7 de maio de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - V

Tratado de Astronomia de Elias Loomis, 1880.

Continuação do post anterior: Comentários sobre "Uranografia geral" de "A gênese" de A. Kardec - IV.

Obra completa contendo todos os comentários e a conclusão.

Comentários sobre "Os sóis e os planetas" e "Os satélites".

20

O autor apresenta uma descrição do que era então a hipótese nebular (originalmente proposta por P. S. Laplace em 1796 [1]) para a origem do sistema solar. Modernamente, essa hipótese se tornou a teoria que explica a origem comum dos planetas e permite entender porque eles compartilham quase que um mesmo plano orbital e giram em torno do sol no mesmo sentido. A “força molecular de atração” é a força gravitacional entre os constituintes da nuvem primordial adensada a partir do fluido cósmico. 

Lembramos novamente que, na época de A Gênese, não se sabia a diferença entre as diversas nebulosas. Em particular, o que hoje conhecemos como “galáxias” – e que têm o aspecto de redemoinhos e formações lenticulares - eram imaginadas como provas da teoria de Laplace. Hoje sabemos que essas são, na verdade, sistemas estelares imensos, sem prejuízo à ideia original da hipótese nebular para a formação do sistema solar.

21

Essas nuvens que formam sistemas planetários têm o nome moderno: discos protoplanetários. Eles são considerados "discos de acreção", responsáveis pela formação de planetas. Modernamente, diversas imagens [2] (Fig. 1), usando ondas de rádio, foram obtidas desses discos, comprovando a teoria de Laplace e a descrição de A Gênese.

Fig. 1 Disco protoplanetário em volta da estrela Elias 2-27 como fotografado pelo grande radiotelescópio de Atacama [2].

Essa seção contém assim uma descrição sobre como, de uma nuvem disforme que, compreensivelmente, toma o formato esférico (por causa da força de atração), foi possível se chegar à forma do disco e, depois, à formação  dos planetas. Para isso o autor descreve a ação de duas forças: uma centrípeta (em direção ao centro) e outra centrífuga (que foge do centro).  De fato, hoje se conjectura que não apenas a força gravitacional é do tipo centrípeto [3]. Campos magnéticos auxiliam a tornar a nuvem compacta. À medida que se adensa, a parte central da nuvem cria condições para fusão nuclear pelas enormes pressões do material que é atraído para uma quantidade crescente de matéria que "cai" em sua direção (o processo de "acreção"). Essa parte central forma a estrela principal (ou mais de uma) do sistema. 

O processo de formação do disco é algo complexo e envolve forças de viscosidade entre partes da nuvem. O disco se forma porque, como o momento angular deve ser conservado, o processo de adensamento faz com que partículas da nuvem próximas ao eixo do disco caiam em direção ao centro e sejam "expelidas" para a borda equatorial. Esse processo contribui para que ele fique ainda mais denso.

O acender da estrela central é um evento importante porque dá origem a uma outra força "centrífuga": a força de radiação da luz que "varre" a matéria localizada fora do plano equatorial. Somente o que está no disco - que é opaco - deixa de sofrer o efeito dessa força repulsiva. 

Dentro da nuvem ocorre fragmentação que permite formar objetos menores, os chamados "planetesimais". Pelo idêntico processo de adensamento, material da nuvem cai em direção a esses centros que, paulatinamente, formam os novos planetas. É esse o processo de criação de planetas que é descrito pelo autor:
Aquela massa conservou o seu movimento equatorial que, modificado, se lhe tornou movimento de translação em torno do astro solar. Ademais, o seu novo estado lhe dá um movimento de rotação em torno do próprio centro.

O movimento de rotação do planeta é resultado do momento angular inicial da pequena nuvem em torno do planetesimal que o criou.

22

Lembramos que não se sabia, na época de A Gênese, a verdadeira origem das galáxias. Essas eram entendidas como nebulosas que se enquadravam na hipótese de Laplace. Assim, nessa seção o autor descreve a hierarquia de formação de estrelas - como adensamentos da "nebulosa geratriz" - e de planetas por processo idêntico em torno das estrelas:

Ora, cada um de seus mundos, revestido, como o mundo primitivo, das forças naturais que presidem à criação dos universos gerará sucessivamente novos globos que desde então lhe gravitarão em torno, como ele, juntamente com seus irmãos, gravita em torno do foco que lhes deu existência e vida. Cada um desses mundos será um sol, centro de um turbilhão de planetas sucessivamente destacados do seu equador. Esses planetas receberão uma vida especial, particular, embora dependente do astro que os gerou.

O que mudou, desde então, dessa descrição? A hipótese das galáxias com o "redemoinhos de estrelas" apenas confirma a descrição de Uranografia Geral. Pois, de fato, o movimento do turbilhão estelar se dá em torno do centro da galáxia, por idêntico processo de formação de disco de acreção. E, no processo de formação das estrelas pelo adensamento de nuvens locais, os planetas são criados em uma escala muito menor. Em torno dos planetas, por sua vez, por idêntico processo, os satélites são criados em escala ainda menor - e até satélites de satélites, assim como outros corpos menores. Em suma, se vê ordem e hierarquia em toda parte.

23

O autor descreve o que era então a concepção científica mais adiantada sobre a origem dos sistemas planetários como "matéria condensada, porém, ainda não solidificada, destacadas da massa central pela ação da força centrífuga". Essa é, de fato, o cerne da hipótese nebular de Laplace. Tão tarde quanto em 1964, R. Thiel a expõe no seu "Romance da Astronomia" [4] (grifos meus):

A medida que o globo nebuloso foi esfriando e se condensou, à baixa temperatura do espaço, aumentou a sua velocidade de rotação. Sob a ação da força centrífuga, a esfera converteu-se em um elipsoide, em disco, senão de vez em lente. Em dado momento, nessa esfera aplainada, a força centrífuga superou a gravitação, a atração para dentro. Em consequência disso, desprendeu-se um anel da nebulosa, mais ou menos como o de Saturno. Naturalmente, esse anel continuou a acompanhar a rotação geral, foi esfriando mais e mais; e, se isso não houver ocorrido com absoluta regularidade, surgiu em qualquer parte um núcleo de massa que puxou para si o resíduo do anel nebuloso. Formou-se assim um planeta que entrou automaticamente a rodar, porque o novo planeta, segundo a Lei de Kepler, gira mais lentamente por fora do que no interior.

Longe de parecer desatualizada, a teoria da criação dos planetas exposta pelo autor de "Uranografia Geral" faz eco ao que era então considerado uma tese ateísta: a ideia de que os planetas e estrelas poderiam ter se formado sem a necessidade de Deus, com base na ação de forças naturais (uma ideia que remonta a Demócrito de Abdera na Grécia). 

É preciso entender  o contexto dos embates entre ciência e religião no Século XIX para perceber que o texto de A Gênese estava, de fato, muito avançado para sua época. Tendo se libertado da ideia de uma intervenção direta da Divindade no mundo material e considerando o papel relevante das forças da Natureza, o Espiritismo pode livremente apoiar muitas das hipóteses naturalistas que foram proposta para explicar os fenômenos físicos. 

Fig. 2 Concepção artística moderna de um disco protoplanetário como estágio intermediário da formação do sistema solar. Os planetas se originam da acreção de material em centros menores, os planetesimais. Imagem: Wikipidia.

O que mudou no nosso entendimento do processo de criação desde então? Ao invés de uma massa que se destaca do centro da nebulosa, forma uma anel que atrai para si seus fragmentos formando planetas, o processo de "nucleação" da nebulosa maior (disco protoplanetário, Fig. 2) repetiu-se em escala menor através da formação dos planetesimais. Esses são núcleos menores de acreção que, atraindo para si os restos do disco original, formaram os planetas.  Um resumo do entendimento moderno pode ser lido em na Wikipedia [5].

24

Nossas considerações feitas da Seção 23 são relevantes para entender a descrição da formação dos satélites feitas nesta seção. Pois que, da mesma forma como se concebia que planetas teriam se destacado do bojo da nebulosa primordial, por idêntico processo, os satélites teriam se separado dos planetas destacados, em estágio posterior. É por isso que aqui se afirma:

Antes que as massas planetárias houvessem atingido um grau de resfriamento, bastante a lhes operar a solidificação, massas menores, verdadeiros glóbulos líquidos, se desprenderam de algumas no plano equatorial, plano em que é maior a força centrífuga, e, por efeito das mesmas leis, adquiriram um movimento de translação em torno do planeta que as gerou, como sucedeu a estes com relação ao astro central que lhes deu origem.

O entendimento moderno da criação dos satélites segue caminho semelhante, porém, também envolve outros mecanismos que detalham particularidades da composição observada dos corpos celestes ligados gravitacionalmente. Um desses mecanismos é o da colisão: a Lua não teria se originado de um disco protoplanetário menor da Terra (por meio da acreção binária de matéria dentro da nuvem), mas sim, surgido de uma grande colisão [6] de um corpo menor com a "prototerra" (batizada de Theia), uma versão maior de um corpo primitivo que não sobreviveu.

Entretanto, esse modelo somente se tornou a crença acadêmica dominante a partir de 1984 e, ainda hoje, está cercado de controvérsias. Em um artigo recente, R. Malcuit [7] enumera diversas de suas deficiências e apresenta hipóteses alternativas. De fato, toda a teoria de formação desses corpos menores (e também dos planetas) ainda apresenta diversas deficiências, de forma que não existe consenso absoluto em relação a esses mecanismos.

25

Naturalmente a hipótese nebular é aplicada à formação da Lua. O autor atribui às "condições em que se efetuou a desagregação da Lua" a causa para o seu movimento muito particular, o de sempre mostrar a mesma fase para a Terra. De fato, esse movimento pode ser explicado por uma "coincidência" entre os movimentos de rotação e translação da Lua em torno da Terra. Se os períodos de rotação e translação forem muito próximos, o efeito será o do corpo menor sempre mostrar a mesma face para o corpo maior (Fig. 3).

Fig. 3 Ilustração da trava de maré que faz com que a Lua sempre mostre a mesma face para a Terra (no centro). Fonte: Wikipedia.

Outra questão muito diferente é sobre a origem dinâmica para esse efeito. Ele é atribuído ao "trava de maré" (tidal locking). Como descrito na seção, a Lua possui uma "figura ovoide" ou forma que se afasta de uma esfera e que modernamente recebeu a designação técnica de "esferoide prolato". 

Acontece que a Lua é um corpo extenso. Isso significa que há diferenças na força de gravidade entre as partes da Lua próximas da Terra daquelas que estão mais afastadas (as forças de maré). Essa diferença de força é a causa para a deformação do corpo lunar: ele tem uma forma ovoide justamente por causa dessas forças. 

Fig. 4. Ilustração do efeito das forças de maré sobre um corpo esferoide. Essas forças fazem com que ele se alinhe com a linha vermelha, quando retirado de sua posição. Por isso, a Lua sempre mostra a mesma face voltada para a Terra. Imagem: Wikipedia.

Perturbada de sua posição de equilíbrio, a gravidade fará com que a lua retorne à posição de alinhamento (Fig. 4), exatamente como sugere a imagem do "João Teimoso" do comentário de Kardec: 
Tendo o centro de gravidade num dos pontos de sua superfície, em vez de estar no centro da esfera, e sendo, em consequência, atraído para a Terra por uma força maior do que a que atrai as partes mais leves, a Lua pode ser tida como uma dessas figuras chamadas vulgarmente joão-teimoso, que se levantam constantemente sobre a sua base, ao passo que os planetas, cujo centro de gravidade está a distâncias iguais da superfície, giram regularmente sobre o próprio eixo.

Portanto, o efeito da força de maré sobre a Lua não se deve a uma diferença de densidade como proposta na passagem:

Para melhor compreender-se o seu estado geológico, pode ele ser comparado a um globo de cortiça, tendo formada de chumbo a face voltada para a Terra.
Não existe essa diferença de densidade, e a "face oculta" da Lua tem a mesma natureza e composição da face que se mostra à Terra. Destacamos o comentário prudente de Kardec que se confirmou à luz das novas "observações diretas" trazidas por missões espaciais. Esse comentário, de fato, se aplica a todas as hipóteses apresentadas em "Uranografia Geral":
Por muito racional e científica que seja essa teoria, como ainda não foi confirmada por nenhuma observação direta, somente a título de hipótese pode ser aceita e como ideia capaz de servir de baliza à Ciência. Não se pode, porém, deixar de convir em que é a única, até o presente, que dá uma explicação satisfatória das particularidades que apresenta o globo lunar.

