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Pintura por Frederick S. Coburn (1871-1960). |
O psiquiatra francês Jules Cotard (1840–1889) foi o pioneiro na descrição dessa condição [2] a partir de um diagnóstico que, na época, estava associado à chamada "melancolia" (mais tarde rebatizado como "depressão"). Na época, ele descreveu um caso, o da "Senhorita X", que negava a existência de partes de seu corpo - um sintoma posteriormente denominado somatoparafrenia. Além disso, não via razão para se alimentar porque estava morta. Essa paciente acabou falecendo de inanição ao se submeter a uma dieta de restrição severa de alimentação.
A reportagem [1] retransmite uma opinião sobre a origem dessa doença que, essencialmente, teria causa meramente orgânica:
Lesões causadas por acidente vascular cerebral (AVC), traumatismo craniano, infecções como meningoencefalites e doenças neurodegenerativas, como Alzheimer, estão comumente relacionadas ao desencadeamento da síndrome, explica o neurologista Sergio Jordy, membro da American Academy of Neurology (AAN) e da European Academy of Neurology (EAN).
O que me chamou a atenção foi a rapidez com que condições físicas foram associadas à doença nessa reportagem. Isso leva o leitor a concluir que as causas já foram identificadas.
Por outro lado, quem já participou de sessões de desobsessão sabe que muitos médiuns descrevem sintomas semelhantes, frutos da presença de Espíritos que se identificam como tendo falecido, sem noção de tempo, de consciência, como não mais tendo certas partes do corpo etc.
Assim, empreendi uma busca mais detalhada na literatura sobre essa síndrome e encontrei informações que apontam para a complexidade desse estado psíquico e sua possível origem obsessiva.
Uma pequena busca na literatura especializada
Por "achados neurológicos" se entende um conjunto de evidências, encontradas em exames (p. ex., em EEG - eletroencefalogramas, IRM - Imageamento por ressonância magnética, TC - Tomografia computadorizada), que apontam para alterações perceptíveis na estrutura neurológica de um indivíduo. Esses achados podem ou não estar "associados" a uma doença, talvez a constituir uma causa provável para uma patologia mental.
No trabalho de Cipriani et al 2019 [3], os autores revisam alguns trabalhos anteriores sobre a síndrome e fazem uma associação com a demência. Pontos importantes: ela está associada a várias desordens (ver "Associated disorders"): estados psicóticos, depressão, esquizofrenia, desordens de personalidade, AVC (acidente vascular cerebral), demência etc. A incidência da síndrome entre pacientes psiquiátricos não é maior que 1% (ver Seção "Epidemiology"). Com relação à neurobiologia da síndrome (ver "Neurobiology of Cotard syndrome") os autores iniciam a seção declarando:
A neurobiologia da Síndrome de Cotard é controversa. Os achados não são consistentes e não têm utilidade diagnóstica ou prognóstica clara.
Essa seção também descreve as principais lesões observadas em alguns pacientes que apresentaram os sintomas.
Swamy et al (2007) [4] negam que se possa interpretar a suposta síndrome (não há consenso na literatura de que se trate de uma síndrome de fato) como oriunda univocamente de causas orgânicas. Para esses autores, existem diversas limitações nas abordagens que foram feitas: viés de linguagem, de publicação e de tamanho de amostra de casos que seria muito pequeno. Na minha opinião, a mais grave limitação é, certamente, o viés de publicação: a maioria dos casos reportados são de pacientes que tiveram exames demonstrando alterações neurológicas "físicas". Porém, segundo [4]:
É importante notar que nem todos os casos de síndrome de Cotard observados por psiquiatras em sua prática diária têm probabilidade de serem descritos e publicados. É mais provável que casos de síndrome de Cotard com achados neurológicos positivos sejam publicados. Portanto, as inferências e generalizações que podem ser extraídas de uma amostra amplamente distorcida (apenas os casos com achados neurológicos anormais) em relação aos correlatos neurológicos subjacentes da síndrome de Cotard em geral são limitadas. (grifo meu)
Esse é um problema sério, pois ele pode se aplicar não só à Síndrome de Cotard, mas a outras doenças psiquiátricas. Ao se publicar apenas casos que têm correlatos neurológicos demonstrados por exames, cria-se a impressão de que esses casos são naturalmente causados por tais alterações. Porém, a Tabela II de [4] demonstra uma grande quantidade de casos de Síndrome de Cotard em que não há nenhuma evidência de dano neuronal (exames de eletroencefalograma e CT normais, etc).
O trabalho [5] apresenta um estudo feito com 100 pacientes, que é considerado limitado por [6] por causa do viés de publicação. S. Dieges (2018) [6] indica a presença da síndrome em relatos de médicos antigos no Século 19 (antes de Cotard), como na obra de Etienne Esquirol (1772-1840) "Des maladies mentales: considérées sous les rapports médical, hygiénique et médico-legal" [7]. Ver, em especial, o capítulo sobre "Demonomania" (uma alteração mental que era atribuída aos "demônios" pelos próprios pacientes).
Esses casos vazios de alterações neurológicas são um desafio enorme para a psiquiatria e toda neurociência. Pois, como é possível haver pacientes sem nenhum tipo de alteração física e, ainda assim, com a presença de sintomas? Há duas possibilidades de explicação apenas: i) a ciência presente não consegue ainda identificar uma causa física por falha nos métodos de detecção ou ii) a causa profunda da sintomatologia da Síndrome de Cotard (e de outras doenças psiquiátricas) não é fisica. A existência de casos com achados neurológicos apenas estabelece uma correlação, mas não uma relação causal inequívoca.
Contribuição espírita
De acordo com o paradigma materialista, a consciência é um produto do cérebro. Logo, não há como escapar da conclusão de que deve existir ao menos uma alteração neurológica (neuroquímica, neuromórfica etc) como causa profunda para todas as doenças mentais. Assim, a existência de casos sintomáticos sem evidências de alteração física constitui uma anomalia para esse paradigma.
Do ponto de vista espírita, porém, é provável que os sintomas da Síndrome de Cotard sejam causados por uma "infestação psíquica": trata-se da afinidade entre o paciente e um Espírito desencarnado que faz com que o primeiro passe a experimentar as sensações mórbidas do segundo. Há uma sintonia, como no processo mediúnico, porém, o paciente "comunica" os sintomas típicos da entidade perturbada. Porém, é preciso reconhecer que o que faz com que o paciente seja atraído por esse tipo de consciência desencarnada pode ser ainda outra causa.
Sim, ela pode ter origem orgânica, o que explicaria os casos em que foi possível identificar correlatos neurológicos. Esses afetam o Espírito do paciente que se desequilibra e sintoniza com algum Espírito em condições de morbidez. Nesse sentido, as alterações não geram diretamente os sintomas. Aliás, sobre isso, nada impede que um indivíduo com uma doença mental fisicamente estabelecida não sofra de uma obsessão, que é responsável por alguns de seus sintomas conforme o estágio da doença.
Porém, esses sintomas podem surgir de um desequilíbrio intrínseco da alma do paciente, com origem claramente espiritual, inclusive por causa de outra obsessão. Esse desequilíbrio conduz ao mesmo estado de sintonia espiritual que faz manifestar os mesmos sintomas. Dessa forma, podemos prever que o afastamento do Espírito obsessor apenas aliviará ou eliminará os efeitos associados à morbidez típica da Síndrome de Cotard, o que também explica o seu caráter transitório, como descrito na literatura [6].
Referências
[1] Karol Oliveira. Cadáver ambulante: conheça a síndrome em que a pessoa acredita estar morta. https://www.metropoles.com/saude/cadaver-ambulante-sindrome-morta . Metrópoles(acesso em 2025)
[2] Wikipedia (2025). Cotard's syndrome. https://en.wikipedia.org/wiki/Cotard%27s_syndrome (acesso em 2025).
[3] CIPRIANI, Gabriele, et al. ‘I am dead’: Cotard syndrome and dementia. International journal of psychiatry in clinical practice, 2019, 23.2: 149-156. Link: https://www.academia.edu/download/95018853/13651501.2018.152924820221129-1-1vecjdh.pdf (acesso em 2025)
[4] SWAMY, N. C.; SANJU, George; MATHEW JAIMON, M. S. An overview of the neurological correlates of Cotard syndrome. The European journal of psychiatry, 2007, 21.2: 99-116. Link: https://scielo.isciii.es/pdf/ejpen/v21n2/original2.pdf (acesso em 2025)
[5] BERRIOS, German E.; LUQUE, Rogelio. Cotard's syndrome: analysis of 100 cases. Acta Psychiatrica Scandinavica, 1995, 91.3: 185-188. Link: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/pdf/10.1111/j.1600-0447.1995.tb09764.x (acesso em 2025)[6] DIEGUEZ, Sebastian. Cotard syndrome. Neurologic-Psychiatric Syndromes in Focus Part II-From Psychiatry to Neurology, 2018, 42: 23-34.
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