26 de maio de 2012

Deus e suas Causas II - Causas primárias e secundárias

Permite-se que satélites, planetas, sóis, em uma palavra, sistemas inteiros no Universo sejam governados por leis. Mas, com o menor dos insetos, pretende-se que ele tenha sido criado de uma vez só, por um ato especial único. Charles Darwin.

Nosso pequeno estudo aqui endereça especialmente a disputas entre 'Criacionistas' e 'Evolucionistas' em torno da origem das espécies e da própria vida. Esse suposto conflito Darwin X Deus é desprovido de argumentações justas, constituindo um conflito fabricado e oriundo de posturas cristãs fundamentalistas de ver o mundo e da maneira como a Ciência veio a se estabelecer, em antagonismo com noções arcaicas desse mesmo mundo. Hoje, os últimos resquícios da teologia dogmática se aquartelaram nas controvérsias em torno da evolução da vida, imaginando que, se os seres vivos, tal como se apresentam hoje, não puderam nascer de um ato único por um Criador feito à imagem e semelhança dos homens, ao menos poderia ter dado origem a eles em seus fundamentos de forma direta.

Vamos analisar algumas ideias que podem ajudar a formar uma imagem justa da questão e de como a ideia de Deus como 'causa primária' pode resolver satisfatoriamente a questão, eliminando esse suposto conflito com a autoridade científica.

Causas primárias e secundárias

1) A Ciência só existe através de uma 'teoria', do grego antigo teoria (θεωρία) que significa "visão, consideração", que é uma maneira de se generalizar ou sistematizar princípios de forma que seja possível explicar causas para determinados fenômenos. O problema com certas noções religiosas antigas é justamente o que se entende por 'explicação'. Para essas, Deus criou tudo: a água, a Terra, os animais, as plantas conforme está literalmente escrito em algum texto considerado sagrado. Muitos, sem nenhuma cerimônia, afirmam que isso é uma 'teoria' ou explicação que se contrapõe às teorias mais aceitas pela Ciência (ver artigos de Wernher Gitt);

2) Entretanto, a Ciência está em busca do que chamamos aqui de 'causas secundárias' para a maioria dos fenômenos. Essas são as causas fenomenologicamente ligadas à ocorrência de eventos naturais. Para entender essa noção consideremos a Fig. 1.

Fig. 01
Determinadas causas (1 e 2) resultam em um fenômeno (1). Esse fenômeno, por sua vez, serve de causa para outro fenômeno (2). Por sua vez, esse último é causa de outros dois fenômenos distintos,  3 e 4. Nesse exemplo, qual é a 'causa secundária' dos fenômenos 3 e 4? Embora os fenômenos 3 e 4 não possam ocorrer sem as Causas originais 1 e 2, de um ponto de vista 'suficiente' para explicá-los, apenas o fenômeno 2 - denominado Causa 3 - é necessário. A Causa 1 e Causa 2 (primárias) não são, assim, 'causas necessárias'  para explicar diretamente os fenômenos 3 e 4, embora sejam necessárias como 'causas que determinam as causas'. Assim, pode-se considerar uma boa explicação para os fenômenos 3 e 4 uma teoria que postule apenas o fenômeno 2 (causa 3) sem se referir às causas primárias 1 e 2. Uma nova teoria mais aprimorada deverá descobrir as causas 1 e 2. Há inúmeros exemplos - inclusive bem simples - na Natureza que demonstram a existência desse tipo de relações causais entre fenômenos. 

3) Exemplo da dinâmica entre causas e efeitos conforme a figura acima podem ser encontradas em diversas ciências, basta pensar em economia, biologia ou mesmo nos processos de patologia estudados pelas diversas ciências médicas.

4) Uma teoria não é mais 'verdadeira' por ser mais simples - de fato não há explicação mais simples do que admitir que Deus criou tudo - mas no sentido de se explicar ao máximo, de forma eficiente, o maior número de fenômenos possível; 

5) Para isso, podemos entender a questão da 'eficiência' pela possibilidade de 'falsificação' de uma determinada teoria. Façamos isso pela própria ideia dogmática que nos impõem: como é possível mostrar que a noção de Deus, como criador de todas as coisas, é falsa? Com isso queremos dizer, 'como é possível mostrar que essa ideia é falsa da mesma forma como poderíamos querer mostrar ser falso, por exemplo, que água e óleo se misturam?' Uma resposta simples é: realizando um experimento. Um experimento permite que se observem não só que determinado efeito resulta de uma causa, mas também as condições para que determinados efeitos ocorram, diante de determinadas causas (secundárias). 

6) A idéia de Deus como criador de tudo não pode ser refutada porque não é uma teoria, mas um princípio que pode ser admitido verdadeiro, mas que não se pode provar por estar fenomenologicamente distante de nossa capacidade de apreender o mundo (1). Faz parte dos atributos da divindade, da noção de Deus conforme entendida em "O Livro dos Espíritos" (2), que ele seja a causa primária de todas as coisas. Assim como é possível constatar que, na Natureza, muitos fenômenos ocorrem segundo leis específicas, não é razoável admitir que Ele, por mero capricho (que parece ser uma condição humana, sugerida por textos considerados sagrados por influência de ideias arcaicas), desrespeite essas leis e se ponha a realizar atos arbitrários? Tais atos implicam em aceitar muito facilmente que Deus atue sobre o mundo como uma causa secundária, coisa que ainda há que se demonstrar, ainda que isso seja totalmente desnecessário diante das Leis Universais. Sabemos que essas leis existem e que, na verdade, elas se constituem nos mecanismos de atuação da Divindade. Dessa forma, inexiste qualquer limitação a Deus, argumento que é frequentemente colocado, mas compreensão mais precisa da maneira como ele atua no mundo.   

7) Ainda que fosse possível admitir e mostrar na Natureza que Deus atua no mundo como causa secundária em algumas circunstâncias (temos que admitir que o movimento das menores partículas do Universo são regidos por leis bem determinadas e não demonstram nenhuma arbitrariedade de princípios), muito menos defensável é imaginar que toda a criação dos seres vivos (o que inclui não só animais e plantas desse nosso planeta, mas também de muitos outros que a ciência descobrirá eventualmente) pudesse ter ocorrido a partir de um ato arbitrário direto.

Fig. 2 Visão antiga do Universo: os povos antigos do oriente médio conceberam a Terra como circundada pelas 'águas  inferiores' (por causa da geografia circundada por águas onde habitavam). No alto estava o firmamento que suportava o Sol, a Lua e as estrelas a girar em torno da Terra. Acima do firmamento havia também águas (razão porque chovia), e, além das águas superiores, estava o 'Reino de Deus'. O 'submundo' - que iria dar origem ao conceito de 'inferno' - estava abaixo da Terra.

8) Olhando do ponto de vista histórico, é muito fácil ver que os povos antigos não distinguiam direito a diferença entre causas primárias e causas secundárias. Por isso, narrativas antigas sobre a criação, assim como sua cosmologia (Fig. 2), podem ser descartadas, não como uma 'alegoria da verdade', mas como uma visão particular de povos antigos em determinados momentos de sua história. Os que insistem em interpretar literalmente textos que propõem tais imagens, não se dão conta do ridículo a que se expõem, já que o processo de geração de conhecimento (ciência) continuará a desvendar a Natureza como algo muito diferente das concepções e ideias humanas, principalmente aquelas que hoje se nos figuram arcaicas e pueris.

9) Mas, da mesma forma como não é lógico descartar as causas secundárias, nos distanciamos da verdade ao querer descartar as causas primárias. De acordo com essa visão, um efeito é uma sucessão de várias causas, a se iniciar com as primárias e, depois, com as secundárias que são efeitos das primeiras. Desta forma, não se pode dizer que a teoria da evolução das espécies ou qualquer outra que se proponha para dar conta das causas secundárias levem à negação da ideia de Deus como causa primária. Simplesmente as duas causas existem, uma sendo consequência da outra, mas, para objetivo de explicação ou racionalização sobre eventos naturais, as causas secundárias são suficientes. Veja que é possível se conceber boas teorias a respeito do mundo tão só admitindo causas secundárias. Entretanto, isso não significa que, com a evolução do conhecimento e da integração de vários outros fenômenos, novas causas possam ser descobertas sustentando a existência de causas secundárias. É isso que ocorre com a ideia de Deus e seu papel na criação dos seres: não precisamos de Deus (como causa secundária) para explicar a evolução dos animais e, talvez, o surgimento da vida, mas isso não significa que Ele não exista (causa primária).

