30 de novembro de 2013

Será que Kardec leu Darwin?

Charles Darwin em 1816.
Sabe-se bem que a segunda metade do século 19 foi uma época extraordinária. Invenções que marcariam o progresso no século seguinte, descobertas científicas inigualáveis que modificariam a visão científica do mundo e conquistas humanas nunca imaginadas foram então realizadas. No palco de revelações em que se converteu a Europa da época, o surgimento do Espiritismo em 1857 com a publicação de "O Livro dos Espíritos" e a publicação de "Sobre a Origem das Espécies por meio de seleção natural" por Charles Darwin (1809-1882) em 1859 contam como "algumas" das realizações notáveis.

Em um artigo recente (1), Paulo Neto analisa o argumento corrente de que Kardec antecipou Darwin, o que é comum se ouvir nos meios espíritas. Essa questão dá origem a uma pequena 'querela' (2) entre os que sustentam que Kardec antecipou Darwin e os que acham o contrário, inclusive que Kardec teria feito uso dos trabalhos do emintente cientista inglês. Para o autor do artigo citado:
Ficamos boquiabertos, tamanha a nossa surpresa diante de tal infirmação, pois, para nós, foi Kardec quem se utilizou da teoria de Darwin, conforme iremos demonstrar.
E, na conclusão do artigo:
Para nós, foi Kardec que se aproveitou da teoria da evolução das espécies de Darwin para voltar com o assunto e, como já havia suporte científico, os Espíritos foram mais explícitos na questão, reformulando o que disseram anteriormente, para afirmarem sobre a evolução do espírito através do reino animal.
Em que consiste a demonstração proposta? Consistiu sumariamente em comparar trechos da 1a edição de 'O Livro dos Espíritos' (LE, a saber a questão #127) e a questão #607 que reproduzimos abaixo: 
607. Dissestes (190) que o estado da alma do homem, na sua origem, corresponde ao estado da infância na vida corporal, que sua inteligência apenas desabrocha e se ensaia para a vida. Onde passa o Espírito essa primeira fase do seu desenvolvimento? 
“Numa série de existências que precedem o período a que chamais humanidade.”
Essa resposta é comparada à da questão #127 da primeira edição onde o estado da 'alma do homem' não é identificado como tendo migrado entre outras espécies. No que segue abaixo, tecemos alguns comentários para mostrar que a questão é muito mais complexa do que se pode imaginar tão só a partir da comparação dos textos propostos.

Alguns comentários relevantes
  1. O significado do termo 'alma do homem' pode ter evoluído da primeira para a segunda edição. No primeiro caso, ela pode se referir à alma do homem como ser encarnado e dispondo de consciência plenamente desenvolvida para o estado da 'humanidade';
  2. A sugestão de influência das ideias de Darwin na obra kardequiana não tem respaldo em evidência alguma. Pelo contrário, pode-se dizer de forma segura que a ideia de que as espécies se modificavam era amplamente conhecida na época da primeira edição do LE na forma de um conjunto de teorias de transformismo de espécie. O que não se conhecida era o mecanismo pelo qual isso ocorreria;
  3. A época em que essas ideias se desenvolveram não dispunha de meios de comunicação como os que temos hoje. Segundo o prof. Silvio Chibeni (3), é bastante provável que Kardec não tenha tido acesso à obra de Darwin e que, portanto, sua opinião reflete o ponto de vista conhecido entre a elite intelectual francesa da segunda metade do século XIX;
  4. Assim, o conhecimento de Kardec sobre a evolução pode totalmente ser compreendido no contexto do conhecimento da época, inclusive no momento da publicação da 1a edição.
  5. Ainda segundo o prof. S. Chibeni (3): 
"Eu também suspeito, como você, que o Kardec não acompanhava a literatura especializada em biologia (ou história natural, como se chamava à época), especialmente de um país de língua inglesa. Além disso, o livro do Darwin que trata do homem é o 'The Descent of Man', de 1871. No 'The Origin of Species', ele evita falar no homem, ao propor a teoria da seleção natural (e note-se que essa teoria é que é a teoria importante e original de Darwin, não a evolução, que já era amplamente admitida)." (grifos meus)
Portanto, o que Darwin escreveu em 1859 na  "Origem das Espécies" apenas por inferência se aplicaria ao homem no contexto histórico da época. Que a ideia da evolução não era novidade então (inclusive no tempo da 1a edição) pode ser compreendido por inúmeros trabalhos posteriores sobre a história da evolução natural, trabalhos que, inclusive, sugerem fortemente que Darwin se escorou em outros (4). O próprio mecanismo da evolução foi co-descoberto pelo grande espiritualista inglês Alfred R. Wallace. O trabalho de Robert Chambers (1802-1871) , Fig. 1, por exemplo, causou um grande furor antes de Darwin.
Fig. 1 Esta figura foi extraída do livro "Vestígios da História Natural da Criação" de Robert Chambers e mostra o modelo de desenvolvimento dos peixes (F), répteis (R), pássaros (B) dando origem aos mamíferos (M). O livro de Chambers foi publicado em 1844, demonstrando que a ideia da descendência entre espécies já era conhecida bem antes de 'O Livro dos Espíritos' e da 'Origem das Espécies'. Segundo o artigo 'Transmutation of species'. 
O que diz "A Gênese"

