30 de dezembro de 2016

Descrição de um acidente aéreo por um espírito


"Não pense que sofro outra espécie de angústia
 senão essa que me vem de sua ternura torturada 
e de nossa família amorosa e inesquecível. 
Se me lembrarem tranquilo, estarei seguro de mim. 
Se me recordarem conformados, a resignação estará comigo. 
Não julguem que vim para cá fora de tempo. 
Hoje sei que o meu tempo terrestre era curto." 
(R.T. Richetti, "Entre duas vidas", Ed. Boa Nova)
Por coincidência, na semana da ocorrência do desastre aéreo com o time da cidade de Chapecó, tive a oportunidade de ler um texto psicografado por Chico Xavier em fevereiro de 1993 (1) que descreve as circunstâncias de uma acidente aéreo ocorrido em junho de 1992. Nessa carta, o Espírito Celso Maeda descreve seus últimos instantes como encarnados antes do acidente que culminou na queda - por colisão com o mar - da aeronave Beech F 90-1 King Air, que carregava quatro ocupantes.

Os detalhes técnicos do acidente, eu consegui encontrar na internet (2). O avião havia partido do aeroporto de Itumbiara (GO) com destino a Blumenau (SC), mas sua queda se deu no mar, na altura da cidade de Navegantes (SC). A causa do acidente foi reconhecido como as péssimas condições meteorológicas, o que está descrito em detalhes na carta enviada:
Subimos céus acima ou tentamos subir… Não era fácil raciocinar ante o perigo maior que se aproximava. Tentou-se a elevação da máquina, mas o vento prosseguia implacável qual se fosse um conjunto de forças maléficas interessadas em derrubar-nos.
Não temos dúvidas quanto ao desespero e apreensão que toma conta de todos os envolvidos nesses momentos:
Estávamos à mercê dos acontecimentos que o furacão nos impunha. O piloto e o companheiro que o assessorava estavam pálidos, agravando-nos as dúvidas e o desconforto de que nos sentíamos possuídos. Debalde procurávamos alguma nesga de céu azul. Achávamos-nos como que trancados por dentro de uma nuvem que parecia guardar o vento furioso que não encontrava uma saída a fim de expandir-se.
Por dentro éramos a aflição de quem não eximiu-se da morte compulsória e por fora de nós vimos claramente que um enorme banco de areia nos aguardava, asfixiando-nos a todos.
E, finalmente, a descrição do grande despertar:
A água marinha encharcada de areia nos penetrava os pulmões e quando me vi totalmente esmagado nada sabendo de meu irmão e dos companheiros que nos guardavam a viagem, quando no auge do meu desespero íntimo, vi que uma senhora caminhava naturalmente sobre as águas e, ao abraçar-me, solicitou-me concentrar na fé em Deus e me disse: “Meu filho, você está conosco. Sou a sua avó Ai, que venho retira-lo da areia. Seu avô Tsunezaemon retirará seu irmão. Haverá socorro para vocês todos. O pilo e o co-piloto serão resguardados”.
Em acidentes desse tipo, quando um grupo de pessoas acaba retornando mais cedo à vida real, é plenamente natural que os que ficam sintam a fragilidade não só da vida humana, mas de todas as perspectivas e planos que se faz ao se viver.

Se a vida humana (a presente) pode ser considerada frágil - e de fato é porque existem leis materiais que determinam de forma rigorosa seus limites -  a condição de paternidade espiritual indica outra coisa bem diferente. Nossa vida material é frágil porque ela não é a vida verdadeira do Espírito, que não está sujeito a esses limites severos impostos pela condição de materialidade, mas depende de laços facilmente rompidos com as influências do ambiente. O instante da morte, em momento como esse se assemelha a um novo despertar, a partir do qual novos planos e diretrizes serão feitos pela alma imortal. Os que ficam, se não se prepararem, guardarão por muito tempo as impressões da saudade, mas a verdade é que eles apenas partiram alguns instantes antes de nós.

Referências

(1) Ref. "Dádivas Espirituais". F. C. Xavier, Espíritos diversos. Ed. IDE.


16 de novembro de 2016

VIII - Livro: Fogo Selvagem, Alma Domada.


"E, desde que a ausência dessas pessoas despopulou grande parte do país, a rainha foi informada de que o comércio estava em declínio; mas, dando pouca importância para a queda em suas receitas e priorizando altamente a limpeza de suas terras, disse que a coisa essencial era purificar o país do pecado da heresia, pois entendeu que estava a serviço de Deus e do seu próprio. E, as representações que foram feitas a ela sobre essa questão não surtiram efeito, pois não alterou sua decisão." (H. Kamen, 4)

Uma excelente dica de leitura é a obra "Fogo-Selvagem, Alma Domada, a doença e o Hospital do Pênfigo de Uberaba: História e psicografia" de Nadia Luz, com as organizadoras Cléria Bittar e Nadia Marcondes Luz e editado pelo CCDPE-ECM. Esse é um livro denso e meticuloso, resultado do trabalho de doutorado de Nadia Luz e repleto de detalhes e fatos interessantes sobre a vida e obra de dona Aparecida Conceição Ferreira, a "Dona Aparecida do Fogo Selvagem". Para quem não conhece, trata-se da saga de uma verdadeira heroína e sua luta para o acolhimento de milhares de doentes portadores do Pênfigo Foliáceo, uma doença auto-imune, típica de regiões tropicais. Seus esforços culminaram com a construção e manutenção do Hospital do Pênfigo, na cidade de Uberaba (1), com uma intensa relação com o movimento espírita local (2).

Um resumo da vida de Aparecida Ferreira está bem colocado na página inicial do Hospital do Fogo Selvagem (1):
Esta instituição existe graças à dedicação e persistência de uma mulher, Dona Aparecida (a Vó Cida), que com muita luta e amor aos portadores do pênfigo foliáceo conseguiu concretizar esta obra. Vó Cida começou a trabalhar com os pacientes do “fogo selvagem” em 1957 como enfermeira do setor de isolamento na Santa Casa de Uberaba. Devido às dificuldades do tratamento e também à falta de informação e preconceitos contra a doença na época, a Santa Casa acabou por “liberar” esses pacientes, muitos ainda sem condição de alta. Vó Cida então não hesitou e levou os pacientes para sua própria casa. Depois de enfrentar preconceitos, pedir esmola, ser até presa, mas com a ajuda de várias pessoas do bem, entre elas Chico Xavier, Vó Cida criou o Hospital do Fogo Selvagem, que mais tarde passou a se chamar Lar da Caridade.
Embora seja verdadeiramente uma obra de pesquisa em história, é difícil não se comover com os fatos narrados por Nadia Luz. Neste post, discutimos alguns aspectos de um eixo fundamental teórico que orientou a abordagem de "Fogo Selvagem, Alma Domada".

As bases da mecânica de causa e efeito entre vidas sucessivas

A história de Dona Aparecida oferece excelente material para estudo e meditação dos espíritas em torno do tema "ação e reação" entre várias encarnações. A tese principal da obra "Fogo Selvagem, Alma Domada" explora essa dinâmica, que se oferece também como processo terapêutico, favorecendo a aceitação e a superação de inúmeros problemas e dramas em torno da moléstia protagonista do "enredo" da vida de Dona Aparecida. Uma doença que tem cura mas que, em seu auge, se apresenta com características típicas de um fogo que continuamente arde; doentes e mais doentes, depois de abandonarem seus lares e peregrinarem por inúmeros consultórios; a doença aliada à fome, à rejeição familiar e o abandono e uma mulher determinada a tratar deles, num ambiente francamente hostil e capitaneado por uma religião cristalizada em dogmas. A que se deve essa fixação no tratamento de tantos desvalidos, quando teria sido muito mais fácil a ela simplesmente virar as costas e cuidar de sua família? O que fez Dona Aparecida se expor a inúmeras humilhações e dificuldades por causa de um grupo de portadores de uma doença particular?

A resposta é construída ao longo da obra, que tem como principal fundamento a ideia das "simetrias históricas" desenvolvida por Hermínio Miranda. Essa tese se apresenta como princípio orientador da busca de pistas e detalhes que passariam despercebidos caso essa teoria não for admitida. Essencialmente, um grupo social, praticante de delitos - não só por atos, mas principalmente pensamentos e posturas - ressurge no Século XX para reencetar e, ao mesmo tempo, resgatar um enredo passado há séculos. No centro desse ressurgimento uma mulher, dantes rainha e, portanto, líder de um movimento sustentado no Estado e na Religião para perseguir e punir, agora coordena vasto trabalho de reparação. E justamente aquela religião dominante, em nome da qual inúmeros crimes foram praticados, imporá empecilhos e obstáculos na realização da tarefa.