É importante lembrar que esse efeito de trava de maré também ocorre em outros corpos do sistema solar, como é o caso do planeta Mercúrio e muitas luas de Saturno e Júpiter. 

26

O autor chama a atenção para a diferença de formação de satélites entre os diversos planetas do sistema solar. Dessa forma, "o número e o estado dos satélites de cada planeta têm variado de acordo com as condições especiais em que eles se formaram". O autor esclarece que Mercúrio, Vênus e Marte "não deram origem a nenhum astro secundário", o que é correto. Porém, as diversas edições de A Gênese insistem em lembrar os dois satélites de Marte, Fobos e Deimos (Fig. 5), descobertos em 1877.

Fig. 5. Foto HRSC da sonda Mars Express dos satélites de Marte, Fobos e Deimos, tirada em 16 de dezembro de 2017. Imagem: Flickr.

Entretanto, modernamente se sabe que esses satélites provavelmente não se formaram a partir do núcleo de acreção que originou Marte (sua origem é ainda cercada de mistérios [8]). Eles foram capturados posteriormente ou são resultado de um evento de colisão. Portanto, a descrição do autor de "Uranografia Geral" permanece válida em certo sentido.

27

Esta seção descreve a origem dos anéis de Saturno. Usando da teoria da nebulosa primordial, os anéis são explicados como compostos de "moléculas homogêneas, já em certo estado de condensação", ou seja, o material se apresentava "nos tempos primitivos" em estado uniforme, sem aglomerações que  teriam causado a transformação do anel em luas menores:

Se um dos pontos desse anel houvesse ficado mais denso do que outro, uma ou muitas aglomerações de substância se teriam subitamente operado e saturno contaria muitos satélites a mais.

A essa descrição devemos adicionar o entendimento moderno de que, dada a proximidade com um corpo super massivo como Saturno, o processo de acreção não teria vingado. O corpo resultante sofreria gigantescas forças de maré que causariam sua destruição [9]. Os anéis de saturno são formados por fragmentos de material que orbitam um plano específico do equador do planeta. 

Referências

[1] Aitken, R. G. (1906). The nebular hypothesis. Publications of the Astronomical Society of the Pacific, 18(107), 111-122.

[2] Forgan, D. H., Ilee, J. D., & Meru, F. (2018). Are Elias 2-27's spiral arms driven by self-gravity, or by a companion? A comparative spiral morphology study. The Astrophysical Journal Letters, 860(1), L5.
[3] Shu, F. H., Adams, F. C., & Lizano, S. (1987). Star formation in molecular clouds: observation and theory. Annual review of astronomy and astrophysics, 25(1), 23-81.

[4] Thiel, R (1964). E a Luz se Fez: o Romance da Astronomia. Ed. Melhoramentos, 2a Edição, p. 208.

[5] Wikipedia (2021). The formation and Evolution of the Solar System: https://en.wikipedia.org/wiki/Formation_and_evolution_of_the_Solar_System  

[6] Stevenson, D. J. (1987). Origin of the moon-The collision hypothesis. Annual review of earth and planetary sciences, 15(1), 271-315.

[7] Malcuit, R. (2021). A History of a Ruling Paradigm in the Earth and Planetary Sciences That Guided Research for Three Decades: The Giant Impact Model for the Origin of the Moon and the Earth-Moon System. In Geoforming Mars (pp. 137-199). Springer, Cham.

[8] Craddock, R. A. (2011). Are Phobos and Deimos the result of a giant impact?. Icarus, 211(2), 1150-1161.

[9] Reiffenstein, J. M. (1968). On the formation of the rings of Saturn. Planetary and Space Science, 16(12), 1511-1524.