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2 de dezembro de 2015

Conceitos básicos de Física Quântica VII


A noção de "emaranhamento" ou "entrelaçamento" (entanglement) é estranha do ponto de vista usual ou "clássico" do mundo. De forma vaga, emaranhamento implica que existe uma ligação "causal" entre dois objetos, algo que se supõe responsável por uma ligação entre todas as coisas do Universo. Na física quântica, é possível preparar uma entidade ou objeto quântico em um estado e, depois, separar esse objeto no espaço por uma distância arbitrária, de forma que uma característica dele pode ser escolhida depois de sua criação propriamente dita. As características do objeto quântico existem em estado latente e se manifestam de forma aleatória apenas depois da realização de uma medida.

Antes de conhecer as implicações da física quântica, é oportuno considerar o que seria "emaranhar" algo do ponto de vista clássico. Há muitas discussões na rede sobre "entanglement", mas é difícil apreciar seu significado sem um mergulho profundo no formalismo quântico. Felizmente, acredito que isso pode ser feito com a ajuda de um exemplo simples que, embora artificial, tem a vantagem de captar os aspectos relevantes da questão.

O problema do emaranhamento nasceu no contexto do chamado "Paradoxo EPR". A sigla representa o nome de três físicos que o conceberam:  Albert Einstein, Boris Podolsky, e Nathan Rosen (1) que, em um importante artigo em 1935, tentaram deixar explícitas sua crença de que a física quântica seria ainda uma teoria inacabada da Natureza física. Para entender a razão disso, apresentamos o equivalente "não quântico" do emaranhamento.

Emaranhamento "não quântico"

Imaginamos uma linha de produção de objetos pareados (2), por exemplo, calçados ou luvas, onde cada elemento segue esteiras em direções opostas como mostra a Fig. 1. Por alguma bizarrice de um empregado, os pares produzidos no centro da linha são separados de forma aleatória quanto ao tipo, mas sempre de forma a se ter ordenadamente um par no final das linhas. Para poder despachar os pares, dois empregados nas pontas I e II  (ver Fig. 1) são obrigados a abrir a caixa onde cada elemento está colocado e anotar se um sapato esquerdo ou direito foi encontrado.
Fig. 1 Exemplo de "emaranhamento" não quântico. Um funcionário louco separa sapatos aleatoriamente, de forma a enviar a dois destinos, I e II, como pares completos. Dessa forma, ao se abri em I e descobrir que um sapato esquerdo foi encontrado, em II, um direito será encontrado com certeza. A correlação pode ser explicada por uma causa pre-existente, quando os pares de sapatos foram separados.
Ao se abrir uma caixa na linha I, o empregado sabe que, se um sapato esquerdo for encontrado, na linha II, distante vários quilômetros de I, um direito com certeza será revelado. Ainda que o conteúdo da caixa seja desconhecido antes de se abrir, o fato de o arranjo ter sido preparado em sua origem de forma pareada, garante uma grande correlação entre o que se encontra em cada uma das linhas I e II. Dessa forma, depois de algum tempo, o resultado da abertura das caixas fica registrado como mostrado a tabela da Fig. 2.
Fig. 2 Resultado da abertura das caixas para uma sequência de chegada de sapatos. "D - Direito" e "E - Esquerdo" representam os tipos encontrados. 

Versão quântica

Vejamos agora a versão "quântica". Ao invés de sapatos, pares de elétrons, produzidos de alguma forma e correlacionados quanticamente (ver Fig. 3), são disparados em direções contrárias por vários quilômetros e, em cada ponta, dispositivos medem propriedades escolhidas dessas partículas. Uma dessas propriedades é, por exemplo, o seu momento angular intrínseco, também chamado "spin". Essa propriedade é medida em um sistema de referência orientado no espaço. Pode-se, por exemplo, escolher medir a componente na direção "z". Por ser um número quântico, o spin somente admite dois valores, que chamamos aqui "+1" e "-1". O spin fornece um equivalente para a propriedade "direito" ou "esquerdo" no exemplo dos sapatos (Fig. 1).
Fig. 3 Esquema do arranjo para medida dos spins em pares de partículas (p. ex., elétrons). A fonte gera um par com componente total nula (S=0). Dessa forma, garante-se a correlação dos spins. Nas linhas I e II, mede-se o spin por meio de uma analisador "Stern-Gerlach" escolhendo-se um eixo de orientação preferencial (como mostrado na figura).

Como no exemplo não quântico, depois de algum tempo e conforme a sequência anotada de chegada dos elétrons, a tabela da Fig. 4 é produzida.

Fig. 4 Resultado das medidas sobre os pares de elétrons com medida da componente "z" dos elétrons.

As semelhanças entre o arranjo da Fig. 1 e da Fig. 3 são muitas De fato, cada par de elétrons medido apresenta uma componente pareada de forma aleatória, como no caso dos sapatos. Pode-se perfeitamente atribuir essa semelhança as mesmas causas:
  1. Que, assim como no caso dos pares de sapatos, os elétrons produzidos na fonte são criados com a propriedade "spin na direção z" já correlacionada;
  2. Que não existe "ação à distância", mas simplesmente manifestação de uma propriedade já existente;
  3. Que o fato do resultado da medida ser aleatório está ligado à falta de informação durante a formação dos pares.
Entretanto, no caso quântico, a escolha do tipo de medida a ser feita pode acontecer depois da criação dos pares! Em outras palavras, poderíamos ter escolhido o eixo "x", ao invés do "z" ou qualquer outra combinação de eixos e o resultado seria o mesmo. Conforme explicado em (2):
Segundo a mecânica quântica, quando os pares de coisas quânticas se separam, cada uma delas simplesmente não tem valor definido da propriedade S. Tudo o que a teoria diz é que há 50% de probabilidade que uma medida de S sobre a coisa dê +1, e 50% que dê -1. É durante a medida que o valor de S se torna definido, sendo em um certo sentido criado pela medida. (Note-se que tal processo guarda pouca relação com o conceito usual de `medida’.) Mas qual será o valor específico “criado” em uma determinada medida é, segundo a teoria, uma questão de puro acaso. Desse modo, fica claro que a teoria torna impossível a explicação do fenômeno em termos de propriedades inerentes a cada uma das coisas, e cujos valores tenham sido definidos na fonte. 
Mas, se não é possível associar um valor pre-definido antes de se realizar a medida, como é possível haver uma correlação entre medidas feitas a distâncias tão grandes ? Ou, segundo (2):
Se as coisas não tinham propriedade S alguma antes de serem sujeitas a mensurações dessa propriedade, por que fantástica coincidência sempre que a interação da coisa 1 com o aparelho 1 cria um determinado valor a interação da coisa 2 com o aparelho 2 cria o valor oposto, sendo que esses dois aparelhos podem estar situados a uma distância arbitrariamente grande um do outro (em galáxias diferentes, por exemplo) ? A única maneira de se evitar a atribuição desse fenômeno a uma coincidência de vastas proporções, é assumir que algum tipo de interação não-local desconhecida e estranha conecta os dois sub-sistemas de modo a que a criação (aleatória) de um determinado resultado em um deles cause a produção do resultado oposto no outro. 
As medidas realizadas demonstraram que as coisas se passam como prevê a física quântica, ou seja, os resultados são sempre correlacionados, e isso independe da escolha da propriedade feita nem do tipo de partícula (note que, em nosso exemplo, usamos elétrons, mas poderiam ser fótons, ou qualquer outra partícula quântica) e que a ação é "instantânea"; como se a decisão da escolha da propriedade (depois da criação do par) fosse comunicada instantaneamente de um braço a outro do experimento, sem respeito a conhecida lei da finitude da velocidade da luz. Eis o emaranhamento quântico manifestando-se.

Seria como se a propriedade "direita" ou "esquerda" de um dado sapato fosse criada quando uma caixa fosse aberta (e não quando foram separados pelo funcionário louco) e que isso é comunicado imediatamente ao seu outro par na ponta oposta. Poderíamos pensar em usar o resultado "+1" e "-1" para transmitir uma mensagem em código binário, mas isso não é permitido, pois o resultado da medida é aleatório. Em outras palavras o arranjo EPR não pode ser usado para transmitir informação, não obstante o fato de a informação sobre a propriedade escolhida (bem como sua medida) ser comunicada acima a velocidade da luz!

O processo de medida quântico

O arranjo da fábrica de sapatos corresponde exatamente ao que os autores do paper EPR tinham em mente para explicar o que acreditavam ser um problema na teoria. Para Einstein, em particular, era inconcebível admitir transmissão instantânea antes de se explicar melhor o processo de emaranhamento, o que implicava em assumir que a física quântica seria uma teoria incompleta.

As tentativas posteriores admitiram essa incompletude e assumiram a existência de variáveis ocultas, não levadas em conta durante o processo de criação de par e da medida. A segunda grande contribuição veio com John Stewart Bell (3) que derivou uma série de desigualdades que, se obedecidas, implicavam na incompletude da física quântica. Mas, eis que resultados experimentais violaram as desigualdades de Bell, de forma que o caminho de se assumir a existência de variáveis ocultas locais como responsáveis pelo fenômeno ficou bloqueado. Portanto, a teoria rejeita explicações clássicas e nada foi colocado em seu lugar para explicar ou tornar "intuitivo" o processo de emaranhamento.
Fig. 5 Uma caixa com dados é um sistema físico que apresenta indeterminismo extrínseco. O resultado do processo de se chacoalhar a caixa e ver um número na face do dado é previsível desde que as condições iniciais sejam conhecidas. 
É importante ressaltar a noção de indeterminismo intrínseco que caracteriza todos os sistemas quânticos. De novo, fazemos isso apelando para um equivalente "clássico". Imaginemos uma caixa fechada com dados em seu interior (Fig. 5). Ao se chacoalhar a caixa e abrir, um determinado número aparece na face superior de um dado (que pode estar entre "1" e "6"). Dizemos que o resultado aleatório se deve ao indeterminismo extrínseco do sistema. "Extrínseco" significa que nossa ignorância sobre todas as propriedades iniciais desse sistema impede uma previsão precisa do resultado, pois se conhecêssemos todas elas - velocidade inicial da mão, posição inicial do dado na caixa, tamanho da caixa, massa da caixa, massa do dado, coeficientes de atrito etc - seria possível prever com grande precisão qual face sairia antes de se abrir a caixa.

Já um sistema quântico equivalente tem indeterminismo intrínseco. A  física quântica simplesmente não prevê ou fornece nenhuma maneira de se conhecer outras variáveis interferentes (elas não existem), e o resultado da medida é inerentemente aleatório - uma propriedade intrínseca do sistema. Além disso, no caso "clássico", temos certeza que, assim que a caixa é deixada em repouso, o número resultante está lá - quer a caixa seja aberta ou não. No caso quântico, isso não acontece, enquanto a caixa não for aberta não é possível afirmar qual o resultado. Isso é uma consequência do indeterminismo intrínseco, mas também de uma possível interferência do processo de medida no sistema (4).

A questão do emaranhamento quântico está envolta em um mistério ao se querer julgar seu sentido pela visão do "senso comum". Que ponto de vista racionalista, rigoroso ou intuitivo acreditaria que características de objetos quânticos podem ser definidas depois que esses objetos são criados e também transmitidas à distâncias incomensuráveis, aparentemente à velocidade instantânea? Sim, a Natureza é o que é, e não aquilo que aprendemos com nossos sentidos comuns.

Referências e comentários

(1) A. Einstein, B. Podolsky, N. Rosen, N. (1935). Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality Be Considered Complete? (PDF). Physical Review 47 (10): 777–780. Este trabalho pode se acessado aqui.

(2) S. S. Chibeni (1992). Implicações filosóficas da microfísica. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Série 3, 2 (2): 141-164. Este trabalho pode ser acessado aqui.

(3) J. S. Bell (1964) On the Einstein Podolsky Rosen paradox. Physics 1:195-200. Este trabalho pode ser acessado aqui.

(4) ​Porém, não devemos associar a perturbação inexorável no sistema provocada pelo processo de medida como uma manifestação quântica. Mesmo sistemas clássicos apresentam perturbação de medida, só que há a perspectiva de se reduzir a perturbação de tal forma que o resultado convirja para o esperado classicamente - sem a presença do observador. A física quântica, porém, parece ter colocado um limite a essa redução de perturbação. Como os sistema quânticos são muito delicados - envolvem quantidades de ação mecânica muito pequenas (como medido pela chamada "constante de Planck") e troca de pacotes de energia, não é possível realizar uma medida sem que uma quantidade finita (portanto limitada a um mínimo) esteja envolvida.

23 de junho de 2014

O cérebro como a última fronteira da ciência: perspectivas recentes e a visão espírita (2)

Continuação do post contendo o artigo "Le cerveau comme ultime frontière de la science: perspectives récentes et vision spirite" que foi publicado na revista Revue Spirite, número 93 (Revue trimestrelle: 157 année - Revue Spirite - Journal d'Études Psychologique.). Agradeço ao Leandro Pimenta e ao Jérémie Philippe pela oportunidade dessa publicação. Para ver a primeira parte, clique aqui.

A fenomenologia psíquica que expande a variedade de experiências conscientes
Muito antes que as primeiras teorias modernas sobre a consciência fossem desenvolvidas, o espiritualismo no século XIX já considerava a existência de uma rica variedade de experiências de consciência que se manifestam como uma forma expandida das experiências ordinárias descritas anteriormente. Consideremos, por exemplo, a diferença entre a perspectiva de primeira e terceira pessoa na descrição dos estados mentais. É amplamente aceito que apenas eu tenho lucidez plena de minhas sensações, memórias e percepções (que é a própria definição de translucidez). Entretanto, médiuns de efeitos inteligentes descrevem sensações e cognições experimentadas por indivíduos já falecidos que puderam ser verificadas por seus parentes mais íntimos. Em um nível mais elementar, as experiências de ‘transmissão de pensamento’ (ou telepatia) permanecem como instâncias de acesso privilegiado ao campo mental, mesmo entre os vivos, desafiando o conceito de translucidez. Consideremos os casos de fobias em crianças como descritos por I. Stevenson (1990), que se manifestam como origem em memórias de vidas passadas. É bem aceito que muitas emoções (como o medo) têm como base determinadas crenças (memórias), mas o que dizer de fobias a partir de memórias inexplicáveis como a de vidas passadas? Nesse sentido, a variedade dos fenômenos psíquicos aumenta o conjunto das experiências ordinárias de duas formas: como uma expansão dos sentidos ordinários (novas sensações, percepções e emoções) e como uma não conservação da informação mental (se a consciência tem origem no cérebro, por conservação de informação, ela não pode manifestar conhecimentos localizados fora dela tanto no espaço como no tempo). Infelizmente, ainda não existe uma medida generalizada da informação que seja suficientemente aplicável a todas as experiências da consciência. Esse problema contribui, por exemplo, para o desprezo acadêmico dos relatos de sensações e percepções mediúnicas ou de memórias de vidas anteriores. Não se trata de um problema simples, porque o reconhecimento da não conservação da informação pressupõe o próprio reconhecimento da informação que, por sua vez, exige um paradigma completamente novo para a consciência.

Kardec, de forma pioneira, considerou muitos dos fenômenos de consciência expandida, conforme podemos ler no Cap. VIII de ‘O Livro dos Espíritos’ (Kardec, 1949). É possível, por exemplo, fazer um paralelo entre os fenômenos de visitas espíritas entre pessoas vivas, transmissão oculta de pensamento, letargia, catalepsia, sonambulismo com o artigo recente de M. Nahm (2011) “Reflections on the Context of Near-Death Experiences”, que trata do ambiente ou contexto de muitas experiências de quase-morte (NDE). Esses relatos envolvem experiências fora do corpo que foram reciprocamente confirmadas, sonhos e NDE compartilhados, relações entre lembranças de vidas passadas, NDE e mediunidade, lucidez terminal e visões de leito de morte. Toda essa rica fenomenologia atesta para a existência de um segundo corpo que sobrevive à morte do corpo material e que manifesta a independência de estados mentais da fisiologia do cérebro. Conforme comenta Nahm:
A hipótese de que uma NDE não depende do estado da organização orgânica no cérebro constitui um modelo explicativo capaz de lidar com o enigma sobre porque as experiências NDE podem ser tão notavelmente similares sob condições tão variadas da fisiologia do cérebro.
Surge a física quântica

A existência de estados mentais que parecem não depender do estado fisiológico do cérebro, bem como a possível extensão das propriedades desses estados através do aparecimento de novas percepções forma uma rica fenomenologia que contrasta fortemente com os modelos reducionistas da mente. Em pelo menos um fenômeno, o da transmissão de pensamento, estados mentais são vistos como transcendendo ao aparelho físico de onde, ordinariamente, parecem surgir. Mesmo fora das considerações espiritualistas, não parece ser possível associar a dinâmica determinista dos neurônios com as experiências de cognição, sensações e percepções que são vividas em primeira pessoa pelo ser pensante. Tudo isso fez com que se procurassem um novo arcabouço físico capaz de acomodar algumas das propriedades mais estranhas dos estados mentais. A física quântica, com suas bizarras manifestações no reino microscópio, é vista como um desses arcabouços potencialmente férteis em torno do qual uma nova ciência da mente poderia ser construída.

Fundamentalmente, a física quântica tem como objetivo explicar o comportamento da matéria, principalmente em seu nível microscópio. Não há nada nela que preveja a existência de um elemento mental independente (Chalmers, 1995). Os estados quânticos são estados da matéria e são descritos por um formalismo especial muito diferente do formalismo da física clássica que a antecede. Portanto, as interpretações não ortodoxas da física quântica, que são vistas como promissoras para o desenvolvimento de uma nova teoria da consciência, não abandonam o monismo necessariamente, embora o papel do observador – como responsável pelo ‘colapso da função de onda’ – seja privilegiado (Wigner, 1961). O mainstream acadêmico dentro das neurociências não aceita o papel da física quântica como fundamental na explicação da dinâmica do cérebro porque não se encontrou um mecanismo para sua atuação, embora algumas propostas já tenham sido feitas (Hameroff e Penrose, 1996). Isso não impede, porém, que sejam feitos paralelos entre interpretações da física quântica e sua aplicação a estados mentais. Esse paralelo se estabelece de duas formas: através de um possível papel privilegiado do observador no fenômeno do colapso da função de onda – que faria com que indivíduos conscientes determinassem a realidade até certo ponto (e, principalmente, os estados microscópicas das células nervosas, encontrando-se lugar para o livre-arbítrio intrínseco no cérebro) e no fenômeno da não localidade, que fornece subsídios para se entender o acesso privilegiado a estados mentais de terceiros como uma manifestação de emaranhamento quântico. É preciso que o leitor compreenda, porém, que essas propostas se dão em um nível heurístico – elas são propostas de interpretação – não se constituindo teoria geral para os estados de consciência em termos do formalismo da física quântica. Essas são propostas que permitem que se discuta academicamente a ‘fenomenologia das anomalias mentais’ ou outros fenômenos pouco aceitos, diante de uma teoria dominante para a qual nada disso existe. Desprovido de exageros, esse talvez, seja a principal vantagem do uso heurístico da física quântica na abordagem dos problemas da consciência.