Se aceitarmos a nova visão histórica da Inquisição Espanhola, conforme descrita, por exemplo, em diversos pesquisas modernas (3), não passaram de 3000 o número de pessoas executadas na fogueira, enquanto que 150 mil é o número dos que sofreram algum tipo de processo inquisitorial. Cerca de 7000 foram o número de doentes com Pênfigo tratados diretamente pela equipe de Dona Aparecida entre 1957 e 2003, ainda que esse número esteja contaminado com as reincidências da doença (ou seja, o número real de casos únicos é menor que 7 mil). Há ainda muito a se investigar a respeito do mecanismo da lei de ação e reação, entretanto, em termos numéricos, os números são da mesma ordem.

Conjecturamos, porém, que por não ser doença fatal, a sintomatologia da doença recaia sobre aquelas personalidades que exerceram o ódio e a perseguição sistemática contra grupos minoritários (no caso, judeus conversos ou não na Península Ibérica sob suspeita de heresia, ver 5) e que não necessariamente estejam envolvidas diretamente com os processos inquisitoriais. Sabemos que, por motivos apenas tangencialmente religiosos, populações inteiras se envolveram na perseguição desses grupos (5) e é natural esperar que esses, reunidos após alguns séculos,  venham exercitar sob novas bases o resgate desses débitos morais por mecanismos complexos onde apenas vislumbramos algumas partes. Assim, as passagens evangélicas:
Ouvistes que foi dito aos antigos: Não cometerás adultério.
Eu, porém, vos digo, que qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela. Mateus 5:27,28
longe de estabelecerem os critério de um pecado específico (no caso a chamada "concupiscência carnal" na visão de algumas religiões), estabelecem um princípio: o começo de um erro moral qualquer que seja ele está no pensamento (ver também questão 745 de "O Livro dos Espíritos" de A. Kardec). Compreende-se que assim deva ser porque palavras de arrependimento quase em nada têm a ver com o que realmente o espírito pense ou sinta, e o que o espírito pensa e sente é o que ele carrega para além do túmulo. Dada uma época, é praticamente impossível alterar o pensamento geral de uma sociedade em relação ao que ela entende como um crime, que é produto não só da herança cultural e de interesses imediatos, mas também do nível evolutivo daquela população naquele momento. Portanto, as perseguições realizadas na Espanha nos Séculos XV e XVI, e que foram apontadas como no centro dos resgates em "Fogo Selvagem, Alma Domada" não estão exclusivamente sob responsabilidade da Igreja, mas de todos aqueles que apoiaram abertamente seus processos e que se serviram deles para satisfazer seus interesses. 

Coincidências ou simetrias históricas?


O relacionamento entre os personagens diversos que fizeram parte da saga da D. Aparecida encontram eco em diversas "pistas" na própria história de Uberaba. Uma que chama a atenção foi a enorme concentração de igrejas e grupos religiosos católicos que se instalaram em Uberaba já no século XIX. Atesta isso a obra "Terra Madrasta" (6), de 1926, que é citada em "Fogo Selvagem, Alma Domada": 
Poderia Uberaba, centro da beatice, centro de inúmeras irmandades, terra de procissões e de conventos, vítima desgraçada da perniciosa influência clerical constituir uma exceção à regra ou um desmentido ao conceito geral e proclamado sobre o clero (...) Eis a terra por excelência dos padres, frades e freiras! (...) Como é sabido, os frades dominicanos tomaram conta do prédio onde devia funcionar o hospital de misericórdia local e por longo tempo 'ficaram senhores do referido prédio que nunca funcionou, nunca prestou infelizmente o serviço que seu fundador esperava' (Gazeta de Uberaba, 1891). 
Em particular, a ordem dos Dominicanos, oriundos da França, exatamente de uma região onde, em tempos muito remotos, uma perseguição que usou o fogo como arma aconteceu, escolheu Uberaba como um dos primeiros lugares para sua fixação:
Igreja de N. S. das Dores, fundada por Dominicanos
em Uberaba no Século XIX.
Insatisfeitos com os capuchinhos, integrantes da Ordem  Franciscana, após reclamações publicadas no periódico local, ganharam dos uberabenses, no ano de 1881, a possibilidade de verem instalados em seu território os primeiros integrantes do primeiro núcleo de representantes da Ordem Dominicana no Brasil. Chegaram ao Brasil, oriundos da região de Toulouse, na França, os frades Raimundo Madre, Lázaro Melizan e Gabriel Mole, posteriormente chegando também Raimundo Anfossi, como intuito já definido de fundarem em Uberaba de imediato um colégio. Assim que chegaram, deram início às construções da igreja São Domingos e fundaram nas dependências da Misericórdia, o Colégio Nossa Senhora das Dores, com o plano de trazer logo em seguida o braço feminino da ordem, de modo a formarem-se escolas para educação de jovens nos parâmetros idealizados pela ordem fundada por Domingos de Gusmão, um dos principais nomes guardados pela história quando da cruzada contra os Cátaros do Languedoc, próximo a Toulouse. (Cap. 1, p. 69)
Esse grupo religioso desempenhou papel fundamental nos obstáculos porque passaria a iniciativa de D. Aparecida junto aos doentes do pênfigo, de novo, não por "mero acaso" (o leitor deve verificar por si ao ler a obra de Nadia Luz). Por outro lado, podemos ler em Kamen (4), Cap. 3:
A evidência parece ter impressionado a coroa que pediu informações sobre a situação de Sevilha. O relatório, apoiado pela autoridade de Pedro González de Mendoza, arcebispo de Sevilha e por Tomás de Torquemada, prior de um monastério Dominicano em Segovia, sugeria que, não somente em Sevilha, mas por toda Andaluzia e Castela, os conversos estavam praticando ritos judaicos em segredo. Tendo aceitado esse testemunho, Fernando e Isabela aprovaram a introdução da maquinaria da Inquisição em Castela e enviaram um pedido a Roma por uma bula institucional.
Assim nos parecem razoáveis a apresentação dos fatos que haveriam de tornar Uberaba, desde o Século XIX, terra de inúmeras intrigas envolvendo grupos religiosos, políticos, leigos e a maçonaria, ao mesmo tempo em que abrigava grande contingente de hansenianos e, posteriormente, portadores de pênfigo foliáceo. Em suma, um reencenamento do passado, em escala reduzida geograficamente e comprimida no tempo...

Apreciação final
Se considerarmos o quanto, nos séculos passados, eram frequentes, mesmo nas classes mais elevadas e mais esclarecidas, os atos de barbárie que tanto nos revoltam hoje; quantos homicídios eram cometidos nessas épocas em que não se dava importância à vida de seu semelhante, em que o poderoso esmagava o fraco sem escrúpulo, compreenderemos quantos deve haver, entre os homens de hoje, que têm de lavar seu passado; não será mais de espantar o número tão considerável de pessoas que morrem vítimas de acidentes isolados ou de catástrofes gerais. O despotismo, o fanatismo, a ignorância e os preconceitos da Idade Média e dos séculos que a seguiram, legaram às gerações futuras uma dívida imensa, que ainda não está liquidada. Muitas desgraças parecem-nos imerecidas apenas porque não vemos senão o momento atual. (A. Kardec, O Céu e o Inferno, Segunda Parte, Capítulo VIII - Expiações terrestres).
"Fogo Selvagem, Alma Domada" oferece muitos dados para estudos futuros em torno da dinâmica da lei de ação e reação. As muitas revelações e explicações dadas naquele momento por fontes mediúnicas fidedignas com relação a raison d'être do drama protagonizado por D. Aparecida e seus doentes tornam isso possível. Essas explicações foram, na obra, subsequentemente complementada por dados interessantes do passado da região de Uberaba/MG desde o Século XIX, e que são detalhes inexplicáveis se a ideia de um resgate sob o comando de uma lei maior não for admitido. Assim, por exemplo, podemos entender porque muitos doentes abandonavam suas casas em busca de tratamento, depois da rejeição de familiares, a sintomatologia da doença, curável, porém nitidamente caracterizada por uma dor como um fogo que arde em consonância com fatos históricos da época identificada como simétrica.

Esses coincidências e singularidades corroboram e justificam a importância do princípio da "causa e efeito", validando de forma ampla todo o conjunto da Doutrina Espírita. Temos assim condições adicionais de compreender e prever as consequências de nossa postura e de nossos pensamentos, que muitos ainda relativizam como sendo de menor importância no concerto da vida maior. Na verdade, essas consequências podem atravessar séculos junto a nós até que surja o momento de serem convenientemente resgatadas. Deus é justo.

Dados da obra

Título:  Fogo-Selvagem Alma Domada. A doença e o hospital do Pênfigo de Uberaba: História e Psicografia.
Coleção "Espiritismo na Universidade", volume 4. 
Ed. CCDPE-ECM. Franca, SP, 2012.
Capítulos da obra

1 - Uberaba: da hanseníase ao fogo-selvagem;
2 - O hospital: textos e contextos, histórias e psicografia;
3 - Pênfigo foliáceo endêmico: história de uma doença no Brasil;
4 - O fogo-selvagem na cultura e na filosofia da história do Espiritismo;
5 - Memória, poesia e literatura mediúnica: Dona Aparecida, Chico Xavier, médiuns e espíritos diversos.

