussão", é que os autores consideram relevante o problema da manutenção das "condições ecológicas" para a replicação positiva do efeito buscado. Tais condições ecológicas concordam com a necessidade de observar ou medir o fenômeno onde ele ocorre, sem amarras metodológicas e sem impor condições que possam destruir a manifestação. Isso concorda com as conclusões de Kardec logo no início da Codificação.

      O que então aconteceu? Pode ser que o resultado negativo não se deve à presença dos consulentes proxy (como grupo) sem força de vontade suficiente para permitir comunicação, mas à própria tentativa de forçar comunicações, o que não agradou aos responsáveis "do lado de lá". Pode ser também que alguém (uma única pessoa) tenha atuado como escolho ao experimento (ou várias pessoas). Dado a descrição que fazem dos médiuns (de que eles são considerados bons em relatos "anedóticos" de sessões), a ideia de que a culpa seria deles é mais remota. A "hipótese da sobrevivência" é um fundamento que gera inúmeras consequências: se há comunicação, pode não ser o caso que ela seja possível no intervalo de tempo projetado para o experimento: "é preciso que sejam colhidas de passagem", como diria Kardec.

      Se existem problemas de percepção da excelência mediúnica em grupos espíritas no Brasil, eles não serão resolvidos pela aplicação da metodologia do trabalho comentado aqui. Como na época de Kardec, não será simplesmente pela separação entre grupos em "controle" e "tratamento" dos recipientes das mensagens que se resolverá esses problemas. 

      Do ponto de vista epistemológico, um experimento é sempre um resultado de uma teoria que tem determinadas hipóteses subjacentes. É importante, entretanto, prever ou considerar o risco de que uma metodologia, baseada em hipóteses que não correspondem à realidade do fenômeno, pode se tornar um escolho para a manifestação dele. Portanto, deve-se considerar protocolos que anulem todas efeitos que não a "hipótese nula", porém, não demais ao ponto de destruir todas as condições para a manifestação dessa mesma hipótese.  

      De forma geral: é plenamente justificável em algumas ciências (como é o caso da fisiologia, medicina, sociais etc) estabelecer controles para tornar evidente um efeito. A ideia é que, a aleatorização de amostras e a separação entre grupo de controle e tratamento, elimine todas as condições externas que não aquelas ligadas ao efeito que se pretende tornar relevante. Mas, o que acontece se o fenômeno depender de condições externas para ocorrer? É uma consequência lógica (ou seja, independente da ciência em particular) que, nesse caso, o efeito a ser pesquisado desaparece, não se observando diferenças entre grupo de controle e de tratamento. 

      A história da fenomenologia mediúnica mostra que médiuns extraordinários são muito raros. A regra geral é que mesmo excelentes médiuns não podem ser encontrados facilmente. E mais, ainda na presença desses, eles não são capazes de fornecer comunicações conforme desejos ou caprichos dos sitters

      Dos problemas discutidos aqui, o mais grave, segundo nosso entendimento, é tentar forçar comunicações. É provável que, mesmo médiuns medianos, comunicações excelentes sejam possíveis, desde que observadas as condições naturais e não forçadas de ocorrência. 

      É quando se pretende encerrar o fenômeno dentro de um quadro ou contexto pré-definido que ele deixa de ocorrer. E isso é válido tanto nos ambientes de pesquisa acadêmica do assunto como provavelmente nos muitos ambientes espíritas (independente da nacionalidade) em que comunicações são buscadas "a qualquer preço". 

      Referências e comentários adicionais

      [1] E. S. Freire et al. Testing alleged mediumistic writing: An experimental controlled study. EXPLORE, 2020. https://doi.org/10.1016/j.explore.2020.08.017

      [1b] J. Sampaio (2020). Muitos resultados negativos na análise de cartas psicografadas por médiuns brasileiros. Disponível em: http://espiritismocomentado.blogspot.com/2020/10/muitos-resultados-negativos-na-analise.html (acesso em outubro de 2020)

      [2] Rabeyron, T. (2020). Why most research findings about psi are false: the replicability crisis, the psi paradox and the myth of Sisyphus. Frontiers in Psychology, 11, 2468. https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpsyg.2020.562992/full (Acesso em outubro de 2020)

      [3] A. Kardec. O que é o Espiritismo? Capítulo I - Pequena conferência Espírita, Primeiro diálogo - O crítico. Versão www.ipeak.com

      [3b] Tanto isso é verdade que, em inúmeras passagens da Revue Spirite, Kardec registra sempre ter pedido autorização a S. Luís para invocar os Espíritos. Ela sabia muito bem que não se pode forçar comunicações, pois são vários os impecilhos para sua ocorrência genuína.

      [4]  A. Kardec (1858). Revue Spirite. Os Médiuns julgados. Janeiro de 1858, p. 50. Versão FEB disponível em https://www.febnet.org.br/ba/file/Downlivros/revistaespirita/Revista1858.pdf (acesso em outubro de 2020).


      19 de outubro de 2020

      O Halloween e comemoração do dia dos mortos


      A chamada festa de Halloween ou a  "vigília de todos os santos" é comemorada na véspera do chamado "Dia dos Mortos", que a tradição colocou no início de novembro. Como acontece com todas as festas religiosas - o que inclui a data de Natal, considerada a mais "cristã" de todas, mas que na verdade nasceu dentro do Paganismo - o Halloween tem sua origem em tradições muito mais antigas. No Brasil, dada a influência dos Estados Unidos, os costumes têm se modificado para "festejar" tal data quando então as pessoas e as crianças vestem fantasias horripilantes, algumas criativas outras ridículas. Em outra visão, o Halloween é um grande festa comercial, onde muitos negócios e oportunidades de ganhos financeiros prosperam [1].