Conclusão

Do ponto de vista lógico, não há nenhum conflito entre a ideia de Deus (desde que admitido como causa primária) e a evolução das espécies, nem com quaisquer mecanismos que a Ciência venha postular para explicar e desenvolver nosso conhecimento a respeito dos seres vivos. O conflito é oriundo exclusivamente da maneira peculiar com que certas teologias dogmáticas veem o mundo. Ao se insistir nessa postura, o fosso entre o conhecimento científico e as religiões dogmáticas irá se tornar cada vez maior e irreversível. O resultado não pode ser senão um aprofundamento do materialismo e uma aumento na crença generalizada de que 'Deus está morto'. 

A Doutrina Espírita (tal como entendida pelos ensinos em 'O Livro dos Espíritos' de A. Kardec) endossa e apoia abertamente todas as descobertas e teorias científicas, entendendo-as como conhecimentos de causas suficientes (embora secundárias) para a correta explicação dos fenômenos naturais relativos à vida e a evolução dos seres. Forças adicionais, entretanto, podem ser necessárias para a compreensão desses fenômenos, principalmente no que diz respeito à criação da vida e ao aparecimento dos seres, forças que a Ciência revelará, pelos seus métodos, em tempo oportuno, através dos especialistas dessas ciências.

Notas e Referências

(1) É interessante considerar a resposta à questão do LE (2) #10:
10. Pode o homem compreender a natureza íntima de Deus?
"Não; falta-lhe para isso um sentido."
Por isso, a integração de Deus em explicações puramente racionalistas do mundo ainda é algo distante.  Para referências ao LE, ver IPEAKVer também: Deus e suas Causas I. (post anterior da série)

(2) A. Kardec (1857). 'O Livro dos Espíritos'. Ver questão #1. Obra fundamental de caráter profundamente racionalista que forma as bases da Doutrina Espírita. 

19 de maio de 2012

8º Encontro Nacional da LIHPE


Espiritismo na atualidade: das práticas cotidianas ao meio acadêmico”.
18 e 19 de agosto de 2012
São Paulo-SP 

O grande êxito alcançado com as edições do Encontro da Liga de Pesquisadores do Espiritismo* reforçou o propósito de seus integrantes e colaboradores em promover anualmente este evento científico.

O encontro tem se constituído em um espaço privilegiado para apresentação e discussão de conhecimentos na área e tem contado com a participação de pesquisadores de todas as regiões do país, interessados na divulgação e avaliação dos seus estudos científicos.

Instruções aos autores de trabalhos

Por meio de artigos completos e poster (apresentação oral).

A avaliação dos trabalhos será feita utilizando-se o sistema revisor por pares, por membros do Comitê Científico do encontro. Artigos aceitos podem ser eventualmente publicados no formato de livro.

Todos os trabalhos deverão ser submetidos, exclusivamente, por meio da página eletrônica: www.lihpe.net.

A data final para submissão é 15 de junho de 2012. A confirmação do recebimento e aprovação do artigo também será enviada eletronicamente ao email do remetente.


Informações:

Sobre a apresentação dos trabalhos: acesse www.lihpe.net ou envie uma mensagem para:


Sobre inscrições, hospedagem, alimentação: acesse www.ccdpe.org.br.

(*) Até a edição de 2009, o evento se denominava Encontro da Liga dos Historiadores e Pesquisadores Espíritas. A partir de 2010, o evento passou a se denominar Encontro da Liga de Pesquisadores do Espiritismo, mantendo-se a sigla Enlihpe.

12 de maio de 2012

Sobre fotos Kirlian e o corpo bioplasmático dos soviéticos.

Cortesia: www.o8ode.ru
Tenho sido questionado por diversos colegas sobre a relevância empírica das chamadas "fotos Kirlian" no campo da pesquisa psíquica. Descobre-se facilmente que são inúmeras as referências e citações espíritas a esse tipo de fotografia elétrica que fez muito sucesso na década de 80. Diz-se, por exemplo, que esse tipo de fotografia revela a contraparte não física dos seres vivos e, até mesmo, que seria uma maneira de se observar o 'perispírito' (vejam, por exemplo, J. Herculano Pires ou Hernani G. Andrade [1]).