Discussão final

Não obstante toda a sofisticação dos métodos modernos de exame neurológico e teorias matemáticas em inteligência artificial, o problema da consciência permanece não resolvido. Esse problema se agiganta quando consideramos as múltiplas variedades de experiências mentais anômalas que são conhecidas desde os primeiros dias do Espiritismo. Heurísticas de interpretação de fenômenos mentais que se baseiam nos fundamentos da física quântica abrem perspectivas acadêmicas – embora com pouco apoio formal – na consideração justa de fenômenos mentais anômalos. A existência da fenomenologia psíquica coloca severos limites às teorias reducionistas da mente que têm na complexidade, não linearidade e realimentação das células neurais os principais fundamentos dessa abordagem reducionista. O reducionismo fisicalista, da forma como é concebido hoje, não é completo o suficiente para abarcar todos os fenômenos mentais existentes. No nosso ponto de vista, o maior problema para o desenvolvimento de uma correta ciência da mente a partir de tais modelos reducionistas está na inexistência de uma definição suficientemente abrangente para a informação, de como ela pode ser gerada e armazenada. De um ponto de vista puramente acadêmico, temos certeza de que, entendido o cérebro como um sistema fechado, será possível demonstrar a não conservação de informação em muitos fenômenos mentais relevantes, indicando que a consciência não se encontra limitada ao cérebro, que funciona como órgão transmissivo da informação mental e das diversas manifestações conscientes.

Referencias

Chalmers, D. J. (1995). The conscious mind, in search of a theory of conscious experience. Dep. of Philosophy, Univ. of California.

Haykin, S. (1994), Neural Networks, a comprehensive foundation. Prentice-Hall, Inc.

Hopfield, J. J. (1982). Neural networks and physical systems with emergent collective computational abilities. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA. 79, p. 2554.

Hameroff, S. e Penrose, R. (1996).  Conscious Events as Orchestrated Space-Time Selections. Journal of Consciousness Studies 3(1) , p.36.

Hopfield, J. J. e Tank, T. W. (1986). Computing with neural circuits: a model. Science, 233, p. 625.
James, W. (n.d.), Human Immortality. Texto digital disponível em: http://godconsciousness.com/humanimmortality.php (acesso em 2013).

Kardec, A. (1949), O Livro dos Espíritos, Ed. Federação Espírita Brasileira.

Kardec, A. (1986). A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Gênese orgânica, o homem corporal, Parágrafo 30. Trad. Victor Tollendal Pacheco. São Paulo: Ed. NG Promoções editoriais, 

Maslin, K. T. (2001), An introduction to the philosophy of mind, Blackwell publishers Inc.  

McCulloch, W. S. e Pitts, W. (1943). A logical calculus of the ideas immanent in nervous activity. Bulletin of Mathematical Biophysics. 5, p. 115.

Nahm, M. (2011), Reflections on the Context of Near-Death Experiences, Journal of Scientific Exploration, 25(3), pp. 453.

Rosenblatt, F. (1958). The perceptron: a probabilistic model for information storage and organization in the brain. Psychological review, 65, p. 386.

Searle, J. (1989), Mind, Brains and Science: Reith Lectures, Harmondsworth: Penguin.

Stevenson, I (1990), Phobias in Children who claim to remember previous lives, Journal of Scientific Exploration, 4(2), p. 243.

Wigner, E.P. 1961. Remarks on the mind–body question. In (I.J. Good, ed.) The Scientist Speculates. New York: Basic Books.

25 de abril de 2014

O cérebro como a última fronteira da ciência: perspectivas recentes e a visão espírita (1)

Tivemos a satisfação de ter publicado o artigo "Le cerveau comme ultime frontière de la science: perspectives récentes et vision spirite" na revista Revue Spirite, número 93 (1). Agradeço ao Leandro Pimenta e ao Jérémie Philippe pela oportunidade dessa publicação. Com a devida autorização da revista, numa série de dois posts que se inicia com este, apresentaremos o texto integral em português desse artigo. ATENÇÃO: as referências do artigo serão apresentadas no final post final.

Conteúdo do artigo
  • Introdução 
  • As diversas abordagens da mente que não consideram a fenomenologia psíquica 
  • A fenomenologia psíquica que expande a variedade de experiências conscientes 
  • Surge a física quântica 
  • Discussão Final 
  • Referências.
O Espiritismo e o materialismo são como dois viajantes que caminham juntos, partindo do mesmo ponto; chegados a certa distância, um diz: “Não posso ir mais longe”; o outro continua sua rota e descobre um mundo novo. Por que, pois, o primeiro diz que o segundo é louco, pois este, entrevendo novos horizontes, quer franquear o limite onde o outro acha conveniente se deter? (A. Kardec)
Introdução

Desde seu aparecimento com Allan Kardec, o Espiritismo expandiu consideravelmente nossa compreensão a respeito de uma multiplicidade de fenômenos naturais e ocorrências anômalas, antes consideradas como pertencente ao reino do maravilhoso e do sobrenatural. Alguns desses fenômenos foram, em parte, considerados recentemente na parapsicologia, mas são sistematicamente desprezados pelo status quo acadêmico, que está exclusivamente voltado para o desenvolvimento de seus próprios paradigmas. Diante da proposta espírita, que tem na imortalidade e reencarnação suas maiores bandeiras, como podemos compreender as pesquisas recentes no campo da consciência e da mente? Que contribuições se pode esperar do Espiritismo para as futuras teorias da mente? A física quântica representa uma nova abordagem em direção a vias não materialistas de se compreender a mente? Este texto tem como objetivo dar subsídios ao leitor na tentativa de resposta a algumas dessas questões. Embora não tenhamos hoje uma teoria suficientemente abrangente para a mente, defendemos aqui a noção de que não é possível desprezar os fenômenos psíquicos (mediunidade, experiências fora do corpo, experiências de quase morte etc) que terão papel fundamental na gênese de abordagens científicas completas para o fenômeno da consciência, que surge como última fronteira ainda inexplorada da ciência. 

As diversas abordagens da mente que não consideram a fenomenologia psíquica.

Teorias recentes sobre o cérebro consideram seu funcionamento dentro do paradigma materialista, que é essencialmente monista, ou seja, consideram a consciência como uma consequência, como algo que resulta de outro, não como causa ou princípio irredutível. A consciência é vista como produto de atividades básicas do cérebro, onde neurônios, sinapses e, principalmente, o arranjo das ligações entre um número muito grande de estruturas cerebrais fundamentais têm papel fundamental. À complexidade dos sinais que se propagam através de vias de comunicação do cérebro e do sistema nervoso é creditada a variedade, colorido e exuberância das experiências da consciência. Também chamada de teoria da identidade mente-cérebro, sua maior promessa é reduzir todas as múltiplas experiências mentais a funções mais ou menos elementares entre os diversos constituintes do cérebro. Assim, da mesma forma como a função do estômago é produzir a digestão, o do cérebro seria produzir a experiência consciente. A força da abordagem monista da mente está no sucesso recente do fisicalismo e do reducionismo, que possibilitaram desenvolver métodos e explicações para muitos fenômenos da matéria. É uma crença nas neurociências que essa redução a leis e interação entre átomos, que teve tanto sucesso na explicação do comportamento da matéria bruta, possa ser estendida com igual sucesso para a ‘matéria pensante’.