Referências

1 - Hospital do Fogo Selvagem: http://www.fogoselvagem.org/ (acesso em novembro de 2016).
2 - Lar da Caridade: http://www.lardacaridade.org.br/ (acesso em novembro de 2016)
3 - Spanish Inquisition. https://en.wikipedia.org/wiki/Spanish_Inquisition que cita (4);
4 - Henry Kamen (2014) The Spanish Inquisition: A Historical Revision. New Haven & London: Yale University Press.
5 - No caso da Espanha e Portugal, as origens dessa ódio estão bem descritas em (4) e referem-se a expulsão e conversão forçada de grupos judeus na península Ibérica no Século XIV, dentre outros. Famílias inteiras foram separadas entre os que escolheram se converter e os que partiram. Os que resolveram ficar formaram um "povo marginalizado", conforme descreve Kamen, o que daria origem a uma situação de tensão social:
O distanciamento dos conversos tinha certa lógica. O grande número de conversos depois de 1391 não podia ser colocado dentro das estruturas sociais existentes. Em Barcelona e Valência da década de 1390, eles tinham suas próprias igrejas, no caso antigas sinagogas. Eles também formaram suas próprias fraternidades conversas. Na coroa de Aragão, eles se auto intitulavam com orgulho "Cristãos de Israel". Tinham sua própria vida social e casavam entre si. Palencia observa que eles eram "inflados, insolentes e arrogantes"; Bernáldez criticou a "altivez com que ostentavam sua riqueza e orgulho". Essas atitudes de conversos eram provavelmente criadas como instinto de auto-defesa muito mais do que arrogância. Mas, elas contribuíram para criar um muro de desconfiança entre antigos cristãos e recém conversos. Em particular, a ideia de uma nação conversa, que se fundamental na mente dos então judeus cristão, fez com que eles se parecessem com um grupo a parte, alienado e inimigo da união. O que não deixou de ter consequências fatídicas. (H. Kamen, (4), Cap. 3.) 
6 -  O. Ferreira (1926). Terra madrasta: um povo infeliz. Uberaba: edição do autor. Citado em "Fogo Selvagem, Alma Domada". Ver também: http://www.uberabaemfotos.com.br/2014/07/terra-madrasta-um-povo-infeliz/ (Acesso em novembro de 2016)

11 de outubro de 2016

Novo filme sobre visões no leito de morte.

Trailer oficial de "Death is but a Dream".

A morte é um paradoxo. Fisicamente você está em declínio, 
mas espiritualmente e emocionalmente você está vivido, 
vivo e presente. (Dr C. Kerr. Hospice Buffalo).

Então, a morte era tudo aquilo que eu não esperava
 e que se traduzia por uma transferência de casa 
endereçando-nos para afeições que supúnhamos perdidas para sempre?
Pedro Rufino. Carta Psicografada em 20/2/1981. (3) 

Há um novo filme em produção fora do Brasil, com um tema bastante caro aos espíritas. Como já discutimos aqui em vários posts (1), a existência do Espírito e sua entrada em liberdade com a proximidade da morte gera fenômenos na chamada "interface" entre a vida e a morte. 

Um desses fenômenos são as chamadas "visões do leito de morte", nos quais pessoas nos estágios terminais da vida relatam encontros com familiares já falecidos. Esse fenômeno ocorre com certa frequência em leitos de hospitais e sempre foi considerado como um tipo de delírio para a maioria dos médicos e profissionais de saúde que lidam com a situação.

Agora, um time de clínicos e profissionais liderados pelo Dr. Christopher Kerr em um hospital de Buffalo, NY, (2) estão tentando compreender melhor esse fenômeno com o objetivo de melhorar a situação em que se encontram os que se avizinham da morte.  O que intriga especialistas é que os relatos são descritos como do tipo "sonhos lúcidos", ou seja, sonhos em que o mínimos detalhes são relembrados pelos pacientes. Cerca de 80% dos pacientes relatam esse tipo de sonho a ponto de enfermeiras poderem prever com grande precisão o momento da desencarnação.

Quase todas essas ocorrências são consideradas presentemente como alucinações e, portanto, como produzidas por efeito de remédios ou do "cérebro agonizante". Um problema surge, entretanto, com o acúmulo de casos em que pacientes têm relatos bastante regulares e uniformes. Conforme descrito pelo Dr. Kerr, cerca de 1/3 dos casos, por exemplo, envolve algum tipo de sonho de viagem como que preparando para a outra "grande viagem". Outros exemplos envolvem a visão de animais também "desencanados" que são trazidos pelos parentes todos eles já falecidos. Alucinações ou sonhos comuns não tem "temática" predefinida e não seria esperado esse tipo de regularidade entre tantas pessoas diferentes na mesma situação. É provável que esses relatos também ocorram em outras culturas e também em todas as épocas. 

Essa pesquisa está sendo usada para o filme "Death is but a dream" (que podemos traduzir como "A morte é apenas um sonho"), cuja página pode ser acessada em:


O trailer oficial pode ser visto acima.  O filme será oficialmente lançado em 2017.

Pacientes descrevem esses sonhos como "mais reais do que reais": "Minha mãe e meu pai estavam lá, todos os que eu sabia mortos estavam lá...Achei ele um bom sonho, mas olha, eu me lembro de cada detalha dos rostos das pessoas..."
Referências

(1) Ver, por exemplo:
(2) J. Hoffman (2016). "A New Vision for Dreams of the Dying". The New York Times. Acesso em outubro de 2016 via:
(3) Correio do Além. Psicografia de F. C. Xavier. Editora EME, 1983.

2 de setembro de 2016

A questão sobre o magnetismo animal e o nome "magnetismo" I


A maior parte das pessoas frequentemente emprega as mesmas palavras para designar coisas diferentes. As pessoas têm mais intuição do fenômeno da polissemia do que uma compreensão racional imediata dele. Tomemos como exemplo a palavra "amor". Pode-se compor um dicionário inteiro com diferentes significados dessa palavra, claramente polissêmica. E esse fenômeno ocorre em muitos outros idiomas. Porém, no caso de "amor", não parece existir divergências quanto ao seu uso, já que o significado é dado pelo contexto em que a palavra é empregada. O que "amor" realmente significa é tão fácil de ser apreendido pelo contexto que mais informações são desnecessárias. 

Coisa bem diferente ocorre quando a palavra é pouco usada ou está inserida em um contexto pouco usual (por exemplo, científico). Podem então surgir confusões consideráveis. Isso é o que acontece com o significado do termo "magnetismo", principalmente se usado sem cuidado ou na mistura entre Espiritismo e outros assuntos. Alguns comentários elucidativos são abordados neste post.

Origens da palavra

Frequentemente, a multiplicidade de significados está ligado à origem das palavras. No caso de "magnetismo", é importante conhecer sua origem. Segundo a monumental obra de Wittaker (1), 
Os antigos estavam cientes das propriedades curiosas de dois minerais, o âmbar (ηλεκτρον) e o minério de ferro (η λιτθος Μαγητισ). O primeiro, quando atritado, atraia corpos leves; o último tinha o poder de atrair o ferro.
A referência (1) também cita o conhecimento chinês muito antigo da propriedade de atração dos magnetos. Em (2) encontramos indicações sobre a origem da palavra propriamente dita:
Na Grécia, Aristóteles reportou que Tales de Mileto (625 a C - 547 a C) conhecia a pedra-imã, e Onomácrito nos forneceu o mais antigo nome que se refere a ele, o magnetes que evoluiu para magnitis, de onde se deriva o termo moderno magnetita. Sófocles (495 a C - 406 a C) chama a pedra-imã de "rocha Lidiana", enquanto que Platão (427 a C- 347 a C) no "Timeu" a denomina "rocha Heraclitiana". Esses vários nomes sugerem que, na antiguidade Greco-Romana, os primeiros magnetos eram feitos de minérios encontrados em Sípilo, próximo a uma cidade da Ásia menor chamada "Magnesia ad Sipylum". Essa cidade é a origem da palavra "magnetismo" e "magnetita". (grifo meu)
Outra referência à "Magnesia de Sípilo" (atual Manisa na Turquia) pode ser encontrada em (3). Essa mesma fonte diz que o próprio nome Magnesia "deriva da tribo dos magnetes, que imigraram para a região vindos de Magnésia, na Tessália". Para complicar ainda mais, existe uma outra Magnésia próxima a Manisa, chamada "Magnesita de Meandro" (3). 

De qualquer forma, o significado físico de magnetismo é anterior ao que foi dado no Século XIX para o magnetismo animal, o que portanto difere daquele que aparece citado em várias obras de Kardec (6). Ainda segundo (1), William Guilbert (1540-1603): 
...fez a descoberta capital sobre a razão porque magnetos se orientam de forma definida com respeito à Terra; que é, do fato de a Terra ser ela mesma um grande magneto, tendo um dos polos nas latitudes mais ao norte e outro nas mais ao sul. Assim foi a propriedade da bússola descrita pelo mesmo princípio, de que o polo que busca o norte de todo magneto é atraído pelo polo que busca o sul de outro magneto, e é repelido pelo que busca o norte deste último. Gilbert foi além e conjecturou que as forças magnéticas seriam capazes de explicar a gravidade da Terra e o movimento dos planetas.
Ilustração do fenômeno físico de atração magnética causado por um imã que só ocorre com alguns tipos de corpos materiais.
Modernamente, magnetismo é descrito como:
Uma classe de fenômenos físicos que são mediados por campos magnéticos (4); 
Fenômeno associado a campos magnéticos que surge do movimento de cargas elétricas. Esse movimento ocorre de várias formas. Pode ser uma corrente elétrica em um condutor ou uma partícula carregada movendo-se no espaço, ou o movimento de um elétron em um orbital atômico. O magnetismo está associado a partículas elementares tais como o elétron que tem uma propriedade chamada spin. (5)
Entra o conceito de "ação a distância"


A ação do magneto fornece uma imagem viva da atuação do que parece ser uma força invisível, que atua a distância. Se hoje nos maravilhamos com esse fenômeno, não menos assombrados ficaram os antigos. De acordo com (1):
Agora, um dos problemas da filosofia natural era resolver o problema da ação transmitida entre corpos que não estavam em contato um com o outro, tal como aqueles indicados pela ação dos magnetos ou pela conexão entre a posição da lua de um lado e o fluxo das marés de outro. 
Para os antigos gregos, não poderia haver força se não fosse por ação da pressão ou do contato. Logo, deveria haver a intervenção de um meio que causasse o fenômeno. Essa ideia foi incorporada na física de Descartes, que surgiu quase que ao mesmo tempo de Newton e que defendia a existência de uma substância sutil a permear todo o espaço. Essa substância seria responsável pela força de atração e repulsão nos fenômenos do magnetismo (físico), eletricidade e gravitação (1):
Descartes tentou explicar os fenômenos magnéticos por sua teoria dos vórtices. Adotando a sugestão de Gilbert, ele postulou um vórtex de matéria fluídica ao redor de cada magneto, a matéria do vórtex entrava em um polo e saia pelo outro: assumia-se que essa matéria atuava sobre sobre o ferro e o aço em virtude de uma resistência especial ao seu movimento garantida pelas moléculas dessas substâncias. 
Identificamos nos vórtices de Descartes a ideia antiga de um fluido a impregnar todo o espaço, o famoso éter, que foi usado para explicar a ação a distância e a propagação da luz. Entretanto, a teoria dos vórtices de Descartes foi abandonada diante do triunfo de Newton e seus seguidores com a teoria da gravitação, que dispensava qualquer mecanismo tangível responsável por sua força. A teoria de Newton era eminentemente pragmática, sua  proposta representou acima de tudo um rompimento com a filosofia e sua busca por causa mais profundas dos fenômenos. Para os adeptos de Newton, isso não era necessário porque a teoria já permitia medir e calcular tudo o que fosse de fato possível saber sobre o fenômeno (7):
Não fui capaz de descobrir a razão para essas propriedades da gravidade a partir dos fenômenos e não faço hipóteses. Pois, o que quer que não seja dedutível dos fenômenos precisa ser chamado de hipótese; e hipóteses, sejam elas metafísicas ou físicas, baseadas em qualidades ocultas ou mecânicas, não tem lugar na filosofia experimental. Nessa filosofia, proposições particulares são inferidas a partir dos fenômenos e, depois, generalizadas por meio da indução.
A cisão introduzida por Newton perdura até hoje. A maior parte das teorias da física, entretanto, substituiu esse agente  sutil por outros responsáveis pela força.

Ação de um fluido

Ainda que a física Newtoniana tivesse dispensado o uso de uma substância intermediária responsável pela força de ação a distância, seu uso como agente explanativo continuou a ser feito por cientistas por boa parte dos Séculos XVIII e XIX. Isso pode ser lido na diversas referências históricas nos desenvolvimentos das teorias da eletricidade (1):
Um interesse em experimentos elétricos parece ter sido passado por du Fay para outros membros da corte de Luís XV; e, de 1745 em diante, as Memórias da Academia contêm uma série de trabalhos sobre esse tema de autoria de Abbé Jean-Antoine Nollet (1700-1770), que foi nomeado preceptor em Filosofia Natural da família real. Nollet explicou os fenômenos elétricos como devidos ao movimento de duas correntes de fluido 'muito sutis e inflamáveis' em direções opostas, que ele supunha estarem impregnados em todos os corpos em iguais circunstâncias.Quando um corpo do tipo 'elétrico' é excitado por fricção, parte desse fluido escapa de seus poros formando uma corrente efluente. Sua perda é contrabalançada por uma corrente afluente desse mesmo fluido que entra no corpo do outro lado.
Um copo de plástico eletrizado atrai sem contato um filete de água. Esse fenômeno sempre maravilhou os antigos que imaginaram ser a prova da ação de uma substância invisível entre os corpos
A ideia de dois tipos de fluidos elétricos, um 'positivo' e outro 'negativo' deu origem mais tarde à noção de 'corrente elétrica' em experimentos de eletricidade dinâmica. Ela foi usado de forma fértil por grande parte dos "eletricistas" como uma heurística orientadora de experimentos e pesquisas. E, a partir das explicações criadas para a eletricidade estática, algo parecido foi aventado para o magnetismo (1):
A promulgação da teoria do fluido elétrico único na eletricidade, em meados do Século XVIII, naturalmente resultou em tentativas semelhantes com o magnetismo; o que foi efetivado em 1759 por Aepinus, que supos serem os 'polos' dos imãs lugares impregnados de fluido magnético em quantidade excedente ou em falta em relação às condições normais. 
A teoria do fluido magnético foi adotada pelo ilustre físico eletricista francês Charles A. de Coulomb (1736-1806), cujo sobrenome deu origem à unidade de carga elétrica. Para ele, o magnetismo se devia a decomposição de um fluido neutro em dois fluidos magnéticos (1). Na física, o uso de teorias envolvendo tipos diferentes de fluidos magnéticos foi abandonado por volta de 1850, com a descoberta de outros tipos de magnetismo, como o paramagnetismo e o diamagnetismo. Isso deu origem à teorias moleculares para explicar o magnetismo e a necessidade de se ter um fluido magnético foi descartada nas mesmas bases da teoria de Newton.

Corpos celestes que sofrem ação invisível de objetos distantes e que compõem a imagem do Universo em grande escala. Objetos ferrosos que são atraídos por algumas pedras especiais, sob quaisquer condições e mesmo embaixo d'água. Fluidos imponderáveis e invisíveis, supostamente trocados entre outros tipos de objetos após fricção no ar seco. Eletricidade vítrea e ambárica causadas pela emissão de eflúvios sutis. Esse era o "ambiente teórico" da física no final do Século XVIII e que serviu de palco para o surgimento do magnetismo animal, conforme veremos no próximo post.

Referências

(1) Whittaker E (1951). A History of the Theories of Aether and Electricity. "The Classical Theories",vol. 1, London: Thomas Nelson and Sons Ltd.

(2) du Trémolet de Lacheisserie E, Gignoux D & M. Schlenker (2002). Magnetism I, Fundamentals. Dordrecht, NE: Kluwer Academic Publishers Group.



(5) Enciclopédia Britânicahttps://global.britannica.com/science/magnetism

(6) "O Livro dos Espíritos", IV Parte: Das Esperanças e Consolações, "Conclusão". Versão www.ipeak.com.br

(7) Isaac Newton (1726). Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, General Scholium. Third edition, page 943 of I. Bernard Cohen and Anne Whitman's 1999 translation, University of California Press ISBN 0-520-08817-4, 974 pages.

2 de agosto de 2016

Uma interpretação espírita para o inconsciente

Um novo mundo emerge com as faculdades pouco usuais demonstrada por alguns humanos. Essas faculdades são previstas pela Doutrina Espírita como manifestações da liberdade do Espírito. Porém, alguns pesquisadores que estudaram o fenômeno depois de Kardec, criaram nomes diferentes para a fenomenologia psíquica, principalmente aquela relacionada às “manifestações anímicas”. De fato, surgiu uma mistura de termos que envolvem conceitos como “subconsciente”, “inconsciente” e “mente”. Por exemplo, tornou-se popular entre os adeptos entusiastas da parapsicologia o termo “poderes do subconsciente” ou “poderes da mente”.

O que seria isso? O prefixo “sub” evoca vagamente o que estaria “abaixo” do consciente, como se este último fosse uma coisa distribuída no espaço, talvez em camadas. Porém, o impacto do significado desses nomes na cabeça de quem os recebe depende da imagem, ideia ou conceito que ele faz desses termos, pouco claros em princípio. Para os espíritas, os “poderes da mente” ou do “subconsciente” nada mais são do que termos que fazem referência a fenômenos anômalos, todos eles com causa real no Espírito (e, portanto, não no corpo) e que foram tratados por Kardec genericamente como “emancipações da alma” (ver Capítulo 8 de “O Livro dos Espíritos”, LE, 1).

