Frasco do experimento de Pasteur. Imagem colhida em [1]. |
Formam-se, nos tempos atuais, seres orgânicos pela simples reunião dos elementos que os constituem, sem germens, previamente produzidos pelo modo ordinário de geração, ou, por outra, sem pais nem mães?
E o debate também continua, ao lado dos que são a favor da abiogênese ou da "biologia sintética" [1] podemos encontrar seus opositores [3]. Como a comunidade acadêmica se apoia em princípios mecanísticos, a abiogênese é a crença dominante. De qualquer forma, o problema da origem da vida, já transparecia a Kardec pois, neste parágrafo, ele declara:
Esta maneira de entender deixa sempre em aberto a questão da formação dos primeiros tipos de cada espécie.
Referia-se ele ao debate de sua época, sobre se a Natureza ainda produziria (obviamente na Terra) seres de forma espontânea.
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Demonstrando estar bem informado sobre o debate científico de sua época, Kardec pondera corretamente que a geração espontânea somente poderia ocorrer em seres "rudimentares", ou seja, organismos compostos de poucas ou apenas uma célula. Ele reafirma o caráter "espontâneo" do aparecimento da vida em sua origem e separa o problema em dois, deixando claro a querela entre biologistas de seu tempo sobre se ainda essa criação estaria ocorrendo:
Foram esses, com efeito, os primeiros que apareceram na terra e cuja formação houve de ser espontânea. Assistiríamos assim a uma criação permanente, análoga à que se produziu nas primeiras idades do mundo.
Obviamente, a ponderação continua válida, se não nos limitarmos ao planeta Terra, mas à possibilidade de surgimento da vida em outros planetas. É um despropósito acreditar que a Terra, em todo o Universo com trilhões e trilhões de planetas, seja o único que tenha apresentado as condições de gerar vida.
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Em paralelo à possibilidade de geração espontânea em organismos unicelulares, por que ela não ocorreria com seres mais complexos? Essa questão era um obstáculo claro à ideia da geração espontânea. Por isso, seria "imprudente e prematuro apresentar meros sistemas como verdades absolutas".
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Neste parágrafo temos uma curiosa afirmação de Kardec:
Se a geração espontânea é fato demonstrado, por muito limitado que seja, não deixa de constituir um fato capital, um marco de natureza a indicar o caminho para novas observações.
Como assim que a geração espontânea seria "fato demonstrado"? Infelizmente, não era costume nos textos do Século XIX apresentar mais citações que embasassem o que se afirmava. Por isso, no presente, poderemos tão só especular sobre quais teriam sido as fontes usadas, nesse caso por Kardec, para sustentar essa afirmação. Isso nos leva a uma revisão histórica do debate sobre a geração espontânea.
Breve revisão da história do debate da geração espontânea no Século XIX.
Para isso, usamos pesquisas recentes sobre o tema. Uma delas é o excelente estudo de Lilian Al-Chueyr P. Martins (2009, [4]) sobre equívocos na maneira como a história do debate sobre a geração espontânea é apresentada hoje em dia.
Félix Archimède Pouchet (1800-1876), imagem segundo [4], realizou experimentos cuidadosos em 1856 que pareciam demonstrar a geração espontânea. |
Ficamos sabendo, por exemplo, das pesquisas realizadas por Félix Archimède Pouchet (1800-1876), diretor do Museu de História Natural de Rouen, que realizou diversas demonstrações cuidadosas e bastante favoráveis à geração espontânea em 1856. Por serem bem feitos, os experimentos de Pouchet provocaram forte impressão na Academia de Ciências de Paris. Estaria Kardec se referindo, na passagem citada acima, aos experimentos de Pouchet?
Segundo [4]:
Depois de três anos de pesquisas, Pouchet publicou um livro sobre o assunto, denominado "Hétérogénie ou traité de la génération spontanée". Essa obra tem um longo histórico da questão (quase 100 páginas), seguido por uma discussão filosófica sobre o tema. Depois discute a questão da origem da vida na Terra, defendendo que os primeiros organismos se formaram espontaneamente – mas esclarecendo que isso não era uma concepção anti-religiosa. Por fim, o livro apresenta um grande número de experimentos nos quais parecia estar ocorrendo geração espontânea de microorganismos.