Consideremos brevemente o paradigma mais recente das redes neurais como modelo de ‘processamento’ que ocorrem em todo o sistema nervoso central e periférico. Esse paradigma engloba em parte a noção de ‘inteligência artificial’ (Haykin, 1994; McCulloch e Pitts, 1943). Um neurônio é, essencialmente, uma unidade de processamento elementar que integra sinais elétricos que chegam a ele (por meio das chamadas ‘entradas sinápticas’) e que retorna um sinal elétrico de saída que se propaga ao longo de uma fibra da célula nervosa chamada axônio. No corpo celular, onde se dá a integração dos sinais provenientes das sinapses, ocorre o processamento das entradas e o sinal de saída depende de um potencial interno de ativação. Ao se agrupar conjuntos de neurônios em camadas – cada neurônio recebendo as mesmas entradas – é possível modelar o processo de aprendizado que se reduz a um problema de otimização (Rosenblatt, 1958). Acredita-se que o cérebro, sendo formado por aglomerados compactos de bilhões de células nervosas, opere em escala microscópica o processamento de sinais que chegam a cada um dos nervos do sistema nervoso periférico. Desenvolvimentos recentes em redes neurais mostraram que essas redes podem ser classificadas em dois tipos: redes de propagação avançada (feedforward propagation) e redes recorrentes. Essas últimas diferem das primeiras por permitirem que sinais de saída de um dado neurônio alimentem, como entrada, outros neurônios de uma mesma camada e o próprio neurônio. Em outras palavras, redes recorrentes admitem feedback ou realimentação. Neurônios biológicos são todos do tipo recorrente, ou seja, o processamento da informação (que, segundo esse modelo está armazenado nos pesos sinápticos e potenciais de ativação de cada célula nervosa) faz uso maciço de realimentação. Além disso, ele também utiliza processamento paralelo. Embora a eficiência computacional de redes neurais seja inferior a outros tipos de processadores (numa comparação com processadores eletrônicos), acredita-se que a quantidade gigantesca de células e conexões neurais, o paralelismo e uso de realimentação torne o cérebro um dispositivo único, no que diz respeito ao tratamento de grandes quantidades de informação. Os desenvolvimentos em redes neurais mostraram que é possível dividir o processo de aprendizado em vários tipos (com ou sem supervisão externa) e os estudos mais interessantes ocorreram no campo da neurodinâmica, com aplicações em redes recorrentes. Acredita-se que a nonlinearidade intrínseca das redes com realimentação e seu elevado número de conexões seja a principal fonte de riqueza de informação no cérebro (Hopfield, 1982). Essa não linearidade é fonte de caos clássico, sendo possível encontrar descrições deterministas da dinâmica entre neurônio, onde o processo de lembrança é visto como um problema de convergência de estados mentais em torno de mínimos de energia e bases de atratores caóticos (Hopfield e Tank, 1986). O determinismo implícito nesses modelos de dinâmica entre neurônios é pontuado pela influência do ruído, que é tomado como fonte de aleatoriedade e, portanto, origem do livre-arbítrio do ser pensante na visão reducionista da mente. 
Um diagrama esquemático de uma rede neural com realimentação. Os sinais de entrada (x1, x2 e x3) são misturados aos sinais de realimentação que vêm de cada neurônio (cujos centros são representados pelos círculos com o sinal de "+"). As saídas, y1, y2 e y3 são, portanto, não apenas função da entrada. Esse tipo de arranjo (conhecido como "rede de Hopfield") cria não linearidades e comportamento aleatório, fornecendo um paradigma para explicar, talvez, o livre arbítrio (?). Embora sua simplicidade, esse tipo de rede estaria na base de todas as estruturas do sistema nervoso.
Embora o grau de sofisticação dos modelos numéricos em neurodinâmica, o problema central da consciência permanece, uma vez que não é possível associar o trânsito de informação (na forma de sinais elétricos) entre neurônios, com a riqueza exibida pelos estados de consciência, conforme explicaremos mais adiante.  Assim, em paralelo com os recentes desenvolvimentos das neurociências, permanece o paradigma dualista como abordagem alternativa para a consciência. Diferente da abordagem monista, para a qual a consciência é um produto de arranjos específicos entre elementos fundamentais que formam o cérebro, no dualismo não se pode reduzir a mente a um arranjo desses elementos, por mais complexos que sejam. O ser humano (e, muito possivelmente a imensa maioria dos animais) é, em essência, um sistema dual, composto de matéria, que forma a contraparte tangível, e espírito (ou a mente) que interage, através de um mecanismo especial, com a matéria, mas que é, ele mesmo, intangível. Isso significa que não é possível registrar o espírito da mesma forma como se faz com a matéria, apenas suas manifestações são percebidas. Em uma variedade especial de dualismo, o espiritualismo admite que esse princípio, que carrega a consciência, é independente da matéria, o que possibilita ao primeiro sobreviver à decomposição da última com o fenômeno chamado ‘morte’.

Em princípio, seria possível contrapor o dualismo ao monismo fisicalista, considerá-los como duas explicações antagônicas para a mente, mas, isso não é verdade. O grande psicólogo americano William James brilhantemente construiu um paralelo para explicar como o cérebro pode ser visto como um órgão transmissivo da consciência, que existiria em um espaço inacessível, mas que, por meio do cérebro, se manifesta no mundo. Ele considerou o exemplo do prisma óptico, que é capaz de separar a luz branca em suas cores fundamentais. A luz é a verdadeira causa do espectro que, apenas pelo prisma pode ser decomposta. Assim, também, a consciência é uma manifestação, através do cérebro, do espírito que, de outra forma, não pode se manifestar. Portanto, considerar a consciência como origem no cérebro é tão equivocado quanto acreditar que o prisma gere as cores do espectro da luz branca. Modernamente, esse paralelo ganhou novas versões através dos dispositivos de telecomunicações. Portanto, à crítica materialista de que o cérebro é a verdadeira fonte da consciência porque, uma lesão nele, leva a sequelas mais ou menos graves nas manifestações da consciência, pode-se contrapor a noção do cérebro como órgão de transmissão das funções da consciência, que têm sua origem em uma mente fora do cérebro. Alias essa noção já se encontra bem desenvolvida em ‘O Livro dos Espíritos’ (Kardec, 1949), conforme se pode ler no Capítulo VII, ‘Da volta do Espírito à vida corporal’, ‘Influência do organismo’ (Questões 367-370 e 375). Portanto, há uma dinâmica de sinais entre neurônios, no cérebro, que é necessária para facultar a manifestação do verdadeiro ser pensante que é a fonte da consciência.

De um ponto de vista puramente filosófico, o reducionismo fisicalista e o dualismo permanecem como as principais teorias da mente, embora outras abordagens também existam como o Behaviorismo analítico, o funcionalismo e o monismo não redutivo (Maslin, 2001). Todas elas mais ou menos pregam o caráter irredutível da mente, sem postular a existência de um elemento independente da matéria. Uma teoria suficientemente abrangente da mente deve ser capaz de explicar os diversos aspectos da consciência que, conforme Maslin (2001), podem ser sumariamente descritos por: 

i) sensações (dores e prazeres, por exemplo); 
ii) cognições (acreditar, saber, compreender, raciocinar etc); 
iii) emoções (medo, ciúme, inveja, raiva etc); 
iv) percepções (visão, audição, paladar etc); 
v) estados de quase percepção (sonhar, imaginar, ‘ver com os olhos da mente’ etc) e 
vi) estados conativos (querer, intentar, desejar etc). 

No caso das sensações, por exemplo, essa teoria deve explicar e justificar a existência e variedade dos qualia ou modo peculiar pelo qual as sensações se apresentam ao ser pensante. Tal tarefa presentemente nem de longe foi realizada, considerando outros aspectos da experiência consciente, além dos qualia, tais como: não localidade (embora seja possível localizar alguns sensações, não tem sentido falar em localização das emoções, dos estados de quase percepção etc); caráter disposicional de crenças, memórias e conhecimentos (em um dado instante, é possível saber algo sem se estar ciente disso naquele instante); intencionalidade (que é característico dos estados conativos, mas, por exemplo, não das sensações); perspectivas de primeira e terceira pessoa (só eu, por exemplo, sei das minhas próprias experiências, mas apenas conheço as manifestações da consciência dos outros por meio das minhas percepções e cognições); além do aspecto de translucidez, que está intimamente associado ao caráter de primeira pessoa da experiência consciente e do caráter holístico dos estados intencionais que estão ausentes, por exemplo, nas sensações (Searle, 1984).

Próximo post: A fenomenologia psíquica que expande a variedade de experiências conscientes.

Nota

(1) - Revue trimestrelle: 157 année - Revue Spirite - Journal d'Études Psychologique.
(2) - http://www.larevuespirite.com/home.php

5 de março de 2014

Conceitos básicos de Física Quântica VI

Estrutura de orbitais atômicos no átomo de hidrogênio obtidos por meio direto, exibindo a existência de núvens de concentração eletrônica em torno do núcleo. (1)
Toda a matéria se origina e existe somente em virtude de uma força 
que agrupa as partículas de um átomo em vibração 
e as mantém juntas como se fosse um sistema solar em miniatura. 
Devemos assumir como causa dessa força uma mente consciente e inteligente. 
A mente é a matriz de toda a matéria. Max Planck.

Um átomo e seus vários estados

É comum representações pictóricas do átomo - conhecido como unidade fundamental da matéria - na forma de um "mini sistema solar", com um núcleo e partículas elétricas - os elétrons - girando em torno dele em órbitas bem definidas. Essa representação é reconhecida como símbolo universal e está representado na Fig. 1.

Há inúmeras referências na web sobre esse 'modelo atômico'. É um modelo porque seu objetivo é representar os elementos principais do átomo (até suas posições relativas), sem compromisso de ser uma imagem exata da realidade.

De fato, desenvolvimentos em física quântica mostraram que essa 'visão exata' da realidade, no que diz respeito à realidade atômica, não pode ser obtida. Para ver de uma maneira simples como isso é impossível, basta que você considere o processo de 'observação' de uma coisa. Observar algo é, antes de tudo, jogar luz no objeto a ser observado, sem o que é impossível apreciar suas formas, cores e profundidade. Mas, o que acontece ao se jogar luz em um objeto microscópico como um elétron?

Um elétron é uma partícula fundamental da Natureza. Tem uma massa muito pequena (da ordem de 10E-31 kg, ou seja, precisamos de 31 zeros depois da vírgula para registrar a primeira casa significativa de massa). Ao se tentar iluminar um átomo para poder observar o elétron, a intensidade da luz - por menor que seja - poderá destruir completamente o que se pretende ver. No reino quântico, isso também depende de uma série de fatores tais com o a frequência da luz que se joga. Se ela tiver uma frequência determinada abaixo do que é chamado 'limite de ionização' do átomo, a luz será espalhada de forma que será impossível formar qualquer imagem do átomo. Se estiver acima desse limite, o resultado será a destruição do estado atômico original (2). Portanto, é impossível determinar diretamente a forma dos átomos, pelo menos por processos conhecidos tradicionalmente e que se aplicam ao nosso mundo 'macroscópico' (3).

