8 de setembro de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - IX

Concepção artística da Terra em "fase nova" vista desde a lua. De "Popular Science Monthly", Volume III, maio-outubro de 1873. [1]

Continuação do post anterior: Comentários sobre "Uranografia geral" de "A gênese" de A. Kardec - VIII.

Obra completa contendo todos os comentários e a conclusão.

Comentários sobre "A vida universal".

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O autor se propõe a correlacionar o assunto tratado em "Uranografia Geral" com a imortalidade da alma. Tendo afirmado anteriormente a sucessão de mundos - que voltam a se formar a partir dos restos dos mundos anteriores - ele ressalta a ligação entre essa sucessão e a imortalidade da alma como consequência da perfeição Divina.

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Considera isenta de dúvida a questão da existência de seres em outros mundos - pois "as obras de Deus foram criadas para o pensamento e a inteligência". Hoje podemos ler essa declaração como uma formulação do chamado "Princípio Antrópico" [2], ou seja, que o Universo existe dessa forma para que a vida e a consciência nele possam existir e se desenvolver. 

É relevante agora considerar se, além disso, esses seres estão ligados uns aos outros, tendo em vista que os mundos onde habitam estão certamente ligados de alguma forma. Há vínculos de natureza gravitacional entre os mundos, então, haveria influências equivalentes entre os seres?

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Tanto hoje como na época de A Gênese esses mundos distantes são quase sempre representados como "simples massas de matéria inerte e sem vida".  Como exemplo, consultemos o resultado de uma busca do Pinterest para "Chesley Bonestell", que foi um dos grandes ilustradores da "arte espacial" no Século XX. Quase todas as imagens (Fig. 1) representam mundos sem atmosfera, com superfícies secas e aparentemente estéreis como a lua.

Fig. 1 Resultado da busca de imagens associadas a "Chesley Bonestell" no Pinterest um dos grandes ilustradores em arte espacial no Século XX. Mundos alienígenas são quase sempre representados como corpos estéreis e sem vida.

Sobre isso, o autor qualifica:

Custa-lhe a pensar que não haja, nessas regiões distantes, magnífcos crepúsculos e noites esplendorosas, sóis fecundos e dias transbordantes de luz, vales e montanhas, onde as produções múltiplas da natureza desenvolvam toda a sua luxuriante pompa. 
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O autor toca em uma questão que receberia grande atenção do público apenas 80 anos mais tarde da publicação de A Gênese:

Uma mesma família humana foi criada na universalidade dos mundos e os laços de uma fraternidade que ainda não sabeis apreciar foram postos a esses mundos. Se os astros que se harmonizam em seus vastos sistemas são habitados por inteligências, não o são por seres desconhecidos uns dos outros, mas, ao contrário, por seres que trazem marcado na fronte o mesmo destino, que se hão de encontrar  temporariamente segundo suas funções de vida e suas mútuas simpatias. É a grande família dos espíritos que povoam as terras celestes; é a grande irradiação do espírito divino que abrange a extensão dos céus e que permanece como tipo primitivo e final da perfeição espiritual. (destaque do autor)

Trata-se da questão da existência de seres extraterrestres ou alienígenas

O que seriam eles? O autor se adianta muito para sua época e declara que eles são seres harmonizados entre si - dentro do concerto grandioso da vida universal - formando uma "grande família de espíritos".  Considera ainda que eles se encontrarão conforme suas "funções de vida e múltiplas simpatias". Tais afirmações eram completamente estranhas às concepções antigas e religiosas, embora hoje elas façam muito mais sentido. 

De fato, para quem considera seriamente a sobrevivência e a existência de outros seres vivos nos diversos mundos do Universo, são as mesmas as leis que regulam a encarnação. Portanto, a natureza dos Espíritos deve ser a mesma (dai seus laços de fraternidade). Isso é assim ainda que seus corpos, estágios evolutivos e aparências sejam muito diferentes, posto que obedecem a diferentes condições de habitabilidade e se encontram em diferentes graus de progresso.