Além disso, os experimentos de Pouchet foram confirmado por outros cientistas. Essas observações demonstram que o ambiente acadêmico sobre o assunto não se definiu facilmente como contrário à geração espontânea como descrevem livros textos educacionais modernos sobre o assunto [4]. O papel de Pasteur e sua participação no prêmio Alhumbert também é esclarecido em [4]:
Como a questão das gerações espontâneas trazia conseqüências não apenas científicas mas também de âmbito filosófico, religioso e até mesmo político, em janeiro de 1860 a Academia de Ciências de Paris ofereceu um prêmio no valor de 2.500 francos (o Prêmio Alhumbert) para o melhor trabalho sobre o assunto. Provavelmente foi a pesquisa de Pouchet que levou à criação desse prêmio.
O objetivo do prêmio era favorecer pesquisas contrárias à geração espontânea, tanto que, entre seus julgadores, todos eram oponentes da ideia. Seu apoiadores, no outro lado, sabendo das condições do prêmio, recusaram-se a participar dele. Tendo Pasteur adotado posição contrária à geração espontânea e sendo o únido participante, recebeu o prêmio em 1862, realizando um conjunto de experimentos que pareceram, para a Academia Francesa, demonstrar a impossibilidade de criação espontânea da vida.
A tese defendida em [4] é que os relatos históricos apresentados em muitos livros modernos é de uma história contada de trás para diante. Como hoje em dia sabemos da impossibilidade da geração espontânea na Terra, o relato é montado de forma a parecer que o experimento de Pasteur conferiu o último golpe à teoria, o que é falso. Isso permite compreender a afirmação apresentada logo no início do Parágrafo 23, se os trabalhos de Pouchet pareceram a Kardec como de maior impacto em sua época. Essa hipótese tem apoio em [4]:
É relevante mencionar que, na época, uma grande parte das pessoas cultas acreditou que Pouchet estava correto e que a Academia havia cometido um erro. A Enciclopédia Larousse, por exemplo, considerava em 1865 que os heterogenistas haviam vencido a disputa. Portanto, a posição da Academia não levou a uma decisão sobre o assunto e continuaram a surgir trabalhos de pesquisa favoráveis à geração espontânea, tanto na França quanto em outros países, durante muito tempo. (grifos nossos)
Os "heterogenistas" eram os adeptos da teoria da geração espontânea. Os debates sobre o assunto continuaram até, pelo menos, 1900. Entretanto, livros didáticos modernos de Biologia dificilmente fazem referência a tais experimentos em apoio à geração espontânea que foram realizados depois do prêmio oficial de Pasteur.
Em suma, na época da publicação de A Gênese, as "pessoas cultas" na França consideravam que a geração espontânea havia sido demonstrada. No extremo oposto, Pasteur tinha ganhado um "prêmio de consolação" concedido por um torneio suspeito e esvaziado da Academia Francesa, que não foi suficiente para convencer a maioria. O debate sobre a geração espontânea, misturado ao ambiente de discussão política, talvez impedisse um visão mais clara do assunto. Por essa razão, Kardec finaliza o citado Parágrafo com a bela ponderação:
No estado atual dos nossos conhecimentos, não podemos estabelecer a teoria da geração espontânea permanente, senão como hipótese, mas como hipótese provável e que um dia, talvez, tome lugar entre as verdades científcas incontestes.
Muito provavelmente, a motivação dos cientistas favoráveis à geração espontânea na época de Kardec era resolver o problema da origem da vida. Demonstrado que a vida poderia surgir espontaneamente em qualquer lugar da Terra, ficava dissolvido o problema de decidir quando a vida ocorreu pela primeira vez. Como a questão se definiu pela impossibilidade da geração espontânea presente (sem impedir sua ocorrência em outros planetas), o problema da origem da vida permanece como um dos mais intricados embróglios científicos presentes.
Recomendamos também a leitura de "A geração espontânea e a Gênese" [5] de julho de 1868.
Referências
[1] Pasteur's "col de cygnet" (1859). British Society for Immunology. https://www.immunology.org/pasteurs-col-de-cygnet-1859
[2] Attwater, J., & Holliger, P. (2014). A synthetic approach to abiogenesis. nature methods, 11(5), 495-498. https://www.nature.com/articles/nmeth.2893
[3] Bergman, J. (2000). Why abiogenesis is impossible. Creation Research Society Quarterly, 36(4), 195-207. http://herbertarmstrong.org/Miscellaneous/Why%20Abiogenesis%20is%20Impossible.pdf
[4] Martins, L. A. C. P. (2009). Pasteur e a geração espontânea: uma história equivocada. Filosofia e História da Biologia, 4(1), 65-100. http://www.abfhib.org/FHB/FHB-04/FHB-v04-03.html
[5] Ver: https://www.ipeak.net/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=6191&&idioma=1
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