Estados atômicos.

Fig. 1 Representação um átomo 
com seu núcleo e elétrons em órbitas bem 
definidas.  
Além de ter massa, o elétron também tem outra propriedade fundamental chamada carga elétrica. Por convenção, essa carga tem sinal negativo e é muito pequena (da ordem de 10E-19 Coulomb). Embora seja pequena, é carga suficiente para gerar boa parte dos fenômenos do mundo em que vivemos. 

Acontece que partículas carregadas em movimento acelerado acabam por perder energia. Essa energia - presente na partícula em seu estado de movimento original - acaba sendo perdida de uma forma inusitada: a partícula emite radiação eletromagnética. Como, na Natureza, energia não pode ser destruída, essa energia vai embora com a radiação que é emitida. 

Agora, imagine um elétron a girar indefinidamente em torno do núcleo do átomo. Para simplificar, imaginamos um núcleo de hidrogênio (ou seja, somente um elétron se faz necessário na 'eletrosfera' do átomo). Ao se aproximar do núcleo, o elétron está acelerado. Ele sofre influência da força elétrica advinda de uma carga de sinal oposto no núcleo. Mas, mesmo assim, por que, no caso do elétron no átomo, estando ele acelerado, o átomo não perde energia? Esse foi uma dos problemas fundamentais que motivou a revolução da física quântica.

De fato, em todos os átomos, os elétrons estão constantemente em movimento e, mesmo assim, a matéria é bastante estável, não há "perda de energia" por emissão de aceleração. Como isso é possível? Além disso, uma vez que elétrons e núcleo tem cargas que se atraem, como é possível que eles não terminem grudados uns aos outros?

Um mecanismo que é frequentemente invocado para explicar de forma qualitativa esse processo de "estabilização" é o princípio de incerteza. Esse princípio cria um limite para o estado de movimento e posição de uma partícula pela física quântica. Ao determinarmos com precisão sua posição, será impossível conhecer sua velocidade (ou, mais especificamente, quantidade de movimento). Ao se determinar com precisão o seu movimento, será impossível saber sua posição. Assim, se o elétron perde energia e se aproxima do núcleo, o crescente aumento de determinação em sua posição faz com que seu momento aumente consideravelmente, o que o afasta novamente do núcleo. Nas palavras de R. Feynman (4):
A resposta tem a ver com efeitos quânticos. Se tentarmos confinar nossos elétrons em uma região que é muito próxima dos prótons, então, de acordo com o princípio de incerteza, eles deverão apresentar algum momento médio quadrático que será tanto maior quanto mais tentarmos confiná-los. É esse movimento, exigido pelas leis da mecânica quântica, que evita que a atração elétrica aproxime ainda mais as cargas. 
Portanto, o que acontece ao redor do núcleo não é a configuração de cargas em órbitas estáveis (como sugere imagens como a da Fig. 1), mas o estabelecimento de um estado atômico sem emissão alguma de energia.

Mas, é um estado de quê? Trata-se do estado de probabilidade de se encontrar elétrons ao redor do núcleo. Esses estados têm energia muito bem definida e conferem uma estabilidade extraordinária à matéria. Não podemos nos esquecer que a principal propriedade da matéria quântica é seu caráter ondulatório. Esse caráter era, no começo, apenas associado à luz e à radiação, mas a principal contribuição da física quântica foi demonstrar que, mesmo a matéria mais dura que se conhece, também se comporta como uma onda.
Fig. 2
Uma maneira de compreender como esses estados poderiam ser formados foi feita pelos pais da física quântica ao tentarem curvar ou fechar uma onda ao redor do centro atômico (Fig. 2). Como o elétron tem uma onda associada, então, buscou-se saber quais seriam as condições necessárias para que uma onda eletrônica se 'fechasse' completamente ao redor do núcleo como mostrado. Essas condições dão origem aos estados de energia bem definidos dos elétrons porque somente ocorrerá o 'fechamento' da onda para determinadas frequências.

Podemos entender os estados atômicos como se fossem "ressonâncias" nas ondas de probabilidade dos elétrons ao redor do núcleo atômico. Lei rigorosas proíbem, portanto, que energia seja perdida nesses estados de forma espontânea (embora existe sempre uma chance de, espontaneamente, ocorrer uma perda; ela é muito pequena no nível quântico), o que resulta em grande estabilidade para a matéria ordinária. 

Referências e notas

(1) Uma imagem  de um estado quântico do átomo de hidrogênio recentemente obtida para determinada condições especiais:
(2) Se for um valor exato, poderá causar uma transição de estado (chamado de 'excitação atômica'). Se for excessiva, poderá causar ionização do átomo que é o afastamento do elétron de seu núcleo.

(3) No caso do 'mundo macroscópico', os objetos são formados por muitas quantidades de átomos. Luz tem efeito desprezível sobre esse grande agrupamento de partículas e é, portanto, espalhada de tal forma que os contornos dos objeto podem ser vistos, mas nunca detalhes até a escala atômica. De fato, podemos ver muitos detalhes microscópicos de objetos, mas até o nível em que efeitos quânticos não são importantes.

(4) Ver: http://www.feynmanlectures.caltech.edu/II_01.html









7 de setembro de 2013

Carta aos espíritas de alguns séculos no futuro.


Caros espíritas de alguns séculos à frente ou depois disso:

Aqui em 2013, mais ou menos perdidos entre a avalanche de informações de todos os lados na rede ou fora dela, estamos a braços com notícias empolgadas por parte dos que acham que a física quântica, a cosmologia e as ciências em geral irão revolucionar completamente a maneira como encaramos verdades simples como a vida após a morte, as vidas sucessivas e a nossa necessidade de progresso em todos os sentidos.

Muitos insistem que essa mesma ciência, embora inexistindo nela qualquer princípio que afirme a imortalidade do ser e muito menos a sua existência, está destinada a revolucionar o conhecimento das realidades transcendentes, atualizando o Espiritismo, por meio de não sei qual mecanismo quântico que ainda será descoberto, se não o foi, pelos cientistas entrincheirados em seus gabinetes e laboratórios. 

Ninguém aqui está preocupado em desenvolver o objeto de pesquisa dessa nova ciência do espírito tal como ele deveria ser desenvolvido. Não se vêem estudos sistemáticos sobre mediunidade ou reencarnação, como faria Kardec. Aguarda-se apenas o dia em que esses fatos básicos serão todos decompostos pela física quântica aliada a alguma novidade em gravitação derivada de outra teoria cosmológica. Um verdadeiro salto quântico na nossa compreensão da realidade do espírito haverá de sair das mãos dos cientistas materialistas e sem nenhum compromisso com as realidades desse mesmo espírito.

Entre os espíritas de nosso tempo, ninguém conhece os métodos da física quântica, sua linguagem altamente matemática e específica para lidar com a realidade material que se apresenta na forma de uma outra ordem de fenômeno da natureza, que, por isso mesmo, confundem com os novos fenômenos do espírito. Por um efeito de ilusão mental, o vácuo quântico, as especulações em torno de medida quântica ou as teorias altamente especulativas de multi-universo são ainda vistos como "comprovações" de que a ciência de 2013 "está chegando lá"... 

A difícil realidade é que, por enquanto em nossa época, não há nada de novo no front da ciência que a faça menos ligada à matéria e considere o espírito. Em nossa época, mesmo todos os teoremas e corolários quânticos ainda não conseguiram fazer que nossos cientistas se dobrassem à realidade do espírito e se tornassem espiritualistas convictos. Nossas academias permanecem fechadas para a aceitação da sobrevivência, considerada como um desejo humano pueril de continuidade e nada mais

Saudo a todos vocês, irmãos em crença, a partilhar a esperança de uma sociedade feliz e mais avançada em compreensão, caridade e discernimento.

Editor do "Era do Espírito".

23 de fevereiro de 2013

Conceitos básicos de Física Quântica V (a questão do vácuo quântico)

Imagem de uma nuvem molecular no espaço. Pensava-se que se tratava de um espaço vazio, mas ela é, na verdade, preenchida por matéria opaca que não permite ver as estrelas ao fundo.

Apresentação elementar de conceitos básicos em física quântica para que o leitor possa melhor julgar e se posicionar diante dos que pretendem misturar espiritualismo com essa especialidade da física. 

Uma considerável mudança na nossa maneira de compreender o 'vazio' e o 'nada' surgiu com o desenvolvimento subsequente da física quântica. Para compreender melhor as descobertas que foram feitas sobre essa questão (e as implicações filosóficas disso), é preciso saber qual era a situação antes dos desenvolvimentos fundamentais dessa nova física. Depois, veremos como o papel criador do vácuo quântico pode aparentemente substituir Deus e abrir uma via de argumentação para o ateísmo.

O papel do espaço vazio na física clássica

Em realidade, o espaço considerado 'vazio' (desprovido de qualquer tipo de substância) não correspondia ao conceito mais abstrato de vazio absoluto (que guarda correspondência grande com a noção de 'zero' da matemática). Desde o surgimento das primeiras teorias mecânicas no Sec. XVII, como foi o caso da teoria da Gravitação, uma lacuna enorme entre a concordância teórico-experimental que era observada e a ausência de uma justificativa ou 'interpretação' para a ação à distância que existia entre corpos gravitantes foi percebida.