Em um texto posterior em "A Gênese" , de 1868, (Capítulo XI) podemos ler, no parágrafo 15:
Da semelhança, que há, de formas exteriores entre o corpo do homem e o do macaco, concluíram alguns fisiologistas que o primeiro é apenas uma transformação do segundo. Nada aí há de impossível, nem o que, se assim for, afete a dignidade do homem. Bem pode dar-se que corpos de macaco tenham servido de vestidura aos primeiros Espíritos humanos, forçosamente pouco adiantados, que viessem encarnar na Terra, sendo essa vestidura mais apropriada às suas necessidades e mais adequadas ao exercício de suas faculdades, do que o corpo de qualquer outro animal. Em vez de se fazer para o Espírito um invólucro especial, ele teria achado um já pronto. Vestiu-se então da pele do macaco, sem deixar de ser Espírito humano, como o homem não raro se reveste da pele de certos animais, sem deixar de ser homem.
Fique bem entendido que aqui unicamente se trata de uma hipótese, de modo algum posta como princípio, mas apresentada apenas para mostrar que a origem do corpo em nada prejudica o Espírito, que é o ser principal, e que a semelhança do corpo do homem com o do macaco não implica paridade entre o seu Espírito e o do macaco." (grifo meu)
Veja que, em 1868, Kardec considerava a possibilidade de transformação das espécies ainda como uma hipótese. E, mais para frente, no parágrafo 16:
"Admitida essa hipótese, pode dizer-se que, sob a influência e por efeito da atividade intelectual do seu novo habitante, o envoltório se modificou, embelezou-se nas particularidades, conservando a forma geral do conjunto (nº 11). Melhorados, os corpos, pela procriação, se reproduziram nas mesmas condições, como sucede com as árvores de enxerto. Deram origem a uma espécie nova, que pouco a pouco se afastou do tipo primitivo, à proporção que o Espírito progrediu. O Espírito macaco, que não foi aniquilado, continuou a procriar, para seu uso, corpos de macaco, do mesmo modo que o fruto da árvore silvestre reproduz árvores dessa espécie, e o Espírito humano procriou corpos de homem, variantes do primeiro molde em que ele se meteu. O tronco se bifurcou: produziu um ramo, que por sua vez se tornou tronco.  
Como em a Natureza não há transições bruscas, é provável que os primeiros homens aparecidos na Terra pouco diferissem do macaco pela forma exterior e não muito também pela inteligência. Em nossos dias ainda há selvagens que, pelo comprimento dos braços e dos pés e pela conformação da cabeça, têm tanta parecença com o macaco, que só lhes falta ser peludos, para se tornar completa a semelhante." (grifos meus)
Ora, em nenhum desses trechos transparece a ideia da seleção natural, mas, os conceitos estão de acordo com o que era conhecido antes de Darwin, ainda no campo das hipóteses. Portanto, é bastante claro que Kardec não leu nada de Darwin, mesmo em 1868. Também é de estranhar que esses trechos não tenham sido citados no trabalho (1). O assunto é, portanto, bem mais complexo do que a simples comparação de trechos limitados pode permitir.

Uma razão importante para considerar a falta de consideração de Kardec por essas teorias modernas em sua época era, provavelmente, a sua falta de tempo e a quantidade de trabalhos acumulados com a codificação (3).

Ressaltamos ainda que o Espiritismo é uma das poucas doutrinas religiosas que aceitam abertamente a noção de evolução e o mecanismo de sua operação, sustentando a proposta de que esse mecanismo serviria de base ao desenvolvimento do espírito.

Referências e notas

(1) Revista Espiritismo & Ciência nº 108. São Paulo: Mythos Editora, nov/2013, p. 18-22. Uma versão em PDF deste trabalho pode ser baixada aqui.

(2) No caso, esse ainda é um debate de reduzida importância frente a outros temas centrais do Espiritismo.

(3) Comunicação particular com Silvo Chibeni.

(4) Personalidades como: J. B. Lamarck (1744-1829), T. Malthus (1766-1834), Comte de Buffon (1707-1788), A. R. Wallace (1823-1913, praticamente um "co-descobridor" da seleção natural), E. Darwin (1731-1802), C. Lyell (1797-1875), J. Hutton (1726-1797) e mesmo G. Curvier (1769-1831) exerceram influência considerável sobre C. Darwin, assim como Robert Chambers.




20 de novembro de 2013

Crenças Céticas XXII - Pequeno manual de falácias não formais com exemplos do ceticismo (1)


A partir desse post, faremos um curto 'manual' sobre falácias não formais do ponto de vista da lógica, usando exemplos abundantes da comunidade cética. Uma falácia lógica é, essencialmente, um erro de raciocínio ou de argumentação (1). Falácias podem ser divididas em dois tipos: (i) as falácias não formais (que nos interessa aqui) e as falácias formais. Sabe-se que não é possível chegar a verdade alguma tão só usando argumentação lógica. Construções de raciocínio complexas (teorias científicas) são necessárias para se chegar à verdade a respeito de fatos frequentemente bem simples. Do ponto de vista lógico, é possível, inclusive, chegar a conclusões plenamente verdadeiras partindo de premissas falsas. O que interessa aos lógicos é a validade dos argumentos do ponto de vista das regras da lógica, a confirmação de verdade é apenas uma característica a mais.

Por inspeção em documentos online é possível ver que há muitos textos e artigos de céticos (ver, principalmente, os chamados "pseudocéticos") contra falácias cometidas por crentes.  Porém, os mesmos erros lógicos são cometidos por céticos que, em geral, gostam de ressaltar os erros de argumentação de crentes na falsa presunção de que estão mais próximos da verdade, de que são mais 'científicos' do que os que lhe são contrários, em fim, de que têm a ciência e a lógica a seu favor.

Nosso objetivo aqui é expor alguns tipos de falácias não formais para aqueles que tiverem interesse em aprender um pouco sobre esse capítulo da lógica usando exemplos da argumentação cética contra fenômenos psíquicos, médiuns, evidências de vida a pós a morte, reencarnação etc. Quantos tipos de falácia serão tratadas? Infelizmente, inexiste uma lista suficientemente abrangente de tipos possíveis, porque não há limite para o equívoco humano. Porém, algumas das mais famosas e recorrentes são obrigatórias em nosso estudo.

Qualquer pessoa pode cometer erros de argumentação, como parte do processo de ação e interação  humanas. O que não pode acontecer é pessoas ficarem acostumadas com esses erros e, muito menos, fazer uso deles de uma forma sistemática e proposital. Esperamos que estes posts possam ajudar a chamar a atenção para alguns desses equívocos.

Sobre argumentos

De uma forma simples, um argumento lógico envolve um certo número de declarações (chamadas premissas) e uma última afirmação (chamada conclusão) que deve, necessariamente decorrer das premissas. Consideremos o conjunto de frases a seguir:

Exemplo 1

I - A ciência é feita por cientistas;
II - Alguns cientistas são materialistas; :.
III - A ciência é materialista.

A declaração I e II constituem premissas. A última sentença III pretende ser uma consequência lógica (dai o símbolo :.) das primeiras. No caso específico, as duas premissas são verdadeiras, enquanto que a conclusão é falsa. Isso é possível porque este argumento está errado do ponto de vista lógico (basta atentar para a presença do qualificativo 'alguns' em II que gera uma generalização incorreta). Mas, mesmo que  o argumento estivesse correto, sua conclusão seria equivocada.

Não é difícil ver como opera o processo de geração de falhas de argumentação ou mesmo como podem aparecer conclusões equivocadas. O problema é que, mesmo se o argumento é válido (isto é, está correto do ponto de vista lógico), a conclusão que lhe segue pode não ser verdadeira (Fig. 1). Não é difícil ver a razão para isso, dado que se faça uso de premissas que sejam muito gerais ou que não descrevam completamente objetos a que se referem.