      A tradição do Halloween se iniciou com a festa de Samhaim dos celtas, ou povos que viviam na Europa, e que tinham a tradição de acender fogueiras, assim diz a lenda, para afastar "espíritos". Uma suposta "abertura" das comunicações e relações com as criaturas do além celta ocorreria no final de outubro, o que explicaria a festa. Segundo [2], essa interpretação é incorreta e não corresponde ao verdadeiro sentido da festa de Samhaim, que nada tinha de relação com os mortos. A razão era muito mais banal: a data coincidia com meados do outono, um tempo de colheita e prenunciava uma época de menores ganhos agrícolas, com a chegada do inverno e dias mais curtos. Os celtas dividiam o ano em verão e inverno; com início em 1 de maio para o verão e começo do inverno em 1 de novembro. O nome Samhaim significava "quando o verão acaba".

      Por volta do ano 1000, com a Europa completamente cristianizada, o papa Gregório III decretou a data de 2 de novembro como o dia final do tempo em honra aos santos, que se extendia de 13 de maio a 1 de novembro. A data do dia 13 tem a ver com a festividade de "Lemuria", uma festa romana de homenagem aos mortos. A data de 2 de novembro se deve a Santo Odilo, um monge de Cluny que decretou em 998 que todos os monastérios ligados a Cluny deveriam homenagear os mortos no dia seguinte ao dia 1 de novembro (provavelmente sob influencia ainda da data celta ou romana). 

      A festa, portanto, teve origem em um conjunto de sincretismos de difícil identificação, com contribuições de inúmeros povos diferentes. Seu relacionamento com a intervenção dos "mortos" tem origem cristã, provavelmente na tradição Clunisiana. Além disso, os Druidas, que se diz influenciaram as tradições do Halloween dos celtas, não permitiram que suas crenças fossem escritas e apenas compartilhavam conhecimento por via oral [2]. Em suma: pouco do que sabemos da contribuição dos Druidas ao Halloween pode ser confiado.

      Muitos podem se perguntar: qual a relação entre o Espiritismo e o Halloween? A resposta mais correta é: nenhuma. Quem hoje identifica qualquer relação, o faz sem qualquer base na história, mesmo das tradições, e apenas estabelece uma relação a posteriori que nunca existiu.

      Com o advento da compreensão espírita, sabemos que as forças mais próximas de nós no além são única e exclusivamente as almas dos homens (e mulheres que são de  mesma natureza que a dos homens), e que não podem ser destruídas, além, obviamente, de Deus e dos espíritos superiores que presidem ao destino dos mundos. Muitas aguardam novas oportunidades de renascimento em nosso mundo material. Dispondo da compreensão do Evangelho e do esclarecimento sobre a verdadeira natureza da vida humana, sabemos hoje que somos muito favorecidos pelas amizades que guardamos no Além dos que partiram antes de nós. Fora disso, não se confirma a existência independente de nada representado na festividade do Halloween. 

       Referências

       [1] BELK, Russell W. Halloween: An evolving American consumption ritual. ACR North American Advances, 1990.

       [2] GEORGE, Arthur. Halloween: Eve of Transformation. In: The Mythology of America's Seasonal Holidays. Palgrave Macmillan, Cham, 2020. p. 149-173.


      25 de agosto de 2020

      A razão das antipatias que sofremos na Terra

      Bobo risonho, J. Cornelisz van Oostsanen (~1500). Fonte: Wikipedia.

      (...) Um espírito mau antipatiza com quem quer que o possa julgar e desmascarar. Ao ver pela primeira vez uma pessoa, logo sabe que vai ser censurado. Seu afastamento dessa pessoa se transforma em ódio, em inveja e lhe inspira o desejo de praticar o mal. O bom Espírito sente repulsão pelo mau, por saber que este o não compreenderá e porque díspares dos dele são os seus sentimentos. Entretanto, consciente da sua superioridade, não alimenta o ódio, nem inveja contra o outro. Limita-se a evitá-lo e a lastimá-lo. ("O Livro dos Espíritos, resposta à questão 391.)

      A ciência espírita não só trata do conhecimento das manifestações espíritas ou dos mecanismos entre o espírito e o perispírito. Essa ciência, que ainda está em sua tenra infância, permite compreender de forma racional um conjunto de influências tanto boas como más que recebemos durante nossas vidas. 

      Essa compreensão se alicerça na imagem nova que a revelação traz, principalmente, da verdadeira razão da existência humana. É verdade que a moderna psicologia propõe procedimentos e elabora recomendações sobre como devemos proceder psicologicamente em nossas vidas. Porém, a revelação dos Espíritos nos traz ingredientes adicionais pelos quais é possível absorver um pouco mais racionalmente essas recomendações. Há obviamente racionalidade em todo tratamento psicológico: o de melhorar a vida e restaurar a felicidade e a paz de espírito. Mas, todo e qualquer ensinamento adicional que colabore com esse objetivo é bem-vindo. Não há maior ensinamento sobre a vida do que conhecer sua razão de ser e objetivo final. 

      As causas das simpatias, mas principalmente, antipatias que enfrentamos na vida está bem descrito no Cap. VII da 2a Parte de "O Livro dos Espíritos". Ainda motivado pelas complexidades da "Volta do Espírito à Vida Corporal" (O Capítulo VII), há  uma seção inteira dedicada a "simpatia e antipatia terrenas". É importante dizer que não há nada de inerentemente ruim ou bom no fato de dois Espíritos sentirem, por exemplo, antipatia recíproca. Isso está bem claro na resposta à Questão 390:

      De não simpatizarem um com o outro, não se segue que dois Espíritos sejam necessariamente maus. A antipatia, entre eles, pode derivar da diversidade no modo de pensar. À proporção, porém, que se forem elevando, essa divergência irá desaparecer e a antipatia deixará de existir.

      Como consequência dessa independência, a antipatia não nasce primeiro naquele Espírito de natureza inferior: "Numa e noutra indiferentemente, mas distintas são as causas e os efeitos nas duas" diz o início da questão 391, cuja segunda parte citamos no começo deste post. Não obstante a antipatia ser recíproca, ela provoca em cada Espírito reações diferentes.

