1 de setembro de 2011

Considerações sobre as ideias de verdade e controvérsias em torno dos ensinos dos Espíritos. (II/2)



Segunda parte. Para acessar a primeira parte clique aqui.


3 - Analisando o critério da concordância universal. 

Se na descrição de um simples fenômeno material somos obrigados a fazer grandes concessões de tolerância para com aqueles que sustentam opiniões diferentes, imaginemos por um momento a situação com os fenômenos e princípios espíritas. Isso é particularmente forte se considerarmos que o objeto de estudo do Espiritismo não está sujeito à apreensão direta pelos sentidos humanos ordinários nem por quaisquer "aparelhos de medida". Isso não significa, porém, que esses fenômenos estão condenados eternamente a serem inexplicáveis, muito menos que seremos sempre impotentes em explicá-los. O que se passa com o Espiritismo (que resulta em sua independência das ciências comuns) é que ele trata de fenômenos pelos quais as ciências não se interessam. As ciências estudam a matéria e o Espiritismo o espírito. Para assegurar o progresso principalmente moral do ser humano, aguardou-se o lento mas inexorável avanço da intelectualidade humana e o conhecimento espírita foi e tem sido revelado, em função direta dessas mesmas necessidades morais. Diante das dificuldades humanas de se conhecer a verdade (como exemplificadas anteriormente), não é difícil concluirmos que existem claramente limites à revelação espírita.

A fonte primordial da informação espírita são os Espíritos. Mas como se deu a aceitação dessas informações por eles propostas? Vamos aqui analisar brevemente o famoso critério da concordância universal (CCU) que muitas pessoas acreditam é a base para a aceitação dos princípios espíritas. Argumentaremos depois que não é o CCU que valida esses princípios. A referência principal sobre esse assunto é a Introdução ao O Evangelho segundo o Espiritismo [4], Parte II, "Autoridade da Doutrina Espírita". Todas as citações de Kardec feitas a seguir foram extraídas dessa referência. Kardec aponta duas grandes razões para a existência de um critério de aceitação das informações espíritas:
(a) "Garantia para a unidade futura do Espiritismo", com anulação das teorias contraditórias (Parágrafo 14).
(b) "Garantia contra as alterações que poderia sujeitar o Espiritismo às seitas que se propusessem apoderar-se dele em proveito próprio ou acomodá-lo à vontade." (Parágrafo 16).
Tal critério protege assim os fundamentos do Espiritismo contra enxertias, sejam da parte dos próprios Espíritos (menos esclarecidos) ou dos encarnados. Prevê-se que tais enxertias ocorressem por falha na compreensão e, principalmente, aplicação lógica dos princípios espíritas, fato que a história acabou por demonstrar. A primeira coisa que notamos é que o CCU foi uma descoberta inteligente de Kardec diante do dificílimo problema da autenticidade das mensagens dos Espíritos. Assim sendo, ele não é resultado do ensino dos Espíritos e, portanto, não pode ser tomado como um princípio da doutrina. Analisando a referência citada acima, podemos dizer que o critério tem 3 principais fundamentos.
  • O Espiritismo não é uma construção humana, ou seja, não é resultado de uma simples teorização em torno de observações e análise de fatos; 
  • Os Espíritos têm ampla liberdade de comunicação, o que anula a possibilidade de privilégios na concessão da informação espírita (o que, do contrário, tiraria o caráter "natural" da revelação espírita); 
  • Os Espíritos têm diversos graus de evolução. Se a fonte de informação espírita são os Espíritos, a validade das mesmas depende do grau de lucidez que eles possuem em relação aquilo que pretendem informar. Disso vem que nem todos os Espíritos estão igualmente aptos a servir de fonte de informação e daí imediatamente, a necessidade de uma seleção das mesmas.
Por razões didáticas, podemos dizer que os três fundamentos acima possibilitam enunciar o que chamariamos de "CCU fraco":
Uma garantia existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que exista entre as revelações que eles façam espontaneamente.
Existem entretanto condições operacionais (em relação ao caráter das mensagens) para que o CCU seja válido. Essas, por sua vez, se dividem em dois tipos: condições gerais e condições específicas. São condições gerais:
  1.  "Tudo o que seja fora do âmbito exclusivamente moral" (Final do Parágrafo 6);
  2.  Comunicações que tratem dos fundamentos doutrinários: "Vê-se bem que não se trata aqui das comunicações referentes a interesses secundários" (Parágrafo 9).
Ao mesmo tempo, são condições específicas (ver Parágrafo 8):
  • Que um só médium receba comunicações de diversos Espíritos;
  • Que vários médiums diferentes (em um certo grupo ou em vários lugares) recebam comunicações de diversos Espíritos.
Ocorre aqui porém que se tanto na situação (I) como em (II) houver a incidência de obsessão (influência negativa por parte da fonte original da informação), a aceitação do CCU fraco não é possível. Disso resulta o que chamaríamos de CCU forte:
"Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares". (Parágrafo 9).
Ao CCU fraco é assim acrescentada a exigência de repetitividade geográfica e mediúnica de uma certa informação. Poderíamos ainda adicionar uma necessidade de confirmação temporal da informação, isto é, de que uma dada tese referente a um princípio se confirme ao longo do tempo. Isso ocorreu diversas vezes durante a codificação. Do ponto de vista histórico, Kardec parece também ter sido o único a aplicar o CCU forte:
"Na posição em que nos encontramos, a receber comunicações de perto de mil centros espíritas sérios, disseminados pelos mais diversos pontos da Terra, achamo-nos em condição de observar sobre que princípio se estabelece a concordância".(Parágrafo 13).
A razão de ser do CCU fraco é que ele parece ser válido desde que os médiuns não estejam sob influência de Espíritos mistificadores (obsessão etc). A exigência do CCU forte foi cumprida plenamente no momento da codificação por conta da abundância de fenômenos espontâneos ocorridos na época. As condições gerais enunciadas por Kardec (condições 1 e 2) são de crucial importância para se entender a aplicação do CCU. De fato, não tem muito sentido exigir um critério de concordância (seja por vários médiuns ou através várias instâncias temporais) com as comunicações pessoais de Espíritos familiares por exemplo. Seria mesmo ridículo exigir que os Espíritos se comunicassem por médiuns diferentes após fornecerem muitas vezes provas indubitáveis de que são eles mesmos que se apresentam a determinado médium. A especificidade da mensagem dita assim o grau de recorrência ao CCU. O grau de obviedade com que constatamos a concordância dos Espíritos esclarecidos em relação às questões morais é o que fundamenta a condição geral (A). Suprimir tal condição é equivalente a dizer que o CCU (na forma forte) sempre foi operacional com relação às questões morais. Parece assim ser importante compreender exatamente o que se entende por pontos fundamentais e pontos secundários, coisa que  fazemos brevemente a seguir.

4 - O que são pontos fundamentais e o que são pontos secundários. Exemplos.

Por Doutrina Espírita entendemos o conjunto de princípios fundamentais que sistematizam o Espiritismo, as regras de aplicação desses princípios a diversas situações e fenômenos em que ele representa uma alternativa lógica e racional de explicação. Também a essa doutrina estão associados os diversos conjuntos de preceitos e regras éticas que caracterizam a conduta espírita na mais pura acepção da palavra. Por promoverem o progresso da alma humana, tais regras fortalecem as relações dessa com a Divindade, de onde deriva imediatamente o aspecto religioso do Espiritismo.

De modo resumido os princípios fundamentais do Espiritismo são:
  1. Existência de Deus. Deus aqui entendido como um ser existente de toda eternidade, sem princípio nem fim, todo poderoso e bom. Sem tentar descrever o impossível, tais atributos são os mínimos necessários para a noção da Divindade. 
  2. Existência do Espírito. O Espírito aqui é o princípio inteligente independente da matéria, a constituir um outro princípio. Por ser independente da matéria, o Espírito não sucumbe nem desaparece frente às transformações desta, de onde se tem a noção da imortalidade do ser. 
  3. Evolução do Espírito. À medida que o tempo transcorre, o estado que caracteriza o Espírito se transforma. Esse estado dá, por exemplo, as características do Espírito. Da faculdade que o Espírito tem de interagir com a matéria, ele passa por transformações que modificam sua personalidade e características. Essa evolução leva ao aprimoramento moral do ser e de sua inteligência. No homem, o período de tempo necessário para o aprimoramento é muito maior que o tempo de vida médio de sua vida material. Daí segue, como corolário desse princípio, a ideia de reencarnação. 
  4. Comunicabilidade dos Espíritos. É possível ao Espírito, desprovido da parte material, entrar em comunicação com o mundo material por meio de pessoas dotadas de uma faculdade especial chamada mediunidade. 
  5. Pluralidade dos mundos habitados. No Universo são inúmeros os mundos onde a vida é abundante, e os Espíritos, segundo semelhantes princípios, evoluem e tem sua existência mais ou menos material de acordo com o progresso atingido. 

Os princípios fundamentais estão todos eles contidos nas obras básicas editadas por Kardec. Essas obras também trazem ideias secundárias que auxiliam a explicação espírita do mundo segundo os princípios fundamentais. Além disso, a vasta literatura espírita contemporânea também contém inúmeras obras que desenvolvem substancialmente a aplicação dos princípios fundamentais e, porque não dizer, propõem princípios secundários novos. Esse fato é permitido pelo caráter progressista da doutrina, e os que teimam em não aceitá-lo estão, de fato, atrasando a marcha desse progresso. Vejamos um exemplo concreto que nos auxilie nesse ponto. Suponhamos que um certo Espírito proponha uma modificação na lei III de evolução afirmando que a marcha de desenvolvimento do Espírito não é incessante mas que, em determinado ponto de sua vida maior, seja permitido por lei ao Espírito estacionar. Não é difícil ver que semelhante ideia depõe contra vários outros princípios e leva imediatamente a uma contradição com a noção de livre-arbítrio pois, se ao Espírito é possível estacionar, ele não tem, por lei, nenhuma responsabilidade sobre seus atos durante o período de falta de progresso. Essa ideia deve ser rejeitada por estar em contradição com uma série de noções que protegem os fundamentos da doutrina.

Tomemos agora um exemplo de uma controvérsia no movimento espírita que ilustra bem as dificuldades de compreensão dos princípios espíritas e do ensino dos Espíritos. Trata-se da famosa proposição do elevado Espírito Emmanuel sobre as "almas gêmeas" no seu livro O Consolador [5]. Antes de tudo, conviria considerar uma afirmação desse Espírito contida logo na introdução ("Definição") de seus livro:
  "Alem do mais, ainda nos encontramos num plano evolutivo, sem que possamos trazer ao vosso círculo de aprendizado as últimas equações, nesse ou naquele setor de investigação e de análise. É por essa razão que somente poderemos cooperar convosco sem a presunção da palavra derradeira".
Na questão 298 de "O Livro dos Espíritos" [1], Kardec questiona os Espíritos sobre a ideia das almas gêmeas, entendidas como dois seres unidos desde sua origem e predestinados a se encontrarem fatalmente algum dia. Tratava-se, sem sombra de dúvida, de um ponto secundário, já que os princípios fundamentais nada dizem sobre a criação dos Espíritos (ver questão 78 de "O Livro dos Espíritos"). Além disso, a ideia da almas gêmeas não contradiz nenhum outro ponto fundamental. Em "O Consolador", Emmanuel por diversas questões (desde 323-328, "Terceira Parte", "Amor") reafirma a ideia das almas gêmeas, entendidas como seres que se buscam na Eternidade e cuja existência propicia o progresso aos Espíritos, já que esses, quando separados e caídos no crime anseiam por se encontrar, constituindo isso um incentivo ao seu progresso. Emmanuel, de fato, reconhece sua ignorância não só em relação à criação dos Espíritos como também sobre como se estabelece o vínculo afetivo entre eles:
 "Para todos nós, o primeiro instante da criação do ser está mergulhado num suave mistério, assim como também a atração profunda e inexplicável que arrasta uma alma para outra, no intuito dos trabalhos, das experiências e das provas, no caminho infinito do Tempo."
Entretanto, inquirido a examinar melhor seus pontos de vista, Emmanuel humildemente pede seja mantido o texto original, chamando a atenção para a complexidade do assunto. Esse Espírito sinalizou que ainda estamos longe de ter a pretensão à verdade sobre um tema tão complexo. Por outro lado, se os Espíritos que auxiliaram Kardec, em diversos pontos de "O Livro dos Espíritos", afirmaram que a criação dos Espíritos está mergulhada em um profundo mistério, como poderiam ter dado uma resposta definitiva à questão das almas gêmeas? Parece-nos que, nesse caso, bem como em muitos outros, eles haveriam de estar igualmente longe de dar uma "resposta derradeira". De qualquer forma, o CCU na forma forte não pode ser invocado nesse caso por não se tratar de um ponto fundamental. Podemos tomar a proposição de Emmanuel como uma opinião pessoal sua em conformidade com o que vimos que esse Espírito diz na introdução de "O Consolador". Entretanto, certos setores do movimento espírita extremamente ligados à letra e desatentos às sutilezas das ideias de verdade e ensino dos Espíritos (a se aplicarem igualmente para as explicações das coisas materiais), tomaram esse caso como mais um exemplo a depor contra a "pureza doutrinária" do Espiritismo que se imagina poder ser imposta a todo custo.

5 - Conclusões

Não foi senão por uma longa e difícil marcha que a Humanidade, pela colaboração de inúmeros luminares da cultura, inteligência e moralidade, conseguiu compreender que a noção de verdade só pode ser formulada dentro de bases estritamente relativas. Acompanhando o progresso das religiões e das ciências (mais notadamente dessas últimas) chegou-se a conclusão que as concepções a respeito das coisas e dos fenômenos do Mundo tem uma grande dependência com as épocas, recursos de pesquisa e tendências culturais dos indivíduos. No estágio em que nos encontramos, jamais poderemos aspirar à verdade absoluta.

O CCU pode ser invocado como um princípio metodológico que foi aplicado no início da codificação para estabelecer os fundamentos. Entretanto, não é ele quem valida esses princípios, como muitos poderiam pensar. Seria o mesmo que acreditar que os princípios que organizam as ciências materiais só valem porque os cientistas neles acreditam, os que são apenas a origem desse conhecimento. As doutrinas declaradas de muitas disciplinas científicas tem como fundamento o próprio princípio, muitas vezes inverificável, que deve ser assumido como válido a fim de que suas conclusões sejam determinadas. Ai está a base para a validade dos princípios espíritas: no fato de gerarem explicações plausíveis e verificáveis da Natureza que nos cerca. É a capacidade que os fundamentos espíritas têm em explicar determinadas anomalias que observamos com aspectos da personalidade humana e com determinados fenômenos que representam a maior fonte de validação de sua "comprovação". 

Assim, no escopo do que trata a Doutrina Espírita, tais conclusões são igualmente válidas. Elas servem ainda mais para reforçar definitivamente nossa extrema pequenez diante do universo em que vivemos, a ideia de que nossas pretensões são ínfimas. Essa já é a opinião emitida por Espíritos elevados quando inquiridos sobre nosso tamanho nesse Universo. Imediatamente transparece a importante conclusão da inutilidade de quaisquer querelas que venham se formar ao redor das concepções espíritas, sejam elas fundamentais ou secundárias. Se nos é possível fechar a correspondência com o passado, digamos que a única "heresia" que se pode suspeitar hoje em dia é a da sustentação de tais querelas contra nossos companheiros muitas vezes dentro do próprio movimento espírita. Ela é antiética e depõe contra todos os princípios evangélicos que o Espiritismo sustenta abertamente.

Por outro lado, o sentimento de impotência diante da verdade com relação a muitas questões profundas, não invalida em nenhum ponto os efeitos inquestionavelmente benéficos em nossas vidas que a aceitação e prática dos princípios espíritas - revelados na medida em que podemos compreender - podem gerar. De fato, estaremos talvez muito distantes de compreender por bases racionalmente sólidas princípios como o do amor, caridade e misericórdia. A própria evolução onde estagiamos hoje dá-nos muito mais capacidade para sentir esses conceitos.

Há uma base sim muito sólida onde se estabelecem os princípios e desenvolvimentos espíritas. Para conquistá-la, o espírita deve abraçar com zelo o estudo da doutrina e desvencilhar-se um pouco de velhas concepções. Isso significa avaliar coerentemente o conteúdo dos novos ensinos, compará-los aos antigos, notar as sutilezas nas novas noções aparentemente tão simples. E nunca esquecer também que o mundo onde vivemos é de fato muito maior que nossas vãs concepções podem imaginar.

6 - Referências

[1] Allan Kardec, "O Livro dos Espíritos", 71 edição, Federação Espírita Brasileira (1991).
[2] Eamon Duffy, "Santos e Pecadores, a História dos Papas", Cosac & Naif Edições Ltda, São Paulo (1998).
[3] Silvio Seno Chibeni, "A Excelência Metodológica do Espiritismo II", Reformador, Dezembro de 1988, pp. 373-378 (FEB).
[4] Allan Kardec, "O Evangelho segundo o Espiritismo", 104 edição, Federação Espírita Brasileira (1944)
[5] Emmanuel, "O Consolador", 4 edição, Federação Espírita Brasileira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário