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4 de janeiro de 2023

Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - VIII

Gorila e borboleta. Fonte: Wikipedia (Ana L. Araújo).

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - VII". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec. Última parte.

O homem corpóreo

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Do ponto de vista corpóreo e puramente anatômico, o homem pertence à classe dos mamíferos, dos quais unicamente difere por alguns matizes na forma exterior. Quanto ao mais, a mesma composição de todos os animais, os mesmos órgãos, as mesmas funções e os mesmos modos de nutrição, de respiração, de secreção, de reprodução.

Com essa descrição, Kardec coloca a Humanidade em seu devido lugar de natureza. Finalmente a Humanidade havia sido destronada como objetivo único da criação pelas mãos da ciência. Não há mais o que falar sobre qualquer privilégio natural; fisicamente o Homem não se distingue de um animal, pelo menos do ponto de vista "corpóreo". Além disso:

É tão grande a analogia que suas funções orgânicas são estudadas em certos animais, quando as experiências não podem ser feitas nele próprio.

É o caso das inúmeras pesquisas em farmacologia que resultaram em drogas importantes para o tratamento de humanos, drogas que foram experimentadas nos animais durante seu desenvolvimento. 

A questão agora é: diante desse quadro de semelhanças físicas, como é possível "resgatar" o destino espiritual do homem? A resposta passa pelo reconhecimento de que os animais têm seu princípio espiritual, o que depende de uma lei de evolução estendida também a esse princípio.

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A referência da Wikipedia apresenta a classificação (árvore) científica moderna dos humanos: 

  1. Reino: Animalia, 
  2. Filo: Cordata, 
  3. Classe: Mamalia, 
  4. Ordem: Primata, 
  5. Subordem: Halorfini, 
  6. Infraordem: Simiforme, 
  7. Família: Hominidae, 
  8. Subfamília: Homininae, 
  9. Tribo: Hominini, 
  10. Genus (Gênero): Homo, 
  11. Espécie: Sapiens.

Essa classificação apresenta o elo comum dos humanos com os símios como pertencente à Ordem dos primatas e com ramificações até a Infraordem "simiforme" ou antropóides. A Família dos hominídeos inclui  4 Gêneros: Pongo, Gorila, Pan e Homo. Para ficar mais clara essa classificação, a Fig. 1 apresenta uma representação dos ramos a partir de Hominidae.

Fig. 1 Posição do Gênero Homo a partir da Família Hominidae. Fonte Wikipedia.

Hoje acredita-se que a espécie Homo Sapiens surgiu entre 300 mil e 200 mil anos atrás e não foi a única. Habilis, Erectus,  Ergaster, Naledi, Neanderthalensis e outras todas desaparecidas precederam os humanos modernos. Entre esses não mais existem quaisquer espécies. Não obstante a variedade de tons de pele e de outras características, tais diferenças não justificam a classificação em mais de uma espécie e nem mesmo a ideia de raça. Todos os quase 8 bilhões de indivíduos no mundo pertencem rigorosamente ao mesmo tipo humano.

Sobre os símios, Kardec comenta:
Como o homem, esses macacos caminham eretos, usam cajados, constroem choças e levam à boca, com a mão, os alimentos: sinais característicos.
Esses são sinais de inteligência, uma evidência do elemento espiritual a eles associado.

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Kardec reconhece a existência de um princípio de evolução nas formas como um aperfeiçoamento entre as espécies:
Acompanhando-se passo a passo a série dos seres, dir-se-ia que cada espécie é um aperfeiçoamento, uma transformação da espécie imediatamente inferior.
Com isso ele ecoa noções de evolução pré-Darwinistas [1] de sua época que já reconheciam uma mudança gradual entre as espécies de animais, ainda que não se soubesse exatamente o mecanismo responsável por isso. Essas noções tiveram início com a constatação de que as espécies não eram fixas. Pioneiros dessas ideias foram Georg L. Leclerc (Comte de Buffon 1707-1788); Erasmus Darwin (1731-1802), avô de Charles Darwin; Jean-Baptiste C. de Lamarck (1744-1829); Charles Lyell (1797-1875) e George Cuvier (1769-1832). 

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Ainda que isso lhe fira o orgulho, tem o homem que se resignar a não ver no seu corpo material mais do que o último anel da animalidade na Terra. Aí está o inexorável argumento dos fatos, contra o qual seria inútil protestar.
Muitos  têm o orgulho ferido, pois alguns cristão ainda hoje se recusam a aceitar a evolução das espécies como o mecanismo que resultou na formação da espécie humana. Acreditam que a Humanidade tem um lugar especial, se não exclusivo, na Criação. 

É o excessivo valor dado ao corpo que leva a esse preconceito. Ao contrário, o corpo é a plataforma física a partir da qual se eleva sem fim o espírito imortal. 

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O Espiritismo, entretanto, reconhece as descobertas da ciência sobre a evolução corpórea e as incorpora em seus ensinos. Estende, porém, essa compreensão ao princípio espiritual que colhe da evolução das formas os elementos para seu aprimoramento. Assim, o Espiritismo descortina "um mundo novo" que permite a nós compreender também a existência dos animais como companheiros de jornada evolutiva, o derradeiro golpe à vaidade humana.
Pois bem! o Espiritismo, a loucura do século XIX, segundo os que se obstinam em permanecer na margem terrena, nos patenteia todo um mundo, mundo bem mais importante para o homem, do que a América, porquanto nem todos os homens vão à América, ao passo que todos, sem exceção de nenhum, vão ao dos espíritos, fazendo incessantes travessias de um para o outro.
Esclarecida de alguma forma o aparecimento do elemento material, permance a questão da origem do princípio espiritual.  Ao colher informes e vivências em sua associação com a matéria, segue por tempo desconhecido a evoluir até o destino final ainda inacessível ao nosso grau de entendimento presente. 

Referências

[1] Pre-Darwinian Theories: https://www2.palomar.edu/anthro/evolve/evolve_1.htm













18 de novembro de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - VII

Artforms of Nature, 1899–1904, Ernst Haeckel.

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - VI". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

Escala dos seres orgânicos

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Fora ainda do contexto da teoria da evolução (que se consolidaria muito depois da publiação de "A Gênese"), Kardec pinta um quadro descritivo da variedade dos seres vivos apontando para uma crescente especialização das formas.

Um exemplo que econtramos neste Parágrafo é a referência aos zoófitos. Mas a palavra "zoófito" se tornou obsoleta com o tempo e designava "animais-plantas" ou seres que, não obstante considerados como animais, têm aparência de planta. Sua existência dava aos antigos biologistas um elo de ligação entre animais e plantas. Ela explicava como certas espécies dessas últimas (como o algodão) produziam coisas que animais também pareciam produzir. O termo e o que ele implicava foi assunto de inúmeros debates [1]. Kardec ecoa esse conhecimento antigo ao declarar que:

O zoófto tem a aparência exterior da planta. Como planta, mantém-se preso ao solo; como animal, a vida nele se acha mais acentuada: tira do meio ambiente a sua alimentação.

É importante considerar que mesmo Darwin utilizou o termo. Modernamente se sabe que não existe essa ligação. Os zoófitos dos antigos são hoje encontrados em muitos seres marinhos como as anêmonas e outras criaturas de "simetria radiada", ou seja, que apresentam estruturas distribuídas em torno de um centro.

Kardec apresenta uma escala de seres na seguinte ordem: pólipos, helmintos, moluscos, crustáceos, insetos, vertebrados e mamíferos:

Pólipos representam hoje o filo Cnidaria dentro os quais se encontram as medusas e as anêmonas. 

Helminto é o termo derivado do grego para "verme". Kardec cita os "vermes intestinais" em uma referência ao uso dessa palavra na medicina. Modernamente "se entende como verme o animal com o corpo alongado e/ou achatado e sem esqueleto interno ou externo" (ver ref. Wikipedia: Verme). Eles são quase que onipresentes na Natureza. Englobam vários tipos de organismos, mas o termo antigo caiu em desuso. 

Os moluscos são classificados modernamente como pertencentes ao filo Mollusca e representam animais invertebrados, tanto de água doce e marinha como também terrestres (p. ex., os caracóis). 

Os crustáceos são invertebrados (sem coluna vertebral) artrópodes (com exoesqueleto duro) dentre os quais se destacam os siris, caranguejos e camarões (mas não somente animais marinhos). 

Insetos também pertencem ao filo Arthropoda e são invertebrados com características morfológicas únicas como possuirem um exoesquelo quitinoso. Representam mais de 70% em termos de multiplicidade de espécies animais. 

Ao desenvolverem uma coluna vertebral e um sistema nervoso, os vertebrados formam uma subdivisão dos animais cordados. Em termos temporais, sua origem remonta ao aparecimento dos primeiros fósseis de vertebrados há 450 milhões de anos. O que caracteriza os vertebrados é a presença de uma coluna vertebral, crânio, a presença de um sistema muscular e um sistema nervoso. 

Finalmente, como uma subdivisão do ramos dos vertebrados, chegamos aos mamíferos. Kardec os descreve como animais com uma "organização mais completa". Em termos descritivos, os mamíferos são animais com temperatura interna regulada (endotérmico), cujas fêmeas produzem leite por meio de glândulas mamárias. 

Os humanos pertencem a essa subclasse. Os humanos são assim descritos modernamente como seres do domínio Eukariota, no reino Animalia, com filo Chordata e subfilo Vertebrada, subdivididos na superclasse dos Tetrapoda, de classe Synapsida e subclasse Mammalia. Porém, a classificação não termina aqui. Até o gênero Homo da espécie Sapiens, há ainda mais 11 subdivisões...

Fig. 1 Linha do tempo simplificada em bilhões de anos mostrando os principais eventos naturais conforme a visão moderna da evolução. Nesse quadro imenso, destacam-se: a formação dos organismos com núcleo celular (Eucariontes), a "revolução Cambriana" e o aparecimento dos primeiros hominídeos. O uso do fogo, por exemplo, ocorreu em um milésimo de bilhão de anos atrás, ou seja, há aproximadamente 1 milhão de anos. Fonte original: wikipedia. (clique na imagem para ampliar)

Em termos atuais essa escala pode ser apreciada por meio das classificações taxonômicas modernas. Essas objetivam reduzir a variabilidade observada entre diferentes animais agrupando-os em "taxa" que acabam por formar uma grande árvore. Partindo-se de uma divisão em "reinos", esses são subdivididos em "filos". Os filos são subdividios em "classes", essas em "ordens", essas em "famílias", as famílias são separadas por "gêneros" e, finalmente, os gêneros são subdivididos em espécies. Dentro de cada espécie admite-se também subdivisões em "subespécies".  

O aumento da complexidade nos mamíferos (chamada frequentemente "diversidade") se manifesta pela existência de um número grande de espécies, e os ramos da árvore se tornam mais preenchidos. Entretanto, essas classificações refletem muito aspectos morfológicos, tanto que os insetos acabam por formar o maior ramo da árvore dos animais pela enorme diversidade com que se manifestam. 

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A noção de que os organismos com funções e organizações complexas são modificações gradativas de espécies anteriores é descrito por Kardec:

Compreende-se então a possibilidade de que os animais de organização complexa não sejam mais do que uma transformação, ou, se quiserem, um desenvolvimento gradual, a princípio insensível, da espécie imediatamente inferior e, assim, sucessivamente, até o primitivo ser elementar.

Uma imagem resumida da evolução ao longo de bilhões de anos pode ser vista na Figura 1.  Nada se sabia na época sobre como tais transformações ocorriam. Ao questionamento de Kardec:

Ora, se a glande encerra em latência os elementos próprios à formação de uma árvore gigantesca, por que não se daria o mesmo do ácaro ao elefante?

podemos responder hoje que os "elementos próprios" que unificam a escala dos seres, do ponto de vista material, está no material genético que os compõem.  Assim, o grande elo de ligação reconhecido entre todos os seres, dos mais primitivos aos mais complexos e especializados, são seus constituintes genéticos.

Como vimos anteriormente [2], a tese da geração espontânea era aceita por grande parte dos acadêmicos na época de Kardec. Ele reporta esse estado ao comentar que essa teoria "é a que tende evidentemente a predominar hoje na ciência". Neste Parágrafo, Kardec segue assim a ciência de seu tempo e considera a ideia das "transformações gradativas" entre os seres diante da noção de geração espontânea. As transformações seriam assim um modo alternativo da Natureza de gerar novas espécies porque cada uma delas adquiriu "a faculdade de reproduzir-se" e "os cruzamentos acarretaram inúmeras variedades". Os seres mais simples se reproduziriam espontaneamente, enquanto que os organismos mais complexos transformavam-se com o tempo.

Essas noções sofreram mudanças profundas com a teoria da evolução de Darwin, o mutacionismo e a moderna genética. A geração espontânea foi expurgada da Biologia enquanto que o único mecanismo possível de criação de novas espécies está na evolução e nos inúmeros detalhes que operam seu mecanismo. As provas da evolução com organismos muito simples foram amplamente coletadas e constantemente monitoradas. Um exemplo que se tornou popular são as descrições da evolução do vírus da Covid-19, ver por exemplo, um trabalho recente em [3]. 

Essa mudança na maneira de se descrever o surgimento dos seres vivos não altera uma compreensão maior que devemos ter sobre a ligação espiritual que os une e que, um dia, também será reconhecida. Talvez seja possível dizer que uma consequência dessa ligação espiritual seja o elo material na forma das estruturas comuns que os conectam em uma grande hierarquia de criaturas. 

Referências

[1] Gibson, S. (2012). On Being an Animal, or, the Eighteenth-Century Zoophyte Controversy in Britain. History of science, 50(4), 453-476.

[2] Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - VI

[3] Li, F. (2016). Structure, function, and evolution of coronavirus spike proteins. Annual review of virology, 3(1), 237.



20 de outubro de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - VI

Frasco do experimento de Pasteur. Imagem colhida em [1].

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - V". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

Geração espontânea

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A questão proposta por Kardec ainda preocupa a ciência atual:
Formam-se, nos tempos atuais, seres orgânicos pela simples reunião dos elementos que os constituem, sem germens, previamente produzidos pelo modo ordinário de geração, ou, por outra, sem pais nem mães?
Antes que se levante uma voz dissonante, falando sobre uma respostas já fornecida pela ciência, pedimos que o leitor dilate seu pensamento. Veremos aqui que permanece como questão atual, pois a solução dada para o problema antigo da geração espontânea não resolveu o dilema da origem da vida: ainda se formam seres vivos, em qualquer lugar do Universo, tão só pela simples reunião dos elementos que os constitutem? Reformulada em termos de um problema do início da vida, a "geração espontânea" recebeu modernamente um novo nome: abiogênese.

E o debate também continua, ao lado dos que são a favor da abiogênese ou da "biologia sintética" [1] podemos encontrar seus opositores [3]. Como a comunidade acadêmica se apoia em princípios mecanísticos, a abiogênese é a crença dominante. De qualquer forma, o problema da origem da vida, já transparecia a Kardec pois, neste parágrafo, ele declara:

Esta maneira de entender deixa sempre em aberto a questão da formação dos primeiros tipos de cada espécie.

Referia-se ele ao debate de sua época, sobre se a Natureza ainda produziria (obviamente na Terra) seres de forma espontânea.

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Demonstrando estar bem informado sobre o debate científico de sua época, Kardec pondera corretamente que a geração espontânea somente poderia ocorrer em seres "rudimentares", ou seja, organismos compostos de poucas ou apenas uma célula. Ele reafirma o caráter "espontâneo" do aparecimento da vida em sua origem e separa o problema em dois, deixando claro a querela entre biologistas de seu tempo sobre se ainda essa criação estaria ocorrendo:

Foram esses, com efeito, os primeiros que apareceram na terra e cuja formação houve de ser espontânea. Assistiríamos assim a uma criação permanente, análoga à que se produziu nas primeiras idades do mundo.

Obviamente, a ponderação continua válida, se não nos limitarmos ao planeta Terra, mas à possibilidade de surgimento da vida em outros planetas. É um despropósito acreditar que a Terra, em todo o Universo com trilhões e trilhões de planetas, seja o único que tenha apresentado as condições de gerar vida.

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Em paralelo à possibilidade de geração espontânea em organismos unicelulares, por que ela não ocorreria com seres mais complexos? Essa questão era um obstáculo claro à ideia da geração espontânea. Por isso, seria "imprudente e prematuro apresentar meros sistemas como verdades absolutas".

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Neste parágrafo temos uma curiosa afirmação de Kardec:

Se a geração espontânea é fato demonstrado, por muito limitado que seja, não deixa de constituir um fato capital, um marco de natureza a indicar o caminho para novas observações.

Como assim que a geração espontânea seria "fato demonstrado"? Infelizmente, não era costume nos textos do Século XIX apresentar mais citações que embasassem o que se afirmava. Por isso, no presente, poderemos tão só especular sobre quais teriam sido as fontes usadas, nesse caso por Kardec, para sustentar essa afirmação. Isso nos leva a uma revisão histórica do debate sobre a geração espontânea.

Breve revisão da história do debate da geração espontânea no Século XIX.

Para isso, usamos pesquisas recentes sobre o tema. Uma delas é o excelente estudo de Lilian Al-Chueyr P. Martins (2009, [4]) sobre equívocos na maneira como a história do debate sobre a geração espontânea é apresentada hoje em dia.

Félix Archimède Pouchet (1800-1876), imagem segundo [4], realizou experimentos cuidadosos em 1856 que pareciam demonstrar a geração espontânea.

Ficamos sabendo, por exemplo, das pesquisas realizadas por Félix Archimède Pouchet (1800-1876), diretor do Museu de História Natural de Rouen, que realizou diversas demonstrações cuidadosas e bastante favoráveis à geração espontânea em 1856. Por serem bem feitos, os experimentos de Pouchet provocaram forte impressão na Academia de Ciências de Paris. Estaria Kardec se referindo, na passagem citada acima, aos experimentos de Pouchet?

Segundo [4]:

Depois de três anos de pesquisas, Pouchet publicou um livro sobre o assunto, denominado "Hétérogénie ou traité de la génération spontanée". Essa obra tem um longo histórico da questão (quase 100 páginas), seguido por uma discussão filosófica sobre o tema. Depois discute a questão da origem da vida na Terra, defendendo que os primeiros organismos se formaram espontaneamente – mas esclarecendo que isso não era uma concepção anti-religiosa. Por fim, o livro apresenta um grande número de experimentos nos quais parecia estar ocorrendo geração espontânea de microorganismos.

Além disso, os experimentos de Pouchet foram confirmado por outros cientistas. Essas observações demonstram que o ambiente acadêmico sobre o assunto não se definiu facilmente como contrário à geração espontânea como descrevem livros textos educacionais modernos sobre o assunto [4]. O papel de Pasteur e sua participação no prêmio Alhumbert também é esclarecido em [4]:

Como a questão das gerações espontâneas trazia conseqüências não apenas científicas mas também de âmbito filosófico, religioso e até mesmo político, em janeiro de 1860 a Academia de Ciências de Paris ofereceu um prêmio no valor de 2.500 francos (o Prêmio Alhumbert) para o melhor trabalho sobre o assunto. Provavelmente foi a pesquisa de Pouchet que levou à criação desse prêmio.

O objetivo do prêmio era favorecer pesquisas contrárias à geração espontânea, tanto que, entre seus julgadores, todos eram oponentes da ideia. Seu apoiadores, no outro lado, sabendo das condições do prêmio, recusaram-se a participar dele. Tendo Pasteur adotado posição contrária à geração espontânea e sendo o únido participante, recebeu o prêmio em 1862, realizando um conjunto de experimentos que pareceram, para a Academia Francesa, demonstrar a impossibilidade de criação espontânea da vida.

A tese defendida em [4] é que os relatos históricos apresentados em muitos livros modernos é de uma história contada de trás para diante. Como hoje em dia sabemos da impossibilidade da geração espontânea na Terra, o relato é montado de forma a parecer que o experimento de Pasteur conferiu o último golpe à teoria, o que é falso. Isso permite compreender a afirmação apresentada logo no início do Parágrafo 23, se os trabalhos de Pouchet pareceram a Kardec como de maior impacto em sua época. Essa hipótese tem apoio em [4]:

É relevante mencionar que, na época, uma grande parte das pessoas cultas acreditou que Pouchet estava correto e que a Academia havia cometido um erro. A Enciclopédia Larousse, por exemplo, considerava em 1865 que os heterogenistas haviam vencido a disputa. Portanto, a posição da Academia não levou a uma decisão sobre o assunto e continuaram a surgir trabalhos de pesquisa favoráveis à geração espontânea, tanto na França quanto em outros países, durante muito tempo. (grifos nossos)

Os "heterogenistas" eram os adeptos da teoria da geração espontânea. Os debates sobre o assunto continuaram até, pelo menos, 1900. Entretanto, livros didáticos modernos de Biologia dificilmente fazem referência a tais experimentos em apoio à geração espontânea que foram realizados depois do prêmio oficial de Pasteur.

Em suma, na época da publicação de A Gênese, as "pessoas cultas" na França consideravam que a geração espontânea havia sido demonstrada. No extremo oposto, Pasteur tinha ganhado um "prêmio de consolação" concedido por um torneio suspeito e esvaziado da Academia Francesa, que não foi suficiente para convencer a maioria. O debate sobre a geração espontânea, misturado ao ambiente de discussão política, talvez impedisse um visão mais clara do assunto. Por essa razão, Kardec finaliza o citado Parágrafo com a bela ponderação:

No estado atual dos nossos conhecimentos, não podemos estabelecer a teoria da geração espontânea permanente, senão como hipótese, mas como hipótese provável e que um dia, talvez, tome lugar entre as verdades científcas incontestes.

Muito provavelmente, a motivação dos cientistas favoráveis à geração espontânea na época de Kardec era resolver o problema da origem da vida. Demonstrado que a vida poderia surgir espontaneamente em qualquer lugar da Terra, ficava dissolvido o problema de decidir quando a vida ocorreu pela primeira vez. Como a questão se definiu pela impossibilidade da geração espontânea presente (sem impedir sua ocorrência em  outros planetas), o problema da origem da vida permanece como um dos mais intricados embróglios científicos presentes. 

Recomendamos também a leitura de  "A geração espontânea e a Gênese" [5] de julho de 1868.

Referências

[1] Pasteur's "col de cygnet" (1859). British Society for Immunology. https://www.immunology.org/pasteurs-col-de-cygnet-1859

[2] Attwater, J., & Holliger, P. (2014). A synthetic approach to abiogenesis. nature methods, 11(5), 495-498. https://www.nature.com/articles/nmeth.2893 

[3] Bergman, J. (2000). Why abiogenesis is impossible. Creation Research Society Quarterly, 36(4), 195-207.    http://herbertarmstrong.org/Miscellaneous/Why%20Abiogenesis%20is%20Impossible.pdf

[4] Martins, L. A. C. P. (2009). Pasteur e a geração espontânea: uma história equivocada. Filosofia e História da Biologia, 4(1), 65-100.    http://www.abfhib.org/FHB/FHB-04/FHB-v04-03.html 

[5] Ver: https://www.ipeak.net/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=6191&&idioma=1

4 de setembro de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - V

Ilustrações de seres marinhos por Ernst Haeckel (1834-1919).

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - IV". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

O princípio vital

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Do ponto de vista de seus ingredientes materiais, seres vivos podem ser decompostos pela química em elementos que são indistinguíveis daqueles que formam os minerais. Assim, a síntese de compostos orgânicos constituiu um duro golpe aos que acreditavam que seres vivos eram feitos de uma matéria especial. Neste parágrafo, Kardec pergunta se seres vivos podem ser reduzidos ainda mais aos elementos puramente materiais em um sentido mais profundo:

Sem falar do princípio inteligente, que é questão à parte, há, na matéria orgânica, um princípio especial, inapreensível e que ainda não pode ser definido: o princípio vital. Ativo no ser vivente, esse princípio se acha extinto no ser morto; mas nem por isso deixa de dar à substância propriedades que a distinguem das substâncias inorgânicas.

Em uma lógica que ainda não é apreciado pelas ciências estabelecidas, o Espiritismo tem no princípio inteligente um elemento fundamental que justifica a existência da própria vida. Os seres vivos abrigam o princípio inteligente que evolui ao longo dos séculos em consórcio com a evolução das formas vivas até que ele alcançe o estado da razão. Entretanto, não é esse o tema principal do Parágrafo ora em análise, mas sim o "princípio vital". 

Para se ter entendimento mais exata do motivo para se propor a existência desse terceiro elemento nos seres vivos é relevante uma revisão histórica, inclusive para compreender o debate então vigente sobre ele até o Século XIX. Adiantamos aqui que, em tese, a biologia moderna aboliu completamente a necessidade do princípio vital em suas explicações sobre a vida. Apresentaremos essa revisão mais para a frente.

Para que se tenha uma noção aproximada da relevância do princípio vital (ou como assim parecia sua manifestação aos téoricos da biologia no Século XIX) fazemos aqui uso de uma comparação. Ninguém duvida que um processador eletrônico moderno (que existe em computadores, tablets e telefones celulares) é formado de elementos químicos bem conhecidos. Diversas substânias minerais entram na composição dos "chips" eletrônicos: elementos como o silício, o ferro, o alumínio, germânio e outros. Entretato, a estrutura, composição e arranjo desses elementos nos equipamentos eletrônicos não é suficiente para explicar como esses dispositivos se comportam. Tomo de um telefone celular ligado e corretamente configurado, toco em uma determinada janela que abre um "aplicativo" que me permite ler um mapa onde eu me localizo. Que mágica é essa capaz de conhecer minha posição de forma automática e instantânea ? 

Para compreender como se comportam computadores, celulares e outros dispositivos eletrônicos complexos (Fig. 1), que respondem ao ambiente e realizam funções sofisticadas, precisamos da ideia dos "algoritmos". Esses são longas sequências de comandos inscritos em linguagem lógica que são "decodificados" em arranjos de correntes elétricas que percorrem os circuitos desses equipamentos. Os algoritmos representam estruturas de nível hierárquico superior capazes de controlar a matéria que compõe os equipamentos sem, entretanto, alterar sua estrutura. Além deles, a eletricidade é um importante ingrediente que flui nos equipamentos eletrônicos causando determinados comportamentos. 

Assim, um paralelo entre seres vivos e equipamentos eletrônicos pode ser traçado de forma grosseira, ao se identificar as estruturas orgânicas dos seres com o hardware dos equipamentos, a eletricidade com o princípio vital e os algoritmos com o princípio inteligente. Dessa forma, fica mais fácil compreender a afirmação de Kardec:

Ativo no ser vivente, esse princípio se acha extinto no ser morto; mas nem por isso deixa de dar à substância propriedades que a distinguem das substâncias inorgânicas.

Um equipamento sem fonte de energia não funciona. Da mesma forma, seres vivos são obrigados a extrair do meio a energia que permite a eles viver. Entretanto, a eletricidade (que se caracteriza pela intensidade, modulação e temporização com que flui nos circuitos integrados) permite um paralelo mais preciso com a ideia do princípio vital nos seres vivos. A eletricidade confere aos equipamentos propriedades que não existem naqueles em que esse fluxo for inconforme ou inexistente, ainda que estejam plenamente "carregados". 

Fig. 1 Equipamentos eletrônicos modernos funcionam sob princípios que não dependem apenas dos componentes químicos que os formam. Assim, eles fornecem um paralelo para se compreender as questões ligadas à necessidade do princípio vital nos seres vivos, como apresentadas a partir do Parágrafo 16 no Capítulo X. 

Esse paralelo corresponde à proposta de se entender um ser vivo como um "sistema" organizado de forma hierárquica em que estruturas nos níveis mais inferiores (o "hardware") são operados pelos níveis superiores intangíveis (software). Para isso, "informação" flui entre os níveis, de forma que não é possível decompor e explicar um ser vivo tão somente em termos dos seus elementos químicos. A biologia moderna possui outras paradigmas para explicar as correntes de informação responsável pelo funcionamento dos seres vivos como, por exemplo, a ideia de que informação está "codificada" nos genes que instruem as células na realização de tarefas específicas. Entretanto, haverá sempre uma causa anterior subjacente à organização dos genes como, por exemplo, a fonte de informação responsável pelos próprios genes.

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Neste parágrafo algumas perguntas sobre o princípio inteligente são apresentadas:

Será o princípio vital alguma coisa particular, que tenha existência própria? Ou, integrado no sistema da unidade do elemento gerador, apenas será um estado especial, uma das modificações do fluido cósmico, pela qual este se torne princípio de vida, como se torna luz, fogo, calor, eletricidade?

Como resposta preliminar, Kardec cita as mensagens do Cap. VI em "Uranografia Geral" (ver nossa análise em "Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - CONCLUSÃO") que parecem indicar que o princípio vital não é um elemento a parte, ou seja, não seria um "terceiro princípio", além do material e inteligente. 

Ao contrário, ele é extraído do meio como uma modificação do fluido cósmico universal. De novo nosso paralelo com os equipamentos eletrônicos permite compreender essa proposta uma vez que corrrentes elétricas são extraídas do meio por uma transformação dos recursos energéticos disponibilizados ao equipamento. O princípio vital seria um recurso extraído do meio por meio de transformações especiais específicas aos seres vivos.  

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Na análise dos corpos orgânicos, a Química encontra os elementos que os constituem: oxigênio, hidrogênio, azoto e carbono; mas não pode reconstituir aqueles corpos, porque, já não existindo a causa, não lhe é possível reproduzir o efeito, ao passo que possível lhe é reconstituir uma pedra.

Kardec chama a atenção para outro aspecto que permite compreender a necessidade do princípio vital. Como veremos mais tarde, essa impossibilidade de se reproduzir o efeito apenas pela reunião dos ingredientes fundamentals visíveis ainda continua. Até hoje ainda não foi possível sintetizar um ser vivo - por mais simples que seja - por meios químicos. 

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Neste Parágrafo, Kardec parece apoiar a identificação do princípio vital com a eletricidade:

Os corpos orgânicos seriam, então, verdadeiras pilhas elétricas, que funcionam enquanto os elementos dessas pilhas se acham em condições de produzir eletricidade: é a vida; que deixam de funcionar, quando tais condições desaparecem: é a morte. Segundo essa maneira de ver, o princípio vital não seria mais do que uma espécie particular de eletricidade, denominada eletricidade animal, que durante a vida se desprende pela ação dos órgãos e cuja produção cessa, quando da morte, por se extinguir tal ação.

Não só isso, mas seria possível identificar o princípio com o próprio fluxo de energia no corpo vivo. Essa energia se manifesta de várias formas: química, elétrica e mecânica. Porém, a noção de ''conservação de energia" foi praticamente contemporânea da publicação de "A Gênese" [1]. Dessa forma, na época de Kardec, não seria possível fazer uma distinção clara entre o conceito emergente de energia [2] e o princípio vital. Da mesma forma, quando biologistas aboliram esse princípio da Biologia no início do Século XX, eles não tinham ideia de que ele poderia retornar, anos mais tarde, sob uma nova roupagem teórica e conceitual.

Referências

1. CAHAN, David. The awarding of the Copley Medal and the ‘discovery of the law of conservation of energy: Joule, Mayer and Helmholtz revisited. Notes and Records of the Royal Society, v. 66, n. 2, p. 125-139, 2012.
2. HARRER, Benedikt W. On the origin of energy: Metaphors and manifestations as resources for conceptualizing and measuring the invisible, imponderable. American Journal of Physics, v. 85, n. 6, p. 454-460, 2017.




1 de julho de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - IV

Imagem da referência: Les merveilles de l'industrie ou, Description des principales industries modernes por Louis Figuier. - Paris : Furne, Jouvet, (1873-1877)

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - III". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

9

A questão da origem dos compostos orgânicos é considerada neste parágrafo por Kardec. Essa indagação é relevante porque, nas diversas teorias sobre a vida que surgiram no Século XIX, havia os que achavam que apenas a Natureza poderia criar compostos orgânicos. A síntese em laboratório de compostos orgânicos foi um passo importante para se entender que, nos fundamentos que sustentam a vida, estão regras que se aplicam a qualquer tipo de matéria. 

De qualquer forma, era necessário explicar a origem dos compostos químicos desde a gênese da Terra. Estariam os materiais já disseminados ou eles teriam sido formados pelas inúmeras modificações ocorridas no planeta? De fato, considerando que, em sua origem, a Terra se encontrava aquecida com todos os elementos volatilizados:
no ar se encontravam, em estado gasoso, todas as substâncias primitivas. Precipitadas por efeito do resfriamento, essas substâncias, sob o império de circunstâncias favoráveis, se combinaram, segundo o grau de suas afinidades moleculares.
Dado esse princípio geral, é objeto da pesquisa científica presente determinar as rotas de síntese que percorreram séculos desde a gênese e que explicam as presente constituição química dos materiais encontrados de forma natural no planeta. 

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O desenvolvimento científico não ocorre de forma independente nos diversos ramos de especialização. Uma determinada área pode contribuir substancialmente com o desenvolvimento de outra. Foi assim que a química se tornou fundamental para o avanço da geologia, da mesma forma como essa última com a astronomia contribuíram para compreender a gênese.

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Um exemplo da importância do conhecimento das leis que regem a relação entre átomos e moléculas é no fenômeno da cristalização, apresentado por Kardec neste parágrafo. Um cristal é um sólido regular formado por átomos, íons ou moléculas que se arranjam conforme uma configuração geométrica que se repete. Para ilustrar que a formação desses "corpos sólidos" é regido por leis específicas, Kardec aqui cita alguns exemplos. O açúcar candi (C12H22O11) forma cristais cúbicos que exigem de 5 a 15 dias para formação em uma solução resfriada e saturada de açúcar. A sílica forma cristais de seis faces. O diamante é formado de carbono que forma uma estrutura cúbica. Finalmente, o exemplo dos cristais de gelo e sua estrutura hexagonal é também citado como um fenômeno popularmente conhecido. 
  
Fig. 1 As 7 formas geométricas dos cristais. Algumas delas são citadas no Parágrafo 11 como estruturas regulares de corpos minerais que surgem na Natureza. Fonte: [1]

A forma dos cristais pode ser organizada em 7 classes como mostradas na Fig. 1. Nessa figura também são fornecidos outros exemplos. A organização muito regular dos cristais é explicada assim:
A disposição regular dos cristais corresponde à forma particular das moléculas de cada corpo. Essas partículas, para nós infinitamente pequenas, mas que não deixam por isso de ocupar um certo espaço, solicitadas umas para as outras pela atração molecular, se arrumam e justapõem segundo o exigem suas formas, de maneira a tomar cada uma o seu lugar em torno do núcleo ou primeiro centro de atração e a constituir um conjunto simétrico.
Modernamente a disposição regular é conhecida como resultado da maneira como se arranjam as ligações químicas entre as moléculas, átomos ou íons que formam cada substância. Para que seja possível o arranjo simétrico e a repetição da estrutura por milhares de distâncias na escala atômica, condições especiais devem existir. No caso da formação dos cristais de açúcar, por exemplo, o meio aquoso não pode estar aquecido. A redução da temperatura justamente corresponde à redução da agitação entre as moléculas, o que permite a elas encontrar um ponto de menor energia para a formação do cristal. Essa descrição em termos de "minimização de energia" ainda não era conhecida na época em que "A Gênese" foi publicada. 

12

Como resultado da descoberta da grande unidade de princípios que governam as leis naturais, as mesmas regras que organizam minerais também imperam sobre a formação dos corpos orgânicos. Isso mostrará que,  do ponto de vista do elemento material, não há diferenças entre seres vivos e minerais. Neste parágrafo, Kardec explica que a química já demonstrou serem os corpos orgânicos formados majoritariamente por quatro elementos químicos principais:
  • Carbono
  • Nitrogênio
  • Oxigênio
  • Hidrogênio
e que outros elementos "entram acessoriamente". Igualmente relevante é o fato de que a enorme variedade e diversidade de aparências e comportamentos das substâncias orgânicas ser explicado pela química como resultado das diferentes proporções como cada um dos quatro elementos principais (e seus acessórios) entram em cada substância. Tanto assim que Kardec inclui uma tabela contendo uma análise química da época das proporções de cada elemento em diversas substâncias. No caso, o "açúcar de cana" (que contém um teor de sacarose maior), a proporção da tabela é: 42,47% de C, 6,9%  de H, 50,63% de N. 

Conforme já citado acima, a fórmula química do açúcar é C12H22O11. Hoje sabemos que a massa atômica do C é de 12u (unidades atômicas), a do H é 1u e a do O é 16u. Portanto, em termos de unidades de massa atômica, o açúcar (puro) teria o equivalente a 342u. Cada elemento de sua composição entraria nas seguintes razões:
  • C: 12 x 12u ou 144u: razão de 144/342 = 42,1%,
  • H: 22 x 1u ou 22u: razão de 22/342 = 6,4%,
  • O: 11 x 16u ou 176u, razão de 176/342 =  51,4%
o que corresponde aproximadamente aos valores que constam para o açúcar da cana na tabela de "A Gênese". Portanto, a tabela mostra a "proporção de massa" de cada elemento nas diversas substâncias citadas. 

Fig.2 "Forma" da molécula da fibrina (segundo 2), substância citada por Kardec na Tabela que acompanha o parágrafo em estudo. 
Um exercício (de química e álgebra) que deixamos para o leitor é encontrar as quantidades em unidades atômicas de cada elemento da quadrupla (C, N, O, H) para a fibrina usando as proporções de massa dadas na tabela. Depois disso, ele pode comparar seu resultado com a fórmula mais contemporânea para a Glicil-N-Metilglicinamida [2] (Fig. 2) que é um outro nome pelo qual  fibrina é conhecida hoje em dia.

Um princípio geral que deve ser lembrado aqui é expresso na parte final do parágrafo:
Assim, na formação dos animais e das plantas, nenhum corpo especial entra que igualmente não se encontre no reino mineral.
13

Esse princípio tem importância fundamental para explicar como surgem as inúmeros "tecidos orgânicos" na Natureza e como podem eles ser tão diversos em aparência. Um exemplo de reação química citada por Kardec para explicar a criação de compostos orgânicos muito específicos a partir de ingredientes bastante diferentes do produto  final é a reação de fermentação ("no suco de uva, não há vinho, nem álcool, mas apenas água e açúcar"). Em sua forma mais simplificada [3], essa reação pode ser escrita como:

C6H12O6 → 2 C2H5OH + 2 CO2

que expressa a conversão de um mol de açúcar em dois moles de etanol e dióximo de carbono. Essa reação não ocorre de forma simples, mas é resultado de uma cadeia de reações em que entram outros compostos chamados "enzimas" (e que também fazem parte das "condições necessárias" segundo Kardec). 

Kardec também se refere (sem citar referências) às concepções pueris antigas que acreditavam preexistir em cada material orgânico "animálculos" (sob "microscópica forma") responsáveis pela  aparência e função completa do ser no futuro. Essas teorias foram conhecidas como "preformacionistas" (final do Século XVII) das quais a chamada "tese do homúnculo" (Fig. 3) pretendia explicar o ser humano como resultado do crescimento de um ser preexistente e plenamente formado em sua "semente" ou sêmen.
Fig. 3 O homúnculo de Hartsoeker. Fonte [4]
Ao contrário,  Kardec enfatiza que, no crescimento dos vegetais:
Esse gérmen se desenvolve por efeito dos sucos que haure da terra e dos gases que aspira do ar.
Disso segue que toda a matéria que compõe os seres vivos foi acumulada a partir de elementos externos do meio em que ele vive e transformada por reações químicas em um "trabalho íntimo" que ocorre no interior de cada ser.  Conforme [5], o preformacionismo somente foi descartado no final do Século XIX com o desenvolvimento da teoria da célula, o que nos leva a concluir que Kardec estava aqui bem informado sobre os progressos científicos de sua época a ponto de defender, em "A Gênese", as ideias mais avançadas. 

15

Resume-se o que foi anteriormente afirmado e enfatiza-se o papel das "condições propícias", que hoje são conhecidas como as "condições do ambiente" a favorecer a formação não só de compostos orgânicos mas também dos seres vivos. Essas condições surgem por causa da lei das afinidades que permite a combinação dos elementos químicos nas proporções corretas para a formação de produtos mais complexos, desde que verificadas as condições externas. 

16

Kardec reafirma a "imutabilidade das leis da Natureza". Portanto, para conhecer o que se passou há milhares de anos - nas questões da gênese material e orgânica - basta observar seu comportamento na atualidade. Esse é outro importante princípio que subjaz à lógica científica moderna. 

Portanto, conclui Kardec, a formação dos seres vivos, assim como dos minerais, seguiu essas leis imutáveis sob condições específicas que se tornaram ativas à medida que a geologia e o clima da Terra se modificaram. "Miraculosamente" essa modificação nas condições foi para intensificar a combinação entre as substâncias e, portanto, a formação dos seres que delas dependiam direta ou indiretamente. 

Por fim, Kardec compara a reprodução dos seres ao processo de cristalização dos minerais, o que indica que, operando com base nas mesmas leis, essa semelhança de "forma e de cores" pode ser explicada novamente pela presença de átomos ou moléculas a se combinarem em proporções específicas verificadas as "condições propícias".

Referências

8 de setembro de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - IX

Concepção artística da Terra em "fase nova" vista desde a lua. De "Popular Science Monthly", Volume III, maio-outubro de 1873. [1]

Continuação do post anterior: Comentários sobre "Uranografia geral" de "A gênese" de A. Kardec - VIII.

Obra completa contendo todos os comentários e a conclusão.

Comentários sobre "A vida universal".

53

O autor se propõe a correlacionar o assunto tratado em "Uranografia Geral" com a imortalidade da alma. Tendo afirmado anteriormente a sucessão de mundos - que voltam a se formar a partir dos restos dos mundos anteriores - ele ressalta a ligação entre essa sucessão e a imortalidade da alma como consequência da perfeição Divina.

54

Considera isenta de dúvida a questão da existência de seres em outros mundos - pois "as obras de Deus foram criadas para o pensamento e a inteligência". Hoje podemos ler essa declaração como uma formulação do chamado "Princípio Antrópico" [2], ou seja, que o Universo existe dessa forma para que a vida e a consciência nele possam existir e se desenvolver. 

É relevante agora considerar se, além disso, esses seres estão ligados uns aos outros, tendo em vista que os mundos onde habitam estão certamente ligados de alguma forma. Há vínculos de natureza gravitacional entre os mundos, então, haveria influências equivalentes entre os seres?

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Tanto hoje como na época de A Gênese esses mundos distantes são quase sempre representados como "simples massas de matéria inerte e sem vida".  Como exemplo, consultemos o resultado de uma busca do Pinterest para "Chesley Bonestell", que foi um dos grandes ilustradores da "arte espacial" no Século XX. Quase todas as imagens (Fig. 1) representam mundos sem atmosfera, com superfícies secas e aparentemente estéreis como a lua.

Fig. 1 Resultado da busca de imagens associadas a "Chesley Bonestell" no Pinterest um dos grandes ilustradores em arte espacial no Século XX. Mundos alienígenas são quase sempre representados como corpos estéreis e sem vida.

Sobre isso, o autor qualifica:

Custa-lhe a pensar que não haja, nessas regiões distantes, magnífcos crepúsculos e noites esplendorosas, sóis fecundos e dias transbordantes de luz, vales e montanhas, onde as produções múltiplas da natureza desenvolvam toda a sua luxuriante pompa. 
56

O autor toca em uma questão que receberia grande atenção do público apenas 80 anos mais tarde da publicação de A Gênese:

Uma mesma família humana foi criada na universalidade dos mundos e os laços de uma fraternidade que ainda não sabeis apreciar foram postos a esses mundos. Se os astros que se harmonizam em seus vastos sistemas são habitados por inteligências, não o são por seres desconhecidos uns dos outros, mas, ao contrário, por seres que trazem marcado na fronte o mesmo destino, que se hão de encontrar  temporariamente segundo suas funções de vida e suas mútuas simpatias. É a grande família dos espíritos que povoam as terras celestes; é a grande irradiação do espírito divino que abrange a extensão dos céus e que permanece como tipo primitivo e final da perfeição espiritual. (destaque do autor)

Trata-se da questão da existência de seres extraterrestres ou alienígenas

O que seriam eles? O autor se adianta muito para sua época e declara que eles são seres harmonizados entre si - dentro do concerto grandioso da vida universal - formando uma "grande família de espíritos".  Considera ainda que eles se encontrarão conforme suas "funções de vida e múltiplas simpatias". Tais afirmações eram completamente estranhas às concepções antigas e religiosas, embora hoje elas façam muito mais sentido. 

De fato, para quem considera seriamente a sobrevivência e a existência de outros seres vivos nos diversos mundos do Universo, são as mesmas as leis que regulam a encarnação. Portanto, a natureza dos Espíritos deve ser a mesma (dai seus laços de fraternidade). Isso é assim ainda que seus corpos, estágios evolutivos e aparências sejam muito diferentes, posto que obedecem a diferentes condições de habitabilidade e se encontram em diferentes graus de progresso.

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Faz-se aqui uma referência às doutrinas religiosas que negavam (e ainda o fazem) a possibilidade de vida extraterrestre, considerando que o homem na Terra é o único destinado à salvação. Por isso "negaram à imortalidade as vastas regiões do éter", ou seja, negam às almas salvas o acesso ao resto do Universo,  já que o destino de parte delas é um céu que nada tem a ver com esse mesmo Universo. 

Quanto ao resto, vão para o inferno que também nenhuma relação guarda com as magnificências relevadas pela Astronomia.

Comentários sobre "Diversidade dos mundos".

58

Parágrafo que sumariza um retrospecto. Tendo se dedicado a realizar um "excursão celeste", onde os inúmeros detalhes de recentes descobertas da Astronomia puderam assombrar o espírito antigo e revelar um destino completamente novo à alma, resta a obrigação de uma conclusão.

59

O autor se propõe a fazer uma interpretação "moral" da grandiosidade do Universo e da pequenez da vida humana diante dele. Se somos minúsculos diante desse Universo, o que significaria isso além das diferenças de escala? Não é que nada somos desde esse ponto de vista moral, mas que ainda temos muito a progredir.

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Carentes de ilustrações ou provas tangíveis da realidade em outros mundos, quase sempre projetamos neles o que temos aqui na Terra. Por isso, o autor faz uso de uma comparação:

Lançai por um instante o olhar sobre uma região qualquer do vosso globo e sobre uma das produções da vossa natureza. não reconhecereis aí o cunho de uma variedade infinita e a prova de uma atividade sem par? não vedes na asa de um passarinho das canárias, na pétala de um botão de rosa entreaberto a prestigiosa fecundidade dessa bela natureza?

Portanto, da mesma forma como se vê variedade assombrosa de arranjos e estruturas na vida na superfície de um planeta que traz em si condições uniformes de habitabilidade, devemos esperar enormes variedades de formas de vida nos diversos mundos habitados para os quais essas condições variam de múltiplas formas. Segundo o autor, a "natureza onipotente age conforme os lugares, os tempos e as circunstâncias; ela é una em sua harmonia geral, mas múltipla em suas produções". 

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Desta forma, o autor finaliza seu estudo com uma importante exortação:

Não vejais, pois, em torno de cada um dos sóis do espaço, apenas sistemas planetários semelhantes ao vosso sistema planetário; não vejais, nesses planetas desconhecidos, apenas os três reinos que se estadeiam ao vosso derredor. Pensai, ao contrário, que, assim como nenhum rosto de homem se assemelha a outro rosto em todo o gênero humano, também uma portentosa diversidade, inimaginável, se acha espalhada pelas moradas eternas que vogam no seio dos espaços. (grifo nosso)

Outros reinos existem nesses mundos - a referência aos "três reinos" implica naqueles então conhecidos: mineral, vegetal e animal - reinos que podem inclusive estar completamente fora de nossa capacidade de percepção.

Por isso, não devemos concluir que as "milhões e milhões de terras que rolam pela amplidão sejam semelhantes" à Terra. Essas diferenças se mostram, de certa forma, na maneira como exoplanetas recentemente descobertos se dispõem ao redor das estrelas. Há uma variedade imensa de dimensões, tipos de órbita, prováveis temperaturas e composições químicas. 

Tais descobertas recentes da astronomia aprofundaram ainda mais o fosso que existe entre as antigas concepções do mundo (centradas no homem como única criação inteligente de Deus) e uma nova concepção que torna o homem parte desse Universo imenso. 

Ele sempre viverá graças a alguns parcos recursos distribuídos em equilíbrio restrito ao redor de uma estrela sem importância, e a peregrinar por tempo indeterminado junto a seus irmãos de outros mundos, alguns inferiores e outros superiores, mundos que muito embelezam as inumeráveis estrelas a iluminar o firmamento de seu mundo insignificante.

No próximo post: nossa conclusão.

Referências

[1] https://archive.org/details/popularsciencemo03newy/

[2] Comitti, V. S. (2011). Princípio antrópico cosmológico. Revista Brasileira de Ensino de Física, 33. https://www.scielo.br/j/rbef/a/3K3fKStqHd5zmbdyW9H6QPD/?lang=pt  

5 de agosto de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - VIII

O "grande glomerado do sul" conforme ilustração de 1848. Fonte: "Mundos planetários e estelares: um exposição popular das grandes descobertas e teorias da moderna astronomia"  [1].

Continuação do post anterior: Comentários sobre "Uranografia geral" de "A gênese" de A. Kardec - VII.

Obra completa contendo todos os comentários e a conclusão.

Comentário sobre "Os desertos do espaço"

45

Relembra-se o espaço aparentemente vazio que existe entre as estrelas e entre os "aglomerados de estrelas", entendidos como associações estelares reunidas pela força da gravidade. Como vimos, na época de "A Gênese" a ideia de "galáxia" ainda não existia. Assim, o autor de "Uranografia Geral" não só defendeu a ideia de que o sol faz parte de um imenso aglomerado, mas também que há outros aglomerados no Universo, que ele denomina "ilhas estelares". O que existiria entre esses?

Inimaginável deserto, sem limites, se estende para lá da aglomeração de estrelas...

A solidões sucedem solidões e incomensuráveis planícies do vácuo se distendem pela amplidão afora.

...essas solidões mudas e baldas de toda aparência de vida...

Hoje se sabe que a nossa Via-Láctea tem um diâmetro de 100 mil anos luz, enquanto que a distância média entre as estrelas na galáxia varia enormemente conforme a posição da estrela na galáxia. Por exemplo, próximo ao núcleo das galáxias, a distância média é da ordem de frações de anos luz, enquanto que mais próximo da borda essa distância chega a dezenas de anos luz. Isso significa que a razão do diâmetro da galáxia para essa distância média varia várias ordens de magnitude.

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Esse "deserto celeste" é afirmado como fazendo parte da "trama da criação". De fato, como podemos nós hoje afirmar que ele é absolutamente vazio? Preenchido por substância de densidade sutilíssima, esse vácuo que separa as ilhas estelares é o substrato de uma substância capaz de criar qualquer coisa - inclusive a matéria. Seria ele uma enorme reserva potencial de energia, validando a "visão e o poder infinito do Altíssimo", conforme descrito.

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Sucedem-se lá os agregados longínquos de substância cósmica, que o profundo olhar do telescópio percebe através das regiões transparentes do nosso céu e a que dais o nome de nebulosas irresolúveis, as quais vos parecem ligeiras nuvens de poeira branca, perdidas num ponto desconhecido do espaço etéreo.

A descrição das ilhas estelares é contextualizada pelo autor ao descrever as chamadas "nebulosas irresolúveis" que foi também alvo de um comentário de A. Kardec: 

Dá-se, em Astronomia, o nome de nebulosas irresolúveis àquelas em que ainda se não puderam distinguir as estrelas que as compõem. Foram, a princípio, consideradas acervos de matéria cósmica em vias de condensação para formar mundos; hoje, porém, geralmente se entende que essa aparência é devida ao afastamento e que, com instrumentos bastante poderosos, todas seriam resolúveis.

Kardec se refere aqui às "nebulosas espirais" que,  como já vimos, foram tomadas inicialmente como provas da teoria de Laplace. Seu aspecto lenticular lembrava os vórtices postulados como origem para sistemas planetários. Pelo fato de não serem facilmente decompostas em estrelas menores, muitos astrônomos antigos nunca chegaram a considerá-las outros "universos ilhas". Algumas das conclusões de Kardec (feita no comentário à seção 47, ver Fig. 2) somente devem ser revisadas para cima: de fato, o número de estrelas em nossa galáxia é da ordem de centenas de bilhões e não "30 milhões de estrelas", o que eleva consideravelmente o número de mundos habitados e torna ainda mais assombrosa a "insignificância" da Terra no Universo.

Fig.1 - Ilustração de diversos tipos de nebulosas: Em (a) vemos uma galáxia espiral típica que se apresentava como "nebulosa lenticular" aos astrônomos do século 19. Sem resolução suficiente, era considerada na verdade uma nebulosa de formação planetária ou prova da teoria de Laplace. Com o desenvolvimento das técnicas de medida de distância (apenas na década de 1920), provou-se definitivamente que eram outros "universos ilhas" ou "galáxias" na acepção moderna. Em (b) temos a imagem de uma nebulosa planetária, verdadeiramente "irresolúvel" já que é formada por gás da explosão de uma estrela. A nebulosa de Órion (b') é outro exemplo de nebulosa irresolúvel. Tais nebulosas formadas de gás são muito menores que a galáxia que as abriga. Em (c) é ilustrado o aspecto de um aglomerado globular a vista desarmada. Ao se usar um telescópio, sua verdadeira constituição é revelada (c') como composta de milhares de estrelas - é uma nebulosa resolúvel. Tais objetos são muito menores que a galáxia, de forma que separar cada um desses objetos em classes distintas foi um grande desfio na astronomia.  

O aspecto nebuloso dessas formações celestes depende, de fato, do "poder de resolução" do instrumento óptico usado para observá-las. A vista desarmada muitos aglomerados estelares nada mais parecem do que meras manchas ou nuvens luminosas (Fig. 1). Ao se utilizar um telescópio mais potente, esses aglomerados se desfazem em milhares de estrelas. A descrição apresentada por Kardec corresponde, de fato, à opinião de um dos mais ilustres astrônomos europeus do Séc 18, que foi Sir W. Herschel, conforme descreve H. Curtis [2]:

A história das descobertas científicas oferece muitos exemplos quando homens, com algum estranho dom de intuição, olharam para a frente a partir de dados escassos, e vislumbraram ou adivinharam verdades que foram totalmente verificadas após décadas ou séculos somente. Herschel foi um gênio muito afortunado. Do próprio movimentos de muito poucas estrelas, ele determinou a direção do movimento do sol quase com a mesma precisão que as investigações mais modernas, devido a uma feliz seleção de estrelas para esse propósito. Ele notou que os aglomerados de estrelas que aparecem nebulosos em textura em telescópios menores e com menor potência são resolvidos em estrelas com instrumentos maiores e mais poderosos. A partir disso, argumentou que todas as nebulosas poderiam ser resolvidas em estrelas pela aplicação de ampliação suficiente, e que as nebulosas eram, de fato, unidades separadas, uma teoria que havia sido sugerida anteriormente de forma puramente hipotética por Wright, Lambert e Kant. A partir de sua aparência no telescópio, ele, novamente com presciência quase sobrenatural, excluiu algumas poucas nebulosas definitivamente como gasosas e irresolúveis.

O autor de "Uranografia Geral" corretamente identificou as verdadeiras "nebulosas irresolúveis" como "os agregados longínquos de substância cósmica" já identificado por ele como responsáveis pela criação da vida. 

De forma distinta, para ele os outros aglomerados estelares (as galáxias) são onde "se revelam e desdobram novos mundos, cujas condições variadas e diversas das que são peculiares ao vosso globo lhes dão uma vida que as vossas concepções não podem imaginar". 

Essas declarações podem ser vistas como audaciosas no contexto das dificuldades na época de A Gênese, quando não se fazia qualquer ideia das distâncias envolvidas e, portanto, da real dimensão que esses diversos objetos tinham (Fig. 1).

Comentário sobre "Eterna sucessão dos mundos"

48 

Recapitula-se como introdução ao tema a ideia de uma lei universal única, "primordial e geral", que "assegura eternamente" a estabilidade do Universo. Reafirma-se a harmonia do Universo como consequência dessa lei.

49

Ressalta-se que a mesma lei que preside á formação dos mundos, pela agregação da matéria cósmica disseminada no espaço, também resulta na sua destruição: 

Se é exato dizer-se, em sentido literal, que a vida só é acessível à foice da morte, não menos exato é dizer-se que para a substância é de toda necessidade sofrer as transformações inerentes à sua constituição.

O termo "substância" aqui deve ser entendido como as entidades mais fundamentais que existem no Universo. Por exemplo, a matéria e o espírito. Ambos estão sujeitos à vida e a morte como disfarces da lei de transformação. Portanto, nascimento e morte de mundos no espaço são estágios de uma transformação incessante levada a cabo pela ação da lei universal sobre o princípio material.

50

Como entender o destino dos astros cadaverizados? Se na Terra, o corpo que morre retorna ao solo para reintegrar-se aos elementos e dar vida à novas formas de existência, como entender o destino dos astros que não mais cumprem a missão de abrigar a vida? É isso o que o autor pretende discutir quando pergunta:

Ora, dar-se-á que essa terra extinta e sem vida vai continuar a gravitar nos espaços celestes, sem uma finalidade, e passar como cinza inútil pelo turbilhão dos céus? Dar-se-á permaneça inscrita no livro da vida universal, quando já se tornou letra morta e vazia de sentido?

A própria questão da "morte das estrelas" era de difícil abordagem no Século 19, visto que não havia ainda uma teoria que explicasse a evolução estelar, pois nem mesmo se sabia como brilhavam as estrelas. Portanto, de novo, o autor de "Uranografia Geral" se adianta para sua época. E a resposta está na mesma lei universal. Através dos bilhões e bilhões de anos, a matéria residual de planetas e estrelas "falecidas" torna a se agregar e compor novas nebulosas. Essas reciclam o material antigo para criar novas estrelas e planetas.  Entretanto, tal ideia era de difícil comprovação pela evidência. 

Modernamente se sabe que as estrelas e planetas atuais foram formados a partir dos resíduos reciclados de primitivas estrelas que existiram no universo primordial [3]. Não sabemos que mundos já teriam existido muito antes dos planetas de hoje. Mas, há evidências de que a matéria que compõe os nossos corpos já esteve presente em antiquíssimas estrelas. Foi o que quis dizer o cientista e distinto divulgador de ciência Carl Sagan com a frase "We are made of star stuff" (somos feitos de matéria estelar). Precisamente a mesma coisa diz o autor de "Uranografia Geral", mas com relação aos astros presentes:

Esses elementos vão retornar à massa comum do éter, para se assimilarem a outros corpos, ou para regenerarem outros sóis. E a morte não será um acontecimento inútil, nem para a terra que consideramos, nem para suas irmãs. Noutras regiões, ela renovará outras criações de natureza diferente e, lá onde os sistemas de mundos se desvaneceram, em breve renascerá outro jardim de flores mais brilhantes e mais perfumadas.
Fig. 2 Imagem de campo ultra profundo do telescópio Hubble (Wikipedia). Cada ponto é uma galáxia ou "universo ilha" (há apenas uma estrela na imagem). Isso nos faz lembrar a descrição de Kardec: "Transportando-nos pelo pensamento às regiões do espaço além do arquipélago da nossa nebulosa, veremos em torno de nós milhões de arquipélagos semelhantes e de formas diversas, contendo cada um milhões de sóis e centenas de milhões de mundos habitados", conforme se lê no comentário à seção 47. Trata-se de uma descrição bastante audaciosa para a época, mas que se revelou muito precisa como demonstra esta imagem. 

51 

Descreve-se a aparência presente do Universo diante do fato de que a luz leva certo intervalo de tempo (que pode ser considerável) para atravessar as distâncias "inimagináveis" entre as estrelas. Isso significa que muitos dos sistemas estelares que acreditamos ver podem, na realidade, já não mais existir: 

Onde os vossos olhos admiram esplêndidas estrelas na abóbada da noite, onde o vosso espírito contempla irradiações magníficas que resplandecem nos espaços distantes, de há muito o dedo da morte extinguiu esses esplendores, de há muito o vazio sucedeu a esses deslumbramentos e já recebem mesmo novas criações ainda desconhecidas.

As criações novas são "desconhecidas" porque ainda não se tornaram visíveis as mudanças carregadas pela propagação dos sinais luminosos gerados nessas criações. Essa observação é reforçada por Kardec por meio de um comentário. Portanto, o autor conclui que os seis mil anos de nossa história conhecida nada são diante dos intervalos de tempo (que hoje sabemos chegam a bilhões de anos) que a luz leva para atualizar o aspecto do Universo observável localmente. Isso representa uma severa limitação ao que podemos conhecer presentemente no Universo: quanto mais distante contemplamos, mais antiga e, portanto, desatualizada, será sua imagem para nós. 

52

O autor conclui pela insignificância do homem e de seu planeta diante da enormidade do espaço e das criações no Universo. Também conclui que, ainda que o pensamento se esforce para entender essas construções do espaço, tal esforço apenas pode abarcar uma parte muito pequena do que é visível, dada nossa pequenez e nossas limitadas percepções. Como consequência da lei de evolução, apenas quando "houvermos habitado esses diversos degraus da nossa hierarquia cosmológica" é que seremos capazes de realmente compreender a "sucessão ilimitada de mundos" e a perspectiva da "eternidade imóvel". 

Referência

[1]  O. M. Mitchel (1848). "The planetary and stellar worlds: a popular exposition of the great discoveries and theories of modern astronomy. New York, Baker & Scribner.

[2] Curtis, H. D. (1920). Modern theories of the spiral nebulae. Journal of the Royal Astronomical Society of Canada, 14, 317.

[3] Frebel, A., Aoki, W., Christlieb, N., Ando, H., Asplund, M., Barklem, P. S., ... & Yoshii, Y. (2005). Nucleosynthetic signatures of the first stars. Nature, 434(7035), 871-873.