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14 de fevereiro de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - II

Aparelho para produção de espectros (1878).



Comentários sobre "As leis e as forças"


8

O autor faz uso de uma bela comparação (que faz eco à alegoria da "caverna de Platão" [12]) para descrever o estado de conhecimento da ciência. Uma imagem em que seres oceânicos, deixando o fundo do mar, tomam conhecimento da realidade acima da superfície. O conhecimento que podemos fazer da Natureza que nos cerca está ainda no primeiro estágio, em que ainda apenas exploramos as cercanias das profundezas do oceano em que vivemos, muito longe da realidade acima da superfície. A comparação é clara e se aplica mesmo ao estágio de conhecimento em que chegamos. Por mais que tenhamos avançado, os passos são pequenos diante da grandiosidade do Universo. Kardec faz um comentário relevante sobre essa comparação em que ele a estende ao estado do conhecimento humano sobre a vida além da morte.

9

Explica-se aqui o escopo da discussão sobre "as leis e as forças". Como desencarnado, o autor está em uma posição privilegiada para estudar fenômenos inacessíveis para os encarnados. Mas, ao mesmo tempo, é um "ser relativamente ignorante em face da ciência real", o que reafirma seu despojamento e modéstia: ele não se apresenta como autoridade do assunto.

10 

Há um "fluido etéreo que enche o espaço e penetra os corpos". Hoje, algumas pessoas poderiam entender isso como ecos da "teoria do éter" de que falava os “eletricistas” do século XIX. Essa teoria soçobrou no início do século XX com a relatividade, que dispensou o "éter luminífero" para explicar o comportamento da luz e da radiação. Entretanto, cremos que se trata de uma interpretação precipitada e literal. O texto sequer toca em outros detalhes relevantes que conduziriam a essa conclusão. O éter luminífero postulado pela Física do século XIX era algo inerte, passivo, apenas imaginado como meio que facultava a propagação da radiação e nada mais.

Ao contrário, o autor descreve o fluido como uma substância em que:
...são inerentes as forças que presidiram às metamorfoses da matéria, as leis imutáveis e necessárias que regem o mundo.
Conceitos dominantes posteriormente, como a ideia de "campos", estavam em fase embrionária de desenvolvimento. O éter universal é aqui descrito como responsável pela "gravidade, coesão, afinidade, atração, magnetismo, eletricidade ativa", além de ser capaz de presidir "às metamorfoses da matéria". Isso seria, certamente, algo fantasioso para a época, mas hoje faz muito mais sentido. Para entender  isso, é preciso apreciar para onde conduziram as investigações da Física desde as descobertas da radioatividade no final do século XIX. 

Depois das investigações iniciais, ficou claro que os constituintes da matéria, os átomos, poderiam ser divididos em partículas menores. Essas, por sua vez, mostraram-se igualmente fluidas: por meio de colisões feitas em equipamentos especiais (aceleradores de partículas), uma vasta e complexa rede de “interações elementares” entre as partículas foi revelada. Algumas dessas interações ocorriam de forma espontânea: alguma coisa no “espaço vazio” provocava a decomposição “automática” das partículas que começaram a ser interpretadas como “estados ligados” de uma matéria ainda mais elementar [13]. 

Esse conhecimento finalmente transformou a ideia do antigo éter estático da propagação da luz na noção do "vácuo quântico" como uma substância que permeia todo o Universo, que não pode ser "esvaziado" de nenhum lugar e que tem papel fundamental na criação da matéria. O qualificativo "quântico" modifica completamente a noção de vazio como uma região do espaço onde toda a matéria tenha sido retirada e em que apenas propriedades geométricas podem ser associadas. Para a Física Quântica não é possível anular o conteúdo de energia de um sistema. Assim, o vácuo quântico é definido como o estado de menor energia possível para um "campo", o novo conceito que substituiu a noção de matéria clássica. Por isso, embora vazio de partículas "físicas", esse novo vácuo permite a criação incessante de partículas "reais " a partir de sua "energia de ponto zero".

O "efeito Casimir" é uma fraca força mecânica que aparece entre placas paralelas pela presença do vácuo quântico.

Além de suas ricas propriedades dinâmicas, como exemplo, citamos um dos efeitos notáveis do vácuo : "efeito Casimir" [14].  Esse efeito é uma força mecânica de atração que aparece quando placas metálicas são colocadas face a face. O vácuo quântico é responsável pelo aparecimento dessa força. Esse novo vazio é, na verdade, uma nova substância, que, se modificada ou excitada de forma particular, pode gerar a enorme variedade de partículas e campos que compõe a matéria tangível. Nosso despretensioso estudo conduz naturalmente assim para uma possível interpretação do "fluido cósmico" de que fala o autor de "Uranografia Geral" para essa nova noção de vácuo. Ainda assim, é preciso cautela porque é bem possível que não tenhamos conhecimento científico "final" sobre esse estado primitivo da matéria cósmica fundamental. 

11

Esta seção se apresenta como uma conclusão da exposição sobre "as leis e as forças": a síntese  se encontra na unidade observada das leis universais (algo que, modernamente, tem relação com a possibilidade de "unificação" das leis da Física) que são eternas. É um sonho antigo - ainda não plenamente realizado - descrever todas as leis e forças a partir de uma única lei. A causa dessa incapacidade em se chegar até a lei mais fundamental de todas é que "são restritas e limitadas as forças que a representam no campo das vossas observações". Há, portanto, outras manifestações de força ainda ocultas à observação da ciência da época e, provavelmente, mesmo da nossa. 

Além da dualidade "unidade-variedade", o texto também faz referência ao princípio de conservação: "Percorrendo os degraus da vida, desde o último dos seres até Deus, patenteia-se a grande lei de continuidade". A aplicação das leis universais "secundárias" (em oposição à lei primária "universal") é descrita como agindo:
...necessariamente em tudo e em toda parte, modificando suas ações pela simultaneidade ou pela sucessividade, predominando aqui, apagando-se ali, pujantes e ativas em certos pontos, latentes ou ocultas noutros, mas, afinal, preparando, dirigindo, conservando e destruindo os mundos em seus diversos períodos de vida, governando os maravilhosos trabalhos da Natureza, onde quer que eles se executem, assegurando para sempre o eterno esplendor da criação.
Então, a partir de modificações e gradações de aplicação dessa, surgem "leis secundárias" e outros princípios que atuam como causas para a enorme variedade de manifestações observadas no Universo. Essa conclusão corresponde à ideia moderna de que podemos "reduzir" as variedades de fenômenos observados a causas mais fundamentais. Porém, nossa incapacidade em reconstruir essa redução repousa em nossa limitação de observação. Como nossos sentidos são limitados, não temos acesso a todo conjunto de fenômenos que existem. Portanto, não temos informação suficiente para se remontar à causa mais fundamental da lei universal. 