      No inferior, ela amplifica sentimentos já existentes de inveja, ódio e do "desejo de praticar o mal". Disso segue que, embora o sentimento seja recíproco, a parte mais inferior quase sempre toma a iniciativa da prática lamentável, da perseguição, da injúria ou da maledicência, ações que, sem freio, são a causa de muitos crimes que assistimos todos os dias nos noticiários. 

      "Minha mãe não gosta de mim" ou as antipatias na família.

      Uma leitura desatenta da seção que estudamos aqui pode levar a pensar que os Espíritos apenas se referiam a antipatias 'fortuitas' que encontramos em nossas vidas, problemas entre amigos ou nas relações profissionais. A mais difícil lição para os Espíritos encarnados é a de serem obrigados a enfrentar antipatias dentro da própria família. Pois, como consequência do ensino dos Espíritos, não há obrigações inatas ou genéticas para que uma mãe, um pai ou filhos amem-se, caso sejam Espíritos antipáticos.

      Muitos se escandalizam com essas conclusões, mas o sentimento de revolta é, na verdade, consequência dos ditames culturais e do que seria 'natural' encontrar, mas não da realidade oculta da Vida Maior que se mostra nos casos particulares. De fato, as leis de afinidade entre os Espíritos e as vidas pregressas explicam muitas das antipatias observadas no seio das famílias. Muitos se perguntam por quê? A resposta ai está. Tais espíritos podem ser antipáticos, mas não necessariamente maus, repetimos.

      Mas, não importa a cor, a cultura, o laço de relação familiar ou a educação que adorne aquele que pratica atos como racismo, bulling, perseguições sistemáticas por motivos fúteis e outros. Serão sempre prova da natureza inferior da personalidade de seus Espíritos que estarão sujeitos à correção no futuro. Por outro lado, muito melhores são os pais e filhos que, não obstante antipatias entre si, seguem firmes os princípios de respeito e justiça.

      Também não é verdade que a antipatia que sentimos por alguém próximo ou distante na família seja exclusivamente fundada em ações de vidas anteriores. Muitas vezes isso é afirmado entre os espíritas, mas uma leitura atenta da seção que estudamos aqui traz essa consequência lógica, que também vale para as afinidades:

      Dois Espíritos, que se ligam bem, naturalmente se procuram um ao outro, sem que se tenham conhecidos como homens. (Resposta à questão 387)

      Reconhecido uma antipatia mútua, é importante que cada um busque evitar qualquer contenda, criando uma atmosfera de respeito mútuo. Ora, isso nasce mais naturalmente em quem tem o Espírito mais desenvolvido. Reconhecida a antipatia, surge imediatamente a repulsa pela situação, a ânsia pela fuga ou distanciamento do outro. Segundo os Espíritos, isso é bastante natural, e a situação cai na classe das "vicissitudes" da vida - dos testes ou provas a que os Espíritos estão sujeitos para melhor controlarem seus sentimentos. 

      Não há uma pergunta específica em "O Livro dos Espíritos" sobre o que acontece quando os dois Espíritos têm o mesmo grau de esclarecimento, mas são antipáticos. Mas a resposta, obviamente, é uma consequência lógica dos princípios enunciados.  Também, de acordo com a resposta à Questão 390, Espíritos verdadeiramente superiores não mantêm antipatias, pois não mais estão sob influência das paixões inferiores. Assim, à medida que se elevam, a "antipatia deixará de existir". Isso não implica que, em missões na Terra, não sofram eles também antipatias. De fato, isso é o que mais ocorre, pois são muito diferentes do meio que encontram.

      Antipatias entre os não esclarecidos

      Resta, porém, o dificílimo problema de como lidar com a antipatia que nasce entre Espíritos de natureza inferior. Desde que a razão não intervenha e induza a ambos reconhecer que o melhor para os dois é manterem a devida distância, a relação quase sempre evolui em espiral descendente de sentimentos, da prática abusiva de perseguições sem justificativas, que podem acabar em crimes, alguns até hediondos. Incapazes de compreender a origem da antipatia, procedem instigando-se uns aos outros. Adquirem assim débitos que somente poderão ser quitados em futuras existências - quase sempre em situações ainda mais difíceis. Muitos dos que estão no entorno desses Espíritos sofrem consideravelmente, quando não acabam se transformando em verdadeiros grupos antagônicos e inimigos declarados. 

      Uma parte de "Cristo carregando a cruz" de Hieronymus Bosch (1490).

      Incapazes de compreender a origem da antipatia que sempre permanece oculta - seja por uma falta de afinidade natural ou por reconhecimento mútuo com causas no passado, a escalada do mal que alimenta as antipatias entre os Espíritos somente pode ser contrabalançada pelo perdão das ofensas. Essa é a mais difícil lição a que os Espíritos libertos do mal em si próprios estão sujeitos: o de perdoarem os erros e as falhas daqueles que se apresentam como inimigos. 

      É possível imaginar que, até que tenham atingido estágio de discernimento, continuam a lutar entre si. No cadinho dos sentimentos levianos, tornam-se afins por interesses pessoais. Incapazes de perdoar, fustigam seus rivais. Colhem, por tempo indeterminado, decepções e sofrimentos, gozando de forma muito momentânea da felicidade fugaz que alimenta ainda mais os sentimentos do momento. Não há ponto de retorno aqui, até que o sofrimento resultante disso corroa todo o ânimo de praticar o mal e faça nascer na alma uma luz. O arrependimento precede ao perdão, porque a duras penas o Espírito passa a entender que ele não será feliz no velho modo de agir.  O mundo para o Espírito assim regenerado se torna um grande campo de regeneração. Aqui e ali, entretanto, ainda encontrará suas antipatias, das quais, agora redimido, tentará fugir. 

      Isso assim será até que, completamente refeito em sua estrutura psicológica, o Espírito se torne tão sólido moralmente que nada abale seu ânimo. Haverá então conquistado a verdadeira salvação

      Tal como os Espíritos, as sociedades também evoluem ao reconhecerem a origem do mal e ao procurarem rejeitá-lo sistematicamente. Mas esse é um assunto para um futuro post.

      Outras referências

      "O Evangelho segundo o Espíritismo", Capítulo X. 'Perdão as ofensas'.

      10 de julho de 2020

      Estudo de "O Livro dos Espíritos": flagelos destruidores (Cap. VI)


      "Essas subversões, porém, são frequentemente necessárias para que mais pronto se dê o advento de uma melhor ordem de coisas e para que se realize em alguns anos o que teria exigido muitos séculos". ([1], Resposta à Questão # 737)
      Flagelos destruidores são ocorrências naturais que provocam a extinção em massa de seres vivos, inclusive agrupamentos humanos. O que caracteriza os flagelos é a intensidade e a velocidade de propagação. A intensidade é medida em termos do total de mortes ou danos causados pelo flagelo. A velocidade é a taxa com que a destruição acontece.  

      O início de 2020 foi marcado pelo inusitado aparecimento de uma epidemia local na China que logo se tornou uma pandemia, afetando a maioria dos países. A incidência pandêmica de um vírus chamado "Covid-19", a se manifestar aparentemente como uma gripe comum, é considerada um flagelo, dada a sua velocidade e intensidade de propagação. Do contágio à morte, contam-se algumas semanas, com maior taxa de mortalidade na população de idosos e pessoas que apresentam problemas de saúde pré-existentes. 

      Uma geração inteira, que já nasceu conectada através de recursos da internet, foi surpreendida pela pandemia como uma novidade e uma gigantesca ameaça. Entretanto, como flagelo destruidor, a pandemia do Covid-19 é apenas uma das inúmeras pandemias ou epidemias de vastas proporções já vividas pela Humanidade [2]. Assim como surgem, desaparecem deixando atrás de si um rastro de morte e destruição. Para materialistas, essas ocorrências naturais são a prova das forças cegas que podem destruir a Humanidade inteira. Além do impacto econômico, sua maior influência é o pessimismo e a desolação mental que atingem principalmente aqueles que mais descreem na vida futura. O mundo se torna sombrio, e cada minuto confinado é momento de uma vida sem sentido.

      Considerações espíritas

      Para quem considera a vida desde a perspectiva da vida maior do Espírito, o momento da pandemia permite inúmeras reflexões em torno das questões 737 e 741 do Cap. VI, 3a Parte de "O Livro dos Espíritos". Da leitura atenta dessa parte destacamos algumas passagens:

      Ora, conforme temos dito, a vida do corpo bem pouca coisa é.

      Um século no vosso mundo não passa de um relâmpago na eternidade. Logo, nada são os sofrimentos de alguns dias ou de alguns meses, de que tanto vos queixais. 

      Os Espíritos, que preexistem e sobrevivem a tudo, formam o mundo real. Esses os filhos de Deus e o objeto de toda a sua solicitude. Os corpos são meros disfarces com que eles aparecem no mundo. [1, trechos da resposta à Questão #738a] 

      Quando a resposta afirma que "a vida do corpo bem pouca coisa é" devemos entender o contexto da pergunta. No caso, a vida humana é bem pouca coisa desde o ponto de vista daquilo que homem costuma pensar de si como encarnado, o que em uma afirmação anterior está representado por "o homem tudo refere ao seu corpo". É óbvio que a vida humana é relevante como oportunidade de aprimoramento do Espírito. Cessa essa importância, porém, quando o homem, orgulhoso, pensa que ela é a única coisa que existe. Como o objetivo último é esse aprimoramento, a vida pode chegar a um fim antecipado se sua continuação representar um estorvo tanto para o progresso da alma encarnada como para os grupos humanos (família, coletividade, etc) que são obrigados a suportá-la.

      "O anjo da morte às portas de Roma". (Jules-Élie Delaunay. Fonte: Wikipedia)

      Mas, não há como antecipar em que momento a continuação da existência humana representa um problema para o progresso da alma. Apenas a Providência Divina tem essa informação. Da mesma forma, nenhum de nós tem condição de sequer imaginar qual teria sido a sucessão de coisas ou fatos caso um flagelo destruidor como uma pandemia de longo curso não tivesse ocorrido. Não há como afirmar que a vida teria sido mais bela: no balanço geral dos ganhos, conta mais o avanço da alma humana em aspectos imortais que não existem para a mente imediatista ou demasiadamente ligada à matéria.

      Assim, segundo os Espíritos, que ditaram as respostas para A. Kardec, o objetivo maior dos flagelos destruidores é:

      ...fazê-los progredir mais depressa. Já não dissemos ser a destruição uma necessidade para a regeneração moral dos Espíritos, que, a cada nova existência, sobem um degrau na escala do aperfeiçoamento? [1, início da resposta à Questão #737]

      Esse progresso, entretanto, não é imediato. Ele se dá tanto do ponto de vista dos objetivos da alma como, possivelmente, do ponto de vista material. Conforme a resposta da Questão #739:

      Mas, o bem que deles resulta só as gerações vindouras o experimentam.
      Quantas gerações para a frente da época de uma pandemia como a do Covid-19 serão beneficiadas? A resposta ignoramos. Assim, flagelos destruidores - o que incluem as epidemias - podem ser vistos também como "resgates coletivos" que afetam o organismo da sociedade com alvos de aprimoramento futuro que permanecem ocultos desde a perspectiva da vida imediata. 

      Abnegação, inteligência, resignação e paciência

      A comparação com "doenças coletivas" também se estende a maneira como eles devem ser encarados no momento em que surgem:
      Os flagelos são provas que dão ao homem ocasião de exercitar a sua inteligência, de demonstrar sua paciência e resignação ante a vontade de Deus e que lhe oferecem ensejo de manifestar seus sentimentos de abnegação, de desinteresse e de amor ao próximo, se o não domina o egoísmo. [1, resposta à Questão 740]
      Essa resposta contém inúmeras lições. Quando os Espíritos afirmam que os flagelos são "ocasião para exercitar a inteligência" querem dizer que o homem deve lançar mão de todos os recursos possíveis para abrandar ou mitigar seus efeitos. Desde o desenvolvimento de vacinas até a adoção de medidas de higienização, planejamento e isolamento protegem, em tese, a coletividade não só da doença em curso, mas de outras futuras. O "exercício da inteligência" significa principalmente o uso sistemático do conhecimento científico que nada mais é do que fonte de progresso material

      Chama a atenção a parte final da resposta à Questão 741 (grifo nosso):
      Contudo, entre os males que afligem a Humanidade, alguns há de caráter geral, que estão nos decretos da Providência e dos quais cada indivíduo recebe, mais ou menos, o contragolpe. A esses nada pode o homem opor, a não ser sua submissão à vontade de Deus. Esses mesmos males, entretanto, ele muitas vezes os agrava pela sua negligência.
      Se o momento exige inteligência e resignação, a negligência desses aspectos pode levar ao agravamento dos males e de suas consequências. A resposta também contém a revelação do caráter de fatalidade ligado aos flagelos, pois estão entre os "decretos da Providência". Contra isso os Espíritos indicam o remédio: o exercício da paciência e da resignação, ao que se deve adicionar a abnegação e a ajuda aos que estão mais expostos às vicissitudes do momento. De fato, toda crise representa uma oportunidade para exercitar essas virtudes da alma que são patrimônios inalienáveis do futuro.

      Para futuras reflexões

      Como possíveis benefícios futuros do Covid-19, à luz do que vimos aqui, consideramos os seguintes pontos para futuras reflexões:

      • Os últimos 20 anos de desenvolvimento da Humanidade foram testemunhos de avanços consideráveis como o advento da internet. No seu início, a internet representou a esperança de uma globalização de costumes e culturas, o intercâmbio de ideias e o compartilhamento de soluções através do globo. Com o tempo, porém, os velhos costumes dominaram as perspectivas e a internet acabou refletindo mais ou menos a segregação própria de cada agrupamento humano. Não representa a pandemia uma oportunidade para novas formas de relacionamento (visando o desenvolvimento científico e cultural) entre os povos, aproveitando esses recursos de comunicação?
      • Ela não representa oportunidade de desenvolver soluções para outras doenças contagiosas, não só através de vacinas, mas pelo uso de medidas sanitárias eficientes e de condutas coletivas menos suscetíveis à transmissão de doenças?
      • Novas formas de trabalho, com aplicação mais racional de recursos, menos danosos ao meio-ambiente, não parecem emergir de um quadro pós-pandemia? 
      • Para a administração geral (pública e privada), não representa a pandemia a oportunidade de conduzir aos cargos administrativos aqueles que têm mais competência na condução das respostas que a crise exige?  
      A explicação para a presente crise, provocado por um flagelo que inibe temporariamente a atividade econômica e a interação social, está nos objetivos da vida futura do homem. Para quem tudo considerada desde a perspectiva da vida imediata, a impressão é de arrefecimento do ânimo e de perda de oportunidades. Porém, a vida humana obedece a um propósito de natureza superior que permanece oculto à maioria.  Desse objetivo a alma encarnada, quando muito, guarda vaga impressão nos recessos do seu inconsciente, na medida necessária para que ela consiga viver e aguardar. 

      Por isso, o exercício da abnegação e da paciência, pela conformação às medidas sanitárias necessárias para reduzir o alcance da doença tornam-se imperativos no momento. Em toda crise como essa, também lembramos o inesquecível "Mas quem perseverar até o fim, este será salvo" (Mateus, 24:13) como advertência do Evangelho e que transcende a todas as épocas da Humanidade. 

      Referências

      [1] A. Kardec, "O Livro dos Espírito". Ed FEB,  71 ed, 1991. 

      [2] Além da "gripe espanhola" e "peste negra", uma interessante pandemia foi a "peste Antonina", ocorrida entre os anos de 165 e 180. Tratou-se de uma epidemia de Varíola que se originou também na China, segundo relatos e que dizimou milhares de pessoas na Europa. Para saber mais: "A Peste Antonina - Wikipedia" (acesso em julho de 2020).

      1 de junho de 2020

      A que se deve muito do excesso de desgraças dos últimos tempos (*)

      Uma parte de "Cristo carregando a cruz" de
      Hieronymus Bosch (1490)


























       
      Ai do mundo por causa dos escândalos; pois é necessário que venham escândalos; mas, ai do homem por quem o escândalo venha. (Mateus 18:6)

      Não nos dirigimos nem aos curiosos nem aos apreciadores de escândalo, mas àqueles que querem seriamente instruir-se. (A. Kardec "O Céu e o Inferno", Capítulo 1, "A passagem").

      É difícil hoje em dia não se comover com os dramas, desgraças e análises pessimistas destilados todos os dias por inúmeros meios de informação. Em parte esses resumos diários, excessivamente ruidosos e carregados de infortúnios alheios, revelam um excesso de sensacionalismo, potencializado pelo alcance e rapidez das mídias sociais, dos meios de comunicação digital em um mundo cada vez mais conectado. Nunca foi tão fácil e rápido noticiar. Um verdadeiro exército de jornalistas improvisados bombardeiam todos os dias as pessoas com informações, na sua maioria sem qualquer utilidade prática, mas que servem para definir a pauta do ânimo de cada dia.

      Grupos com interesses altamente específicos, indivíduos desqualificados e propagandistas sem escrúpulos têm seus multiplicadores em uma guerra silenciosa, cujo objetivo é captar o máximo interesse do público e atingir grupos e inimigos diversos. O analfabetismo filosófico e a incapacidade de perceber mesmo as mais grosseiras fraudes argumentativas acabam ressoando entre multidões imensas, sedentas de informação, mas cativas de sua própria falta de formação e equilíbrio. 

      Em comum os informantes seguem o mais puro materialismo, a ausência completa de discernimento sobre a vida futura. A noção de justiça que transmitem é quase sempre a do aqui agora, a dos ânimos embrutecidos na revolta pelo não cumprimento aparente de uma justiça idealizada, que muda conforme os interesses.  De fato, não faz sentido, entre os que nada creem, exigir justiça: se nada existe para além dessa vida, por que se preocupar? A justiça por eles cobrada é uma convenção transitória em um universo brutal em que os desejos, aspirações e mais nobres intenções humanas desfazem-se lentamente como espuma para cada criatura que morre…  

      Diante desse quadro em que o nada é propaganda velada de todos os dias, faz bastante sentido ver se espalharem os crimes, as mais torpes transgressões, as mais incríveis iniquidades e o aumento do suicídio entre os que não conseguem suportar.  É como se estivesse em curso uma gigantesca catástrofe anunciada, em que cada um pensa poder sobreviver, faz o que pode para garantir os seus  direitos, e passa por cima de qualquer um, no salve-se quem puder de cada dia.

      Afogados nesse verdadeiro apocalipse de desgraças, nunca foi tão necessário o discernimento - separar o joio da verdade do trigo da ilusão - e o equilíbrio moral - não se deixar abater pela revolta, que cria o estado de desânimo e pode trazer para nossas vidas problemas que são dos outros. Ainda mais porque, muitos dos que clamam por justiça, porque querem ser vistos, pregam o ódio como método. Ora, é bastante óbvio que nada de bom pode resultar de meios que pregam o ódio de forma sistemática, ou que acreditam poder gerar o bem fazendo o mal.

      A antítese da combinação mórbida do ódio com o nada é o amor e a certeza da vida futura. Contra essas duas crenças, por que se impõe a dúvida? Porque a certeza da eficácia dessas duas verdades é também um bem que o indivíduo deve conquistar todos os dias, se a ele falta os recursos internos. Esses recursos são semeados ao longo de sucessivas vidas, razão porque eles se encontram tão desigualmente distribuídos entre as pessoas. Não se trata, portanto, de uma injustiça desde o nascimento. Aqui vemos um sujeito que em nada acredita, que nutre rancor contra seu semelhante ou que segue amargurado, sem ânimo para a vida. Mas eis que, ao seu lado, alguém o suporta bravamente, escorando-se na fé ou em pequenos atos de gratidão, muitas vezes desapercebidos, mas que pouco a pouco surtem efeito.  Esse quadro multiplica-se aos milhões em todas as partes do globo.

      Essa é também a principal razão porque a Humanidade, não obstante todas as conquistas tecnológicas, continua em sua maioria crente em Deus através das inúmeras religiões, que têm suas próprias formas de conceber a vida futura. O que seria do mundo se não fosse a fé que conforta e permite viver? Independente de como concebem Deus e o futuro no além túmulo, essa é a principal razão porque todas as religiões, em certo sentido profundo, estão certas ao mesmo tempo. Investem  a seu modo na certeza da vida maior, adaptadas conforme a formação e o grau de discernimento de cada pessoa. Não se deve imputar às religiões (ou seja, às doutrinas que professam) a culpa pelos males praticados em seu nome: de fato, tratam-se de aberrações que surgem quando a incúria e a iniquidade reinterpretam do seu jeito as lições da vida superior. As distorções observadas se explicam porque alguns religiosos apenas se apegam intelectualmente a uma verdade maior e continuam a viver do mesmo jeito. Ainda assim, quem poderia garantir que não seriam muito piores se não fosse a parca luz que pregam? 

      Em resumo, temos como certo que é "necessário o escândalo", pois ele faz parte do processo de aprendizado a que cada pessoa está sujeito neste mundo de testes morais incessantes. Mas, entre ser afetado pela onda do mal e viver com serenidade, podemos escolher semear a certeza de que o amor e a vida futura são patrimônios inalienáveis da alma dos quais somos todos herdeiros no futuro. O quão distante esse futuro se encontra, depende inteiramente de nós. 

      9 de maio de 2020

      A Evolução de Deus

      Deus-pai. Por: Cima da Conegliano (~1459).

      Toda religião é verdadeira de uma forma ou de outra. 
      Cada religião é verdadeira quando entendida metaforicamente. 
      Mas, quando ela se prende a suas próprias metáforas, 
      que são interpretadas como fatos, então temos problemas.  J. Campbell
      A enorme dificuldade de alguns cientistas contemporâneos em aceitar a ideia de Deus está na raiz dos embates presentes entre ciência e religião. A primeira como mensageira avançada de uma revelação perene e a segunda como tendo iniciado uma revelação não menos importante para a vida humana, mas que parece ter sido sufocada pela ciência. Fundamentalmente, a religião aqui deve ser tomada em seu sentido amplo e original, como os muitos caminhos que levam a uma união ou "religação" do humano com o Divino entendido como causa do sentimento de transcendência universal encontrado em qualquer povo ou cultura. 

      Inicialmente isolados por distâncias então enormes, povos antigos desenvolveram noções diferentes para o Divino. O que há em comum entre essas visões é justamente essa ânsia pela transcendência, o reconhecimento de um poder muito superior ao homem. Esse poder era visto nos inúmeros fenômenos naturais que os primitivos não entendiam a causa, e que, muitas vezes, modificavam de forma dramática a vida humana. O mediunismo como uma via, ainda que muito limitada, de contato dos humanos com os Espíritos foi uma das forças que talharam muitas religiões antigas. A morte como o destino último exercia seu fascínio. Em torno do fim da vida se levantaram inúmeras concepções de alguma forma ligadas à noção de Deus que controlaria a morte diretamente. Os antigos criaram diversos sistemas de crença que se distinguem enormemente em variedade de deuses no politeísmo até a síntese monoteísta, quase tão antiga quanto o primeiro.

      Assim como se pode falar da 'progresso das concepções científicas' ao longo dos séculos recentes, é possível registrar evolução semelhante nas inúmeras ideias de Deus nas religiões, embora a um ritmo muito menor do que no caso da ciência. É como se à Humanidade tivesse sido negada uma compreensão mais dilatada do Divino, ao passo que, com as noções científicas, tendo as causas os fenômenos naturais facilmente acessíveis, nosso progresso foi muito maior. Há várias maneiras de se entender esse estado de coisa: apenas uma delas é pela negação da ideia de Deus porque, ainda que tenhamos feito muitos progressos em ciência, nenhum ser humano poderá garantir que esse progresso acabou.

      Dessa forma, continuam a existir questões não resolvidas no Universo que invocam continuamente a ideia de Deus como solução. Como o Universo é muito grande, de certa forma nosso progresso foi muito pequeno, se comparado ao que ainda devemos progredir. Em relação à compreensão de Deus ainda estamos no mesmo ponto em que estavam os povos antigos. Definitivamente, a ideia de Deus é um dos temas sobre os quais ainda será necessário fazer progressos, inclusive científicos.

      O Deus que morreu

      Como são inúmeras as imagens de Deus dentre milhares de escolas religiosas que existem, essa variedade tem sido uma das principais bases para o ateísmo negar Deus: não é possível que todas essas noções sejam verdadeiras ao mesmo tempo. Ou, de outra forma, qual delas é a verdadeira?

      Certamente, o maior de todos os erros religiosos foi ter tornado Deus à imagem e semelhança do homem. Nas diversas igrejas que surgiram depois do movimento cristão primitivo, a ideia pode ter sido sugerida a partir de antigo texto bíblico, como 1 Genesis: 26, 
      Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança.
      Depois, quando todo o texto se tornou suspeito e muito mais ameno a uma interpretação meramente figurativa, a concepção foi alterada para garantir que Deus teria em comum com os homens características como 'capacidade de raciocínio', 'livre-arbítrio', 'emoções' etc, ou seja, atributos todos derivados de uma personificação de Deus. Ora, de forma alguma os antigos negaram aos seus deuses (não bíblicos) tais capacidades. Assim, essas concepções fazem eco a esse passado distante: é uma versão pouco aprimorada dos deuses do politeísmo, onde, para ser aceito e compreendido, Deus foi concebido à imagem e semelhança do homem. 

      Essa ideia de Deus herdada dos antigos cria um problema enorme para as religiões porque ela implica em rastros ou evidências de sua existência plenamente acessíveis à ciência. Como tais evidências nunca foram encontradas, essa noção de Deus tem sido severamente abalada pela evolução do conhecimento científico. Em qualquer parte para onde se olhe não se vê prova alguma da existência de um Deus antropomórfico. Pior ainda, a noção de ordem e hierarquia da Natureza implica em fortes restrições para as arbitrariedades dos supostos desejos Divinos. Assim, esse Deus feito à imagem e semelhança do homem morreu para sempre. É contra ele que se levantaram centenas de vozes da ciência e da razão como, por exemplo, uma mais extremas, a de F. Nietzsche (1844 - 1900):
      Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? [1]
      Tal como a ideia de Terra plana, a noção antropomórfica de Deus foi aquela ajustada à realidade de uma época que o tempo implacável levou para sempre. O apego a noções antropomórficas de Deus em diversas religiões é o maior empecilho ao diálogo entre a ciência e a religião, bem como uma das principais forças propulsoras do ateísmo moderno. A incapacidade de seus crentes atuais em entenderem a metáfora oculta na imagem, levará, no mínimo, à reinterpretação dessas religiões.

      O infinito como ponte entre ciência e religião (não literalmente falando)
      Se há um Deus, Ele é infinitamente incompreensível, pois, não tendo partes ou limites, Ele não tem relação conosco. Nós, portanto, somos incapazes de conhecer o que Ele é ou se Ele é. — Blaise Pascal (Pensees, 233)
      A ideia de uma ligação entre Deus e a noção de infinito não é recente. De fato, os principais teólogos da Igreja defenderam a ideia de infinitude ligado à noção de Deus. Em primeiro lugar porque limitar Deus seria torná-lo parte de sua criação; não podendo haver limites a Deus, ele é concebido como infinito. Algumas passagens do texto bíblico  foram interpretadas como a implicar na noção de infinitude de Deus:
      Mas, na verdade, habitaria Deus na terra? Eis que os céus, e até o céu dos céus, não te poderiam conter, quanto menos esta casa que eu tenho edificado1 Reis 8:27 
      Grande é o nosso Senhor, e de grande poder; o seu entendimento é infinito. Salmos 147:5
      Poderá alguém esconder-se sem que eu o veja?, pergunta o Senhor. "Não sou eu aquele que enche os céus e a terra? pergunta o Senhor.  — Jeremias 23:24
      Entretanto, quando a maioria passa os olhos nessas passagens, dificilmente não as considera como meras figuras de linguagem que contrastam demais com outras em que o Deus do autor bíblico se contradiz. É possível questionar se esses autores tiveram algum dia uma ideia comum sobre Deus. A explicação mais óbvia é que a Bíblia, vendida presentemente como um livro único, na verdade, é um amontado de textos de autores diferentes que não tinham a mesma ideia de Deus.

      De qualquer forma, é possível ler em S. Tomás de Aquino [2], a noção de 'infinitude de Deus' em várias partes de sua obra monumental:
      E como o ser divino não é recebido em nenhum outro, mas é o seu próprio ser subsistente, como já demonstramos, é manifesto que Deus é infinito e perfeito. (Questão 7, Artigo 1, "Da infinidade de Deus", [2])
      Por isso mesmo que o ser de Deus é por si subsistente e não recebido por nenhum sujeito — como infinito que é — é que se distingue de todos os demais, e todos dele diferem; assim como, se a brancura por si subsistente existisse, o fato mesmo de ela não existir em outro ser a diferenciaria de qualquer brancura existente num sujeito. (Questão 7, Artigo 1, "Da infinidade de Deus", [2])
      Entretanto, a infinitude de Deus implicaria em um poder tão grande que seria possível a ele derrogar suas leis e atuar arbitrariamente no mundo dos homens, o que resultou em uma explicação conveniente para os chamados milagres. É óbvio que a resposta parece simples para inúmeros crentes, mas os princípios e as descobertas da ciência estão sempre a contradizer sumariamente qualquer explicação miraculosa. Ficaria assim aparentemente explicado a ordem do cosmo medieval, bem como a de inúmeras passagens de textos do Novo e Velho Testamentos aparentemente incompreensíveis. Entretanto, é errôneo julgar que S. Tomas acreditava que Deus tudo podia. Há limites para a ação divina mesmo para Ele:
      Deus, pela perfeição do seu poder, pode tudo, mas lhe escapa à po­tência o que não tem natureza de possível. Assim também, se atendermos à imutabilidade do seu poder, Deus pode tudo o que pôde; porém, certas coisas que, antes quando eram factíveis, tinham a natureza de possível, já não a têm quando feitas. E, então dizemos que não as pode, por não poderem elas ser feitas. ("Se Deus pode tornar o passado inexistente", Art. 4, resposta à 2a questão, [2])
      Assim, Deus não pode mudar o passado, o que também era conveniente para a doutrina da predestinação. Desnecessário dizer que, sendo a concepção dominante de Deus trinitarista, a mesma infinitude teve que ser estendida para todas as pessoas da Trindade. 

      Hoje, distantes das controvérsias do princípio e iluminados pelas descobertas da ciência, podemos questionar porque Deus, sendo infinito, incriado e estando em todos os lugares etc, teve que se tornar homem para continuar a ser Deus. O automatismo observada nos fenômenos da Natureza, a existência de aleatoriedades, de limites ao que pode ser observado, a aparente infinitude de hierarquias de escala (microuniversos dentro de universos), a vastidão do espaço e do tempo etc, são questões relevantes para uma nova noção de Deus que seja incorporada à imagem científica do Universo. 

      Mas Deus sempre permanece

      Livres da ideia de um Deus humanizado, muitos podem imaginar que Deus foi completamente eliminado pela ciência. Entretanto, isso é um erro porque nunca foi objetivo da ciência buscar Deus, portanto, ela nunca teria podido negá-lo. Algumas noções da Divindade, como aquelas que o supõem como intervindo miraculosamente na vida dos homens, são de difícil ou impossível aceitação depois das descobertas da ciência. Mas é uma extrapolação não garantida afirmar a inexistência de Deus com base nas descobertas presentes da Ciência.

       A concepção espírita: Deus como causa primária.

      1. O que é Deus?
      "Deus é a inteligênica suprema, causa primária de todas as coisas." [3]
       
      Podemos imaginar algo gigantesco, incontável, inacessível por qualquer critério, instrumento ou meio possível, o oceano onde a verdade está inteiramente guardada, a causa que deu início a tudo? Um ser que, por estar presente em tudo, é por isso mesmo inacessível diretamente aos seres por ele criados em escala infinitamente inferior. Um ser desse tipo jamais se conformará a qualquer imagem que os homens possam fazer dele. Assim, Deus, como causa primordial de tudo não é humano, não tem sexo, não se apresenta sob qualquer forma, não tem qualquer atributo, nem desejos, percepções, sensações, intenções ou ideias dos homens, ainda que esses últimos, por diversos atavios e por fixação no momento de culto, tenham criado inúmeras representações Dele.

      Mas, o mais importante que os Espíritos revelaram sobre a questão de Deus, não tem a ver com definições, descrições ou comportamentos Dele, mas com aquilo que nos é dado saber sobre Ele:
      "Deus existe; disso não podeis duvidar e é o essencial. Crede-me, não vades além. Não vos percais num labirinto donde não lograríeis sair. Isso não vos tornaria melhores, antes um pouco mais orgulhosos, pois que acreditaríeis saber, quando na realidade nada saberíeis. Deixai, conseguintemente, de lado todos esses sistemas; tendes bastantes coisas que vos tocam mais de perto, a começar por vós mesmos. Estudai as vossas próprias imperfeições, a fim de vos libertardes delas, o que será mais útil do que pretenderdes penetrar no que é impenetrável" [4]
      Deus é o incognoscível, mas como consequência de nossas limitações. Por sua infinitude e grandeza, criou Ele o Universo de tal forma que o homem, nada mais do que uma partícula nele, somente pode comprendê-lo como a causa final de tudo o que foi descoberto e do que está para ser revelado.  Entretanto, a restrição severa feita pelos Espíritos sobre o que podemos hoje saber sobre Deus é acompanhado por uma promessa:
      11. Será dado um dia ao homem compreender o mistério da Divindade? 
      “Quando não mais tiver o espírito obscurecido pela matéria e, pela sua perfeição, se houver aproximado de Deus, ele o verá e compreenderá.” [3]
      Como consequência de seus ensinos, as religiões criaram diversos sistemas de fé com base em concepções que fizeram da Divindade. Pelos Espíritos, entretanto, aprendemos que somente podemos fazer uma ideia limitada de Deus, porque a nós falta um sentido especial (ver [3], Questão 10). Os Espíritos recomendam o exame sistemático de nossas falhas e sua correção como a mais importante tarefa, independente da ideia limitada que temos de Deus. Conhecida essa limitação, que está na natureza da condição da existência humana, não é mais possível sustentar pela religião a separação sistemática daqueles que não dividem conosco as mesmas ideias de Deus. Hoje, como antes, sabemos que estão todos errados, e que a nós cabe apenas conhecer Sua existência como causa muita acima de nossa capacidade de compreensão. No que essa causa puder nos tornar melhores amanhã do que hoje somos, nisso é o que devemos nos concentrar.

      Um dia, entretanto, conheceremos a Verdade. Por hora, depende apenas de nós o quão rápido avançaremos na direção dela. 

      Referências

      [1] F. Nietzsche. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Sobre versões dessa obra ver: https://pt.wikipedia.org/wiki/Assim_Falou_Zaratustra (acesso em maio de 2020).
      [2] Permanência. Suma Teológica. https://permanencia.org.br/drupal/node/8 (Acessado em maio de 2020).
      [3] A. Kardec. "O Livro dos Espíritos". Parte Primeira, "Das causas primárias", Capítulo , "Deus e o Infinito". Questão 1. Versão ipeak.com.br (acesso em maio de 2020)
      [4] Ver ref. [3], resposta à Questão 14.