Fig. 1 Lei de Newton entre corpos gravitantes. Triunfo analítico
sem explicação ou justificativa intuitiva.
Se os planetas e o Sol influenciavam uns aos outros, como se dava essa influência? Compreedia-se bem como uma força poderia ser transmitida entre dois corpos por contato entre eles, mas, entre o Sol e um determinado planeta, o que causava o efeito da força? Havia algo no espaço que era responsável pela transmissão dessa força? Se sim, esse 'algo' invisível preencheria o espaço entre o Sol e o planeta e tornava a ideia de 'nada' difícil de ser aceita de forma absoluta (Fig. 1). 

Mais tarde (segunda metade do Sec. XIX), a física clássica atingiu o apogeu com a formulação precisa das leis de Maxwell para o eletromagnetismo. Outros tipos de força à distância, além da gravitacional, foram descobertos e formalizados por meio de teorias especiais que resultaram na explicação de uma grande quantidade de fenômenos, bem como na previsão antecipada de outros nunca imaginados. 

A 'joia da coroa' em termos de interpretações de teorias físicas era a explicação para a propagação da luz. Reconhecida como um resultado da oscilação de dois tipos de 'campos' que eram gerados por cargas aceleradas, a radiação eletromagnética só poderia se propagar por causa da existência de um meio especial - chamado de éter luminífero (que não tem nada a ver com as substâncias do grupo éter em química!) - no espaço considerado vazio. 

A analogia com oscilações mecânicas era evidente: da mesma forma como o som precisa de um meio para se propagar (no caso ordinário, esse meio é 'invisível' ou 'transparente' - o ar), ondas de luz também prescindiriam de uma substância especial igualmente invisível que preencheria todo o espaço considerado vazio para os sentidos humanos. Se fosse possível retirar essa substância do espaço, fenômenos luminosos não ocorreriam. Como o éter era considerado 'intangível', jamais seria possível atingir a condição de vácuo absoluto.

Flutuações do ponto zero

Mesmo dentro da física clássica, diversos questionamentos ao conceito de éter luminífero foram feitos com o surgimento da Relatividade Restrita. De forma resumida, ficou claro que seria possível continuar com desenvolvimentos teóricos e explicativos de fenômenos físicos envolvendo a luz sem que a noção de um éter luminífero fosse invocada. Isso porque a ideia de um éter desse tipo estava ligado ao conceito, que se tornou desnecessário, de 'referencial absoluto' - o próprio referencial do éter luminífero (ou seja, o sistema de coordenadas em que o 'éter' estaria em repouso). O formalismo das equações do eletromagnetismo só exigia que tais equações fossem 'invariantes' (não mudassem de forma) entre referenciais chamados 'inerciais', dispensando a ideia de referencial absoluto e esse tipo de interpretação de éter junto (1).
Fig. 2 Um diagrama que descreve o fenômeno conhecido como 'polarização do vácuo'. Dois elétrons (e-) interagem através da força eletromagnética - o que se dá, fundamentalmente, por meio da troca de fótons 'virtuais'. Nessa interação, flutuações no vácuo podem causar a produção de pares 'partícula-antipartícula' (e-, e+) como representado no desenho. Essas partículas são geradas no 'vácuo quântico' em todos os pontos do espaço dando origem a fenômenos interessantes.
Um novo papel para o vácuo seria descoberto com a junção de duas grandes teorias físicas: a relatividade e os primeiros formalismos da física quântica. Conhecida como 'teoria de campos', essa nova teoria foi capaz de prever novos fenômenos na Natureza que foram interpretados como tendo origem no espaço considerado vazio. Isso foi feito por meio da quantização do campo eletromagnético. O processo de 'quantização' envolve tomar quantidades físicas bem conhecidas (energia total, momentos etc) e aplicar as regras da física quântica, de forma a se obter uma teoria aplicável ao mundo microscópico (Fig. 2).

A quantização do campo produziu um resultado notável: era impossível deixar de associar a cada ponto do espaço uma quantidade de energia oriunda do campo eletromagnético, mesmo na ausência total de cargas. Ou seja, cada ponto do espaço 'vazio' é preenchido por uma substância eletromagnética e tem uma energia 'infinita' associada. Como esse estado é o de menor energia, é impossível retirar energia dele, mas, nem por isso ele deixa de ter papel fundamental em vários fenômenos quânticos. O mais notável deles - por se manifestar no 'mundo macroscópio' -  é o da força atrativa entre placas de metal, força gerada por desbalanceamento da quantidade de modos eletromagnéticos dentro e fora das placas. Essa força mecânica é gerada pelos modos do vácuo que atuam sobre as placas e é conhecido como efeito Casimir (Fig. 3). Essa força foi medida quantitativamente em 1997 por S. Lamoreaux (3).

Ilustração explicativa de um efeito real do vácuo quântico . Duas placas de metal são constantemente atuadas por fótons 'virtuais' (partículas do vácuo) no efeito Casimir. As placas limitam a quantidade de modos de oscilação no interior de forma que a quantidade maior delas na parte externa gera uma força de atração que é mensurável experimentalmente. Se flutuações de vácuo quântico não existissem, não haveria nenhuma força. 

Pode-se imaginar que todo o espaço é sempre preenchido por campos eletromagnéticos quantizados que oscilam de forma aleatória. Por isso, o vácuo quântico também é conhecido como fenômeno de 'flutuações do ponto zero', numa referência ao estado de menor energia desse campo.

Um conceito agradável ao ateísmo

A noção de vácuo quântico mostrou ser útil nas críticas modernas do ateísmo. O 'poder criador' do vácuo quântico pode muito bem substituir a necessidade de um agente criador independente, a ideia de Deus. Como, numa interpretação superficial, a potencialidade do vácuo é infinita, então qualquer coisa pode resultar dele, inclusive tudo no Universo. Para apreciar melhor esse ponto, considere o trecho extraído de 'Daylight Atheism' (2):
Logicamente falando, há apenas duas possibilidades para a origem última do Universo: ou há uma regressão infinita de causas, ou existe uma causa primeira que não pode ser explicada em termo de causas ainda mais fundamentais. Ateus ou religiosos devem concordar que essas são as únicas alternativas. Se existe uma regressão infinita de causas, parece sem sentido continuar com investigações cada vez mais profundas; pois tal fim jamais será atingido. Se há uma causa, porém, podemos produtivamente nos perguntar sobre como ela seria 
Esse é o ponto onde Craig e Strobel tem problemas, porque nós já temos um candidato excelente para causa primária: o vácuo quântico, um estado infinito e caótico que continuamente gera novos universos através de flutuações estatísticas. Sabemos já que o vácuo existe, assim como muitas de suas propriedades, então, nenhuma nova entidade é mais necessária aqui. Numa tentativa arbitrária de decidir que o vácuo tem que ter uma causa, Craig introduz uma nova entidade ou divindade sobrenatural que ele acredita tem o poder de criar novos universos. Isso é coisa para a qual não temos evidência experimental alguma e que não resolve o problema da causa primária melhor do que o vácuo já o faz. (grifos nossos; sobre o trecho original ver 4)
Essa ideia é ingênua, pois  energia e matéria não são as únicas coisas que existem no Universo para as quais o vácuo seria causa suficiente. Ateus devem encontrar uma maneira de explicar como a informação, que organiza a matéria a partir de certo nível, apareceu desse "nada" também.

A noção de vácuo como 'vazio' ou 'nada' torna-se uma arma de retórica na língua de adeptos do ateísmo que consideram isso uma maneira de atacar o princípio básico de que 'nada existe sem uma causa'. Como vácuo tem como sinônimo o 'nada', então 'o nada pode gerar tudo' torna-se um novo motto para o ateísmo. O vácuo quântico não corresponde ao 'nada', mas está simplesmente preenchido por algo intangível.

Chegamos a uma situação engraçada hoje, quando espiritualistas exaltados, que vêem com bons olhos as descobertas da física sobre o papel do vácuo físico, fazem coro com ateus no reconhecimento do papel criador desse novo vazio que tem em comum com o 'nada' apenas semelhança de palavras...

Notas e referências
  1. Ainda hoje, há quem acredite no éter luminífero. O conceito de 'éter luminífero' tornou-se uma bandeira de físicos que não aceitam as explicações padrão em relatividade e cosmologia. 
  2. Ver: http://www.daylightatheism.org/2009/09/cfac-its-all-because-of-quantum.html (acesso em Dezembro de 2012);
  3. Lamoreaux, S. K. (1997). "Demonstration of the Casimir Force in the 0.6 to 6 μm Range". Physical Review Letters 78: 5;
  4. Trecho original:
Logically speaking, there are only two possibilities for the ultimate origin of the universe: either there is an infinite regress of causes, or there is a first cause that cannot be explained in terms of earlier causes. Both atheists and theists should be able to agree that those are the choices. If there's an infinite regress of causes, it seems pointless to keep investigating further and further back; such a quest would be guaranteed never to end. If there is a first cause, though, we can productively ask questions about what sort of thing it might be. 
This is where Craig and Strobel run into trouble, because we already have an excellent candidate for a first cause: the quantum vacuum, a timeless, chaotic state that continually spawns new universes through random statistical fluctuation. We already know that the vacuum exists and we know what many of its properties are, so no new entities are required in this explanation. In arbitrarily deciding that the vacuum must have a cause, however, Craig introduces a new entity - a supernatural deity which he believes has the power to create new universes. This is something we have no experimental evidence for, and it solves the first-cause problem no better than making the vacuum the first cause.

4 de agosto de 2012

Conceitos básicos de Física Quântica IV

Problema de identidade do fóton: "Sou um fóton de raio X, de rádio ou de luz visível? Bem..., por que se preocupar com isso?!?... Não sei nem se sou uma onda ou uma partícula...!!"
Apresentação elementar de conceitos básicos em física quântica para que o leitor possa melhor julgar e se posicionar diante dos que pretendem misturar espiritualismo com essa especialidade da física. 

Em 3 posts anteriores (1), discutimos alguns fundamentos de física quântica, com o objetivo de apresentar de forma simplificada alguns fundamentos dessa parte da Física. De forma resumida, a física quântica tem como objetivo:
  • Estudar fenômenos que ocorrem em uma escala de dimensão muito reduzida. É a teoria padrão da chamada 'microfísica'. Embora a questão da escala 'reduzida' aqui seja importante, a física quântica não se aplica apenas ao microcosmo. Sob condições especiais, há fenômenos chamados 'macroscópicos' (de 'macro' ou grande) que demonstram a operação dessa nova física (2).
  • O estudo dessa nova física tem como objetivo explicar e prever a ocorrência de fenômenos que são manifestadamente anômalos do ponto de vista da chamada 'física clássica'. Assim, a física quântica estendeu não só nossa compreensão a respeito da Natureza como também nossa compreensão a respeito da 'fenomenologia' (descoberta e previsão de novos fenômenos).
Para isso, foi necessário criar um novo 'formalismo'. Formalismo é a linguagem usada para a descrição dos fenômenos, o que envolve não somente  símbolos, mas também novas relações entre símbolos. No caso da física quântica, seu formalismo é essencialmente matemático e propõe um novo espaço especialmente criado para descrever os fenômenos quânticos. Esse novo 'espaço' não tem nenhum equivalente com o 'espaço' de nossa vida comum e é uma ferramenta matemática para descrever fenômenos e relações entre causas ou princípios quânticos.

Problemas de interpretação com a física quântica.

Talvez não fosse difícil prever que a física quântica, uma vez que propõe um novo formalismo para cuidar de fenômenos que são anômalos para a física anterior, tivesse dificuldades com a sua interpretação. No caso da física clássica sua 'interpretação' não é um problema. 'Interpretação' é um conceito usado em uma determinada teoria que se relaciona com ideias e noções consideradas 'intuitivas'. Por exemplo: a noção de velocidade de uma partícula e sua posição no espaço. Esses são conceitos primitivos de fácil compreensão. O mesmo ocorre com a noção de campo elétrico e magnético (3). Pode-se argumentar, porém, que mesmo a física clássica não está imune a problemas de interpretação. Isso porque, na imensa maioria das vezes, conceitos físicos primitivos não podem ser representados por noções derivadas da experiência humana ordinária. Poderíamos 'relaxar' essa necessidade, exigindo que os conceitos da física tivessem relação direta com quantidades medidas em laboratório. Isso também é uma maneira de se interpretar teorias, embora de forma indireta.

Essa integração com noções intuitivas do dia-a-dia ou mesmo conceitos primitivos da física clássica ficou  irrealizável na física quântica. Se na física não-quântica conceitos físicos primitivos são interpretados de forma indireta, na física quântica desaparece a possibilidade de qualquer tipo de interpretação, mesmo que indireta. Um exemplo é o problema da dualidade 'onda-partícula'. Não só as quantidades associadas a uma partícula (velocidade e posição) não tem equivalentes 'intuitivos' nessa nova física, mas a própria identidade dessa 'coisa' pode ser ligada à noção intuitiva de 'partícula' e 'onda'.

Se não há interpretações possíveis na física quântica, como é possível usar a teoria? A resposta reside no fato de que uma teoria física prescindir de interpretações diretas ou mesmo indiretas para que seja válida. Utilizando-se corretamente dos conceitos primitivos dessa nova física, é possível montar experimentos envolvendo quantidades mensuráveis que, de fato, são verificadas. Essa maneira 'instrumental' de se utilizar a física quântica resultou na chamada 'interpretação instrumentalista' da física quântica (Chibeni, 1992, ver nota 4). De acordo com essa interpretação, a física quântica nada mais é que um mapa que nos permite conceber experimentos e relações entre conceitos de sua própria linguagem, conceitos que não tem nenhuma relação com o que percebemos no mundo. De certa forma, todo propósito de uma boa teoria - não apenas na física - é fornecer um mapa ou compreensão que nos permita fazer previsões sobre sistemas da Natureza. O que a física mostrou é que uma boa teoria não exige uma interpretação direta com noções intuitivas de objetos físicos.

Se a física quântica tem dificuldades interpretativas, como podemos aplicá-la a fenômenos psicológicos?

Nossa introdução sobre o problema de interpretação de conceitos da física quântica é importante no contexto das tentativas de se usar essa nova física para explicar categorias de fenômenos psicológicos e mesmo de natureza totalmente diversa. Diante das dificuldades interpretativas da física quântica, como podemos garantir que ela deva ser necessariamente a linguagem ou teoria que deve ser usada para explicar fenômenos psicológicos? Como querer usar a física quântica para explicar ou descrever fenômenos psicológicos, psíquicos ou 'paranormais'? Tais questões (ou problemas) deixam claro a existência de  obscurantismo nas tentativas de uso da física moderna fora do contexto em que ela é usada naturalmente por especialistas em microfísica. Assim, longe de elucidar ou explicar novos fenômenos, o uso de conceitos e linguagem da física quântica contribui para tornar ainda menos claro (mais obscuro) o objeto de estudo das ciências psicológicas e de outras causas  então consideradas "anomalias" (5).

É importante, entretanto, examinar brevemente quais são as várias interpretações existentes para a teoria da microfísica, o que faremos em um próximo post.

Notas e Referências

(1) Os três textos anteriores são:
(2) Um exemplo é a da superfluidez do hélio. Embora seja um fenômeno de base quântica, ele pode ser observado facilmente no 'nível macroscópico' em que nos situamos:


(3) Ainda que o caráter intuitivo desses últimos seja menor do que no caso de posição e velocidade, esses são conceitos clássicos também. Um conceito mais intuitivo do que campo, mesmo na física clássica, é a noção de 'força'. Assim, os campos eletromagnéticos poderiam ser substituídos por uma representação de forças elétricas e magnéticas que, para operarem, exigem 'ação à distância'. Como pode-se ver, mesmo a física clássica não está imune a problemas de interpretação.

(4) Uma excelente introdução ao assunto é:

5 de maio de 2012

Conceitos básicos de Física Quântica III

"A física quântica assim revela a unicidade básica do Universo". E. Schrödinger.

Apresentação elementar de conceitos básicos em física quântica para que o leitor possa melhor julgar e se posicionar diante dos que pretendem misturar espiritualismo com essa especialidade da física.

A noção de estado quântico.

Um conceito fundamental em física quântica é a noção de estado quântico. Na física considerada 'clássica' o estado também é importante, mas é menos aparente pelo fato de que, em um 'sistema clássico', o seu 'estado' é descrito por quantidades bem determinadas tais como 'velocidade', 'posição' etc. Tais quantidades existem num domínio arbitrário de valores e são limitadas apenas pela 'dinâmica' inerente de cada sistema físico particular.

No caso de sistemas quânticos (Nota 1), o estado adquire suma importância. Isso porque um sistema é caracterizado por ele e não por equivalentes à quantidades clássicas. Um sistema físico qualquer como um átomo pode ser preparado em um estado bem definido, mas, nesse caso, não há prescrições de 'velocidade', 'posição' etc, para seus constituintes que sejam tão bem definidas. Além disso, a grande maioria dos sistemas físicos (dos quais os átomos fazem parte) são sistemas 'fechados', de forma que os estados quânticos característicos são descritos por números inteiros bem definidos. Mas isso diz respeito ao ferramental analítico (matemático) que se pode inventar para descrever tais estados.

Mas o que seria um estado? De forma bem simplificada, um estado é um determinado arranjo de elementos de um sistema que o caracteriza. A noção de estado quântico pode ser compreendida por um exemplo bem simples. Imaginamos nosso guarda roupas com certo número de camisas, calças e sapatos, todos colocados em uma certa disposição. Podemos dizer que as camisas são colocadas em cabides na parte superior, enquanto que as calças em prateleiras inferiores. Os sapatos também, se todos organizados, podem ser dispostos segundo uma determinada ordem. Ao trocar um par de sapatos de posição - imaginamos poder trocar um certo par com outro de lugar - o estado do guarda roupas será modificado. O mesmo pode acontecer se trocarmos as camisas, as calças etc. Quantas combinações diferentes de arrumação podemos ter para nosso guarda roupa? A resposta a essa questão depende do espaço disponível, número de calças, camisas, sapatos etc. Pois bem, essas 'combinações diferentes' caracterizam o estado do guarda roupas.
Fig. 1 O exemplo das maneiras diferentes de se arrumar um guarda roupas fornece uma boa analogia aos estados quânticos em um sistema físico qualquer. Para descrever o 'estado de arrumação' do guarda roupas, precisamos colocar rótulos em cada posição que sirvam para identificação das roupas e sapatos.
No nosso exemplo (Fig. 1) nós não podemos tentar guardar as camisas nos lugares reservados aos sapatos e vice versa. Isso é proibido. Portanto, para organizar o guarda roupas existem regras. Além disso, se temos 2 pares de sapatos iguais, nosso 'estado de arrumação' vai mudar se trocarmos esses pares ? Então podemos dizer que um guarda roupa é um sistema físico composto por uma determinada quantidade de elementos 'camisas, calças, sapatos' arrumados em determinada ordem. Essa 'maneira' caracteriza o estado do guarda roupas. Como podemos descrever esse estado? Poderíamos, por exemplo, colocar rótulos em cada posição e descrever a posição das camisas, calças e sapatos em cada rótulo. Para isso associamos uma descrição do tipo de elemento (se calça, camisa ou sapato) ao rótulo. Isso gera uma lista que é uma 'descrição' sumária do estado do guarda roupas. Qualquer pessoa com essa lista poderá repetir o processo de arrumação de forma eficiente e repetitiva.

