7 de fevereiro de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - II

Detalhe de "Remanescentes orgânicos restaurados" conforme a Penny Magazine de 1833. Extraído de uma digitalização do documento original em archive.org.

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - I". Estudo sobre o Cap. X de "A Gênese" de A. Kardec.

Formação primária dos seres vivos

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A "formação primária" é a própria criação original da vida. A "formação secundária" se dá pelo conhecido processo de reprodução, pelos quais as espécies se propagam. Neste parágrafo Kardec apresenta o problema do aparecimento da vida, visto que "tempo houve em que não existiam animais" [1]. O problema se apresenta porque não é certo que a origem primária tenha se dado pelo mesmo processo de reprodução a partir de um primeiro casal (a crença bíblica da criação por ato divino dos primeiros casais). No começo, não existiam as mesmas "condições necessárias à existência delas". Esse é, em termos simples, o problema científico da origem das espécies e da própria vida. Por fim, Kardec declara o status do problema em sua época:

A Ciência ainda não pode resolver o problema; pode entretanto, pelo menos, encaminhá-lo para a solução.

Passados mais de 150 anos dessa declaração e não obstante todo o avanço em diferentes áreas do conhecimento (bioquímica, genética, evolução etc), com relação à questão da origem da vida, a situação não se alterou como veremos numa sequência de posts. 

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Talvez por uma questão didática para os espíritas conhecedores das crenças cristãs, Kardec apresenta neste Parágrafo o problema da vida em termos do nascimento de: um "casal primitivo", em um certo e único lugar na Terra, ou de muitos casais em lugares diferentes. É uma referência ao antigo enclave entre a "poligenia" e a "monogenia", ou debate cristão sobre a criação de muitos ou apenas um único casal na origem dos tempos.

O fato é que, desde meados do Século XVIII já se sabia da existência de animais que podiam se reproduzir de forma assexuada, a partir de pesquisas feitas pelo cientista suíço Charles Bonnet (1720-1793), Figura 1. Esse é o fenômeno da partenogênese que Bonnet descobriu em pulgões. Posteriormente, também se descobriu que muitos outros animais podem se reproduzir sem sexo. A existência de reprodução assexuada é uma importante contraposição à crença bíblica da "criação de casais" (como inferido da arca de Noé em Geneses 7:2*) porque mostra que o sexo não é condição necessária para a reprodução das espécies. 

Fig. 1 Charles Bonnet (1720-1793), naturalista e filósofo suíço
que descobriu a reprodução assexuada.

Considerando a existência em larga escada da reprodução assexuada, também parece fazer sentido admitir que o sexo não nasceu junto com a vida, mas veio muito tempo depois, tal como fez Kardec em admitir a maior plausibilidade da poligenia - e isso com base em evidências científicas:
Com efeito, o estudo das camadas geológicas atesta, nos terrenos de idêntica formação, e emproporções enormes, a presença das mesmas espécies em pontos do globo muito afastados uns dos outros. Essa multiplicação tão generalizada e, de certo modo, contemporânea, fora  impossível com um único tipo primitivo.

Essa não seria apenas uma evidência da poligenia, mas também (como foi descoberto bem mais tarde) da chamada deriva dos continentes ou tectônica das placas continentais [2]. Kardec apresenta, porém, uma justificativa muito mais lógica para a criação poligênica que foi a chance muito maior que a vida teve em sobreviver em vários lugares da Terra do que teria tido em apenas um único ponto:

Doutro lado, a vida de um indivíduo, sobretudo de um indivíduo nascente, está sujeita a tantas vicissitudes, que toda uma criação poderia fcar comprometida, sem a pluralidade dos tipos, o que implicaria uma imprevidência inadmissível da parte do criador supremo.

3

Neste parágrafo Kardec estabelece uma base para a pesquisa da origem da vida, que é a química orgânica. O motivo, prossegue Kardec, é que os seres vivos são compostos por substâncias orgânicas. Portanto, antes de querer encontrar uma origem dos seres é necessário compreender a gênese dessas substâncias. Essa princípio foi validada posteriormente, quando se desobriu a "hélice da vida" e seus blocos constituintes na forma de cadeias de nucleotídeos [3], assim como todo o desenvolvimento da bioquímica. Depois, com o famoso experimento de Oparin [4] que será descrito neste blog mais adiante, foi possível traçar parte de uma rota para a síntese natural das bases da vida a partir de um ambiente primitivo possível da Terra depois de sua formação. O experimento de Oparin, entretanto, não resolveu o problema da "formação primária" dos seres vivos. 

Porém, como se pode perceber, a lógica de Kardec não é outra senão a própria lógica da ciência que não mudou desde sua época, não obstante o que a ciência específica diz ter mudado. Tendo as evidências científicas e a química orgânica como base, Kardec em "A Gênese" tece um relato em que a origem da vida será descrita em termos de uma nova fronteira do conhecimento. Essa fronteira avançou desde então, sem que seus fundamentos se modificassem. Esses aspectos imutáveis tornam possível entender "A Gênese" como um texto ainda atual, inobstante as atualizações que sofreram algumas teorias da vida defendidas pela ciência da época em que "A Gênese" foi publicada.

Notas

* "De todos os animais limpos tomarás para ti sete e sete, o macho e sua fêmea; mas dos animais que não são limpos, dois, o macho e sua fêmea." (Gênese 7:2)

Referências

[1] Kardec. "A Gênese. Os milagres e as predições segundo o Espiritismo". 34a Edição. FEB.Trad. de Guillon Ribeiro. (1991).
[2] Frankel, H. R. (2012). The continental drift controversy (Vol. 2). Cambridge University Press.
[3] Ver, por exemplo, o que a Wikipei descreve sobre o DNA: a https://en.wikipedia.org/wiki/DNA
[4] Tirard, S. (2010). Origin of life and definition of life, from Buffon to Oparin. Origins of life and evolution of biospheres, 40(2), 215-220.

2 comentários:

  1. Os dragões de Komodo são um dos animais que se reproduzem de forma assexuada.Isso foi comprovado por observações feitas por biólogos com os animais em cativeiro,as fêmeas punham os ovos já fecundados por que os óvulos fecundavam uns aos outros.
    Já participei de discussões onde o pessoal acreditava que Kardec defendia a famigerada "geração espontânea",quando na verdade ele estava considerando realmente o fenômeno da abiogênese,que mesmo assim é um termo meio que genérico, por que a questão realmente não foi solucionada,só há apenas teorias mais ou menos plausíveis.
    No Livro dos Espíritos,os espíritos explicaram a Kardec que havia sempre um "germe" primitivo,que agia no princípio do surgimento da vida.
    O termo "germe" também era usado meio que genericamente,na época, para determinar um agente ou princípio ativo de vida. Devido a isso os espíritos não podiam dizer mais nada,apenas dar pequenas dicas,ainda era preciso dar o mérito da busca e da descoberta à humanidade,coisa que foi feita décadas depois.

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    1. Ola Wanderson

      Esse é o objetivo dessa análise. Mostrar que muito além da geração espontânea, a questão sobre a origem da vida ainda não foi encerrada.

      Grato por seu comentário,

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