Fig. 1

Exemplo 2

I - Cientistas são as pessoas mais indicadas para julgar cientificamente os fatos;
II - Eu não sou um cientistas; :.
III - Eu não sou a pessoa mais indicada para julgar cientificamente um fato;

Não há erro neste argumento. Certamente, poucos contestariam as premissas. Entretanto, ele está escrito em termos tão gerais que seu caráter de verdade é uma ilusão. O que se entende por um 'fato' que deva ser cientificamente julgado (em relação a que, qual teoria, qual visão de mundo etc)? E, uma vez realizado o julgamento, quem disse que, pelo fato dele ser ele científico será necessariamente mais verdadeiro do que qualquer outro julgamento que se fizer dele? 

Na construção de erros de argumentação, tanto falhas no processo de inferência lógica como extrapolação no significado de termos estão envolvidos. Mas, há erros de argumentação tão claros que eles deixam de ter qualquer relação com a lógica. Quando isso acontece, eles se tornam falácias.

Tipos de falácia quanto a sua natureza.

Dentro do grupo de falácias não formais, pode-se ainda distinguir dois grupos (1):
  1. Falácias de relevância: as premissas são logicamente irrelevantes para as conclusões;
  2. Falácias de ambiguidade (ou de clareza): a construção do argumento envolve  palavras que têm mais de um significado. 
Em geral, falácias não formais pretendem convencer não por apelo à razão, mas à emoção. Frequentemente, ocorre um vínculo emotivo entre quem profere a falácia e sua audiência. Em qualquer que seja o caso, o leitor deve guardar bem o fato de que o instrumento que se faz uso numa falácia é emocional e não racional. Vamos inicialmente ver alguns exemplos, principalmente do primeiro tipo.

Falácias de relevância: argumentum ad baculum

Fig. 2

Literalmente significa apelo à força. É o mesmo tipo de estratégia usada quando se pretende que uma ação seja executada, com a diferença de que a 'ação' é substituída pela aceitação de uma conclusão. Tivemos recentemente um comentário adicionado ao vídeo de Érico Bomfim tocando uma peça de Chopin recebida por Rosemary Brown (2):
"Pois é, depois que eles morrem regridem musicalmente, claro que você vai reter meu comentário, e se fizer isso, vou copiar seu vídeo numa conta qualquer e postar comentários".  
Outro que podemos citar também na mesma linha (de novo, o uso da força jamais funcionará como premissa válida) foi o comentário de Dauro Mendes (3): 
Se você apagar esses comentários eu escolherei os temas mais populares dos seu blog e publicarei neles, todos os dias, esses textos acima, todos eles!!! Mantenha publicado as minhas respostas aos seus equívocos, aprenda a ser correto!!!
Esses não não são bem argumentos, pois seus autores queriam que seus comentários não fossem retidos ou apagados. É mais uma ameaça - um apelo à emoção - na esperança de que o que sustentam tenha validade de alguma forma.

Em geral, quando não se tem argumentos convincentes do ponto de vista lógico ou se tem pressa em convencer, o argumento ad baculum é usado. Mas, mais pela primeira razão do que pela segunda, já que é trabalhoso e pouco eficiente, as vezes, tentar convencer seu opositor tão só pelo uso de argumentos. Isso é, por exemplo, o que a maioria dos pais fazem com as crianças, o que constitui um problema de educação. Idealmente, crianças deveriam aprender a arte argumentativa, mas, muita vezes, a paciência se esgota antes que qualquer outro recurso seja usado e pais acabam usando a força.

Dizem que a maior argumentação à força já feita na história da Ciência foi contra Galileu Galilei. O tribunal da Inquisição o fez negar suas teses do movimento da Terra sob ameaça de morte. Com outros, como  no caso de Giordano Bruno, chegaram as vias de fato.

Continua no próximo post.

Referências

(1) - Irving M. Copi (1978). Introdução à lógica. Editora Mestre Jou.
(2) - Ver comentário por "Berliozini" do vídeo http://www.youtube.com/watch?v=LU23pOwb2uY.
(3) No post 'Vácuo Quantico na obra de Chico Xavier'.