Essas fotos são popularmente conhecidas como sendo da 'aura' (do latim "brisa, sopro, hálito, brilho") do objeto fotografado. É comum associar esse nome à 'manifestação energética' [2] de algo relacionado aos seres vivos. Já discutimos antes o conceito de energia e seu significado no contexto da Física. Isso demonstra a existência de uma ampla variedade de significados associados à palavra 'energia' na literatura espiritualista recente que não corresponde ao seu significado original. 

Entretanto, o conceito de 'aura' não existe nos princípios espíritas. Também podemos nos perguntar se a ligação de princípios tais como 'perispírito' a algo como 'aura' pode ser sustentado. Talvez seja possível, por algum processo de associação, vinculá-la a ideia de 'fluido' ou emanações de natureza mais sutil, inobserváveis ordinariamente. Tais emanações podem operar nos processos mediúnicos na forma de subprodutos de processos de metabolismo alterado. Mas, certamente, isso é uma associação indevida, já que o Espiritismo não trata diretamente de questões relacionadas a processo metabólicos,  doenças ou bem estar físico que são popularmente creditados aos chamados 'padrões de aura', supostamente observados por meio das fotos Kirlian. A base empírica do Espiritismo concentra-se na questão da mediunidade e reencarnação é ao redor desses conceitos que a maior parte das explicações e previsões são formuladas. 

Por isso,  fazemos aqui alguns comentários sobre esses conceitos e noções frequentemente mal compreendidas por conta, principalmente, de falhas na definição dos conceitos, falta de clareza na linguagem e dificuldades de compreensão dos diversos objetos de estudo envolvidos.

O que é uma foto Kirlian

O casal Valentina e Semyon Kirlian.
Foi Semyon D. Kirlian (1898-1978), um técnico de eletrônica na extinta União Soviética, quem teve, pela primeira vez em 1939, a ideia de fotografar o efeito corona  presente em corpos condutores sujeitos a elevadas tensões elétricas. Para entender o efeito corona, é preciso entender primeiro o que é uma 'descarga elétrica' [3]. 

Uma descarga elétrica é um caminho luminoso formado pela abertura, no meio transparente (no caso, o ar) de uma via de condução para íons (partículas carregadas). Tais íons são formados e conduzidos pelo campo elétrico presente no ar e imposto por algum gerador (pode ser por separação de cargas na atmosfera durante as tempestades). Esse campo elétrico provoca dissociação de átomos (ou seja, átomos do ar perdem elétrons) e formam, além dos elétrons arrancados, os íons responsáveis pelo transporte da corrente elétrica. O fenômeno é luminoso, pois ocorre recombinação dos íons, o que gera luz. Tanto que, da análise espectral da luz, é possível conhecer a constituição química do ar onde a descarga ocorre. O fenômeno é complexo, pois depende das propriedades do ar ou gás onde ocorre a descarga: assim, há forte dependência com a pressão do ar, por exemplo, além de outros fatores.

Fig. 1 Diagrama esquemático do arranjo para fotos Kirlian.

Campos elétricos podem existir não somente como tensões estáticas, mas também na forma alternada (chamado campos de corrente alternada), com uma frequência característica (período de oscilação). Portanto, é possível obter o efeito corona tanto com campos estáticos como alternados que se comportam de forma diferente (por conta da oscilação da corrente elétrica) dos campos estáticos. Kirlian trabalhava com geradores de alta tensão com frequências entre 75Khz e 200KHz (tais geradores podem, por exemplo, serem usados na transmissão de rádio). Ao se interpor um objeto 'vivo' entre uma placa condutora energizada e um filme fotográfico, os campos elétricos produzidos pelas descargas na 'interface' entre o objeto e a placa irão produzir o efeito corona que poderá ser registrado em filme. Acontece que os mesmos efeitos (principalmente de cores) também podem ser obtidos com objetos inanimados, contanto que eles sejam condutores. Também aqui há dependência com vários fatores: com a pressão exercida pelo objeto, com a constituição do gás (de que espécie química ele é feita), se for ar, se há presença de oxigênio ou não, se há presença de umidade etc.

A utilização de um vidro transparente condutor (em substituição à placa na Fig. 1) permite a filmagem do efeito corona produzido pela descarga (uma técnica já usada por Kirlian), dispensando o uso de filmes químicos. Esse arranjo é suficiente para demonstrar o desaparecimento das cores, indicando que a obtenção dessas, além da dependência com os gases e pressão exercida pelos dedos, está ligada à presença do filme. 