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Faz-se aqui uma referência às doutrinas religiosas que negavam (e ainda o fazem) a possibilidade de vida extraterrestre, considerando que o homem na Terra é o único destinado à salvação. Por isso "negaram à imortalidade as vastas regiões do éter", ou seja, negam às almas salvas o acesso ao resto do Universo,  já que o destino de parte delas é um céu que nada tem a ver com esse mesmo Universo. 

Quanto ao resto, vão para o inferno que também nenhuma relação guarda com as magnificências relevadas pela Astronomia.

Comentários sobre "Diversidade dos mundos".

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Parágrafo que sumariza um retrospecto. Tendo se dedicado a realizar um "excursão celeste", onde os inúmeros detalhes de recentes descobertas da Astronomia puderam assombrar o espírito antigo e revelar um destino completamente novo à alma, resta a obrigação de uma conclusão.

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O autor se propõe a fazer uma interpretação "moral" da grandiosidade do Universo e da pequenez da vida humana diante dele. Se somos minúsculos diante desse Universo, o que significaria isso além das diferenças de escala? Não é que nada somos desde esse ponto de vista moral, mas que ainda temos muito a progredir.

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Carentes de ilustrações ou provas tangíveis da realidade em outros mundos, quase sempre projetamos neles o que temos aqui na Terra. Por isso, o autor faz uso de uma comparação:

Lançai por um instante o olhar sobre uma região qualquer do vosso globo e sobre uma das produções da vossa natureza. não reconhecereis aí o cunho de uma variedade infinita e a prova de uma atividade sem par? não vedes na asa de um passarinho das canárias, na pétala de um botão de rosa entreaberto a prestigiosa fecundidade dessa bela natureza?

Portanto, da mesma forma como se vê variedade assombrosa de arranjos e estruturas na vida na superfície de um planeta que traz em si condições uniformes de habitabilidade, devemos esperar enormes variedades de formas de vida nos diversos mundos habitados para os quais essas condições variam de múltiplas formas. Segundo o autor, a "natureza onipotente age conforme os lugares, os tempos e as circunstâncias; ela é una em sua harmonia geral, mas múltipla em suas produções". 

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Desta forma, o autor finaliza seu estudo com uma importante exortação:

Não vejais, pois, em torno de cada um dos sóis do espaço, apenas sistemas planetários semelhantes ao vosso sistema planetário; não vejais, nesses planetas desconhecidos, apenas os três reinos que se estadeiam ao vosso derredor. Pensai, ao contrário, que, assim como nenhum rosto de homem se assemelha a outro rosto em todo o gênero humano, também uma portentosa diversidade, inimaginável, se acha espalhada pelas moradas eternas que vogam no seio dos espaços. (grifo nosso)

Outros reinos existem nesses mundos - a referência aos "três reinos" implica naqueles então conhecidos: mineral, vegetal e animal - reinos que podem inclusive estar completamente fora de nossa capacidade de percepção.

Por isso, não devemos concluir que as "milhões e milhões de terras que rolam pela amplidão sejam semelhantes" à Terra. Essas diferenças se mostram, de certa forma, na maneira como exoplanetas recentemente descobertos se dispõem ao redor das estrelas. Há uma variedade imensa de dimensões, tipos de órbita, prováveis temperaturas e composições químicas. 

Tais descobertas recentes da astronomia aprofundaram ainda mais o fosso que existe entre as antigas concepções do mundo (centradas no homem como única criação inteligente de Deus) e uma nova concepção que torna o homem parte desse Universo imenso. 

Ele sempre viverá graças a alguns parcos recursos distribuídos em equilíbrio restrito ao redor de uma estrela sem importância, e a peregrinar por tempo indeterminado junto a seus irmãos de outros mundos, alguns inferiores e outros superiores, mundos que muito embelezam as inumeráveis estrelas a iluminar o firmamento de seu mundo insignificante.

No próximo post: nossa conclusão.

Referências

[1] https://archive.org/details/popularsciencemo03newy/

[2] Comitti, V. S. (2011). Princípio antrópico cosmológico. Revista Brasileira de Ensino de Física, 33. https://www.scielo.br/j/rbef/a/3K3fKStqHd5zmbdyW9H6QPD/?lang=pt