10 de novembro de 2013

I - Sobre a faculdade de cura (mediunidade curadora)

"Médiuns curadores: os que têm o poder de curar ou de aliviar o doente, tão só pela imposição das mãos, ou pela prece." (1)
Em uma série de posts, realizaremos aqui um pequeno estudo sobre a faculdade e os fenômenos de cura. Fora do aspecto das curas obtidas pela medicina convencional, esse é, certamente, um importante fenômeno que tem sua gênese na vontade ou em certas propriedades desconhecidas que podem ser produzidas por seres humanos no sentido de prodigalizar o que, de outra forma, somente pode ser compreendido como uma coincidência (2). Há muito ainda  a ser descoberto sobre como se processa esse tipo cura, o que é suficiente para justificar a importância do estudo. Algumas questões que são de nosso interesse na série são:
  • Por que adoecemos ?
  • Como podemos entender o processo de cura?
  • O que o Espiritismo tem a dizer sobre as enfermidades?
  • Existem curas espirituais?
  • Onde estão realmente determinadas as causas últimas das enfermidades?
  • Médiuns curadores: quem são eles? 

Introdução

Para quem está doente, pouco importa a explicação  que se vincule ao fenômeno, uma vez que seu objetivo é alcançar o estado de saúde plena ou um estado considerado satisfatório. Porém, é importante o estudo das curas realizadas por meio dos Espíritos ou de outras faculdades inerentes ao ser humano, porque podem funcionar como auxílio a tratamentos já existentes, se não constituem tratamentos per se. O mecanismo pelo qual tais curas são operadas ainda está envolvido em mistério, principalmente no caso de doenças consideradas complexas. 

A medicina chamada 'convencional' dispõe de inúmeras ferramentas, técnicas e teóricas para reconstituir a um doente o seu estado de saúde. Nada há a ser contestado aqui. Porém, é amplamente reconhecido pelos médicos que o organismo dispõe de mecanismos automáticos para o restabelecimento do equilíbrio. É aceito que o tempo e processos bioquímicos ministrados durante um tratamento - que se baseiam em teorias geradas por pesquisa em ambientes controlados, sistemas simplificados (3) e estatística de grandes amostras (4) - são os mais importantes recursos usados pela medicina moderna em direção a obtenção da cura.

Mas, o organismo humano é um sistema muito complexo. Sendo formado por um número incrivelmente grande de células (5), que são as unidades da vida, é absolutamente impossível descrever o corpo e as interações que ocorrem em seu interior por meio de teorias puramente mecânicas envolvendo relações entre essas unidades. Tamanho grau de complexidade implica que são inúmeras as causas que concorrem para alterar o estado de saúde do organismo. Certamente, há doenças muito simples, onde um conjunto restrito de causas pode ser facilmente identificado, mas há casos complexos onde, certamente, inúmeras causas concorrem.

Quando essas causas são conhecidas, há chance de se obter tratamentos eficientes. Isso ocorre quando conhecemos completamente as circunstâncias físicas que geram o desequilíbrio e o próprio estado do organismo, a ponto de prever com antecedência os resultados. Mas, quando as causas são desconhecidas, as portas estão abertas para o fracasso dos tratamentos e, principalmente, para o martírio dos doentes...

O papel da natureza espiritual do ser humano na gênese das enfermidades.

Sendo o ser humano um sistema de natureza dual, formado pelos princípios material e espiritual, é obrigatório considerar o Espírito como uma das causas relacionadas à ocorrência das enfermidades. Portanto, ao não se considerar o Espírito e sua relação com a natureza material em uma contexto mais amplo na gênese das doenças, a medicina moderna está naturalmente limitada,  rejeitando muitas das curas espontâneas como meros efeitos do acaso. Quando muito, médicos frequentemente consideram o efeito da 'mente' como uma espécie de 'ressonância' ou 'feedback' interno do corpo. É importante ressaltar o caráter independente da chamada 'mente' e de como ela pode alterar o estado de saúde.
Fig. 1 Concepção materialista do corpo, onde a mente é um subproduto de arranjos internos desse corpo. As enfermidades são oriundas de influências externas e predisposições internas ao organismo (incluindo a própria mente).
Porém, isso não é tudo. Há um segundo corpo associado ao Espírito que recebe, na denominação espírita, o nome de perispírito (6). Esse segundo corpo é formado por matéria não visível (ou seja, pertence ele à natureza material), mas que interage de alguma forma com o corpo visível. E é justamente esse segundo corpo que irá representar o terceiro elemento associado a causas não conhecidas para o aparecimento de doenças ou a novos mecanismos para a cura. Tudo o que aqui descrevemos é uma consequência do conhecimento espírita e, portanto, poderá ser usado como base para o estabelecimento de novos tipos de tratamento no futuro, ao mesmo tempo que permite compreender fenômenos de curas inexplicáveis para o conhecimento presente.

Nossa discussão está representada de forma esquemática pelas Fig. 1 e 2. Na Fig. 1, a visão presente do conhecimento não espírita está representada, onde é possível identificar diversas causas externas e internas ao corpo como causando o desequilíbrio da saúde. Dentro de uma concepção que não admita a existência de nada além do corpo, doenças são desequilíbrios no estado de saúde gerados por influências externas ao organismo e predisposições internas (ou interação entre esses dois fatores), incluindo a própria mente que é, em última instância, uma função ou subproduto do organismo. Na visão materialista, a consciência seria uma função do cérebro, da mesma forma que a digestão é função do aparelho digestivo. Com base nessa limitação de objetos, os precedimentos médicos procuram desenvolver tratamentos que corrijam as supostas causas associadas aos sintomas.

Na Fig. 2 adicionamos os outros elementos que também concorrem para esse desequilíbrio segundo a visão espírita, ressaltando que ele permite expandir nossa compreensão sobre a origem, gênese e desenvolvimento das doenças. Nessa nova visão, não existem apenas influências que atuam sobre o corpo ou predisposições internas do corpo que potencializam enfermidades.

Fig. 2 Concepção espírita do ser humano.  Influências externas atingem todo os diferentes elementos que constituem o ser e se propagam nele, atingindo o corpo onde tornam-se manifestas publicamente.


Existem igualmente influências externas que atuam sobre o perispírito, assim como predisposições internas do perispírito que engendram potenciais doenças. Da mesma forma, influências externas atuam sobre o espírito que, além disso, possui predisposições internas que podem resultar em doenças. Destacamos:
Como há uma comunicação entre os três elementos, o corpo físico, sendo a parte 'visível', acaba sendo também o repositório onde enfermidades serão observadas "publicamente". 
Assim, por exemplo, o comportamento do doente revelará o estado de seu espírito e poderá influenciar a doença. Seu comportamento se manifesta pela maneira como ele se comporta, como se expressa, pelo que diz etc.

Mas, quando se fala em 'influências externas', no caso do perispírito e espírito, quais são elas? Isso é o que iremos discutir futuramente, porque, da mesma forma que a medicina precisa de conhecimentos e ciências auxiliares para conhecer os mecanismos pelos quais operam as influências externas sobre o corpo (7), com o objetivo de isolar tais causas materiais, uma nova ciência terá que ser criada para descrever e explicar como outros tipos de influência externa podem se impor sobre a parte não visível do ser humano.

De nosso raciocínio acima, também podemos prever que, pela atuação correta em cada um dos três elementos (via elementos curadores), corpo, perispírito e espírito, será possível eliminar as causas e, portanto, conseguir a cura para variedades de doenças que escapam a tratamentos exclusivamente "físicos".  Portanto, ao longo de uma série de posts, detalharemos a relação simbiótica que existem entre os três elementos, indicando na literatura espírita onde essa nova visão do ser humano está erigida.

Continua no próximo post.

Notas e referências

(1) A. Kardec. O Livro dos Médiuns, Segunda parte: "Das manifestações espíritas", "Capítulo XVI - Dos médiuns especiais",  "Quadro sinóptico das diferentes espécies de médiuns", 189 (www.ipeak.com.br).

(2) Ou, melhor uma 'cura espontânea', isto é, a maior parte dos céticos respondem com esse tipo de explicação para os casos registrados na literatura;

(3) Que envolve, por exemplo, testes em animais.

(4) O fato de ser uma estatística, implica que não se pode ter certeza absoluta de que se irá atingir a cura para uma determinada doença. Uma enfermidade é vista amplamente como um fenômeno de natureza estatística e há muito o que se falar sobre isso.

(5) Esse número está avaliado em 3.72 × 10^13. Ver Bianconi et al (2013). An estimation of the number of cells in the human body. Ann. Hum Biol. (Acesso em Novembro de 2013)

(6) Ver "O Livro dos Espíritos", questão #93.

(7) Inúmeras 'ciências auxiliares' foram criadas ou aproveitadas no desenvolvimento de tratamentos médicos. A genética, a bioquímica, a farmacologia etc.