Por que insistimos nisso? Porque, em toda e qualquer disciplina que pretenda ser científica é preciso definir de forma não ambígua ou clara o significado de seus termos. No nosso entendimento, uma vez aceita a existência do Espírito como origem da consciência, fica fácil interpretar o significado de alguns desses termos:
  • espírito (LE Q #23): é o princípio inteligente, origem da inteligência. Em princípio, esse termo sintetiza o máximo que podemos saber sobre a origem do Espírito;
  • Espírito (LE Q#78 e sua nota): designação dada ao espírito dotado de consciência de si, liberto de ligações com a matéria;
  • alma (LE Q#134): um Espírito encarnado. Nesse caso, a alma deve ser usada para designar a parte do ser humano responsável por sua consciência;
  • consciência: fluxo de pensamentos, percepções e cognições do Espírito. No estado encarnado, a consciência possui faculdades mais limitadas do que a do estado desencarnado. Liberto da matéria, a alma tem também sua consciência, muito mais ampliada porque pode acessar o seu passado;
  • mente: seria um termo mais genérico que substituiria em significado a alma. Assim, em certo sentido “mente” e “alma” seriam sinônimos, pois dizem respeito à manifestação do Espírito encarnado. Apenas por uma extensão de significado, talvez fosse possível falar em “mente do Espírito”, quando, para nós, o termo "mente" deve se referir ao seu espírito;
  • cérebro (e sistema nervoso): contraparte material que está ligada ao espírito por meio de uma interface semi-material, o períspirito, e que exerce grande influência sobre as manifestações da alma. O cérebro tem papel de filtro da consciência integral do Espírito, servindo como meio de transmissão dessa consciência para o mundo material e levando ao Espírito informação através dos diversos sentidos ordinários. As manifestações de consciência de um encarnado seriam apenas uma pequena parcela de sua consciência espiritual.
Consciente, subconsciente e inconsciente

Como poderíamos entender do ponto de vista espírita, termos como “inconsciente” ou “subconsciente”? Para isso, é necessário consultar primeiro o significado moderno desses termos (2), o que nos leva a avaliar melhor a distância semântica entre eles e os conceitos espíritas e a constatar, de forma natural, que há uma diferença de objetivos no uso desses termos. De fato, mais recentemente, na psicologia usa-se:
  • consciente: é o estado de vigília, em que estamos acordados e temos “consciência” daquilo que nos rodeia. Veja que aqui o termo “consciência” não significa a mesma coisa expressa anteriormente. Em inglês usa-se “awareness” para designar esse estado, uma palavra que não tem tradução em português. “Consciente” refere-se a um “estado da mente”, portanto, “consciência” é simplesmente uma propriedade do estado consciente. Quando olho para um objeto em cima de uma mesa, a percepção de sua forma, a constatação de sua cor, a avaliação mental que faço de seu peso (que nada tem a ver com seu peso “real”) etc, indicam que estou “consciente“ dele. A percepção daquele objeto penetrou na minha mente e, nesse instante, faço ideia do que ele seja;
  • subconsciente: designa a percepção de um estado mental quando não tenho minha atenção “focada” em determinada coisa, objeto ou situação. Ao ter consciência do objeto em cima da mesa, não tenho simultaneamente lembrança alguma do que fiz no café da manhã do dia anterior, mas posso “me lembrar” caso faça um esforço nesse sentido. Assim, a extensão da “informação subconsciente” é muito maior do que aquela meramente consciente. Também por subconsciente designa-se o estado mental que me faz caminhar da minha casa ao trabalho, todos os dias, a prestar mínima atenção ao que se passa ao redor de mim. Essa “automatização” de atos, pelos quais faço algo “pensando em outra coisa”, tem sua causa na ação do subconsciente. O terreno ou “campo” da mente seria assim o “subconsciente”, sendo que sua “consciência” seria semelhante ao foco de uma lanterna dirigida para certo canto desse terreno;
  • inconsciente: do ponto de vista da psicologia, esse termo refere-se a algo ainda controverso. Designaria um repositório de desejos, lembranças, sentidos instintivos que não podem ser acessados facilmente, ou seja, que não podem ser transformados em “objetos mentais conscientes”. Um acontecimento traumático ocorrido em tenra infância, segundo a moderna psicologia, pode permanecer para sempre inacessível no inconsciente. Clama-se que esse acontecimento poderia afetar o desenrolar da vida consciente do indivíduo por meio de tendências psicológicas negativas inexplicáveis, por exemplo. 
Há espaço para uma “interpretação” espírita desses termos? Acreditamos que sim. Talvez a noção de “inconsciente” tenha sido avançada indiretamente no Espiritismo como consequência natural da comparação entre o estado de encarnado e o de Espírito liberto. O comparativo "como Espírito” é frequentemente encontrado em várias passagens de "O Livro dos Espíritos" (grifos meus abaixo):
Em cada uma de suas existências corporais o Espírito adquire um acréscimo de conhecimentos e de experiência. Esquece-os parcialmente, quando encarnado em matéria por demais grosseira, porém deles se recorda como Espírito. (2a Parte, "Do mundo espírita ou mundo dos Espíritos", Cap. 8, parágrafo 455.)
Q# 858. Por que razão os que pressentem a morte a temem geralmente menos do que os outros?

“Quem teme a morte é o homem, não o Espírito. Aquele que a pressente pensa mais como Espírito do que como homem. Compreende ser ela a sua libertação e espera-a calmamente.”
Q# 221. Dever-se-ão atribuir a uma lembrança retrospectiva o sentimento instintivo que o homem, mesmo quando selvagem, possui da existência de Deus e o pressentimento da vida futura?
"É uma lembrança que ele conserva do que sabia como Espírito antes de encarnar. Mas o orgulho amiúde abafa esse sentimento."
Nessas respostas fica claro que o resultado das ações conscientes do Espírito pode depender de seu estado, se encarnado ou parcialmente desdobrado, quando ele acessa parte de suas memórias, desejos e aspirações como Espírito imortal. Portanto, o “inconsciente” existe e designa o conjunto de lembranças, memórias e comportamentos do Espírito integral, produto do processo evolutivo em múltiplas existências. Não só traumas da existência atual, mas outros, muito mais marcantes poderiam ter impacto na vida presente de um encarnado. Isso parece ser validado por pesquisas recentes sobre memórias de vidas anteriores.
Fig 1. Uma interpretação espírita para os conceitos de 'inconsciente' e 'subconsciente'. O Espírito encarnado é como um mergulhador (em seu "escafandro de carne"), no grande oceano do inconsciente, que é a memória integral e multissecular do Espírito. Nesse oceano, um pequeno mar representa seu subconsciente, que dispõe de toda informação de sua atual existência, mas não diretamente acessível. Viver significar acender uma lanterna que ilumina parte desse mar e cujo foco é a atividade consciente, nosso "awareness" ou consciência.
Muitas representações em blocos da divisão entre inconsciente, subconsciente e consciente estão erradas ao separar esses conceitos em camadas, como se fossem ambientes contíguos. Na verdade, a consciência do Espírito é o grande oceano "inconsciente" do encarnado. Nesse oceanos encontram-se todas as lembranças, memórias e experiências já vividas de sua vida espiritual. Em algum canto dele, condicionado por seu estado encarnado, um minúsculo mar existe, de experiências acumuladas durante a vida presente a formar sua subconsciência. Nadando com certa dificuldade nesse mar, vai a mente encarnada, dispondo de uma lanterna a iluminar uma parcela ainda menor desse mar, que confere a ela - enquanto encarnado - sua vivência consciente, seu sentido de awareness, em  suma, uma consciência bastante limitada de sua existência no mundo (Fig. 1).

Por isso existe espaço para se dizer que, em certa medida, a mente encarnada não dispõe de livre arbítrio integral: ela está condicionada ao determinismo de sua vida maior, aos interesses multisseculares de seu Espírito imortal. Esse, por sua vez, é quem realmente toma as escolhas livres, conforme subordina seus desejos e interesses de evolução, ponderando suas próximas ações em consonância com seus grandes dramas existenciais. 

Outras observações

Não existem quaisquer divergências entre as concepções espíritas sobre consciência, mente ou estados mentais e as da moderna psicologia. O que se constata são significados diferentes, frutos de uma diferença de concepção do ser humano. A psicologia se interessa pelas manifestações da consciência encarnada, enquanto que o Espiritismo avança nas relações entre os Espíritos e o mundo material. Pela identificação de causas ocultas – o Espírito e suas múltiplas existências anteriores – é possível expandir nossa compreensão sobre eventuais ocorrências pregressas que têm impacto na vida encarnada. Estamos assim diante de possibilidades de avanços significativos para a psicologia.

É importante considerar que, de acordo com a literatura espírita, a condição de “awareness” do Espírito se assemelha à de seu estado encarnado (LE, Q# 238). Assim, a descrição via “consciente”, “subconsciente” e “inconsciente” talvez possa ser estendida para os desencarnados dentro de certa aproximação. Como desencarnado, o Espírito não mais se encontra sob influência da matéria e portanto, pode acessar conteúdo anterior ao de sua última existência. Para Espíritos a partir de certo estágio de desenvolvimento, a ideia de inconsciente desapareça totalmente (LE,Q # 242, #305 ) e suas lembranças tornam-se acessível integralmente, restando apenas o consciente e o subconsciente (ver Questão #306a, 307 de “O Livro dos Espíritos”).

Como Espíritos, nossas percepções são mais dilatadas (LE, Q# 237), portanto podemos também concluir que as manifestações de “awareness” do Espírito tenha uma dinâmica bastante diferente daquela de seu estado encarnado. Vislumbres desse novo consciente podem ser observados nos diversos fenômenos psíquicos considerados “anímicos”, como a “psicometria” (acesso a memórias associadas a objetos), “telestesia” (consciência de fatos distantes), “telepatia” (acesso a imagens e memórias de outros Espíritos), dentro outros, que exigem, para sua manifestação, que as percepções de vigília estejam alteradas ou, de outra forma, que a influência do organismo seja reduzida (LE, Q# 370). Compreende-se que assim deva ser, porque a matéria (lê-se cérebro) tem grande influência sobre as manifestações da alma. Como são eles produtos de uma mesma causa, estamos diante da explicação unificada para esses fenômenos.

Notas e referências.

(1) A. Kardec. "O Livro dos Espíritos" (LE). Uma versão online pode ser encontrada em www.ipeak.com.br

(2) R. J. Corsini & D. Wedding (2011). Current psychotherapies (9th ed.). Belmont, CA: Brooks/Cole

5 de julho de 2016

Como alguns animais podem encontrar o caminho de casa?

Permanece um mistério para a ciência como alguns animais conseguem encontrar seu caminho de volta para casa uma vez tendo se perdido. Um caso interessante foi o do cão Pero (1), da raça Sheepdog, que voltou para casa depois de perdido a 400 quilômetros de distância. Diversos outros casos semelhantes a esse acumulam-se com cães e gatos, e são narrados por famílias surpreendidas com a capacidade desses animais. Como eles conseguem? 

De acordo com o conhecimento científico presente, animais possuem diversos tipos de "sensores" (2) que podem ser usados na localização e na realização de viagens. Esses sensores não só representam sentidos muito superiores aos dos humanos (cães, por exemplo, tem olfato e audição muito superiores, gatos enxergam muito bem no escuro etc), mas também modalidades novas de sentidos, como, por exemplo, sensores magnéticos. Pássaros e abelhas possuem verdadeiras "bússolas" internas capazes de auxiliar o voo entre pontos distantes. Recentemente, uma molécula (chamada Criptocromo 1, Ref. 3), associada à recepção de "campos magnéticos", foi encontrada na retina de vários animais, cães inclusive. Será então que cães e outros mamíferos se guiam pelos campos magnéticos? Essas são apenas conjecturas, e, ainda que ficasse demonstrado que eles conseguem detectar a orientação da linha norte-sul, muito mais do que isso é necessário para guiar um animal em um trajeto complexo e distante de sua origem, como no caso de Pero. Para ver isso, basta se imaginar perdido em um local distante, sem poder se comunicar com quem quer que seja, tendo apenas uma bússola ou quiça um detector de odores...

Um ajuda do Espiritismo

Em um ensaio em "O Livro dos Espíritos", Cap. XXII "Da Mediunidade dos animais", Kardec apresenta uma dissertação atribuída ao Espírito Erasto, que também aparece na "Revue Spirite" de Agosto de 1861, sob o título "Os animais médiuns". O texto foi motivado por discussões na Sociedade Espírita de Paris, assim como diversas cartas que Kardec recebeu de pessoas que narravam feitos incríveis de seus animais. O leitor poderá reler a argumentação apresentada por Erasto, seguindo o link que colocamos abaixo (4). Essencialmente, na acepção pela qual ficou conhecida a palavra "médium", não se pode falar verdadeiramente em "mediunidade dos animais". A mediunidade é um fenômeno complexo que exige certa ressonância entre mentes que não pode estar distantes "evolutivamente" uma da outra. Assim, por uma questão de clareza no sentido do termo e seu significado dentro do Espiritismo, não podemos atribuir à mediunidade as narrativas desses fenômenos estranhos.

Mas, isso não significa que eles não possam detectar a presença e, quiça, até receber orientações dos Espíritos (4): 
Certamente os espíritos podem tornar-se visíveis e tangíveis para os animais, e muitas vezes o pavor súbito que os toma, e que vos parece sem motivo, é causado pela visão de um ou de muitos desses Espíritos, mal intencionados em relação aos indivíduos presentes ou aos seus donos. Muito freqüentemente se vêem cavalos que se recusam a avançar ou recuar, ou que se empinam diante de um obstáculo imaginário. Pois bem! Podeis estar certos de que o obstáculo imaginário é quase sempre um Espírito ou um grupo de Espíritos que se comprazem em detê-los. Lembrai-vos da mula de Balaão, que, vendo um anjo pela frente e temendo sua espada flamejando, não queria avançar. É que antes de se manifestar visivelmente a Balaão, o anjo quis torna-se visível apenas para o animal. Mas, quero repeti-lo: não mediunizamos diretamente nem os animais nem a matéria inerte. Precisamos sempre do concurso consciente ou inconsciente de um médium humano, porque necessitamos da união dos fluidos similares, que não encontramos nos animais nem na matéria bruta. (grifos meus)
O episódio da mula de Balaão, como narrado
em Números 22:23 e citado por Erasto em (4).
Segundo essa passagem, é possível aos animais perceberem a presença de Espíritos, o que se dá por intermédio de médiuns, que são sempre humanos. Esses, por sua vez, não precisam sequer ter consciência de que agem como intermediários (ou seja, o fenômeno não é provocado, mas espontâneo). Nesses episódios, os Espíritos podem permanecer invisíveis aos humanos, porém, serem percebidos pelos animais, aproveitando-se da superioridade de seus sentidos aprimorados.

É importante considerar que a ideia de que animais podem, em certas circunstâncias, ver e ouvir Espíritos é algo que pode ser validado experimentalmente. Para isso, podemos imaginar a seguinte situação: o dono de um cão falece. Sabe-se que, em sua presença, o cão exibe determinado comportamento. Da constatação de repetição completa ou parcial do comportamento do cão, sob a presença do Espírito do dono conforme indicado pelo médium, valida-se a tese, e esse é apenas um dos experimentos possíveis. 

Não é difícil imaginar assim que Espíritos possam estar envolvidos nos episódios de retorno de cães e gatos a seus donos. Esse é pelo menos um mecanismo plausível, já que a ajuda dos sentidos, mesmo que bastante desenvolvidos, não parece ser suficiente para explicar completante todos os casos de animais que conseguem encontrar o retorno de seus lares por centenas de quilômetros. Para tanto, eles devem contar com alguns "amigos" a mais entre os invisíveis. 

Notas e referências

1 - Ver (acesso em maio de 2016)
2 - http://www.sciencealert.com/how-dogs-find-their-way-home-without-a-gps

3 - Ver http://www.nature.com/articles/srep21848

4 - Kardec. A. "O livro dos Médiuns". Trad. Herculano Pires. Extraído da versão online:


1 de junho de 2016

A mediunidade de Eugênia von der Leyen

"Foi muito esquisito o que aconteceu. O sacristão continuou andando 
e passou através do vigário, como se fosse apenas uma sombra. 
Vi claramente os dois. Pouco depois, o pároco sumiu e 
nunca mais o vi." (Eugênia descrevendo seu contato com 
o pároco Schmuttermeier na igreja, p. 49 de (2))

Se se quiserem desembaraçar da obsessão de semelhantes Espíritos, 
será fácil, orando por eles. É o que sempre esquecem de fazer.
 Preferem aterrá-los com fórmulas de exorcismos, que os divertem muito.
("História de um danado", Revue Spirite, 1860)

Um de nossos leitores (1) comentou sobre um interessante livro ao ler nosso texto "Os vivos e os mortos na sociedade medieval" (3). Trata-se de "Meine Gespräche mit Armen Seelen" (2), que podemos traduzir livremente como "Minhas conversações com almas penadas". É um diário escrito pela princesa Eugenie von der Leyen und zu Hohengeroldseck (1867-1929) entre 1921 e 1929. Nascida em Munique, Eugênia vivera praticamente enclausurada em vários castelos de sua família (Fig. 1) na região de Landsberg na Baviera. De formação fervorosamente católica, Eugênia ou "Eschi" compôs, sob sugestão de seu confessor, relatos periódicos em que atestou "visões" e conversas com falecidos. Obviamente, o círculo social onde Eugênia viveu jamais permitiria qualquer outra interpretação para suas "visões" do que o contato direto com as "almas penadas" do purgatório, o que possibilitou a sobrevivência de seus escritos, confiados totalmente a seu confessor.

Comentamos alguns trechos de seu diário que foi publicado e proibido na Alemanha de Hitler. Citações a essa obra foram avançados por Hermínio de Miranda em seu livro "A reinvenção da morte" (4). Consideramos relevante seus escritos, pois referem-se a uma descrição fora do contexto do conhecimento espírita, o que atesta a universalidade desses mesmos ensinos. Trata-se também de uma ideia interessante, que pode ser adotada por médiuns de variadas sensibilidades: a de se escrever a impressão do fenômeno até suas menores particularidades. 

Alguns relatos

Os relatos de Eugênia parecem ser autênticos, uma vez que a médium nunca mencionou sua ocorrência em vida. Conforme atesta seu confessor:
Eu conheci a vidente durante seus últimos doze anos de vida; todos os dias tinha conhecimento de seus encontros com almas. A meu conselho, ela anotava o que via num diário. Nem ela e, no início, nem eu, tivemos a intenção de publicá-lo... A vidente levava uma vida santa. Era de uma piedade autêntica, humilde como São Francisco, zelosa na prática do bem e desmedidamente generosa: sempre prestativa e pronta a renunciar à própria vontade, disposta aos maiores sacrifícios, querida por Deus e por todos que a cercavam. Quem a conhecia, venerava-a. Jamais desejou atrair a atenção de quem quer que fosse. Tinha um talento especial para prestar favores e proporcionar surpresas agradáveis aos outros. O caráter da princesa é a mais sólida garantia de que merece crédito. Declaro, sob juramento, que a aconselhei a anotar, clara e integralmente, suas experiências reais, mas nunca, e em parte alguma, lhe sugeri quaisquer opiniões minhas. (p. 41)
Fig. 1 Schloss Unterdieβen, onde Eugênia viveu
a partir de 1925. 
A julgar por suas descrições, o convívio de Eugênia com os desencarnados era constante, mas limitado à visão e audição. Seu diário traz exclusivamente contatos com desencarnados. Poucos, porém, chegavam a responder seus questionamentos (todos os grifos são meus):
Cinco horas da tarde. Vi no jardim, entre duas árvores, uma freira. Parecia estar me esperando. Pensei tratar-se de uma velha conhecida e apressei-me a ir ao seu encontro. De repente, ela desapareceu sem deixar vestígios. (p. 45).
24 de fevereiro — Às quatro da manhã acordo e acendo a luz. Junto à minha cama está Crescência e, a seu lado, aquela desconhecida. Perguntei: “Crescência, querida, donde vens?” — “Do espaço intermediário.” — “Como me encontraste?” Ela fez um gesto como para dizer que veio pelo ar. (p. 52)
23 de março — De noite. Outra vez aquela gente. Dezesseis pessoas. Demoraram longo tempo. Cinco deles eu conheço: Viktor, Maria M..., Perpétua R..., aquele sapateiro que vivia dizendo: “Ai, meu Deus!” , Baptista B...; perguntei-lhes: “O que querem vocês?” Nenhuma resposta. Então eu disse: “Vamos rezar por vocês. Não precisam voltar mais.” Aí, diz o Viktor: "Temos de vir!” “Quem o quer?”, perguntei. Não responderam. Ficaram mais um pouco; todos cravaram os olhos em mim, e se foram. Aparecem noite após noite, mas não posso fazer nada; rezo e depois de pouco tempo, todos eles se retiram. (p. 54)
A primeira citação mostra um fenômeno bastante comum em  sua narrativa: o desaparecimento repentino de imagens de pessoas que Eugênia aprende a distinguir das "pessoas de carne e osso". Isso não acontece em um ambiente reservado (e nem sob invocação, o que seria inaceitável para Eugênia), mas a qualquer horário, que ela prefere seja de dia. Na segunda descrição, a médium recebe uma resposta "Do espaço intermediário" e o Espírito afirma que veio pelo ar. Na terceira citação, Eugênia quer saber porque almas do purgatório a procuram. A resposta de um Espírito chamado Viktor é "temos que vir". Eugênia também descreve a presença de dezesseis Espíritos em seu quarto, que tinha, segundo os editores de (2), cinco metros quadrados!

Apesar de seu caráter católico fervoroso, não existem dúvidas em Eugênia de que ela está, quase sempre, cercadas de "almas em sofrimento", Ou seja, ela jamais interpreta o que vê como uma manifestação "do demônio", opinião que é compartilhada por seu confessor. O fenômeno é espontâneo e intermitente. A médium não tem controle dele, embora reconheça que, em algumas situações, perdeu contato com as almas:
Durante alguns dias, sempre à noite, tive febre. Não conseguia conciliar o sono. Nessas ocasiões, nada via e nada escutava. Agora que estou boa, parece que voltam. (p. 55, grifos meus)
A que se deve isso? A mediunidade, segundo Kardec, encontra-se fundada na estrutura do organismo:
79. A faculdade mediúnica é uma propriedade do organismo e não depende das qualidades morais do médium; ela se nos mostra desenvolvida, tanto nos mais dignos, como nos mais indignos. Não se dá, porém, o mesmo com a preferência que os Espíritos bons dão ao médium. ("O que é o Espiritismo?" Cap. II: qualidade dos médiuns.)
Explica-se assim porque a sensibilidade mediúnica pode se enfraquecer durante as enfermidades  do corpo físico do médium.

Um fato curioso sobre a "sensibilidade" de animais (4b) também é relatado por Eugênia:
Vi sentada no cercado de galinhas aquela mulher. Seu jeito é sempre amável. Mas ela não responde. Tendo ido ao galinheiro, pude observá-la bem. Um gato veio andando em direção a ela. Ao enxergá-la, deu um pulo, assustado, para o lado. Senti-me feliz por constatar que, ao menos, o gato vê o que eu vejo. (p. 60)
Mas, para onde iriam as "almas" que Eugênia ajuda? Lemos o seguinte diálogo entre a médium e uma delas:
20 de junho — Estando eu para me flagelar por Weiss, apareceu ele, ao meu lado, com uma expressão feliz e disse: “Tu me remiste.” — “Não fui eu, foi a misericórdia de Deus.” — “Servindo-se de ti!” — “Aonde vais agora?” — “A uma esfera superior.” (p. 125) 
Licantropia

Algumas descrições recentes em livros espíritas falam do fenômeno da Licantropia - algo que aconteceria a Espíritos desencarnados com delitos graves - como um processo de deformação do perispírito. O livro "Libertação" (5) descreve um caso de um Espírito feminino que assassinou seus filhos e que foi deformado sob sugestão hipnótica "à forma de uma loba". A licantropia não aparece em nenhuma obra de Kardec (6), mas o fenômeno é confirmado nos relatos de Eugênia:
19 de dezembro — Chegou o Monstro. Posso vê-lo distintamente. É mais alto que os homens comuns. Tem cabelos hirsutos, negros; resfolga de um modo asqueroso. Protegi-me com a relíquia da Santa Cruz e aspergi água benta na aparição. Fixou-me o olhar algum tempo e depois foi embora pela janela. Nunca em minha vida tinha visto algo tão nauseabundo, a não ser em jardins zoológicos. E esse Monstro, nojento e asqueroso, esteve no meu aposento! (p. 90)
24 de abril— Faz três dias que me visita toda noite um animal  todo preto, intermediário entre búfalo e carneiro. Fiquei muito assustada. Pulou no meu leito. Para remediar minha covardia, recorri à água batismal e o quadrúpede me deixou em paz. (p. 140)
E não apenas nele. Segundo (2), há outras referências (7):
José de Gorres, o grande especialista em mística da Universidade de Munique, escreve em sua obra "Mística cristã" sobre a Irma Francisca do Santíssimo Sacramento, da Ordem das Carmelitas,  que “apareciam, às vezes, a essa Irmã, pessoas falecidas sob formas terríveis, mais parecendo um animal do que gente". (p. 25)
Concordando com André Luiz,  conforme conclui Eugênia, as "almas" nessas condições cometeram delitos muito graves. Por meio da presença da médium, o Espírito passa por uma transformação pelo qual reassume uma forma humana.

Por que eu? Paralelos com as descrições de Yvonne Pereira.

Uma das grandes questões de Eugênia era: por que ela? Por que as "almas" a procuravam? Em seus contatos, elas estão sempre a fitar profundamente seus olhos. Outros buscam tocá-la:
Algo tocou-me no ombro e senti muito medo. (p. 55) 
Aproximou-se de mim, e antes que o pudesse impedir, o dedo dele tocou na minha mão. (p. 63) 
23 de janeiro — Henrique mudou bastante. Nem sei dizer como ou em que, mas já não me inspira tanto nojo. Estou feliz porque não me tocou. (p. 102)
Disse-lhe: “Prefiro que não me toques, embora eu tenha muita vontade de ajudar-te.” (p. 95)
A impressão que temos é que a médium era uma "fonte" (de fluidos) em contato com a qual as "almas" se beneficiavam e transformavam profundamente.
Yvonne Pereira (1900-1984), a grande 
médium brasileira. Impressiona alguns 
paralelos que se pode fazer entre suas 
descrições com as de Eugênia 
von der Leyen.

É difícil deixar de comparar os contatos de Eugênia com as descrições de Yvonne Pereira. Exemplos encontramos no livro "Recordações da Mediunidade" (em azul abaixo, 8), seguido do equivalente quase idêntico com Eugênia (em verde). De novo, os grifos são meus:
Mesmo assim, como não enlouqueci de pavor, ou não me deixei obsidiar, nos momentos em que via o infeliz suicida deixar o sótão, flutuar no espaço atraído pelas minhas forças afins, sem mesmo disso se aperceber, e atingir o escritório para se deter junto de mim e continuar suas eternas convulsões? (8, Cap. 6, "Testemunho")
22 de junho — Desde à uma hora da noite até depois das cinco, esteve “ele” no meu quarto. Foi medonho. Curvou-se sobre mim diversas vezes e sentava-se junto ao meu leito. Chorei de tanto pavor. (2, p. 60)
O ruído provindo do mundo invisível é muito mais impressionante do que a visão, e senti-me chocada. Ainda hoje prefiro ver os Espíritos, qualquer que seja a sua categoria moral, a ouvir os ruídos que eles produzam, pois quaisquer ruídos ou sons provindos do  Além são assaz diferentes dos conhecidos na Terra, são como que difusos pelo ar, cavos, surdos, ocos. (8, Cap. 6, "Testemunho")
Tenho a sensação de que há muitas almas junto a mim, mas nada vejo; ouço, porém, passos e respiração arquejante pertinho de mim; em seguida, um barulho estranho, como se alguém batesse na parede. Apenas ouço e percebo esses ruídos, o que, para mim, é pior do que ver e assistir seja ao que for. (2, p. 55)
A explicação para a atração dos Espíritas por Eugênia pode ser talvez a mesma descrita pela grande medianeira do Brasil:
Se, outrora, como suicida que também eu teria sido, me vi socorrida por almas generosas do Espaço, as quais me ajudaram o reerguimento moral pelo amor de Deus, a lei suprema de mim exigiria agora que, por minha vez, eu socorresse a outrem, pois sabemos que essa lei determina a solidariedade entre as criaturas de Deus, e jamais receberemos favores ou auxílios de outrem sem que, posteriormente, deixemos de transmiti-los também à pessoa do próximo. (8, Cap. 6, "Testemunho")
...que também aparece em Eugênia:
Aproxima-se uma luta que tenho travado já tantas vezes: devo amar esse pobre coitado e não o consigo. Só quando chegar a amar essa alma embrulhada em execração serei capaz de fazer sacrifícios. (2, p. 94)
9 de agosto — Passei por algo pavoroso. Um estrondo me despertou. Acendi a luz e algo de horripilante se inclinava sobre mim. Constantemente meus pensamentos voltam àquilo: uma cabeça gigantesca com olhos tão apunhalantes que não parecem existir, ou antes: o rosto todo era um só olho que me fixava. “Vai-te!" — exclamei — o que procuras comigo?” — “A paz.” — “Não sou eu quem pode dá-la.” — “Mas tu deves!” — “O que me pode obrigar a isso?” — “Amarás o teu próximo como a ti mesmo. (p. 127)
Há muitas outras semelhanças. Por exemplo, a maior parte dos contatos de Eugênia dá-se durante o período da madrugada. Yvonne Pereira também afirma a mesma coisa e fornece, inclusive, uma explicação para esse fato.

Conclusões

É importante entender que a mediunidade de Eugênia é raríssima. Eugênia cai na categoria de médiuns de vigília, conforme a questão 1 no Cap. VI de "O Livro dos Médiuns" de A. Kardec. A espontaneidade, intermitência e falta de controle da médium demonstram sua mediunidade como de caráter neutro e absolutamente independente da crença de Eugênia ou de qualquer ato ou circunstância capaz de provocar os fenômenos.

Entretanto, Eugenia parece não compreender completamente a dinâmica do fenômeno que hoje podemos analisar graças à chave fornecida pelo Espiritismo e informes mais recentes da literatura espírita. Em particular, a atração das "almas" pela presença de Eugênia se deve a sua mediunidade peculiar, sua crença fervorosa no poder superior e sua inclinação para fazer o bem, não obstante a repulsa que descreve sentir pelos seres que a procuram. Ela convenceu-se gradativamente que era sua obrigação ajudá-los. Pouco a pouco, eles melhoram de condição, conforme ela mesma descreve.

Isso é reforçado por outra conclusão interessante: seus rituais (aspersão de água benta, sinais, presença da relíquia da cruz etc) parecem inócuos (9). O benefício conseguido para as "almas" deve-se à atuação de seu fluido por meio de sua vontade: quanto mais passa a amar os infelizes que a procuram, a interessar-se por eles, tanto mais eles conseguem ter seus sofrimentos abrandados.

É provável que outras descrições (7) existam de testemunhos semelhantes que aguardam melhores análise e estudos. Particularmente interessante também é o contexto católico que aprova e recomenda a leitura do diário de Eugênia. Não se fala em visões infernais ou ação demoníaca. O contexto piedoso e de fé que envolvia Eugênia fez sobreviver seus relatos, que não diferem das descrições de médiuns espíritas. E nem poderia deixar de ser, pois o fenômeno é o mesmo.
Referências e comentários

1 - José Ricardo Basílio a quem agradeço a sugestão do livro que deu origem a este post.

2 - E. von der Leyen (1994). "Conversando com as Almas do Purgatório". AM Edições, São Paulo. ISBN 85-276-0305-5.

3 - "Os vivos e os mortos na sociedade medieval".
4 - Conforme indicado por José Ricardo Basílio.

4b - Ver o Capítulo 22 de "O Livro dos Médiuns" de A. Kardec.

5 - Xavier F. C. (1992) "Libertação". 15a Edição. FEB.

6 - Sobre a possibilidade de Espíritos aparecerem em forma de animais, ver "O Livro dos Médiuns", Cap. VI, "Manifestações visuais", questão 35. Também, ao se ler "A história de um danado", na Revue Spirite de 1860, por exemplo, deparamos com interessantes relatos (grifos meus):
(A São Luís) ─ Teríeis a bondade de nos dar algumas informações sobre este Espírito, já que ele não pode ou não quer dá-las?
─ É um Espírito da pior espécie, um verdadeiro monstro. Fizemo-lo vir, mas não foi possível obrigá-lo a escrever, malgrado tudo quanto lhe foi dito. Ele tem seu livre-arbítrio, do qual o infeliz faz triste uso.
14. ─ Esse Espírito é sofredor e infeliz. Podeis descrever o gênero de sofrimento que experimenta?
─ Ele está persuadido de que terá de ficar eternamente na situação em que se encontra. Vê-se constantemente no momento em que praticou o crime. Qualquer outra lembrança lhe foi apagada e qualquer comunicação com outro Espírito foi interdita. Na Terra, só pode ficar naquela casa, e quando no espaço, nas trevas e na solidão.
62. ─ Podeis descrever seu gênero de suplício?
─ É-lhe atroz. Como sabeis, foi condenado a ficar no local do crime, sem poder dirigir o pensamento a outra coisa senão ao crime, sempre ante os seus olhos, e julga-se eternamente condenado a essa tortura.
Tais descrições se assemelham ao que André Luiz descreveu em outros termos (influência hipnótica etc).

7 - Joseph von Gorres (1840). Mística cristã, v. III, p. 476. Editora Manz, Regensburg. O leitor interessado poderá, talvez, estudar do ponto de vista espírita a vida de outros místicos católicos citados na obra incluem:
  • (S) Catarina de Gênova (1447-1510)
  • (S) Teresa D'Ávila (1515-1582)
  • Crescentia Höss de Kaufbeuren (1682-1744)
  • Maria Ana Lindmayr (1657-1726)
  • Heinrich Seuse (1295-1366)
  • Margarete Schäffner (?-1949)
  • Ana Caterina Emmerich (1774-1824)
8 - Pereira Y. (1992). Recordações da mediunidade. Ditado pelo Espírito de A. B de Menezes. 7a Edição. Feb.

9 - Conforme esclarece A. Kardec: 
Nenhum objeto, medalha ou talismã tem a propriedade de atrair ou repelir os Espíritos; a matéria não tem nenhuma ação sobre eles. Um bom Espírito nunca aconselha semelhantes absurdos. A virtude dos talismãs nunca existiu a não ser na imaginação das pessoas crédulas. ("O Livro dos Médiuns", cap. XXV.)