O estado quântico de átomos

Um átomo é um sistema físico que é usado pela Natureza para formar a matéria. Isso é feito através do agrupamento de um número gigantesco de átomos. Um átomo é feito de elementos básicos: para nossa discussão é suficiente considerar os 'elétrons' (partículas indivisíveis de carga negativa), 'prótons' (partículas de carga positiva) e 'nêutrons' (partículas sem carga). Prótons e nêutrons estão 'confinados' formando os 'núcleos atômicos', enquanto que os elétrons se colocam em volta desses núcleos. A maneira como esses elementos estão organizados no interior do átomo (que, portanto, não é um sistema 'indivisível') caracteriza seu 'estado quântico' (Fig. 2). Em analogia ao guarda roupas, existem regras para a organização dos elementos nos átomos. Por exemplo, o tamanho do átomo depende do número de elementos que o formam. Existem diferentes tipos de átomos que se distinguem conforme a quantidade de partículas que abrigam. Os diferentes jeitos como podemos arranjar cada partícula no interior de um determinado átomo aumentam com a quantidade de elementos nele contidos (tal como no caso do guarda roupas). Portanto, o número de 'estados quânticos' distintos em um átomo aumenta com a quantidade de elementos que o constituem.

Fig. 2 Os chamados 'orbitais atômicos' descrevem auto-estados (ou estados puros) no átomo de Hidrogênio. Cada número à esquerda é um 'rotulo' que descreve a maneira como o elétron se organiza em torno do átomo. As figuras geométricas representam 'nuvens de probabilidade' ou áreas em torno do núcleo onde é possível encontrar elétrons.
No caso dos estados quânticos que interessam à química, apenas estados de arranjo de elétrons em torno dos núcleos são relevantes. Como átomos podem ter vários elétrons, existem regras para a maneira como esses elementos devem se dispor em volta dos átomos. Isso acontece exatamente como no caso do guarda roupas (a diferença é que, na Natureza, não tem como desobedecer essas regras enquanto que podemos deixar nosso guarda-roupas bem bagunçado...). No passado acreditava-se que elétrons 'giravam em volta' dos núcleos como satélites naturais desses, mas essa ideia se mostrou equivocada (ainda existe uma quantidade incrível de referências que tratam átomos dessa maneira). Elétrons simplesmente estão arranjados em 'nuvens de probabilidade' em torno de seus núcleos de forma que não é possível associar uma velocidade e uma posição a eles. A única coisa que pode ser dita a respeito dos elétrons em um átomo é que eles podem estar arranjados em um determinado estado quântico bem definido (chamados de 'auto-estados' ou estados puros). A descrição de tais estados - como no exemplo do guarda roupas - é feita associando-se o número de elétrons a determinados rótulos ou números especiais (Fig. 2). 

O estado quântico da matéria nuclear

O mesmo raciocínio vale para o caso dos elementos que constituem o núcleo do átomo. Prótons e nêutrons também estão confinados no interior dos núcleos de uma forma organizada por leis rigorosas, o que é descrito por estados quânticos, os chamados estados nucleares. Para descrever tais estados, números especiais também foram descobertos. 

Mudança de estado quântico. 

O estado de nosso guarda roupas pode ser mudado se transferirmos um elemento (por exemplo, uma camisa) de uma posição para outra. Podemos, por exemplo, esvaziar o guarda roupas (o estado 'vazio' também é um estado possível. No caso dos elétrons nos átomos, esse estado é chamado de 'ionização total'). Da mesma forma, estados quânticos podem ser alterados por meio de operações especiais onde energia de alguma forma é utilizada. Por exemplo, um átomo que se encontra em um estado pode ser levado a outro estado quando é banhado por luz. Ou ele pode realizar a mudança oposta e liberar energia para o exterior (emissão de luz). Uma característica importante dos estados quânticos é que eles são caracterizados por uma determinada quantidade chamada 'energia' do estado, que não é um conceito absoluto mas relativo (para saber mais sobre esse conceito consulte nosso post anterior). 

Quando átomos se encontram nos seus chamados 'auto estados' podemos associar uma quantidade única de energia como característica do estado. Esse é o assim chamado 'nível de energia' do átomo. As mudanças de estado se processam todas por meio de absorção ou emissão de energia na forma eletromagnética. Isso quer dizer que quanta de luz são usados como moeda de troca entre estados quânticos. No caso de núcleos, os níveis de energia são muito maiores e os quanta de luz trocados têm energia também elevada. Por isso, processo de decaimento nuclear (mudanças de estados nucleares) envolvem a emissão de luz de altas energias (por exemplos, raios X ou raios gama). Embora os elementos descritivos dos estados no caso da atmosfera eletrônica e do interior nuclear sejam diferentes (assim como as regras para os arranjos de partículas), os mesmos princípios da física quântica estão envolvidos. Outro jeito de se modificar estados quânticos é através a observação ou realização de uma medida. Abordaremos esse assunto um tanto complexo em um futuro post.

Mas a analogia não é totalmente válida...

Fig. 3
Até aqui usamos a analogia do guarda roupas para ilustrar de forma simples o conceito de estado quântico. Mas essa analogia não se sustenta por muito tempo ao se constatar que a Natureza pode ser ainda mais estranha do que as nossas maiores fantasias. Imaginemos por um momento que nosso guarda roupas tivesse um mecanismo especial pelo qual fosse possível compartilhar o mesmo espaço entre camisas diferentes. Por exemplo, que fosse possível que camisas brancas e escuras pudessem ser misturadas (sem perderem seu estado se bem passadas!) de forma a se colocarem na mesma posição do espaço. Isso pode ser também pensado como uma mistura entre estados de arrumação diferentes. Imaginemos também que nós só poderemos saber a posição exata onde cada uma das camisas se encontra ao abrirmos o guarda roupas.  Quando fazemos isso, nosso sistema muda  (diz-se 'colapsa') para um dos estados de arrumação possíveis não misturados! 

Embora impossível de acontecer em nosso mundo 'macroscópio', isso é plenamente possível na microfísica: misturam-se estados puros de forma que um mesmo elemento (por exemplo, um elétron no átomo) ocupe mais de um estado 'puro' ao mesmo tempo. Tais são os chamados 'estados quânticos mistos' e, quando isso acontece, não é possível associar um 'nível de energia' único a um tal estado. O estado misto é então descrito não somente pelos rótulos dos estados puros, mas com uma quantidade adicional de números correspondentes ao número de estados puros (auto estados) envolvidos na mistura. Esses novos números estão associados à probabilidade de se encontrar o sistema físico naquele estado puro correspondente. Tal possibilidade de mistura tem consequências bizarras para o nível macroscópico e que foram exploradas através do chamado gato de Schrödinger (Fig. 3). Para se criar misturas desse tipo, não apenas sobreposições de estados são necessárias, mas também outra propriedade de sistemas quânticos chamado entanglement (ou emaranhamento). Deixaremos, porém esse assunto para outro post. 

Assim, chegamos à conclusão que um sistema físico quântico não é apenas caracterizado por seus elementos constituintes, mas que ele também possui estados característicos que são propriedades fundamentais desses sistemas. Esses estados servem para organizar a maneira como os elementos devem se dispor no sistema e podem ser misturados de tal forma que não é possível associar um estado único e definitivo a um sistema quântico. Tais estados organizam a matéria de forma definida por leis específicas. Além disso, eles evoluem no tempo, o que dá origem à evolução quântica de estados. Também vimos que um estado quântico é descrito por um conjunto de números ou rótulos e que tais números são parâmetros melhores para caracterizar o estado físico do que os parâmetros usados na física de objetos macroscópios. Conceitos com o 'posição' e 'velocidade' deixam de ter validade e são substituídos por outros.

A analogia em física clássica mais próxima possível é com o estado de vibração de cordas em instrumentos musicais ou com fenômenos sonoros. Um estado puro corresponde a uma nota fundamental em um instrumento, enquanto que um estado misto é análogo a uma mistura de notas. Mas, de novo, tal analogia não é totalmente válida, dado o caráter probabilístico e a maneira peculiar com que a mistura é feita, que é bem diferente da mistura de sons ou notas musicais.

Notas
  1. Atenção! A wikipedia descreve (em 2012) um estado quântico apenas com referência aos números quânticos que localizam elétrons em átomos. Essa descrição é muito limitada. Um estado quântico é um estado geral que caracteriza qualquer tipo de sistema físico e não apenas átomos.
Outras referencias

Este post é a continuação dos seguintes anteriores: