Apresentamos aqui um resumo do trabalho publicado 9o Enlihpe (2013) de autoria de Chrystiann Lavarini (*), que consideramos relevante na refutação de críticos da existência de estruturas no Mundo Espiritual. O trabalho do Chrystiann é pioneiro porque chama atenção para detalhes de geografia a escapar desses críticos, ignorantes dessa disciplina que, na sua versão física, é uma ciência natural. Para evitar perda de continuidade na apreciação deste trabalho, ele é apresentado de uma só vez.
No primeiro quartel do século 20, o filósofo alemão Ernst Cassirer afirmava que todas as criações do espírito humano estão, de alguma forma, relacionadas ao mundo do espaço, onde o espírito busca sentir-se a vontade, conhecer o mundo e dar o primeiro passo no sentido da objetivação, através da apreensão e da determinação do ser (CASSIRER, 1957). De forma semelhante, Milton Santos, eminente geógrafo brasileiro, iniciava um de seus ensaios considerando uma pergunta do pensamento aristotélico, instigando os leitores se: aquilo que não está em nenhuma parte não existe? (SANTOS, 1988).
Na literatura espírita, as obras “O Céu e o Inferno”, “A Crise da Morte” e “Nosso Lar” podem ser entendidas como verdadeiros marcos de informações oriundas do Além. As duas primeiras – coordenadas, respectivamente, por Allan Kardec e Ernesto Bozzano – mesmo apresentando critérios metodológicos semelhantes (1) exibem, como resultado, um panorama espiritual bastante diverso. Por sua vez, a obra “Nosso Lar”, ao contrário das demais, não é um resultado de catalogação de diversas psicografias e, portanto, não é o resultado de investigação metodológica intersubjetiva, como é próprio da Ciência (POPPER, 1974).
Distante do desejo de validar ou invalidar as obras supracitadas, este trabalho busca tão somente, em suas linhas gerais, entender, com base em categorias de análise da Geografia, as descrições relativas ao Mundo Espiritual tais quais estas se encontram discutidas nas obras de Allan Kardec e Ernesto Bozzano.
Mais especificamente, almeja-se comparar as descrições mais relevantes entre si, e como estas se assemelham e diferenciam em termos de uma(s) Geografia(s) do Mundo Espiritual.
Em Geografia, as categorias de análise, juntamente com seus métodos e objetivos, foram sempre mutáveis ao longo do tempo, diferindo em função do local, do gênero de estudos e dos geógrafos que empreendiam tais pesquisas. Este fato faz com que não haja, sobretudo hoje, um consenso sobre as definições destas categorias de análise (ROCHA, 2008).
Apesar de toda esta diversidade, alguns conceitos permanecem como categorias-chave na abordagem geográfica, primordialmente as concepções do território, região, lugar e paisagem, todos essencialmente ligados ao espaço geográfico (2).
Apesar de toda esta diversidade, alguns conceitos permanecem como categorias-chave na abordagem geográfica, primordialmente as concepções do território, região, lugar e paisagem, todos essencialmente ligados ao espaço geográfico (2).
Através destas categorias de análise da Geografia, far-se-á a investigação das descrições relativas ao Mundo Espiritual presente nas obras mencionadas.
O Mundo Espiritual Segundo Allan
Kardec
Kardec, no capítulo intitulado “Céu”, ao analisar as
diversas comunicações espíritas recebidas por diferentes médiuns (3), demonstra
a existência de um espaço espiritual com características geográficas, embora não esteja
circunscrito à Terra, nem a este sistema solar. Esta expressão se relaciona ao
espaço geográfico, pois, como acentua Allan Kardec, há uma intrínseca
coexistência entre as formas que
caracterizam o espaço do Mundo Espiritual, a vida e o movimento. Isto
indica que ao existir este espaço de relações entre um mundo de formas
quintessenciadas e materiais, juntamente com o movimento dos Espíritos que nele
vivem, há uma contínua modificação, ou se preferirem, uma continuada ação de produção e reprodução deste espaço pela sociedade espiritual que o coloca e o
percebe em movimento, de maneira semelhante ao que ocorre no espaço terrestre (SANTOS,
1988).
Outras duas categorias
de análise da Geografia plenamente perceptíveis neste fragmento são as regiões e os lugares.
Embora infinito e
amplamente povoado, o espaço espiritual,
denominado por Kardec como Mundo Espiritual, não possui uma região nem um lugar circunscrito destinado àqueles mais desmaterializados,
capazes de viver em um ambiente equivalente ao Céu dos cristãos (KARDEC, 2008).