Continua no próximo Post com "A criação primária".

A conclusão de nosso estudo será publicada no último post. 

Referências

[12] Wright, J. H. (1906). The origin of Plato's Cave. Harvard Studies in Classical Philology, 17, 131-142.
[13] Moreira, M. A. (2009). O modelo padrão da física de partículas. Revista Brasileira de Ensino de Física, 31(1), 1306-1.
[14] M. V. Cougo-Pinto, C. Farina e A. Tort (2000). O Efeito Casimir. Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 22, n. 1.





15 de janeiro de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - I

Cometa de Donati sobre uma Paris sem luz elétrica como visto em 1858.

Obra completa contendo todos os comentários e a conclusão.

Fazemos aqui alguns comentários sobre o Capítulo VI “Uranografia Geral” de "A Gênese" de A. Kardec. Nosso objetivo é comentar o conteúdo desse capítulo no contexto de sua época, e indicar algumas mudanças que aconteceram nas concepções científicas de Astronomia e Cosmologia desde que o texto desse capítulo foi publicado.

Não nos move nenhum interesse em “atualizar” a Gênese, o que seria algo absurdo, mas apenas informar o leitor sobre o que teria eventualmente mudado em nossas concepções científicas desde o Século XIX. O uso da 5ª edição não afetará quaisquer conclusões a respeito do que apresentamos aqui sobre a Uranografia. Isso porque o referido capítulo tem como base em textos de C. Flammarion (como médium) que foram produzidos na Sociedade Espírita de Paris entre 1862 e 1863.

No que segue, pare evitar que o texto do post fique muito longo, comentamos as passagens identificando-as conforme o parágrafo em que aparecem na referência [4]. Quando necessário é feita citação expressa da passagem. É importante dizer que o relato da "Uranografia Geral" se refere a detalhes que pouco afetam o caráter da Revelação Espírita e sua importância. Entretanto, Kardec provavelmente resolveu incluir esse capítulo, pois ele seria uma "síntese" do que se conhecia na época no tema em consonância com a nova doutrina então nascente.


Comentários sobre “O Espaço e o tempo”

1

Atenção: chamamos de "seção" os itens numerados conforme a denominação de "parágrafos".

Essa seção se inicia com uma definição e alguns comentários sobre concepções antigas de espaço na forma da “extensão que separa dois corpos”. O autor do texto declara que o espaço é “infinito, pela razão de ser impossível imaginar-se lhe um limite qualquer”. O argumento é que é mais fácil imaginar um espaço em que se avança “eternamente” do que algo que chegue a um fim, o que seria a “fronteira do Universo” além da qual nada existiria. Essa concepção de espaço (que tem implicações para o tamanho do Universo) é, de fato, bem antiga e já aparecia aos antigos gregos. 

O que sabemos hoje: do ponto de vista científico apenas podemos afirmar que o Universo observável é limitado, mas não fazemos ideia se ele é finito ou não. Alguns teóricos, movidos pelas novas concepções de “curvatura do espaço” da Relatividade Geral acreditaram ser possível dizer que o Universo é “finito, mas ilimitado”. Com isso, um caminhante jamais atingiria limite algum ao percorrer uma superfície curva (fechada sobre si), que, apensar disso é finita. A realidade é que não sabemos a resposta para essa questão porque ela depende de forma crucial do avanço do conhecimento em Cosmologia. 

A partir do 4º parágrafo da seção, o autor usa de uma analogia para explicar o que ele entende por infinitude do espaço. Nessa figura, a “velocidade da centelha elétrica” é usada para descrever o movimento de um observador a “milhões de léguas por segundo”. Hoje sabemos que essa velocidade é da ordem de 100 mil quilômetros por segundo (ou 1/3 da velocidade da luz) [5]. A palavra “légua” refere-se a uma unidade antiga usada antes do sistema métrico e que correspondia a uma distância entre 5 ou 6 quilômetros (a légua imperial tem 4,82 quilômetros). Ou seja, nessa unidade, a velocidade do relâmpago seria algo como 16 mil léguas por segundo. 

A velocidade mais rápida que existe é a velocidade da luz no espaço livre: cerca de 300 mil quilômetros por segundo. Esse valor, ou algo próximo dele, já era conhecido desde, pelo menos, 1676 quando Olaf Römer [6] mediu o valor de 211 mil quilômetros por segundo. E, já em 1848, H. Fizeau [7] foi capaz de medir um valor mais próximo do atual. 

Chama a atenção este trecho:
Ora, há apenas poucos minutos que caminhamos e já centenas de milhões de milhões de léguas nos separam da Terra, bilhões de mundos nos passaram sob as vistas e, entretanto, escutai! Em realidade, não avançamos um só passo que seja no Universo.
Mesmo viajando a velocidade da luz, para “passar de vista” bilhões de mundos, seriam necessários centenas ou milhares de “anos-luz” e não “poucos minutos” (pelo menos para os encarnados...). Embora a imprecisão na descrição (?), o autor teve como objetivo passar a ideia de que, por mais que se caminhe em qualquer direção no Universo (isotropia) a partir de qualquer ponto (homogeneidade) muito pouco se avança diante de um universo infinito. Se o Universo for realmente infinito, essa conclusão é correta.

2

O autor do texto repete nessa seção por três vezes a definição: “o tempo é apenas uma medida relativa da sucessão de tempo das coisas transitórias”, o que o torna indistinguível da ideia de “duração”. Numa época em que espaço e tempo não poderiam ser vistos com aspectos de uma mesma realidade, o autor conclui acertadamente que, se o espaço é infinito, então o tempo também deve ter duração infinita. A infinitude do espaço exige a eternidade do tempo: “Imensidade sem limites e eternidade sem limites, tais as duas grandes propriedades da natureza universal”. 

Para a noção de eternidade o autor usa da mesma figura da infinitude do Universo:
O inconcebível amontoado de séculos que nos passaria sobre a cabeça seria como se não existisse: diante de nós estaria sempre toda a eternidade.
Junto a tal conclusão, a Seção 2 descreve uma imagem para a origem do tempo que nos lembra uma descrição bíblica:
Mas, silêncio! soa na sineta eterna a primeira hora de uma Terra insulada, o planeta se move no espaço e desde então há tarde e manhã. Para lá da Terra, a eternidade permanece impassível e imóvel, embora o tempo marche com relação a muitos outros mundos.
Com isso o autor quis dizer que a noção de tempo se prende a um local, o tempo terreno (como medida de sucessão das coisas) começou assim que a Terra se formou e terminará quando ela tiver o seu último dia. Isso não impede que existam “outros tempos” em outros mundos: “tantos mundos na vasta amplidão, quantos tempos diversos e incompatíveis”. Essa ideia diferia da concepção então vigente na época – a noção clássica de simultaneidade universal porque o tempo era considerado absoluto. Para ver isso, relembramos a definição de Newton [8]:
O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si mesmo e da sua própria natureza, flui uniformemente sem relação com qualquer coisa externa e é também chamado de duração.
Hoje sabemos, com a teoria da Relatividade Restrita, que a noção de tempo “como sucessão das coisas” é, de fato, uma medida local e que não há compatibilidade entre as “medidas de tempo” entre referenciais diferentes que não estão “sincronizados”.  

Comentários sobre "A matéria"

3

Essa seção se inicia chamando a atenção para a diversidade de aparências da matéria. Disso concluímos que, “à primeira vista”, matéria é aquilo que sensibiliza diretamente aos sentidos humanos. Mas, logo no segundo parágrafo, o autor anuncia um “princípio absoluto” pelo qual:
Todas as substâncias, conhecidas e desconhecidas, por mais dessemelhantes que pareçam, quer do ponto de vista da constituição íntima, quer pelo prisma de suas ações recíprocas, são, de fato, apenas modos diversos sob que a matéria se apresenta; variedades em que ela se transforma sob a direção das forças inumeráveis que a governam. 
Para entender isso, é preciso rever a questão, p. ex., 30 de “O Livro dos Espíritos” [9] onde se lê que a matéria é formada “de um só elemento primitivo”. Esse é um conceito fundamental no Espiritismo de Kardec, que contrastava com o conhecimento da Química e da Física do Século XIX. Sua origem está na definição de matéria, que é dada na questão 22a em “O Livro dos Espíritos” e no desenvolvimento subsequente que podemos ler nas questões 32 e 33. 

4

O texto chama a atenção para as descobertas recentes da Química, de que se poderia reduzir a matéria a combinações de elementos. Na p. 110 de [4], há uma nota com a relação dos elementos conhecidos então. Na época em que “A Gênese” foi lançada, os estudos sobre pesos atômicos já indicavam a “natureza quantizada” das massas dos elementos químicos, o que era uma indicação de que eles seriam formados por unidades discretas. Mas, tão só pela manipulação química, nunca foi possível decompor ainda mais nenhum dos elementos. A intenção do autor foi indicar possíveis “reduções adicionais” uma vez que declara que:
(a ciência da época)...os considera primitivos e indecomponíveis e que nenhuma operação, até hoje, pode reduzi-los a frações relativamente mais simples do que eles próprios. 
O ponto fundamental, que deve prender a atenção o leitor, é que ainda não havia sido descoberta a radioatividade. Essa nova área da Física permitiria a “redução a frações mais simples” dos elementos químicos então conhecidos. A história da radioatividade [10] se iniciou com a descoberta por H. Becquerel em 1895 de raios específicos gerados por determinados materiais, a partir da busca por “novos raios” como o Raio-X feita por W. Röntgen em 1895. Destacam-se ainda as descobertas do elétron (por J. J. Thomson em 1897) e da fissão nuclear (por L. Meitner e O. R. Frisch em 1938). 

Imagem de um antigo laboratório de farmácia. Na época de "A Gênese", a química tinha reduzido a matéria a um conjunto de "elementos químicos" irredutiveis. Nossa situação presente é a mesma: a matéria foi reduzida a um conjunto de "partículas e subpartículas elementares" (quarks, elétrons etc) que também são "irredutíveis".

Hoje podemos afirmar que todos os elementos químicos são de certa forma redutíveis a combinações de: o hidrogênio ionizado H+ (também conhecido como próton, que é o elemento mais leve e abundante no Universo conhecido), o nêutron (sem carga e com massa equivalente ao próton), além do elétron, de carga negativa, necessário para dar estabilidade ao conjunto. Cada elemento químico seria então formado por combinações dessas "substâncias mais primitivas". 

Mas prótons, nêutrons e elétrons não podem ser decompostos? A ideia de continuar a decomposição teve que esperar inúmeros outros desenvolvimentos na física de partículas. Chegamos hoje, por exemplo, à “teoria dos quarks” (de Gell-Mann e Zweig em 1964 [11]) que seriam os blocos fundamentais dos “hádrons” (prótons e nêutrons). Entretanto, essas partículas não podem ser “isoladas” e seus efeitos são inferidos indiretamente. 

Portanto, voltamos à mesma situação da Química do século XIX que não conseguia decompor os elementos então conhecidos em unidades ainda menores...Em certo sentido, isso é um retorno à "teoria dos quatro elementos" de que fala o autor de "Uranografia Geral". Embora os conceitos sejam muito diferentes e não possam ser comparados, a ideia é reduzir todas as variedades possíveis de matéria à combinações de elementos primitivos, no caso presente, partículas e subpartículas atômicas.

5

O autor reafirma a crença de que a matéria é formada de apenas um elemento: a "matéria cósmica primitiva" que participa, por associação aos corpos, da constituição desses. Como toda matéria, para existir, precisa de certa energia para se formar, a afirmação pode hoje ser interpretada como uma referência à energia primordial de que o Universo foi dotado desde sua criação, sem a qual não seria possível ter todas as variedades de matéria. Para "formar o Universo" não seria suficiente dotá-lo de matéria apenas, mas também de energia. Por causa das transformações nucleares, as duas coisas - matéria e energia  - acabam se confundindo. 

Hoje sabemos que essa energia existe disseminada em todo o espaço e, de suas flutuações, a matéria é  "criada".

6

O autor espiritual confessa o estado de ignorância em que ele se encontra para emitir opiniões sobre determinadas questões (de caráter científico). Isso é uma demonstração de sua humildade, talvez a razão de Kardec ter incluído a  "Uranografia Geral" em "A Gênese". Ele reafirma então sua crença na "unicidade da matéria", no sentido que ele conferiu anteriormente.

7

Outros argumentos são fornecidos para a ideia da matéria cósmica primitiva: a de que as diversidades observadas da matéria tangível se devem a um "número ilimitado de forças" que atuam transformando seus constituintes, o que foi plenamente verificado pelo desenvolvimento científico. 

A referência aos "fluidos propriamente ditos" não diz respeito somente aos "fluidos magnéticos" ou de natureza "espiritual" que encontramos em "O Livro dos Espíritos" e que fundamentam o Espiritismo, mas também a outros, que, no século XIX eram responsáveis pela atuação de "forças a distância" (como o fluido elétrico e o magnético propriamente dito). 

Hoje sabemos que, o Universo, mesmo onde ele é considerado "vazio", está repleto de um tipo de matéria que nos escapa à apreensão direta. Das flutuações nesse vazio, a matéria pode nascer, o que não era conhecido na época em que "A Gênese" foi lançada.

Não sabemos, entretanto, se os constituintes das partículas elementares podem ser decompostos ainda mais. Recentemente, inúmeros outros problemas - como o da "matéria escura" [12] - apareceram e desafiam as teorias vigentes. Entretanto, todos esses fluidos, para existir, necessitam de energia, o que é uma razão para associar esse elemento primitivo à energia primordial. Como o espaço considerado "vazio" (o vácuo) está cheio de energia [13] de onde pode nascer a matéria, talvez possamos dizer que a afirmativa do autor se concretizou em certo sentido.

Continua no próximo Post com "As leis e as forças".

A conclusão de nosso estudo será publicada no último post. 

Referências

[4]  A. Kardec (1991). A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. 34ª Edição, Trad. G. Ribeiro a partir da 5ª Edição de 1868. FEB. 

[5]  Idone, V. P., Orville, R. E., Mach, D. M., & Rust, W. D. (1987). The propagation speed of a positive lightning return stroke. Geophysical research letters, 14(11), 1150-1153.

[6]  Van Helden, A. (1983). Roemer's speed of light. Journal for the History of Astronomy, 14(2), 137-141.

[7] Aparelho de Fizeau-Foucault - Wikipedia Fizeau–Foucault apparatus 

[8] I. Newton (1990). Principia: princípios matemáticos de filosofia natural - Vol.I (Trad. Trieste Ricci et al.), São Paulo: Nova Stella / EDUSP,pp. 6-7.

[9] A. Kardec (1991). “O Livro dos Espíritos”. 71ª Edição traduzida por Guillon Ribeiro. FEB.

[10] Xavier, A. M., De Lima, A. G., Vigna, C. R. M., Verbi, F. M., Bortoleto, G. G., Goraieb, K., ... & Bueno, M. I. M. S. (2007). Landmarks In The History Of Radioactivity And Current Tendencies [marcos Da História Da Radioatividade E Tendências Atuais]. Química Nova.

[11] Quark – Wikipedia https://pt.wikipedia.org/wiki/Quark

[12] Matéria escura - Wikipedia https://pt.wikipedia.org/wiki/Mat%C3%A9ria_escura

[13] Sidharth, B. G. (2005). The universe of fluctuations (pp. 73-115). Springer Netherlands.



1 de setembro de 2011

Considerações sobre as ideias de verdade e controvérsias em torno dos ensinos dos Espíritos. (II/2)



Segunda parte. Para acessar a primeira parte clique aqui.


3 - Analisando o critério da concordância universal. 

Se na descrição de um simples fenômeno material somos obrigados a fazer grandes concessões de tolerância para com aqueles que sustentam opiniões diferentes, imaginemos por um momento a situação com os fenômenos e princípios espíritas. Isso é particularmente forte se considerarmos que o objeto de estudo do Espiritismo não está sujeito à apreensão direta pelos sentidos humanos ordinários nem por quaisquer "aparelhos de medida". Isso não significa, porém, que esses fenômenos estão condenados eternamente a serem inexplicáveis, muito menos que seremos sempre impotentes em explicá-los. O que se passa com o Espiritismo (que resulta em sua independência das ciências comuns) é que ele trata de fenômenos pelos quais as ciências não se interessam. As ciências estudam a matéria e o Espiritismo o espírito. Para assegurar o progresso principalmente moral do ser humano, aguardou-se o lento mas inexorável avanço da intelectualidade humana e o conhecimento espírita foi e tem sido revelado, em função direta dessas mesmas necessidades morais. Diante das dificuldades humanas de se conhecer a verdade (como exemplificadas anteriormente), não é difícil concluirmos que existem claramente limites à revelação espírita.

A fonte primordial da informação espírita são os Espíritos. Mas como se deu a aceitação dessas informações por eles propostas? Vamos aqui analisar brevemente o famoso critério da concordância universal (CCU) que muitas pessoas acreditam é a base para a aceitação dos princípios espíritas. Argumentaremos depois que não é o CCU que valida esses princípios. A referência principal sobre esse assunto é a Introdução ao O Evangelho segundo o Espiritismo [4], Parte II, "Autoridade da Doutrina Espírita". Todas as citações de Kardec feitas a seguir foram extraídas dessa referência. Kardec aponta duas grandes razões para a existência de um critério de aceitação das informações espíritas:
(a) "Garantia para a unidade futura do Espiritismo", com anulação das teorias contraditórias (Parágrafo 14).
(b) "Garantia contra as alterações que poderia sujeitar o Espiritismo às seitas que se propusessem apoderar-se dele em proveito próprio ou acomodá-lo à vontade." (Parágrafo 16).
Tal critério protege assim os fundamentos do Espiritismo contra enxertias, sejam da parte dos próprios Espíritos (menos esclarecidos) ou dos encarnados. Prevê-se que tais enxertias ocorressem por falha na compreensão e, principalmente, aplicação lógica dos princípios espíritas, fato que a história acabou por demonstrar. A primeira coisa que notamos é que o CCU foi uma descoberta inteligente de Kardec diante do dificílimo problema da autenticidade das mensagens dos Espíritos. Assim sendo, ele não é resultado do ensino dos Espíritos e, portanto, não pode ser tomado como um princípio da doutrina. Analisando a referência citada acima, podemos dizer que o critério tem 3 principais fundamentos.
  • O Espiritismo não é uma construção humana, ou seja, não é resultado de uma simples teorização em torno de observações e análise de fatos; 
  • Os Espíritos têm ampla liberdade de comunicação, o que anula a possibilidade de privilégios na concessão da informação espírita (o que, do contrário, tiraria o caráter "natural" da revelação espírita); 
  • Os Espíritos têm diversos graus de evolução. Se a fonte de informação espírita são os Espíritos, a validade das mesmas depende do grau de lucidez que eles possuem em relação aquilo que pretendem informar. Disso vem que nem todos os Espíritos estão igualmente aptos a servir de fonte de informação e daí imediatamente, a necessidade de uma seleção das mesmas.
Por razões didáticas, podemos dizer que os três fundamentos acima possibilitam enunciar o que chamariamos de "CCU fraco":
Uma garantia existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que exista entre as revelações que eles façam espontaneamente.
Existem entretanto condições operacionais (em relação ao caráter das mensagens) para que o CCU seja válido. Essas, por sua vez, se dividem em dois tipos: condições gerais e condições específicas. São condições gerais:
  1.  "Tudo o que seja fora do âmbito exclusivamente moral" (Final do Parágrafo 6);
  2.  Comunicações que tratem dos fundamentos doutrinários: "Vê-se bem que não se trata aqui das comunicações referentes a interesses secundários" (Parágrafo 9).
Ao mesmo tempo, são condições específicas (ver Parágrafo 8):
  • Que um só médium receba comunicações de diversos Espíritos;
  • Que vários médiums diferentes (em um certo grupo ou em vários lugares) recebam comunicações de diversos Espíritos.
Ocorre aqui porém que se tanto na situação (I) como em (II) houver a incidência de obsessão (influência negativa por parte da fonte original da informação), a aceitação do CCU fraco não é possível. Disso resulta o que chamaríamos de CCU forte:
"Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares". (Parágrafo 9).
Ao CCU fraco é assim acrescentada a exigência de repetitividade geográfica e mediúnica de uma certa informação. Poderíamos ainda adicionar uma necessidade de confirmação temporal da informação, isto é, de que uma dada tese referente a um princípio se confirme ao longo do tempo. Isso ocorreu diversas vezes durante a codificação. Do ponto de vista histórico, Kardec parece também ter sido o único a aplicar o CCU forte:
"Na posição em que nos encontramos, a receber comunicações de perto de mil centros espíritas sérios, disseminados pelos mais diversos pontos da Terra, achamo-nos em condição de observar sobre que princípio se estabelece a concordância".(Parágrafo 13).
A razão de ser do CCU fraco é que ele parece ser válido desde que os médiuns não estejam sob influência de Espíritos mistificadores (obsessão etc). A exigência do CCU forte foi cumprida plenamente no momento da codificação por conta da abundância de fenômenos espontâneos ocorridos na época. As condições gerais enunciadas por Kardec (condições 1 e 2) são de crucial importância para se entender a aplicação do CCU. De fato, não tem muito sentido exigir um critério de concordância (seja por vários médiuns ou através várias instâncias temporais) com as comunicações pessoais de Espíritos familiares por exemplo. Seria mesmo ridículo exigir que os Espíritos se comunicassem por médiuns diferentes após fornecerem muitas vezes provas indubitáveis de que são eles mesmos que se apresentam a determinado médium. A especificidade da mensagem dita assim o grau de recorrência ao CCU. O grau de obviedade com que constatamos a concordância dos Espíritos esclarecidos em relação às questões morais é o que fundamenta a condição geral (A). Suprimir tal condição é equivalente a dizer que o CCU (na forma forte) sempre foi operacional com relação às questões morais. Parece assim ser importante compreender exatamente o que se entende por pontos fundamentais e pontos secundários, coisa que  fazemos brevemente a seguir.

4 - O que são pontos fundamentais e o que são pontos secundários. Exemplos.

Por Doutrina Espírita entendemos o conjunto de princípios fundamentais que sistematizam o Espiritismo, as regras de aplicação desses princípios a diversas situações e fenômenos em que ele representa uma alternativa lógica e racional de explicação. Também a essa doutrina estão associados os diversos conjuntos de preceitos e regras éticas que caracterizam a conduta espírita na mais pura acepção da palavra. Por promoverem o progresso da alma humana, tais regras fortalecem as relações dessa com a Divindade, de onde deriva imediatamente o aspecto religioso do Espiritismo.

De modo resumido os princípios fundamentais do Espiritismo são:
  1. Existência de Deus. Deus aqui entendido como um ser existente de toda eternidade, sem princípio nem fim, todo poderoso e bom. Sem tentar descrever o impossível, tais atributos são os mínimos necessários para a noção da Divindade. 
  2. Existência do Espírito. O Espírito aqui é o princípio inteligente independente da matéria, a constituir um outro princípio. Por ser independente da matéria, o Espírito não sucumbe nem desaparece frente às transformações desta, de onde se tem a noção da imortalidade do ser. 
  3. Evolução do Espírito. À medida que o tempo transcorre, o estado que caracteriza o Espírito se transforma. Esse estado dá, por exemplo, as características do Espírito. Da faculdade que o Espírito tem de interagir com a matéria, ele passa por transformações que modificam sua personalidade e características. Essa evolução leva ao aprimoramento moral do ser e de sua inteligência. No homem, o período de tempo necessário para o aprimoramento é muito maior que o tempo de vida médio de sua vida material. Daí segue, como corolário desse princípio, a ideia de reencarnação. 
  4. Comunicabilidade dos Espíritos. É possível ao Espírito, desprovido da parte material, entrar em comunicação com o mundo material por meio de pessoas dotadas de uma faculdade especial chamada mediunidade. 
  5. Pluralidade dos mundos habitados. No Universo são inúmeros os mundos onde a vida é abundante, e os Espíritos, segundo semelhantes princípios, evoluem e tem sua existência mais ou menos material de acordo com o progresso atingido. 

Os princípios fundamentais estão todos eles contidos nas obras básicas editadas por Kardec. Essas obras também trazem ideias secundárias que auxiliam a explicação espírita do mundo segundo os princípios fundamentais. Além disso, a vasta literatura espírita contemporânea também contém inúmeras obras que desenvolvem substancialmente a aplicação dos princípios fundamentais e, porque não dizer, propõem princípios secundários novos. Esse fato é permitido pelo caráter progressista da doutrina, e os que teimam em não aceitá-lo estão, de fato, atrasando a marcha desse progresso. Vejamos um exemplo concreto que nos auxilie nesse ponto. Suponhamos que um certo Espírito proponha uma modificação na lei III de evolução afirmando que a marcha de desenvolvimento do Espírito não é incessante mas que, em determinado ponto de sua vida maior, seja permitido por lei ao Espírito estacionar. Não é difícil ver que semelhante ideia depõe contra vários outros princípios e leva imediatamente a uma contradição com a noção de livre-arbítrio pois, se ao Espírito é possível estacionar, ele não tem, por lei, nenhuma responsabilidade sobre seus atos durante o período de falta de progresso. Essa ideia deve ser rejeitada por estar em contradição com uma série de noções que protegem os fundamentos da doutrina.

Tomemos agora um exemplo de uma controvérsia no movimento espírita que ilustra bem as dificuldades de compreensão dos princípios espíritas e do ensino dos Espíritos. Trata-se da famosa proposição do elevado Espírito Emmanuel sobre as "almas gêmeas" no seu livro O Consolador [5]. Antes de tudo, conviria considerar uma afirmação desse Espírito contida logo na introdução ("Definição") de seus livro:
  "Alem do mais, ainda nos encontramos num plano evolutivo, sem que possamos trazer ao vosso círculo de aprendizado as últimas equações, nesse ou naquele setor de investigação e de análise. É por essa razão que somente poderemos cooperar convosco sem a presunção da palavra derradeira".
Na questão 298 de "O Livro dos Espíritos" [1], Kardec questiona os Espíritos sobre a ideia das almas gêmeas, entendidas como dois seres unidos desde sua origem e predestinados a se encontrarem fatalmente algum dia. Tratava-se, sem sombra de dúvida, de um ponto secundário, já que os princípios fundamentais nada dizem sobre a criação dos Espíritos (ver questão 78 de "O Livro dos Espíritos"). Além disso, a ideia da almas gêmeas não contradiz nenhum outro ponto fundamental. Em "O Consolador", Emmanuel por diversas questões (desde 323-328, "Terceira Parte", "Amor") reafirma a ideia das almas gêmeas, entendidas como seres que se buscam na Eternidade e cuja existência propicia o progresso aos Espíritos, já que esses, quando separados e caídos no crime anseiam por se encontrar, constituindo isso um incentivo ao seu progresso. Emmanuel, de fato, reconhece sua ignorância não só em relação à criação dos Espíritos como também sobre como se estabelece o vínculo afetivo entre eles:
 "Para todos nós, o primeiro instante da criação do ser está mergulhado num suave mistério, assim como também a atração profunda e inexplicável que arrasta uma alma para outra, no intuito dos trabalhos, das experiências e das provas, no caminho infinito do Tempo."
Entretanto, inquirido a examinar melhor seus pontos de vista, Emmanuel humildemente pede seja mantido o texto original, chamando a atenção para a complexidade do assunto. Esse Espírito sinalizou que ainda estamos longe de ter a pretensão à verdade sobre um tema tão complexo. Por outro lado, se os Espíritos que auxiliaram Kardec, em diversos pontos de "O Livro dos Espíritos", afirmaram que a criação dos Espíritos está mergulhada em um profundo mistério, como poderiam ter dado uma resposta definitiva à questão das almas gêmeas? Parece-nos que, nesse caso, bem como em muitos outros, eles haveriam de estar igualmente longe de dar uma "resposta derradeira". De qualquer forma, o CCU na forma forte não pode ser invocado nesse caso por não se tratar de um ponto fundamental. Podemos tomar a proposição de Emmanuel como uma opinião pessoal sua em conformidade com o que vimos que esse Espírito diz na introdução de "O Consolador". Entretanto, certos setores do movimento espírita extremamente ligados à letra e desatentos às sutilezas das ideias de verdade e ensino dos Espíritos (a se aplicarem igualmente para as explicações das coisas materiais), tomaram esse caso como mais um exemplo a depor contra a "pureza doutrinária" do Espiritismo que se imagina poder ser imposta a todo custo.

5 - Conclusões

Não foi senão por uma longa e difícil marcha que a Humanidade, pela colaboração de inúmeros luminares da cultura, inteligência e moralidade, conseguiu compreender que a noção de verdade só pode ser formulada dentro de bases estritamente relativas. Acompanhando o progresso das religiões e das ciências (mais notadamente dessas últimas) chegou-se a conclusão que as concepções a respeito das coisas e dos fenômenos do Mundo tem uma grande dependência com as épocas, recursos de pesquisa e tendências culturais dos indivíduos. No estágio em que nos encontramos, jamais poderemos aspirar à verdade absoluta.

O CCU pode ser invocado como um princípio metodológico que foi aplicado no início da codificação para estabelecer os fundamentos. Entretanto, não é ele quem valida esses princípios, como muitos poderiam pensar. Seria o mesmo que acreditar que os princípios que organizam as ciências materiais só valem porque os cientistas neles acreditam, os que são apenas a origem desse conhecimento. As doutrinas declaradas de muitas disciplinas científicas tem como fundamento o próprio princípio, muitas vezes inverificável, que deve ser assumido como válido a fim de que suas conclusões sejam determinadas. Ai está a base para a validade dos princípios espíritas: no fato de gerarem explicações plausíveis e verificáveis da Natureza que nos cerca. É a capacidade que os fundamentos espíritas têm em explicar determinadas anomalias que observamos com aspectos da personalidade humana e com determinados fenômenos que representam a maior fonte de validação de sua "comprovação". 

Assim, no escopo do que trata a Doutrina Espírita, tais conclusões são igualmente válidas. Elas servem ainda mais para reforçar definitivamente nossa extrema pequenez diante do universo em que vivemos, a ideia de que nossas pretensões são ínfimas. Essa já é a opinião emitida por Espíritos elevados quando inquiridos sobre nosso tamanho nesse Universo. Imediatamente transparece a importante conclusão da inutilidade de quaisquer querelas que venham se formar ao redor das concepções espíritas, sejam elas fundamentais ou secundárias. Se nos é possível fechar a correspondência com o passado, digamos que a única "heresia" que se pode suspeitar hoje em dia é a da sustentação de tais querelas contra nossos companheiros muitas vezes dentro do próprio movimento espírita. Ela é antiética e depõe contra todos os princípios evangélicos que o Espiritismo sustenta abertamente.

Por outro lado, o sentimento de impotência diante da verdade com relação a muitas questões profundas, não invalida em nenhum ponto os efeitos inquestionavelmente benéficos em nossas vidas que a aceitação e prática dos princípios espíritas - revelados na medida em que podemos compreender - podem gerar. De fato, estaremos talvez muito distantes de compreender por bases racionalmente sólidas princípios como o do amor, caridade e misericórdia. A própria evolução onde estagiamos hoje dá-nos muito mais capacidade para sentir esses conceitos.

Há uma base sim muito sólida onde se estabelecem os princípios e desenvolvimentos espíritas. Para conquistá-la, o espírita deve abraçar com zelo o estudo da doutrina e desvencilhar-se um pouco de velhas concepções. Isso significa avaliar coerentemente o conteúdo dos novos ensinos, compará-los aos antigos, notar as sutilezas nas novas noções aparentemente tão simples. E nunca esquecer também que o mundo onde vivemos é de fato muito maior que nossas vãs concepções podem imaginar.

6 - Referências

[1] Allan Kardec, "O Livro dos Espíritos", 71 edição, Federação Espírita Brasileira (1991).
[2] Eamon Duffy, "Santos e Pecadores, a História dos Papas", Cosac & Naif Edições Ltda, São Paulo (1998).
[3] Silvio Seno Chibeni, "A Excelência Metodológica do Espiritismo II", Reformador, Dezembro de 1988, pp. 373-378 (FEB).
[4] Allan Kardec, "O Evangelho segundo o Espiritismo", 104 edição, Federação Espírita Brasileira (1944)
[5] Emmanuel, "O Consolador", 4 edição, Federação Espírita Brasileira.

11 de agosto de 2011

Considerações sobre as ideias de verdade e controvérsias em torno dos ensinos dos Espíritos. I/2

A vaidade de certos homens, que julgam saber tudo e tudo querem explicar a seu modo, dará nascimento a opiniões dissidentes. Mas, todos os que tiverem em vista o grande princípio de Jesus se confundirão num só sentimento: o do amor do bem e se unirão por um laço fraterno, que prenderá o mundo inteiro. Estes deixarão de lado as miseráveis questões de palavras, para só se ocuparem com o que é essencial. E a doutrina será sempre a mesma, quanto ao fundo, para todos os que receberem comunicações de Espíritos superiores."O Livro dos Espíritos. [1], Prolegômenos.

Versão modificada de um original publicado no Boletim do GEAE, Ano 08 - Número 367 - 1999.

1 - Introdução


Todos aqueles que já tiveram a oportunidade de entrar em contato com conceitos espíritas dificilmente deixaram de se perguntar quanto à natureza e a validade de muitas das informações trazidas pelos mensageiros espirituais. Nesse sentido, é relevante se perguntar quanto aos critérios de aceitação dos ensinos espíritas, sobre como deve ser nossa postura diante da propagação, divulgação e grau de validade desses ensinos. Será que um determinado conceito deve ser aceito absolutamente, sem exame algum, com exclusão daqueles que por ventura possam discordar dele? Será que, por outro lado, devemos sempre manter uma postura reticenciosa, como que eternamente aguardando uma última palavra ou, o que seria ainda mais restrito, considerar tais ensinos como meras figuras passadas pelos Espíritos na impossibilidade de nós, os encarnados, estarmos longe de mais do que seria a verdade? Como se dá o consenso com relação a um determinado ensino? Tais questionamentos podem parecer supérfluos a uma mente excessivamente prática, mas estão provavelmente na raiz de grandes males que afetaram a humanidade. 

Cabeça representando o Imperador Constantino.
Sem dúvida, diversos estudos foram feitos desde os primórdios do desenvolvimento da doutrina com Allan Kardec em torno da validade e aceitação das teses do Espiritismo. No momento histórico da codificação, diante da exuberância dos fenômenos espíritas (a aparecerem espontaneamente em muitas instâncias simultaneamente), Allan Kardec chegou à formulação do critério da concordância universal dos ensinos dos Espíritos. Em termos resumidos tratava-se da aceitação de uma determinada tese (em sua maioria relacionada aos princípios básicos) quando apoiada maciçamente pelos Espíritos através de diferentes médiuns nos mais variados lugares. Voltaremos a esse ponto na Parte 3 deste artigo. Essa ideia lembra vagamente os critérios de aceitação de conceitos e teorias dentro das universidades e institutos de pesquisa científica. Não seria o caso de uma certa ideia ser aceita quando apoiada igualmente por uma variedade de departamentos científicos após, muitas vezes, difíceis e laboriosas experimentações? O mesmo se daria com os princípios espíritas, já que as fontes desses são os Espíritos por meio dos médiuns. A comparação não pode ser estendida indiscriminadamente pois não segue daí que toda ideia espírita deva sempre ser sancionada pelo critério da concordância universal da mesma forma que a aceitação de uma certos pontos de uma teoria científica não precisa ser sancionada por um grande número de laboratórios. Isto, porém, é apenas um ponto de semelhança entre os critérios de aceitação de teses no Espiritismo e a a aceitação de princípios na ciência comum. A aceitação dos princípios espíritas está baseada também no selo de racionalidade e coerência que ele empresta à sua visão do universo, algo muito em comum com as teorias das diversas ciências que estudam a matéria e suas manifestações. 

Pretendemos aqui enfatizar que tais desenvolvimentos colocam o Espiritismo em uma posição ímpar no cenário das religiões atuais. Para esse fim, é muito interessante recorrermos à história com o intuito de conhecer melhor como eram aceitos e avaliadas as verdades pelos povos antigos. Analisando especificamente a história das religiões (para o mais perto possível do que seria o objeto de estudo do Espiritismo), constatamos o quão difícil e as vezes sanguinolenta pode ser a disputa pela aceitação das ideias religiosas. No caso específico da religião católica - com a qual nos encontramos mais próximos culturalmente - é nítida essa dificuldade. Observando a história da Igreja, vemos como foi constante o interesse do Plano Maior na libertação e engrandecimento da Igreja que, amiúde, se via a braços com discussões muitas vezes estéreis e sem interesse para as sociedades onde floresceram as organizações católicas. A grande consequência prática desses debates culminava, muitas vezes, com a morte deliberada de tantos outros que chegaram perto demais da "heresia". Ficou famosa, por exemplo, a chamada controvérsia ariana no começo do Cristianismo. Do historiador católico Eamon Duffy [2] colhemos o seguinte relato: 
"A consternação de Constantino em face das divisões dos cristãos norte-africanos haveria de redobrar quando, tendo deposto Licínio, o imperador pagão rival no Oriente, ele se mudou para sua nova capital cristã a 'Nova Roma', Constantinopla. Pois as divisões da África nada eram em comparação com a profunda fissura na imaginação cristã que se abrira, no Leste, por iniciativa de Ário, um presbítero de Alexandria famoso por sua austeridade pessoal e pela popularidade entre as freiras da cidade. Ário fora afastado pelo bispo local por pregar que o 'Logos', a Palavra de Deus que em Jesus se fizera carne, não era o próprio Deus, mas uma criatura infinitamente superior aos anjos, embora como eles criada do nada antes do começo do mundo. Ele via em tal ensinamento um meio de conciliar a doutrina cristã da Encarnação com a fé igualmente fundamental na unidade divina. Na verdade, essa idéia privava o cristianismo de sua afirmação central segundo a qual a vida e morte de Jesus tinham o poder de redimir, pois eram ações do próprio Deus. Contudo, as verdadeiras implicações do arianismo não foram compreendidas de pronto, e Ário conseguiu amplo apoio. Mestre de propaganda, angariou a simpatia popular compondo canções teológicas para serem cantadas por marinheiros e estivadores nas docas de Alexandria. Escapando aos salões eruditos, o debate teológico irrompeu nas tavernas e nos bares do Mediterrâneo oriental.''

Como foi resolveu o problema de Ário? Na verdade não houve uma solução definitiva. Na época a solução se materializou no concílio de Nicéia (em 325), convocado pelo imperador. Ainda segundo Duffy: 
"Nicéia foi o começo, não o fim da controvérsia ariana. A derrota dos adeptos de Ário havia sido imposta por um imperador decidido a resolver rapidamente as coisas. Eles foram silenciados, não persuadidos, e, terminado o concílio, reagruparam-se para contra atacar." 
É fato conhecido de todos que Constantino considerava a emergente fé cristã uma poderosa força de aglutinação do império romano que estava prestes a desmoronar. Por isso ele via com angústia o debate teológico infindável e, por razões práticas, resolveu impor uma solução. A tradição católica (isto é, a convergência da opinião do clero e do laicato crente em torno da interpretação de certos pontos evangélicos a se materializarem como dogmas) foi, portanto, uma lenta e encarniçada construção que se desenvolve até hoje, onde muitas vezes o interesse político e econômico ditou uma clara delimitação entre o que seria a verdade e a heresia. Não foram poucos os movimentos de renovação católicos e de "reforma" (mesmo antes dos protestantes no Século XVI) e, na Idade Média, foram considerados grandes os papas que se dedicaram vivamente a eles [2]. Os que se admiram de semelhantes movimentos na atualidade apenas desconhecem a milenar história da Igreja. Como eram, entretanto, tomadas as decisões em matéria de fé? Onde deveria estar a verdade quando dois partidos rivais se insuflavam defendendo cada um sua própria opinião? Esta era decidida oficialmente e com esperanças para sempre seja a portas fechadas, seja pela aclamação popular, pelo voto dos bispos (concilium) ou pela vontade do papa. Na prática a Igreja se viu obrigada a revisar constantemente seus pontos de vista sobre conceitos marginais ou centrais à fé católica. É importante ter em mente que a construção de toda Doutrina Católica (e o aparecimento dos movimentos de reforma) se guiou em muito pela necessária manutenção da "pureza doutrinária" da crença em Cristo. Não foi senão em função da sustentação de tal pureza que se ergueram os tribunais eclesiásticos [2] (Inquisição) por Gregório IX em 1231. Nesse sentido, a Igreja de Roma adquiriu sua fama ao longo do tempo por ter se propagandeado livre da heresia (principalmente diante do cisma com a Igreja grega) e guardiã "da fé dos Apóstolos".

2 - Exemplo da Astronomia.

Compreende-se que na nossa vida comum estamos diante de situações que exigem uma posição prática diante dos fatos. Quando alguém diz: "fulano é casado mas tem uma amante mais velha", em geral, a primeira atitude não é a de formulação de teorias que justifiquem ou não a aceitação dessa "verdade". Porque a verificação dela é coisa tão ordinária quanto o próprio fato, sua aceitação é muito simples. Não se dá o mesmo, porém, com certas noções e concepções do mundo que nos cerca. Muito menos com aquelas que dizem respeito à Doutrina Espírita. Mais uma vez recorremos a exemplos simples da ciência. A afirmação "a Terra gira com movimento circular em torno do Sol" parece, se aplicarmos o critério de aceitação vulgar, uma afirmação livre de ambiguidades.

Sistema Ptolomaico, com a Terra no centro do Universo. (~200).
Nossas mentes formam instantaneamente uma ideia perfeitamente clara de seu significado. Por mais incrível que pareça, no entanto, sua validade não pode ser inferida da mesma forma como no exemplo de frase anterior. Ela não era nem um pouco válida aos povos antigos, porque não era bem isso que eles constatavam quando viam o Sol se levantar e se por todos os dias, em aparente movimento circular ao redor da Terra. Ela foi a própria expressão da verdade para Nicolau Copérnico (1540) na sua nova formulação do sistema do Mundo. Para ele, a Terra sim girava circularmente em torno do Sol.
Sistema Copernicano (1540) com o Sol no centro do sistema solar.
Ela deixou de ter validade para astrônomos posteriores, em particular Johannes Kepler (1630) que descobriu que o movimento, de fato, não era circular mas sim elíptico "com o Sol ocupando um dos focos da elipse".
Imagem do Universo revelada por J. Kepler (1630). Os planetas descrevem elipses com o sol ocupando um dos focos.
Essa última conclusão de Kepler deixou de ser válida com Isaac Newton (1670) e sua teoria da gravitação universal. Para Newton (assim como para toda mecânica clássica que ele fundou), o movimento só seria elíptico se no Universo somente o Sol e a Terra existissem. Desde que há outros corpos (não podemos nos esquecer da Lua) o movimento passa a ser "perturbado". Muito aproximadamente a Terra giraria descrevendo uma "roseta" ao redor do Sol por causa do "movimento de precessão dos ápsides" da órbita descrita por ela. Em termos exatos se, porém, no Universo, existisse mais um corpo além da Terra e do Sol, o movimento daquela jamais seria descrito de uma maneira simples.
Perturbação exercida por um terceiro corpo deforma a trajetória elíptica (1670).
Mais uma vez, porém, essa afirmação deixou de ser válida para Albert Einstein (1905), que descobriu efeitos "relativísticos" não desprezíveis.

Para Einstein, ainda que não existisse nenhum outro corpo no Universo mas somente a Terra e o Sol, ainda assim o movimento seria o de uma roseta com uma precessão dos apsides extremamente lenta para a Terra. A existência de outros corpos não alteraria muito a descrição de Newton, embora o movimento se tornasse ainda mais complexo. Tal exemplo nos mostra o quão difícil é a descrição da "verdade" relacionada ao objeto de pesquisa da ciência ordinária, a matéria. A lição que se tira não é a de que certa concepção anterior tenha deixado de ser válida (decretada como "herética" na visão por dogmas) . Ao contrário, as construções científicas presentes fundamentam-se explicitamente naquelas do passado. Para nós a memória dos antigos astrônomos deve ser tão venerável quanto a dos mais recentes. Mesmo hoje em dia, se quisermos construir um relógio do Sol por exemplo, podemos perfeitamente usar os conceitos antigos que consideravam o Sol como girando em torno do Terra. Existe erro nisso? Diante de nossa presumível ignorância com relação às questões ainda abertas nas ciências, estamos certamente tão perto da verdade quanto eles. A verificação desse fato não pode ser motivo porém para escândalos, nem para um descrédito para com as ciências. O que se faz necessário é, pois, uma nova concepção de aceitação da verdade, bem como critérios de compreensão das explicações científicas. A chave que permite essa nova compreensão pode ser conseguida estudando-se um pouco a história das ciências assim como os mecanismos pelos quais as concepções científicas surgiram e têm operado [3].

Precessão da órbita elíptica de acordo com a Relatitividade Geral (1905).

As teorias científicas representam as construções de raciocínio onde essas concepções científicas se estabelecem. Não é senão pelo fato de tais conceitos estarem harmonicamente integrados às teorias que sua aceitação torna-se válida. Além disso, as teorias devem fornecer uma visão consistente do Universo onde tal fenômeno ocorre. Isso implica não só em explicar aquele fenômeno particular, mas também possíveis efeitos a ele correlacionados. Uma excelente teoria deve além disso fornecer as bases para a previsão de fenômenos desconhecidos. Portanto, não é a autoridade de um ou de outro cientista que fundamenta a ortodoxia nas ciências (com sentido muito diferente daquele usado pelas religiões clássicas). Nunca a verdade científica haverá de ser decidida em reuniões a portas fechadas, pela deliberação de conselhos ou organizações ou baseando-se no palpite dos cientistas mais notáveis. É verdade que a opinião de um grande cientista a favor de certa teoria particular pode pesar muito na orientação das pesquisas futuras, mas tal opinião nunca constituirá a teoria

No próximo post, utilizaremos essas lições para tratar do assunto principal do artigo.

Todas as referências serão apresentadas no último post.