16 de novembro de 2016

VIII - Livro: Fogo Selvagem, Alma Domada.


"E, desde que a ausência dessas pessoas despopulou grande parte do país, a rainha foi informada de que o comércio estava em declínio; mas, dando pouca importância para a queda em suas receitas e priorizando altamente a limpeza de suas terras, disse que a coisa essencial era purificar o país do pecado da heresia, pois entendeu que estava a serviço de Deus e do seu próprio. E, as representações que foram feitas a ela sobre essa questão não surtiram efeito, pois não alterou sua decisão." (H. Kamen, 4)

Uma excelente dica de leitura é a obra "Fogo-Selvagem, Alma Domada, a doença e o Hospital do Pênfigo de Uberaba: História e psicografia" de Nadia Luz, com as organizadoras Cléria Bittar e Nadia Marcondes Luz e editado pelo CCDPE-ECM. Esse é um livro denso e meticuloso, resultado do trabalho de doutorado de Nadia Luz e repleto de detalhes e fatos interessantes sobre a vida e obra de dona Aparecida Conceição Ferreira, a "Dona Aparecida do Fogo Selvagem". Para quem não conhece, trata-se da saga de uma verdadeira heroína e sua luta para o acolhimento de milhares de doentes portadores do Pênfigo Foliáceo, uma doença auto-imune, típica de regiões tropicais. Seus esforços culminaram com a construção e manutenção do Hospital do Pênfigo, na cidade de Uberaba (1), com uma intensa relação com o movimento espírita local (2).

Um resumo da vida de Aparecida Ferreira está bem colocado na página inicial do Hospital do Fogo Selvagem (1):
Esta instituição existe graças à dedicação e persistência de uma mulher, Dona Aparecida (a Vó Cida), que com muita luta e amor aos portadores do pênfigo foliáceo conseguiu concretizar esta obra. Vó Cida começou a trabalhar com os pacientes do “fogo selvagem” em 1957 como enfermeira do setor de isolamento na Santa Casa de Uberaba. Devido às dificuldades do tratamento e também à falta de informação e preconceitos contra a doença na época, a Santa Casa acabou por “liberar” esses pacientes, muitos ainda sem condição de alta. Vó Cida então não hesitou e levou os pacientes para sua própria casa. Depois de enfrentar preconceitos, pedir esmola, ser até presa, mas com a ajuda de várias pessoas do bem, entre elas Chico Xavier, Vó Cida criou o Hospital do Fogo Selvagem, que mais tarde passou a se chamar Lar da Caridade.
Embora seja verdadeiramente uma obra de pesquisa em história, é difícil não se comover com os fatos narrados por Nadia Luz. Neste post, discutimos alguns aspectos de um eixo fundamental teórico que orientou a abordagem de "Fogo Selvagem, Alma Domada".

As bases da mecânica de causa e efeito entre vidas sucessivas

A história de Dona Aparecida oferece excelente material para estudo e meditação dos espíritas em torno do tema "ação e reação" entre várias encarnações. A tese principal da obra "Fogo Selvagem, Alma Domada" explora essa dinâmica, que se oferece também como processo terapêutico, favorecendo a aceitação e a superação de inúmeros problemas e dramas em torno da moléstia protagonista do "enredo" da vida de Dona Aparecida. Uma doença que tem cura mas que, em seu auge, se apresenta com características típicas de um fogo que continuamente arde; doentes e mais doentes, depois de abandonarem seus lares e peregrinarem por inúmeros consultórios; a doença aliada à fome, à rejeição familiar e o abandono e uma mulher determinada a tratar deles, num ambiente francamente hostil e capitaneado por uma religião cristalizada em dogmas. A que se deve essa fixação no tratamento de tantos desvalidos, quando teria sido muito mais fácil a ela simplesmente virar as costas e cuidar de sua família? O que fez Dona Aparecida se expor a inúmeras humilhações e dificuldades por causa de um grupo de portadores de uma doença particular?

A resposta é construída ao longo da obra, que tem como principal fundamento a ideia das "simetrias históricas" desenvolvida por Hermínio Miranda. Essa tese se apresenta como princípio orientador da busca de pistas e detalhes que passariam despercebidos caso essa teoria não for admitida. Essencialmente, um grupo social, praticante de delitos - não só por atos, mas principalmente pensamentos e posturas - ressurge no Século XX para reencetar e, ao mesmo tempo, resgatar um enredo passado há séculos. No centro desse ressurgimento uma mulher, dantes rainha e, portanto, líder de um movimento sustentado no Estado e na Religião para perseguir e punir, agora coordena vasto trabalho de reparação. E justamente aquela religião dominante, em nome da qual inúmeros crimes foram praticados, imporá empecilhos e obstáculos na realização da tarefa.

Se aceitarmos a nova visão histórica da Inquisição Espanhola, conforme descrita, por exemplo, em diversos pesquisas modernas (3), não passaram de 3000 o número de pessoas executadas na fogueira, enquanto que 150 mil é o número dos que sofreram algum tipo de processo inquisitorial. Cerca de 7000 foram o número de doentes com Pênfigo tratados diretamente pela equipe de Dona Aparecida entre 1957 e 2003, ainda que esse número esteja contaminado com as reincidências da doença (ou seja, o número real de casos únicos é menor que 7 mil). Há ainda muito a se investigar a respeito do mecanismo da lei de ação e reação, entretanto, em termos numéricos, os números são da mesma ordem.

Conjecturamos, porém, que por não ser doença fatal, a sintomatologia da doença recaia sobre aquelas personalidades que exerceram o ódio e a perseguição sistemática contra grupos minoritários (no caso, judeus conversos ou não na Península Ibérica sob suspeita de heresia, ver 5) e que não necessariamente estejam envolvidas diretamente com os processos inquisitoriais. Sabemos que, por motivos apenas tangencialmente religiosos, populações inteiras se envolveram na perseguição desses grupos (5) e é natural esperar que esses, reunidos após alguns séculos,  venham exercitar sob novas bases o resgate desses débitos morais por mecanismos complexos onde apenas vislumbramos algumas partes. Assim, as passagens evangélicas:
Ouvistes que foi dito aos antigos: Não cometerás adultério.
Eu, porém, vos digo, que qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela. Mateus 5:27,28
longe de estabelecerem os critério de um pecado específico (no caso a chamada "concupiscência carnal" na visão de algumas religiões), estabelecem um princípio: o começo de um erro moral qualquer que seja ele está no pensamento (ver também questão 745 de "O Livro dos Espíritos" de A. Kardec). Compreende-se que assim deva ser porque palavras de arrependimento quase em nada têm a ver com o que realmente o espírito pense ou sinta, e o que o espírito pensa e sente é o que ele carrega para além do túmulo. Dada uma época, é praticamente impossível alterar o pensamento geral de uma sociedade em relação ao que ela entende como um crime, que é produto não só da herança cultural e de interesses imediatos, mas também do nível evolutivo daquela população naquele momento. Portanto, as perseguições realizadas na Espanha nos Séculos XV e XVI, e que foram apontadas como no centro dos resgates em "Fogo Selvagem, Alma Domada" não estão exclusivamente sob responsabilidade da Igreja, mas de todos aqueles que apoiaram abertamente seus processos e que se serviram deles para satisfazer seus interesses. 

Coincidências ou simetrias históricas?


O relacionamento entre os personagens diversos que fizeram parte da saga da D. Aparecida encontram eco em diversas "pistas" na própria história de Uberaba. Uma que chama a atenção foi a enorme concentração de igrejas e grupos religiosos católicos que se instalaram em Uberaba já no século XIX. Atesta isso a obra "Terra Madrasta" (6), de 1926, que é citada em "Fogo Selvagem, Alma Domada": 
Poderia Uberaba, centro da beatice, centro de inúmeras irmandades, terra de procissões e de conventos, vítima desgraçada da perniciosa influência clerical constituir uma exceção à regra ou um desmentido ao conceito geral e proclamado sobre o clero (...) Eis a terra por excelência dos padres, frades e freiras! (...) Como é sabido, os frades dominicanos tomaram conta do prédio onde devia funcionar o hospital de misericórdia local e por longo tempo 'ficaram senhores do referido prédio que nunca funcionou, nunca prestou infelizmente o serviço que seu fundador esperava' (Gazeta de Uberaba, 1891). 
Em particular, a ordem dos Dominicanos, oriundos da França, exatamente de uma região onde, em tempos muito remotos, uma perseguição que usou o fogo como arma aconteceu, escolheu Uberaba como um dos primeiros lugares para sua fixação:
Igreja de N. S. das Dores, fundada por Dominicanos
em Uberaba no Século XIX.
Insatisfeitos com os capuchinhos, integrantes da Ordem  Franciscana, após reclamações publicadas no periódico local, ganharam dos uberabenses, no ano de 1881, a possibilidade de verem instalados em seu território os primeiros integrantes do primeiro núcleo de representantes da Ordem Dominicana no Brasil. Chegaram ao Brasil, oriundos da região de Toulouse, na França, os frades Raimundo Madre, Lázaro Melizan e Gabriel Mole, posteriormente chegando também Raimundo Anfossi, como intuito já definido de fundarem em Uberaba de imediato um colégio. Assim que chegaram, deram início às construções da igreja São Domingos e fundaram nas dependências da Misericórdia, o Colégio Nossa Senhora das Dores, com o plano de trazer logo em seguida o braço feminino da ordem, de modo a formarem-se escolas para educação de jovens nos parâmetros idealizados pela ordem fundada por Domingos de Gusmão, um dos principais nomes guardados pela história quando da cruzada contra os Cátaros do Languedoc, próximo a Toulouse. (Cap. 1, p. 69)
Esse grupo religioso desempenhou papel fundamental nos obstáculos porque passaria a iniciativa de D. Aparecida junto aos doentes do pênfigo, de novo, não por "mero acaso" (o leitor deve verificar por si ao ler a obra de Nadia Luz). Por outro lado, podemos ler em Kamen (4), Cap. 3:
A evidência parece ter impressionado a coroa que pediu informações sobre a situação de Sevilha. O relatório, apoiado pela autoridade de Pedro González de Mendoza, arcebispo de Sevilha e por Tomás de Torquemada, prior de um monastério Dominicano em Segovia, sugeria que, não somente em Sevilha, mas por toda Andaluzia e Castela, os conversos estavam praticando ritos judaicos em segredo. Tendo aceitado esse testemunho, Fernando e Isabela aprovaram a introdução da maquinaria da Inquisição em Castela e enviaram um pedido a Roma por uma bula institucional.
Assim nos parecem razoáveis a apresentação dos fatos que haveriam de tornar Uberaba, desde o Século XIX, terra de inúmeras intrigas envolvendo grupos religiosos, políticos, leigos e a maçonaria, ao mesmo tempo em que abrigava grande contingente de hansenianos e, posteriormente, portadores de pênfigo foliáceo. Em suma, um reencenamento do passado, em escala reduzida geograficamente e comprimida no tempo...

Apreciação final
Se considerarmos o quanto, nos séculos passados, eram frequentes, mesmo nas classes mais elevadas e mais esclarecidas, os atos de barbárie que tanto nos revoltam hoje; quantos homicídios eram cometidos nessas épocas em que não se dava importância à vida de seu semelhante, em que o poderoso esmagava o fraco sem escrúpulo, compreenderemos quantos deve haver, entre os homens de hoje, que têm de lavar seu passado; não será mais de espantar o número tão considerável de pessoas que morrem vítimas de acidentes isolados ou de catástrofes gerais. O despotismo, o fanatismo, a ignorância e os preconceitos da Idade Média e dos séculos que a seguiram, legaram às gerações futuras uma dívida imensa, que ainda não está liquidada. Muitas desgraças parecem-nos imerecidas apenas porque não vemos senão o momento atual. (A. Kardec, O Céu e o Inferno, Segunda Parte, Capítulo VIII - Expiações terrestres).
"Fogo Selvagem, Alma Domada" oferece muitos dados para estudos futuros em torno da dinâmica da lei de ação e reação. As muitas revelações e explicações dadas naquele momento por fontes mediúnicas fidedignas com relação a raison d'être do drama protagonizado por D. Aparecida e seus doentes tornam isso possível. Essas explicações foram, na obra, subsequentemente complementada por dados interessantes do passado da região de Uberaba/MG desde o Século XIX, e que são detalhes inexplicáveis se a ideia de um resgate sob o comando de uma lei maior não for admitido. Assim, por exemplo, podemos entender porque muitos doentes abandonavam suas casas em busca de tratamento, depois da rejeição de familiares, a sintomatologia da doença, curável, porém nitidamente caracterizada por uma dor como um fogo que arde em consonância com fatos históricos da época identificada como simétrica.

Esses coincidências e singularidades corroboram e justificam a importância do princípio da "causa e efeito", validando de forma ampla todo o conjunto da Doutrina Espírita. Temos assim condições adicionais de compreender e prever as consequências de nossa postura e de nossos pensamentos, que muitos ainda relativizam como sendo de menor importância no concerto da vida maior. Na verdade, essas consequências podem atravessar séculos junto a nós até que surja o momento de serem convenientemente resgatadas. Deus é justo.

Dados da obra

Título:  Fogo-Selvagem Alma Domada. A doença e o hospital do Pênfigo de Uberaba: História e Psicografia.
Coleção "Espiritismo na Universidade", volume 4. 
Ed. CCDPE-ECM. Franca, SP, 2012.
Capítulos da obra

1 - Uberaba: da hanseníase ao fogo-selvagem;
2 - O hospital: textos e contextos, histórias e psicografia;
3 - Pênfigo foliáceo endêmico: história de uma doença no Brasil;
4 - O fogo-selvagem na cultura e na filosofia da história do Espiritismo;
5 - Memória, poesia e literatura mediúnica: Dona Aparecida, Chico Xavier, médiuns e espíritos diversos.

Referências

1 - Hospital do Fogo Selvagem: http://www.fogoselvagem.org/ (acesso em novembro de 2016).
2 - Lar da Caridade: http://www.lardacaridade.org.br/ (acesso em novembro de 2016)
3 - Spanish Inquisition. https://en.wikipedia.org/wiki/Spanish_Inquisition que cita (4);
4 - Henry Kamen (2014) The Spanish Inquisition: A Historical Revision. New Haven & London: Yale University Press.
5 - No caso da Espanha e Portugal, as origens dessa ódio estão bem descritas em (4) e referem-se a expulsão e conversão forçada de grupos judeus na península Ibérica no Século XIV, dentre outros. Famílias inteiras foram separadas entre os que escolheram se converter e os que partiram. Os que resolveram ficar formaram um "povo marginalizado", conforme descreve Kamen, o que daria origem a uma situação de tensão social:
O distanciamento dos conversos tinha certa lógica. O grande número de conversos depois de 1391 não podia ser colocado dentro das estruturas sociais existentes. Em Barcelona e Valência da década de 1390, eles tinham suas próprias igrejas, no caso antigas sinagogas. Eles também formaram suas próprias fraternidades conversas. Na coroa de Aragão, eles se auto intitulavam com orgulho "Cristãos de Israel". Tinham sua própria vida social e casavam entre si. Palencia observa que eles eram "inflados, insolentes e arrogantes"; Bernáldez criticou a "altivez com que ostentavam sua riqueza e orgulho". Essas atitudes de conversos eram provavelmente criadas como instinto de auto-defesa muito mais do que arrogância. Mas, elas contribuíram para criar um muro de desconfiança entre antigos cristãos e recém conversos. Em particular, a ideia de uma nação conversa, que se fundamental na mente dos então judeus cristão, fez com que eles se parecessem com um grupo a parte, alienado e inimigo da união. O que não deixou de ter consequências fatídicas. (H. Kamen, (4), Cap. 3.) 
6 -  O. Ferreira (1926). Terra madrasta: um povo infeliz. Uberaba: edição do autor. Citado em "Fogo Selvagem, Alma Domada". Ver também: http://www.uberabaemfotos.com.br/2014/07/terra-madrasta-um-povo-infeliz/ (Acesso em novembro de 2016)

Um comentário:

  1. Excelente, muito bom para conhecermos a trajetória do ser humano e as ações da Espiritualidade

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