Em outras palavras, seu lugar [ou lugares] não se encontra necessariamente
vinculado a uma determinada porção do espaço, ou território, mas a qualquer ambiente. Convém notar, entretanto, que
embora não haja um lugar específico
destinado ao gozo dos Espíritos, Kardec assevera a existência de regiões do
Espaço (4), como os mundos evoluídos e atrasados, onde grupos de Espíritos a eles
vinculados estabeleceram características bastante próprias de organização
social e cultural, resultantes das experiências vividas pelos seus membros, o
que permite individualizar estes espaços em regiões ou centros de atração. Com efeito, tais centros podem funcionar,
muitas vezes, como lugares de convivência, onde os Espíritos afeitos pelas suas
simpatias possuem um sentimento de pertencimento àquela região, embora cada
indivíduo possa ter ainda outros lugares
em outras escalas de preferência.
A partir da análise dos
casos (5), verifica-se, de um modo geral, que a dimensão da paisagem espiritual continuaria, à
semelhança da vida terrena, sendo percebida pelos sentidos, e sempre em um
processo seletivo da realidade, na qual o Espírito, em face de suas concepções
prévias e de seu grau evolutivo, estabelece sua forma de conceber o Mundo,
“pintando com diferentes cores” sua própria paisagem espiritual. Não se pode,
contudo, supor que as diferentes percepções do Mundo Espiritual sejam
específicas, não-objetivas, mentais e, portanto, unicamente subjetivas aos
Espíritos desencarnados. Como é possível compreender pela análise dos casos,
mesmo nos ambientes mais desmaterializados, como os habitados por Espíritos
Felizes, há semelhanças nas descrições de todos os relatos, o que permite
inferir a existência de um mundo objetivo, real, com espaço, paisagens,
regiões, territórios, e, consequentemente, uma Geografia do Mundo Espiritual.
Os territórios
ocupados pelos Espíritos Sofredores diferem, e muito, do quadro apresentado
pelos Espíritos Felizes, sobretudo, pela sua incapacidade de viver e perceber
as regiões distintas do grau
evolutivo a que pertencem, associado à impossibilidade de se locomoverem
livremente no espaço (6). Consequentemente,
grupos de Espíritos nesta categoria tenderiam a formar um verdadeiro território espiritual. Este território espiritual representaria,
assim como os territórios terrenos, uma determinada porção do espaço apropriada por um grupo,
estabelecendo uma identidade de pertencimento e posse.
O Mundo Espiritual Segundo
Ernesto Bozzano
A partir dos relatos recolhidos por Ernesto Bozzano pode-se
depreender, em seu conjunto, que os Espíritos vivendo no espaço espiritual que lhes é próprio transformam-no a partir do
pensamento, seja de maneira voluntária, consciente e dirigida pela vontade, ou
involuntária, quando o fenômeno se dá por criação inconsciente, não planejada.
A existência de um conjunto destas criações gera, em cada região do Mundo Espiritual, o estabelecimento de paisagens espirituais e permite que os
indivíduos criem os seus próprios lugares
dentro destes territórios (7).
Bozzano (2006) considera também que os Espíritos em condições medianas procuram
criar pela vontade ou mesmo inconscientemente um Mundo Espiritual análogo ao
espaço terrestre, o que lhes dá a percepção de um mundo terrestre
espiritualizado, onde seja possível, de certa forma, se adaptar à nova
realidade espiritual.
Dentre as psicografias mencionadas por Bozzano
(2006), há concordância sobre a existência de uma paisagem espiritual objetiva,
que nem sempre é passível de ser produzida ou reproduzida somente pela vontade
individual, mas que se enquadra dentro das manifestações psíquicas coletivas do
Mundo Espiritual (8).
Neste sentido, surgem novos elementos a uma possível
Geografia do Mundo Espiritual: a existência de uma morfologia da paisagem. Como
é possível deduzir – a partir da utilização de expressões como plana, ondulada,
e a existência de um céu para descreverem a paisagem espiritual – remete-se,
intuitivamente, a uma Geomorfologia do
Mundo Espiritual (9).
Desta forma, há um espaço e uma paisagem
inserida neste espaço que resulta de uma construção coletiva, onde são
modelados os lugares de convívio
destes Espíritos. Sobre este aspecto pode-se, inclusive, extrapolar as análises
para além das categorias de análise da Geografia. Os detalhes contidos neste
caso demonstram, em concordância com diversos outros Espíritos, a existência de
qualidades da matéria quintessenciada que compõe o Mundo Espiritual, semelhante
às rochas e metais existente na Terra, e ainda, de uma divisão social do trabalho, tendo
em vista que nem todos os Espíritos são capazes de modelar seu próprio lugar de convivência (10). Isto implica que muitos Espíritos dependem, em maior ou
menor escala, não somente do concurso de outros que convivem nas regiões que lhes são afins, mas igualmente
daqueles mais evoluídos e capazes de modelar
a paisagem conforme as suas necessidades.
Considerações Finais
Estas comunicações, assim como diversas outras que
integram os trabalhos de Allan Kardec e Ernesto Bozzano, demonstram a
existência de diversas percepções, regiões e categorias de Espíritos no Mundo
Espiritual.
A hipótese de um espaço espiritual, conforme foi
possível constatar, apresenta um caráter fortemente geográfico, que indicaria a
existência física, objetiva e quintessenciada de diversos territórios,
territorialidades, regiões e paisagens, desde os trabalhos de Allan Kardec.
Tomadas somente as descrições dos Espíritos
compiladas pelo Codificador já seria possível deduzir concordâncias principais
e secundárias em quase todas as comunicações por ele obtidas sobre a hipótese
de diversos “Mundos Espirituais” e suas consequentes Geografias. A obra de Ernesto Bozzano, por sua vez, assim como a
obra kardequiana, confirma, com dados e médiuns em países diferentes da França,
a existência e a importância destas categorias de análise geográfica para o
entendimento do Mundo Espiritual.
Como desafio a futuras investigações persistem a
busca, e sua subsequente análise, de obras que tenham sido validadas
metodologicamente e possam contribuir para a aplicação dos conceitos de análise
geográfica na sua correspondente Geografia, ou Geografias, do Mundo Espiritual.
Notas
(1) As obras “O Céu e o Inferno”,
de Allan Kardec, e “A Crise da Morte”, de Ernesto Bozzano, foram metodologicamente
analisadas através da Universalidade do
Ensino dos Espíritos e da Análise
Comparada, respectivamente. A Análise
Comparada dos relatos de Espíritos em condições medianas, muito deles
obtidos no período do surgimento do Espiritismo, assemelha-se, em termos
metodológicos, ao modelo de pesquisa utilizado por Allan Kardec na elaboração
da Doutrina dos Espíritos.
(2) Por questão de espaço, estas
categorias não foram explicitadas neste resumo. Para um entendimento mais
detalhado destas categorias de análise ver Moraes (1992); Raffestin (1993);
Ribeiro (1993); Lisboa (2007); e Santos
(1988).
(3) O trecho ressaltado refere-se
ao capítulo intitulado “Céu” (KARDEC, 2008, p. 42).
(4) Adotamos neste texto a
expressão Espaço com igual significado utilizado por Allan Kardec, ou seja,
para denotar o Mundo Espiritual.
(5) Dentre estes casos
destacam-se os Espíritos identificados como “um
médico russo”, a “Condessa Paula” e “Jean Reynaud”.
(6)
Além destes, existem Espíritos que relatam viver em trevas, onde haveria uma ausência
da percepção de espaço-tempo e, consequentemente, de uma Geografia do Mundo
Espiritual. São mencionados também na obra kardequiana diversos relatos
de Espíritos que se recusam a deixar os ambientes terrenos na tentativa de
vivê-los e, portanto, territorializá-los.
(7) Estas
criações involuntárias parecem uma explicação bastante razoável para as
descrições feitas por Espíritos Sofredores analisados por Allan Kardec que
relatam viver em um ambiente de trevas e insulamento devido ao egoísmo que lhes
define o caráter.
(8) Uma dessas psicografias, também
em concordância com as demais, é feita por um soldado morto em combate cujo
nome não fora revelado, sendo conhecido pelas iniciais K. H. R. D.
(9) A Geomorfologia é uma
disciplina acadêmica que estuda o relevo da Terra e de outros planetas. Neste
caso, a Geomorfologia do Mundo Espiritual diria respeito às diversas criações
morfológicas de origem espirítica que se assemelhariam a um relevo terrestre.
(10) Sobre estas criações ver os
relatos dos Espíritos Daddy e Rodolfo Valentino.
Referências Bibliográficas
BOZZANO, E. A
Crise da Morte. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2006.
CASSIRER,
E. The
Phenomenology of Knowledge In: CASSIRER, E. The Philosophy of Symbolic Forms. New
Haven: Yale University Press, 1953.
KARDEC, A. O
Céu e o Inferno ou A Justiça Divina Segundo o Espiritismo. Brasília:
Federação Espírita Brasileira, 60a Ed, 2008.
LISBOA, S. S. A
Importância dos Conceitos da Geografia para a Aprendizagem de Conteúdos
Geográficos Escolares. Revista Ponto de Vista, v.4, 2007.
MORAES, A. C. R. Ratzel: Coleção Grandes Cientistas Sociais.
São Paulo: Ática, 1992.
POPPER, K. R. A Lógica da Pesquisa Científica. São
Paulo: Cultrix, 1974.
RAFFESTIN, C. Por uma
Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993.
RIBEIRO, L. A. M.
Questões regionais e do Brasil. In:
RUA, J. et al. (Org.). Para
ensinar geografia. Rio de Janeiro: ACCESS Editora, 1993.
ROCHA, J. C. Diálogo
entre as categorias da Geografia: espaço, território e paisagem. Caminhos de Geografia, 9, 27, 128-142, 2008.
SANTOS, M. Metamorfoses do Espaço Habitado. São Paulo: Hucitec, 1988.
SANTOS, M. Metamorfoses do Espaço Habitado. São Paulo: Hucitec, 1988.
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