O 'corpo bioplasmático'

Foi Kirlian quem afirmou, pela primeira vez, que os padrões de forma e cor obtidos estavam relacionados com o estado do indivíduo que se submeteu à fotografia. Ele chamou esse de 'efeito psicogalvânico' [4]. Entretanto, ele também forneceu uma explicação bem física para o fenômeno: trata-se de uma manifestação da mudança de condutividade da pele com o estado psicológico.  Como dissemos, o resultado dos padrões depende de um conjunto grande de fatores (além do próprio ar e da presença do filme), em especial a condutividade elétrica da pele e, talvez, a emissão de gases na cercanias do corpo - fenômenos relacionados com o estados fisiológicos e psicológicos (todos conhecemos o umedecimento das mãos com o nervosismo).

Entretanto, as imagens foram frequentemente exploradas para revelar aspectos muito sutis da personalidade em um processo suspeito de extrapolação da ideia original de Kirlian. Aspectos comerciais motivaram também a exploração. Assim, estamos diante de um fenômeno que apresenta duas faces: o de realidade e o de extrapolação. É realidade que os padrões de efeito corona, em tese, podem estar fortemente correlacionados com o estado fisiológico dos indivíduos submetidos ao processo da fotografia Kirlian. Entretanto, o 'quão forte' essa correlação pode ser afirmada, ainda está sujeita a exploração teórica e experimental, constituindo um genuíno campo de pesquisa.


Mas é uma extrapolação incorreta assumir qualquer ligação do efeito Kirlian como uma evidência fotográfica de conceitos espíritas tais como o perispírito, mesmo na sua interpretação de 'corpo bioplasmático' [1]. O que seria esse corpo? O 'corpo bioplasmático' pode ser entendido no sentido original dado pelos então soviéticos: como conjunto de propriedades elétricas associadas ao organismo humano e que é alterado por estados psicológicos. Quanto ao perispírito, ele é o corpo que reveste o Espírito e é composto de um tipo de substância muito mais sutil, não evidenciada de forma simples por nenhum tipo de equipamento, por enquanto. São conceitos expressos em doutrinas e linguagens totalmente diferentes, o que torna difícil a absorção apropriada de um no outro.

A que se deve este estado de coisas?

Em um posto anterior, discutimos brevemente doze obstáculos ao estudo científico da sobrevivência e a existência do espírito. Esses obstáculos devem ser entendidos como problemas na compreensão do objeto de estudo dessa nova ciência, que já se batizou de 'ciência espírita'. O obstáculo que numeramos 5 e 6:
  • (5) Tentar "detectar" o espírito por meios diretos: há uma quantidade enorme de pessoas que acreditam que manifestações físicas (efeitos físicos) são 'manifestações espirituais'. Outros dizem que, se o Espírito existe, ele necessariamente deve deixar rastros mensuráveis. Aqui, a falha é na compreensão do objeto de estudo:  a matéria se deixa apreender por determinados tipos de sinais (cores, sons, formas, gostos etc). O Espírito tem pensamento, vontade e sentimentos, todos atributos inacessíveis do ponto de vista sensorial (ver novamente a referência [5]). Não é difícil perceber que a questão não pode também ser decidida apelando-se para uma amplificação no nível de acuidade ou 'precisão' do equipamento.  
  • (6) Tentar "mensurar" o espírito: uma variante do erro anterior;
A tentativa de se usar a fotografia Kirlian insere-se nesse problema. Torna-se um obstáculo, pois gera mais uma falsa impressão de que, caso não puder ser resolvido por esses meios de observação 'direta', então as propostas espíritas necessariamente encontrarão dificuldades em se afirmar como verdades. A insistência em querer manter o 'corpo bioplasmático' como um interpretação do perispírito, longe de ajudar, torna menos clara a proposta espírita, inserindo variáveis e dependências que o problema real (do espírito) não tem. Além disso, gera outra falsa impressão em céticos que compreendem bem o significado puramente físico desse 'corpo' proposto pelos então soviéticos.

Assim, os espíritas devem avaliar de forma cuidadosa - o que envolve o contexto dos princípios espíritas - propostas experimentais de se 'medir' coisas que, em tese, não estão sujeitas à apreensão direta, mesmo usando-se aparelhos. 

Referências e notas

[1] Para tanto, basta consultar: "Parapsicologia Hoje e Amanhã", Capítulo 9, de J. Herculano Pires (8a Edição, Edicel), onde encontramos a seguinte frase:

"É evidente que a designação de corpo bioplasmático, geralmente simplificada para corpo bioplástico, resultou precisamente das séries de experiências realizadas pelos cientistas para verificar as funções específicas do corpo energético. Essas funções fundamentais correspondem exatamente às do perispírito na teoria espírita."
[5] S. S. Chibeni (2010), A Pesquisa Científica do Espírito.


5 de maio de 2012

Conceitos básicos de Física Quântica III

"A física quântica assim revela a unicidade básica do Universo". E. Schrödinger.

Apresentação elementar de conceitos básicos em física quântica para que o leitor possa melhor julgar e se posicionar diante dos que pretendem misturar espiritualismo com essa especialidade da física.

A noção de estado quântico.

Um conceito fundamental em física quântica é a noção de estado quântico. Na física considerada 'clássica' o estado também é importante, mas é menos aparente pelo fato de que, em um 'sistema clássico', o seu 'estado' é descrito por quantidades bem determinadas tais como 'velocidade', 'posição' etc. Tais quantidades existem num domínio arbitrário de valores e são limitadas apenas pela 'dinâmica' inerente de cada sistema físico particular.

No caso de sistemas quânticos (Nota 1), o estado adquire suma importância. Isso porque um sistema é caracterizado por ele e não por equivalentes à quantidades clássicas. Um sistema físico qualquer como um átomo pode ser preparado em um estado bem definido, mas, nesse caso, não há prescrições de 'velocidade', 'posição' etc, para seus constituintes que sejam tão bem definidas. Além disso, a grande maioria dos sistemas físicos (dos quais os átomos fazem parte) são sistemas 'fechados', de forma que os estados quânticos característicos são descritos por números inteiros bem definidos. Mas isso diz respeito ao ferramental analítico (matemático) que se pode inventar para descrever tais estados.

Mas o que seria um estado? De forma bem simplificada, um estado é um determinado arranjo de elementos de um sistema que o caracteriza. A noção de estado quântico pode ser compreendida por um exemplo bem simples. Imaginamos nosso guarda roupas com certo número de camisas, calças e sapatos, todos colocados em uma certa disposição. Podemos dizer que as camisas são colocadas em cabides na parte superior, enquanto que as calças em prateleiras inferiores. Os sapatos também, se todos organizados, podem ser dispostos segundo uma determinada ordem. Ao trocar um par de sapatos de posição - imaginamos poder trocar um certo par com outro de lugar - o estado do guarda roupas será modificado. O mesmo pode acontecer se trocarmos as camisas, as calças etc. Quantas combinações diferentes de arrumação podemos ter para nosso guarda roupa? A resposta a essa questão depende do espaço disponível, número de calças, camisas, sapatos etc. Pois bem, essas 'combinações diferentes' caracterizam o estado do guarda roupas.
Fig. 1 O exemplo das maneiras diferentes de se arrumar um guarda roupas fornece uma boa analogia aos estados quânticos em um sistema físico qualquer. Para descrever o 'estado de arrumação' do guarda roupas, precisamos colocar rótulos em cada posição que sirvam para identificação das roupas e sapatos.
No nosso exemplo (Fig. 1) nós não podemos tentar guardar as camisas nos lugares reservados aos sapatos e vice versa. Isso é proibido. Portanto, para organizar o guarda roupas existem regras. Além disso, se temos 2 pares de sapatos iguais, nosso 'estado de arrumação' vai mudar se trocarmos esses pares ? Então podemos dizer que um guarda roupa é um sistema físico composto por uma determinada quantidade de elementos 'camisas, calças, sapatos' arrumados em determinada ordem. Essa 'maneira' caracteriza o estado do guarda roupas. Como podemos descrever esse estado? Poderíamos, por exemplo, colocar rótulos em cada posição e descrever a posição das camisas, calças e sapatos em cada rótulo. Para isso associamos uma descrição do tipo de elemento (se calça, camisa ou sapato) ao rótulo. Isso gera uma lista que é uma 'descrição' sumária do estado do guarda roupas. Qualquer pessoa com essa lista poderá repetir o processo de arrumação de forma eficiente e repetitiva.

O estado quântico de átomos

Um átomo é um sistema físico que é usado pela Natureza para formar a matéria. Isso é feito através do agrupamento de um número gigantesco de átomos. Um átomo é feito de elementos básicos: para nossa discussão é suficiente considerar os 'elétrons' (partículas indivisíveis de carga negativa), 'prótons' (partículas de carga positiva) e 'nêutrons' (partículas sem carga). Prótons e nêutrons estão 'confinados' formando os 'núcleos atômicos', enquanto que os elétrons se colocam em volta desses núcleos. A maneira como esses elementos estão organizados no interior do átomo (que, portanto, não é um sistema 'indivisível') caracteriza seu 'estado quântico' (Fig. 2). Em analogia ao guarda roupas, existem regras para a organização dos elementos nos átomos. Por exemplo, o tamanho do átomo depende do número de elementos que o formam. Existem diferentes tipos de átomos que se distinguem conforme a quantidade de partículas que abrigam. Os diferentes jeitos como podemos arranjar cada partícula no interior de um determinado átomo aumentam com a quantidade de elementos nele contidos (tal como no caso do guarda roupas). Portanto, o número de 'estados quânticos' distintos em um átomo aumenta com a quantidade de elementos que o constituem.

Fig. 2 Os chamados 'orbitais atômicos' descrevem auto-estados (ou estados puros) no átomo de Hidrogênio. Cada número à esquerda é um 'rotulo' que descreve a maneira como o elétron se organiza em torno do átomo. As figuras geométricas representam 'nuvens de probabilidade' ou áreas em torno do núcleo onde é possível encontrar elétrons.
No caso dos estados quânticos que interessam à química, apenas estados de arranjo de elétrons em torno dos núcleos são relevantes. Como átomos podem ter vários elétrons, existem regras para a maneira como esses elementos devem se dispor em volta dos átomos. Isso acontece exatamente como no caso do guarda roupas (a diferença é que, na Natureza, não tem como desobedecer essas regras enquanto que podemos deixar nosso guarda-roupas bem bagunçado...). No passado acreditava-se que elétrons 'giravam em volta' dos núcleos como satélites naturais desses, mas essa ideia se mostrou equivocada (ainda existe uma quantidade incrível de referências que tratam átomos dessa maneira). Elétrons simplesmente estão arranjados em 'nuvens de probabilidade' em torno de seus núcleos de forma que não é possível associar uma velocidade e uma posição a eles. A única coisa que pode ser dita a respeito dos elétrons em um átomo é que eles podem estar arranjados em um determinado estado quântico bem definido (chamados de 'auto-estados' ou estados puros). A descrição de tais estados - como no exemplo do guarda roupas - é feita associando-se o número de elétrons a determinados rótulos ou números especiais (Fig. 2). 

O estado quântico da matéria nuclear

O mesmo raciocínio vale para o caso dos elementos que constituem o núcleo do átomo. Prótons e nêutrons também estão confinados no interior dos núcleos de uma forma organizada por leis rigorosas, o que é descrito por estados quânticos, os chamados estados nucleares. Para descrever tais estados, números especiais também foram descobertos. 

Mudança de estado quântico. 

O estado de nosso guarda roupas pode ser mudado se transferirmos um elemento (por exemplo, uma camisa) de uma posição para outra. Podemos, por exemplo, esvaziar o guarda roupas (o estado 'vazio' também é um estado possível. No caso dos elétrons nos átomos, esse estado é chamado de 'ionização total'). Da mesma forma, estados quânticos podem ser alterados por meio de operações especiais onde energia de alguma forma é utilizada. Por exemplo, um átomo que se encontra em um estado pode ser levado a outro estado quando é banhado por luz. Ou ele pode realizar a mudança oposta e liberar energia para o exterior (emissão de luz). Uma característica importante dos estados quânticos é que eles são caracterizados por uma determinada quantidade chamada 'energia' do estado, que não é um conceito absoluto mas relativo (para saber mais sobre esse conceito consulte nosso post anterior). 

Quando átomos se encontram nos seus chamados 'auto estados' podemos associar uma quantidade única de energia como característica do estado. Esse é o assim chamado 'nível de energia' do átomo. As mudanças de estado se processam todas por meio de absorção ou emissão de energia na forma eletromagnética. Isso quer dizer que quanta de luz são usados como moeda de troca entre estados quânticos. No caso de núcleos, os níveis de energia são muito maiores e os quanta de luz trocados têm energia também elevada. Por isso, processo de decaimento nuclear (mudanças de estados nucleares) envolvem a emissão de luz de altas energias (por exemplos, raios X ou raios gama). Embora os elementos descritivos dos estados no caso da atmosfera eletrônica e do interior nuclear sejam diferentes (assim como as regras para os arranjos de partículas), os mesmos princípios da física quântica estão envolvidos. Outro jeito de se modificar estados quânticos é através a observação ou realização de uma medida. Abordaremos esse assunto um tanto complexo em um futuro post.

Mas a analogia não é totalmente válida...

Fig. 3
Até aqui usamos a analogia do guarda roupas para ilustrar de forma simples o conceito de estado quântico. Mas essa analogia não se sustenta por muito tempo ao se constatar que a Natureza pode ser ainda mais estranha do que as nossas maiores fantasias. Imaginemos por um momento que nosso guarda roupas tivesse um mecanismo especial pelo qual fosse possível compartilhar o mesmo espaço entre camisas diferentes. Por exemplo, que fosse possível que camisas brancas e escuras pudessem ser misturadas (sem perderem seu estado se bem passadas!) de forma a se colocarem na mesma posição do espaço. Isso pode ser também pensado como uma mistura entre estados de arrumação diferentes. Imaginemos também que nós só poderemos saber a posição exata onde cada uma das camisas se encontra ao abrirmos o guarda roupas.  Quando fazemos isso, nosso sistema muda  (diz-se 'colapsa') para um dos estados de arrumação possíveis não misturados! 

Embora impossível de acontecer em nosso mundo 'macroscópio', isso é plenamente possível na microfísica: misturam-se estados puros de forma que um mesmo elemento (por exemplo, um elétron no átomo) ocupe mais de um estado 'puro' ao mesmo tempo. Tais são os chamados 'estados quânticos mistos' e, quando isso acontece, não é possível associar um 'nível de energia' único a um tal estado. O estado misto é então descrito não somente pelos rótulos dos estados puros, mas com uma quantidade adicional de números correspondentes ao número de estados puros (auto estados) envolvidos na mistura. Esses novos números estão associados à probabilidade de se encontrar o sistema físico naquele estado puro correspondente. Tal possibilidade de mistura tem consequências bizarras para o nível macroscópico e que foram exploradas através do chamado gato de Schrödinger (Fig. 3). Para se criar misturas desse tipo, não apenas sobreposições de estados são necessárias, mas também outra propriedade de sistemas quânticos chamado entanglement (ou emaranhamento). Deixaremos, porém esse assunto para outro post. 

Assim, chegamos à conclusão que um sistema físico quântico não é apenas caracterizado por seus elementos constituintes, mas que ele também possui estados característicos que são propriedades fundamentais desses sistemas. Esses estados servem para organizar a maneira como os elementos devem se dispor no sistema e podem ser misturados de tal forma que não é possível associar um estado único e definitivo a um sistema quântico. Tais estados organizam a matéria de forma definida por leis específicas. Além disso, eles evoluem no tempo, o que dá origem à evolução quântica de estados. Também vimos que um estado quântico é descrito por um conjunto de números ou rótulos e que tais números são parâmetros melhores para caracterizar o estado físico do que os parâmetros usados na física de objetos macroscópios. Conceitos com o 'posição' e 'velocidade' deixam de ter validade e são substituídos por outros.

A analogia em física clássica mais próxima possível é com o estado de vibração de cordas em instrumentos musicais ou com fenômenos sonoros. Um estado puro corresponde a uma nota fundamental em um instrumento, enquanto que um estado misto é análogo a uma mistura de notas. Mas, de novo, tal analogia não é totalmente válida, dado o caráter probabilístico e a maneira peculiar com que a mistura é feita, que é bem diferente da mistura de sons ou notas musicais.

Notas
  1. Atenção! A wikipedia descreve (em 2012) um estado quântico apenas com referência aos números quânticos que localizam elétrons em átomos. Essa descrição é muito limitada. Um estado quântico é um estado geral que caracteriza qualquer tipo de sistema físico e não apenas átomos.
Outras referencias

Este post é a continuação dos seguintes anteriores: