1 de julho de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - IV

Imagem da referência: Les merveilles de l'industrie ou, Description des principales industries modernes por Louis Figuier. - Paris : Furne, Jouvet, (1873-1877)

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - III". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

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A questão da origem dos compostos orgânicos é considerada neste parágrafo por Kardec. Essa indagação é relevante porque, nas diversas teorias sobre a vida que surgiram no Século XIX, havia os que achavam que apenas a Natureza poderia criar compostos orgânicos. A síntese em laboratório de compostos orgânicos foi um passo importante para se entender que, nos fundamentos que sustentam a vida, estão regras que se aplicam a qualquer tipo de matéria. 

De qualquer forma, era necessário explicar a origem dos compostos químicos desde a gênese da Terra. Estariam os materiais já disseminados ou eles teriam sido formados pelas inúmeras modificações ocorridas no planeta? De fato, considerando que, em sua origem, a Terra se encontrava aquecida com todos os elementos volatilizados:
no ar se encontravam, em estado gasoso, todas as substâncias primitivas. Precipitadas por efeito do resfriamento, essas substâncias, sob o império de circunstâncias favoráveis, se combinaram, segundo o grau de suas afinidades moleculares.
Dado esse princípio geral, é objeto da pesquisa científica presente determinar as rotas de síntese que percorreram séculos desde a gênese e que explicam as presente constituição química dos materiais encontrados de forma natural no planeta. 

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O desenvolvimento científico não ocorre de forma independente nos diversos ramos de especialização. Uma determinada área pode contribuir substancialmente com o desenvolvimento de outra. Foi assim que a química se tornou fundamental para o avanço da geologia, da mesma forma como essa última com a astronomia contribuíram para compreender a gênese.

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Um exemplo da importância do conhecimento das leis que regem a relação entre átomos e moléculas é no fenômeno da cristalização, apresentado por Kardec neste parágrafo. Um cristal é um sólido regular formado por átomos, íons ou moléculas que se arranjam conforme uma configuração geométrica que se repete. Para ilustrar que a formação desses "corpos sólidos" é regido por leis específicas, Kardec aqui cita alguns exemplos. O açúcar candi (C12H22O11) forma cristais cúbicos que exigem de 5 a 15 dias para formação em uma solução resfriada e saturada de açúcar. A sílica forma cristais de seis faces. O diamante é formado de carbono que forma uma estrutura cúbica. Finalmente, o exemplo dos cristais de gelo e sua estrutura hexagonal é também citado como um fenômeno popularmente conhecido. 
  
Fig. 1 As 7 formas geométricas dos cristais. Algumas delas são citadas no Parágrafo 11 como estruturas regulares de corpos minerais que surgem na Natureza. Fonte: [1]

A forma dos cristais pode ser organizada em 7 classes como mostradas na Fig. 1. Nessa figura também são fornecidos outros exemplos. A organização muito regular dos cristais é explicada assim:
A disposição regular dos cristais corresponde à forma particular das moléculas de cada corpo. Essas partículas, para nós infinitamente pequenas, mas que não deixam por isso de ocupar um certo espaço, solicitadas umas para as outras pela atração molecular, se arrumam e justapõem segundo o exigem suas formas, de maneira a tomar cada uma o seu lugar em torno do núcleo ou primeiro centro de atração e a constituir um conjunto simétrico.
Modernamente a disposição regular é conhecida como resultado da maneira como se arranjam as ligações químicas entre as moléculas, átomos ou íons que formam cada substância. Para que seja possível o arranjo simétrico e a repetição da estrutura por milhares de distâncias na escala atômica, condições especiais devem existir. No caso da formação dos cristais de açúcar, por exemplo, o meio aquoso não pode estar aquecido. A redução da temperatura justamente corresponde à redução da agitação entre as moléculas, o que permite a elas encontrar um ponto de menor energia para a formação do cristal. Essa descrição em termos de "minimização de energia" ainda não era conhecida na época em que "A Gênese" foi publicada. 

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Como resultado da descoberta da grande unidade de princípios que governam as leis naturais, as mesmas regras que organizam minerais também imperam sobre a formação dos corpos orgânicos. Isso mostrará que,  do ponto de vista do elemento material, não há diferenças entre seres vivos e minerais. Neste parágrafo, Kardec explica que a química já demonstrou serem os corpos orgânicos formados majoritariamente por quatro elementos químicos principais:
  • Carbono
  • Nitrogênio
  • Oxigênio
  • Hidrogênio
e que outros elementos "entram acessoriamente". Igualmente relevante é o fato de que a enorme variedade e diversidade de aparências e comportamentos das substâncias orgânicas ser explicado pela química como resultado das diferentes proporções como cada um dos quatro elementos principais (e seus acessórios) entram em cada substância. Tanto assim que Kardec inclui uma tabela contendo uma análise química da época das proporções de cada elemento em diversas substâncias. No caso, o "açúcar de cana" (que contém um teor de sacarose maior), a proporção da tabela é: 42,47% de C, 6,9%  de H, 50,63% de N. 

Conforme já citado acima, a fórmula química do açúcar é C12H22O11. Hoje sabemos que a massa atômica do C é de 12u (unidades atômicas), a do H é 1u e a do O é 16u. Portanto, em termos de unidades de massa atômica, o açúcar (puro) teria o equivalente a 342u. Cada elemento de sua composição entraria nas seguintes razões:
  • C: 12 x 12u ou 144u: razão de 144/342 = 42,1%,
  • H: 22 x 1u ou 22u: razão de 22/342 = 6,4%,
  • O: 11 x 16u ou 176u, razão de 176/342 =  51,4%
o que corresponde aproximadamente aos valores que constam para o açúcar da cana na tabela de "A Gênese". Portanto, a tabela mostra a "proporção de massa" de cada elemento nas diversas substâncias citadas. 

Fig.2 "Forma" da molécula da fibrina (segundo 2), substância citada por Kardec na Tabela que acompanha o parágrafo em estudo. 
Um exercício (de química e álgebra) que deixamos para o leitor é encontrar as quantidades em unidades atômicas de cada elemento da quadrupla (C, N, O, H) para a fibrina usando as proporções de massa dadas na tabela. Depois disso, ele pode comparar seu resultado com a fórmula mais contemporânea para a Glicil-N-Metilglicinamida [2] (Fig. 2) que é um outro nome pelo qual  fibrina é conhecida hoje em dia.

Um princípio geral que deve ser lembrado aqui é expresso na parte final do parágrafo:
Assim, na formação dos animais e das plantas, nenhum corpo especial entra que igualmente não se encontre no reino mineral.
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Esse princípio tem importância fundamental para explicar como surgem as inúmeros "tecidos orgânicos" na Natureza e como podem eles ser tão diversos em aparência. Um exemplo de reação química citada por Kardec para explicar a criação de compostos orgânicos muito específicos a partir de ingredientes bastante diferentes do produto  final é a reação de fermentação ("no suco de uva, não há vinho, nem álcool, mas apenas água e açúcar"). Em sua forma mais simplificada [3], essa reação pode ser escrita como:

C6H12O6 → 2 C2H5OH + 2 CO2

que expressa a conversão de um mol de açúcar em dois moles de etanol e dióximo de carbono. Essa reação não ocorre de forma simples, mas é resultado de uma cadeia de reações em que entram outros compostos chamados "enzimas" (e que também fazem parte das "condições necessárias" segundo Kardec). 

Kardec também se refere (sem citar referências) às concepções pueris antigas que acreditavam preexistir em cada material orgânico "animálculos" (sob "microscópica forma") responsáveis pela  aparência e função completa do ser no futuro. Essas teorias foram conhecidas como "preformacionistas" (final do Século XVII) das quais a chamada "tese do homúnculo" (Fig. 3) pretendia explicar o ser humano como resultado do crescimento de um ser preexistente e plenamente formado em sua "semente" ou sêmen.
Fig. 3 O homúnculo de Hartsoeker. Fonte [4]
Ao contrário,  Kardec enfatiza que, no crescimento dos vegetais:
Esse gérmen se desenvolve por efeito dos sucos que haure da terra e dos gases que aspira do ar.
Disso segue que toda a matéria que compõe os seres vivos foi acumulada a partir de elementos externos do meio em que ele vive e transformada por reações químicas em um "trabalho íntimo" que ocorre no interior de cada ser.  Conforme [5], o preformacionismo somente foi descartado no final do Século XIX com o desenvolvimento da teoria da célula, o que nos leva a concluir que Kardec estava aqui bem informado sobre os progressos científicos de sua época a ponto de defender, em "A Gênese", as ideias mais avançadas. 

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Resume-se o que foi anteriormente afirmado e enfatiza-se o papel das "condições propícias", que hoje são conhecidas como as "condições do ambiente" a favorecer a formação não só de compostos orgânicos mas também dos seres vivos. Essas condições surgem por causa da lei das afinidades que permite a combinação dos elementos químicos nas proporções corretas para a formação de produtos mais complexos, desde que verificadas as condições externas. 

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Kardec reafirma a "imutabilidade das leis da Natureza". Portanto, para conhecer o que se passou há milhares de anos - nas questões da gênese material e orgânica - basta observar seu comportamento na atualidade. Esse é outro importante princípio que subjaz à lógica científica moderna. 

Portanto, conclui Kardec, a formação dos seres vivos, assim como dos minerais, seguiu essas leis imutáveis sob condições específicas que se tornaram ativas à medida que a geologia e o clima da Terra se modificaram. "Miraculosamente" essa modificação nas condições foi para intensificar a combinação entre as substâncias e, portanto, a formação dos seres que delas dependiam direta ou indiretamente. 

Por fim, Kardec compara a reprodução dos seres ao processo de cristalização dos minerais, o que indica que, operando com base nas mesmas leis, essa semelhança de "forma e de cores" pode ser explicada novamente pela presença de átomos ou moléculas a se combinarem em proporções específicas verificadas as "condições propícias".

Referências

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