27 de outubro de 2011

Pragmática e intenção nas cartas psicografadas de Chico Xavier.

Psicografia em Italiano, F. C. Xavier.
Este post contém um artigo submetido à revista 'Reformador' da Federação Espírita Brasileira em 7/fev/2011 que teve publicação recusada em 8/set/2011.

De forma bastante simplificada, um processo de comunicação é um conjunto de etapas que leva uma mensagem de um emissor a um receptor. Esse é a imagem popular de um processo ou mecanismo de comunicação, e podemos denominá-la de modelos de ‘transferência de informação’. Entretanto, ela é severamente limitada, embora pareça dar conta do processo de comunicação na maioria dos casos, principalmente com sistemas eletrônicos ou meios outros meios de comunicação (exemplos vão desde sinais de fumaça, telégrafos até o telefone). Em tempos recentes, boa parte da pesquisa sobre o processo de comunicação é desenvolvida através de várias teorias linguísticas, embora outras áreas de pesquisa (como a semiótica) tenham como objeto de estudo a comunicação não baseada na linguagem dos seres humanos, inclusive desenvolvendo modelos para comunicação entre seres vivos (plantas, animais etc). Modernas teorias linguísticas buscam explicar aspectos do processo de comunicação que não podem ser explicados pelos modelos simples de transferência de informação. Um processo eficiente de comunicação não é aquele em que partes ou pedaços de informação são transferidos para o recipiente e este, por sua vez, vai montando um quadro ou interpretação que é proporcional à quantidade de mensagens transmitidas. Há vários níveis ‘hierárquicos’ de informação dentro de uma mensagem e, para se ter uma ideia limitada desses níveis, é suficiente considerar a linguagem escrita.

Um texto escrito de próprio punho por alguém (emissor) a um seu conhecido (receptor) é um exemplo rico para os vários níveis de sinais linguísticos que se interrelacionam dinamicamente formando uma mensagem que só pode ser convenientemente compreendida pelo receptor. O primeiro nível existente é o da morfologia, afinal, se a mensagem é enviada pelo emissor, ela contém sinais grafados que o identificam univocamente. Uma vez ‘transcrita’ a mensagem em um meio que é independente da morfologia, aparecem então tipos de sinais que revelam outros níveis hierárquicos: a sintaxe (ou, que diz respeito ao cumprimento de regras próprias do idioma em que a mensagem é grafada) e a semântica (ou, que diz respeito ao significado das palavras e frases contidas no texto). Se a relação entre o emissor e o receptor sempre se deu, por exemplo, utilizando a língua portuguesa, então é natural que a sintaxe obedecida será a do português. No que diz respeito à semântica, o significado das palavras e grupos de palavras formando frases inteiras pode ser feito tanto se respeitando a regra (o chamado léxico) comum ou não. É muito comum que, entre grupos privados, regras semânticas particulares sejam utilizadas. Nesse caso, qualquer análise externa que pretenda inferir um significado ao texto escrito sem o conhecimento de um léxico particular é severamente limitada. Se esse léxico não está disponível em parte alguma, não é possível codificar corretamente o significado do texto, por mais que nos esforcemos. Um exemplo comum de problemas desse tipo é a tentativa de grupos dogmáticos cristãos em interpretar literalmente passagens ou textos inteiros do Velho e do Novo Testamento.

Há, entretanto, um último nível na hierarquia de sinais de comunicação que está muitas vezes oculto na mensagem: o da pragmática. Além do sentido aparente dado pela semântica, a mensagem do emissor é gerada de forma tal que apenas o receptor está completamente capacitado para compreendê-la. Por exemplo, se meu amigo, morando na Austrália, escreve a mim (receptor) uma carta contando das inúmeras belezas naturais daquele continente, seu objetivo pode ser apenas remover meus receios presentes de fazer uma visita a ele. Afinal, apenas ele sabe que eu não tenho o menor interesse em visitá-lo. Qualquer outra pessoa, ao ler a mesma carta, vai pensar que meu amigo apenas está empolgado com as belezas naturais daquele país. Embora morfologia, sintaxe e semântica sejam visíveis para todos (ou seja, são níveis de conhecimento linguístico disponíveis publicamente), o nível pragmático não é. Em todo o processo de comunicação, competência pragmática deve existir por parte do emissor para que o processo seja realmente eficiente. Isso é possível porque uma comunicação verdadeira só ocorre entre emissor e receptor que compartilham crenças anteriormente adquiridas.

Em paralelo com a questão da pragmática nas mensagens, há ainda questões ligadas à finalidade ou objetivo do texto que denominamos de ‘intenção’. Afinal pode ser que, dentre os inúmeros objetivos do emissor com o texto, o menor deles é o de comunicar alguma coisa. Mensagens podem ter como objetivo provocar determinadas impressões no receptor. Um exemplo interessante é o do indivíduo que chega a um posto de gasolina com seu carro e um pneu furado. Ele então fala para o primeiro funcionário do posto: ‘o pneu furou’ e aponta para o problema. Essa mensagem não tem como objetivo dizer que o pneu foi avariado, mas fazer com que o receptor faça alguma coisa diante da necessidade de se trocar o pneu. Fala-se assim no problema da ‘subdeterminação da intenção comunicativa’, na presença de expressões ‘semanticamente mal definidas’ e nos ‘atos não comunicativos’ (Bach, 1979), todos eles representando aspectos privados do processo.

É um exercício interessante analisar e encontrar cada um dos níveis de hirarquia de sinais de comunicação nas cartas psicografadas por Chico Xavier. Cada um deles, morfologia, sintaxe, semântica, pragmática e intenção aparecem vividamente em diversas cartas, embora não extensivamente em todas ao mesmo tempo. Isso revela aspectos ocultos do processo de comunicação mediúnico que está de pleno acordo com a expectativa de interferência, e que ainda não são bem compreendidos. Ao contrário do que se pode pensar, a presença de interferência por parte do médium nas psicografias é uma evidência forte de processo de comunicação, uma vez que nenhum sistema de comunicação está imune a interferências. Existe interferência em cada um dos aspectos do processo, embora, para alguns deles, ela é menos extensiva. Quanto maior o nível considerado, menor a interferência por parte do médium. Reciprocamente, quanto maior esse nível tanto mais privada é a manifestação do nível (ver Figura abaixo).  

A pragmática e a intenção nas cartas estão diretamente ligadas a forte impressão causada aos parentes dos comunicantes que foram chamados a ‘decodificar’ o conteúdo, justamente pela presença de elementos que não estão publicamente disponíveis. É necessário reconhecer que, para que a estratégia do emissor tenha qualquer sucesso, um conjunto de crenças deve ser compartilhado entre o emissor e o receptor e que essas crenças não estão disponíveis antes (ou depois) do ato mediúnico. Se comunicar-se não é apenas ‘transportar’ informação, as cartas psicografadas por Chico Xavier (nosso exemplo mais notório) só podem ser explicadas se o médium teve ajuda explícita do emissor para escrever cada uma delas. O emissor (Espírito) é o agente que detém completamente a competência pragmática e a intenção, enquanto que o médium é o intermediário, interferindo ainda como fonte de ruído irredutível no processo que se manifesta nos níveis inferiores. Embora os aspectos mais superiores da pragmática e da intenção sejam os menos imunes à ação de ruído (interferência) pela mente do médium, são igualmente notáveis as comunicações ‘xenográficas’, ou escritas em uma sintaxe (e semântica) diferente da conhecida pelo médium, que demonstram que o Espírito tem o controle sobre níveis inferiores, além dos superiores. Esse é o melhor modelo para se explicar os fenômenos e os dados oriundos das cartas psicografadas. De acordo com esse modelo simplificado de comunicação, é compreensível também que o caráter ‘automático’ ou ‘mecânico’ da comunicação é tanto maior quanto mais completo deva ser o processo de comunicação nos vários níveis em que ele se manifesta. 

Nosso esforço aqui é parte de uma iniciativa que resultou em um pequeno texto sobre a aplicação das modernas teorias da linguagem e comunicação aos dados que se obtém das cartas psicografadas por Chico Xavier e que foi publicada na revista ‘Paranthropology’ (Xavier, 2010). Essa análise pode também ser aplicada a produções psicográficas de outros médiuns. Mais importante do que isso, ela revela que os aspectos justamente ‘não públicos’ são os mais importantes na caracterização e identificação do emissor. Não é possível explicar o conteúdo pragmático invocando-se aquisição de conhecimento por parte do médium ou mesmo simples emulação. Os detalhes pragmáticos e intencionais dependem de uma quantidade grande de conhecimento que é compartilhado historicamente entre o emissor (Espírito) e seus familiares (receptores) e que não estão disponíveis publicamente e que não se podem armazenar. Mesmo alguns aspectos públicos (como a semântica) dependem de conteúdo privado, principalmente quando o emissor intencionalmente faz uso de palavras com significado diferente do usual.

Esperamos que novas pesquisas sejam dirigidas ao estudo dos vários níveis que caracterizam uma comunicação mediúnica efetiva além de outros aspectos. Parte disso já tem acontecido, como um estudo recente sobre o papel das citações (Rocha, 2010) nos textos psicografados. Tais estudos descobriram textos desconhecidos de Humberto de Campos citados por ele em Espírito. Esse estudo não é apenas importante para caracterizar os vários níveis encontrados nas mensagens e, assim, responder a questionamentos céticos, mas também para formar uma imagem mais precisa do processo psicográfico em si. Em particular eles podem revelar detalhes sobre como se dá a interação entre a mente do médium e a do emissor a fim de que o processo de comunicação seja o mais transparente possível.

Referências
  • Arantes H. M. C & Xavier F. C. O conteúdo das cartas foi publicado em várias obras publicados pela Editora do Instituto de Difusão de Araras e GEEM (ver, por exemplo, Ramacciotti C. & Xavier F. C. (1975), Jovens no Além).
  • Bach K. & Harnish R. M. (1979), Linguistic communication and speech acts, Cambridge Mass: MIT Press.
  • Grumbach C., Gentile L. A. & Pelele P. P. (2010), As cartas psicografadas de Chico Xavier, Crisis Produtivas and Ciclorama Filmes.
  • Rocha, A. C. (2010). Uma estratégia para a construção autoral na psicografia: as citações. A Temática Espírita na Pesquisa Contemporânea, textos selecionados. Editado por CCDPE-ECM. 
  • Xavier A. (2010). ‘Pragmatic and intention in automatic writtings: the Chico Xavier case’, Paranthropology, vol II, Numero 1, p 47-51. Disponível publicamente em http://paranthropology.weebly.com/
Ver também: Cartas psicografadas neste blog em 3 partes.



22 de outubro de 2011

Memória Genética e Reencarnação

Cada da revista 'Espiritismo & Ciência' (número 90), 
com texto de nossa autoria . Editado pela Mythos.

Seções do artigo

1 - Introdução;
2 - Memória Genética e Eugenia;
3 - Consequências da tese da memória genética para a visão espiritualista do ser humano;
4 - Qual é a situação atual?

5 - Considerações finais.
Agradecimentos
Referências

Descrição

A matéria de capa da revista Espiritismo & Ciência 90 fala sobre memória genética e reencarnação. Esse conceito de memória genética refere-se à suposta capacidade de herdarmos não apenas memórias dos antepassados, mas também suas personalidades. Ele tem sido utilizado para tentar refutar o conceito de reencarnação, mas sem sucesso. A matéria é assinada pelo físico Ademir Xavier. Os passarinhos do bem de Marcio Baraldi, os Vapt&Vupt continuam firmes com suas mensagens de paz e reflexão. A edição também traz comentários e sinopses de livros espíritas, para você escolher sua leitura preferida. José Sola continua com a série de textos a respeito dos livros de Chico Xavier, agora com a obra Há 2000 Anos, uma das mais populares escritas pelo Espírito Emmanuel. Na seção "Desmistificando o Dogma da Reencarnação", o doutor Wladimyr Sanchez responde perguntas dos leitores, aqui com uma longa explanação sobre o conceito de reencarnação que surge no livro Missionários da Luz, de André Luiz. Paulo Neto traz um interessante texto explicando qual a primeira obra espírita que deve ser lida, baseando em informações fornecidas pelo próprio Alan Kardec. Carlos e Carmen Imbassahy abordam as pesquisas científicas que permitem dizer-se que o universo não é criação do Deus religioso que conhecemos. No texto de Rogério Coelho, você poderá ler a respeito da relação entre ciência e religião, a partir do ponto de vista de Allan Kardec e de Joanna de Ângelis.

Clique aqui para saber como adquirir a revista.



12 de outubro de 2011

Vídeo II - 'Visitantes da outra margem' - Fenômenos de Materializações descritos por Tom Harrison (Inglaterra)

Sra. Agnes Abbott.

Fenômenos de Aporte

Segunda parte do vídeo Visitantes da 'outra margem' com entrevista de Tom Harrision.

Conteúdo

00:00 Segunda parte da entrevista;
01:38 Trecho de uma palestra com T. Harrison onde ele explica os primeiros fenômenos de aporte;
05:20 Continuação da entrevista onde T. Harrison mostra objetos que foram obtidos durante várias sessões de aporte;


Outros Vídeos
O colégio Arthur Findlay.



3 de outubro de 2011

Kardec sobre o Ceticismo.


"Se eu estiver errado, basta apenas um crítico." - Albert Einstein (Seu comentário à primeira edição do livro 'Hundert Autoren gegen Einstein', ou 100 autores contra Einstein, em 1931)

Reunimos aqui algumas citações de Allan Kardec sobre o ceticismo. Outras referências dele sobre o assunto podem ser encontradas nas diversas obras que formam a codificação. Como pioneiro no desbravamento dos princípios espiritualistas e sua verificação por meio de fenômenos considerados insólitos, Kardec enfrentou problemas que legiões de cientistas (metapsiquistas e, modernamente, parapsicólogos) iriam enfrentar quando a questão era defender e explicar de forma satisfatória a fenomenologia psíquica. E a luta que ele teve que enfrentar foi dupla: primeiro contra aqueles que negavam a realidade dos fenômenos, depois contra os que, os aceitando, propunham explicações ilógicas, em franca contradição com a multiplicidade de ocorrências e detalhes observados. 

É importante que se diga que Kardec nunca teve a pretensão, como muitas críticas procuraram mostrar ao longo dos anos, em ser árbitro da verdade:
Confessamos, sem constrangimento, nossa insuficiência quanto aos pontos para os quais não temos resposta. Assim, longe de repelir as objeções e as perguntas, nós as solicitamos (desde que não sejam ociosas e nem nos façam perder tempo com futilidades), pois constituem um meio de nos esclarecermos. (RS, 1858, p. 294).
Há limitações ao conhecimento espírita, isso é um fato que, ao invés de diminuir a importância da doutrina como se pode pensar inicialmente, a engrandece. De fato, o valor de uma teoria está na capacidade que ela tem em fornecer explicações elegantes para uma grande quantidade de fatos. Ora, uma vez que diga alguma coisa sobre o mundo, é igualmente certo que a teoria tem limites. Não é objetivo de uma ciência explicar todo e qualquer aspecto do mundo. Muitos críticos acreditam que o Espiritismo, enquanto uma visão do mundo, deveria fornecer respostas para tudo o que se observa nele. Isso não é verdade. A ciência da matéria também tem suas dificuldades para explicar determinados aspectos da Natureza. Isso é normal e esperado no processo de produzir conhecimento científico que diga alguma coisa sobre o mundo. Por outro lado, muitos críticos controem (e ainda o fazem) labirintos de hipóteses e explicações sem se preocupar em unificar conceitos e buscar uma causa ou origem comum para o que se observa. Para cada fenômeno, uma explicação diferente. Dito isso, é importante prestar atenção ao tipo de crítica :
É logica elementar que, para discutir uma coisa é preciso conhecê-la, visto que a opinião de um crítico só tem valor quando ele fala com perfeito conhecimento de causa. Só então a sua opinião, ainda que errônea, pode ser levada em consideração. Mas, que importância tem ela acerca de um assunto que ele ignora? O verdadeiro crítico deve dar provas, não somente de erudição, mas também de profundo saber com respeito ao objeto em exame, de julgamento são e de imparcialidade a toda prova, sem o que o primeiro menestrel que surgisse poderia arrogar-se ao direito de julgar Rossini e um iniciante em artes o de censurar Rafael. (RS, 1860, p. 269) 
As condições que Kardec aponta para caracterizar um crítico sério estão descritas acima e é instrutivo enumerá-las abaixo:
  1. Um crítico sério deve ter erudição. Por 'erudição' entende-se uma bagagem mínima de conhecimento a respeito do que se pretende criticar. É fácil ver porque essa condição é necessária;
  2. 'Profundo saber com respeito ao objeto em exame'. Esse 'profundo saber' distingue-se da mera 'erudição', pois essa última pode ser caracterizada apenas como quantidade de informação. Há uma diferença entre o saber verdadeiro e a mera informação. Estar informado a respeito de algo é muito diferente de saber porque esse algo existe, como ele ocorre, quais são as condições para que ele ocorra e assim por diante;
  3. 'Julgamento são e imparcialidade a toda prova'. Colocamos essas duas condições justas, pois a 'imparcialidade' é consequência do 'julgamento são'. O 'julgamento são' implica em saber manejar a lógica dentro de leis que são universalmente aceitas, embora essa capacidade possa ser apenas tacitamente apreendida (é fato que há pessoas que tem dificuldade em apreender a lógica em determinados assuntos, assim como há pessoas que tem dificuldade para matemática, outras para as artes e assim por diante).  Se um indivíduo tem dificuldades com raciocínio lógico, ele dificilmente será um bom crítico pois sua opinião, frequentemente, será parcial e tendenciosa. Ao se observar a presença de tendenciosismo e a parcialidade, toda a crítica está comprometida, pois coexistem 'interesses escusos' ou implícitos que o crítico, se for honesto, deverá declarar. 
Tais características que fazem parte de um 'crítico de primeira linha', manifestam-se na maneira como a crítica é desenvolvida. É comum observar-se ataques dirigidos a determinados pontos da doutrina por pessoas  reconhecidamente iniciantes no assunto. Mas isso não ocorre apenas com o Espiritismo. Em toda e qualquer área do conhecimento onde se tem uma teoria ou escola que diga algo positivo a respeito do mundo que nos cerca, é possível apreciar esse fenômeno social, o de detratores despreparados e desesperados em refutar e combater (2). O antigo provérbio português, "só se atiram pedras em árvores que dão frutos," sempre deve ser lembrado. Qual é a causa desse fenômeno? Acreditamos que seja uma tentativa de reafirmação pessoal que pode se manifestar em massa, no coletivo, mas isso nos leva a um assunto que foge ao escopo desse post. Desta forma, a polêmica é consequência do tipo de discussão, que é gerada dependendo da qualidade da crítica. E, sobre isso, explica Kardec:
"Mas há polêmica e polêmica. Existe aquela ante a qual jamais recuaremos: é a discussão séria dos princípios que professamos. Todavia, mesmo nesse caso, faz-se preciso uma distinção: se se trata apenas de ataques gerais dirigidos contra a doutrina, sem outro fim que o de criticar, e feitas por pessoas arraigadas em rejeitar tudo quanto não compreendem, nada disso merecerá a nossa atenção; o terreno que o Espiritismo ganha a cada dia é resposta suficientemente peremptória e prova de que seus sarcasmos não tem produzido efeito." (RS, 1858, p. 293)
Da mesma forma como se pode descrever detalhes sobre o tipo de crítica, existem diferentes tipos de discussões ou 'polêmicas' como Kardec descreve acima. Em particular, deve-se manter distância de polêmica feita por indivíduos 'arraigados em rejeitar tudo quanto não compreendem'. É fácil entender a razão disso diante das características já enumeradas acima. O que fazer então? Kardec recomenda:
"Deixando aos nossos contraditores o triste privilégio das injúrias e das alusões ofensivas, não os seguiremos no terreno de uma controvérsia sem objetivo; dizemos sem objetivo, porque ela não os conduziria à convicção, sendo perda de tempo discutir com pessoas que desconhecem as primícias do que falam. Só nos cabe dizer-lhes: estudai primeiro, e veremos em seguida. Temos outras coisas a fazer do que falar àqueles que não querem ouvir. Por outro lado, que importa, afinal a opinião contrária de tal ou qual pessoa? Será essa opinião de tão grande importância que possa entravar a marcha natural das coisas? As maiores descobertas encontraram os mais rudes adversários, o que não as fez perecer. Deixamos, pois, a incredulidade murmurar em torno de nós, e nada os desviará da rota que nos é traçada pela gravidade mesma do assunto em pauta." (RS, 1860, p. 1)
No comentário acima, Kardec de forma lógica recomenda o silêncio contra determinados tipos de crítica. Fazem parte delas, as que surgem naturalmente de vários tipos de ceticismo, tanto aqueles que se põem contra os fenômenos como os que se colocam contra a teoria. Tal como no exemplo citado sobre a Teoria da Relatividade (1), Kardec chama a atenção ao fato de muitos princípios inovadores não terem sido afirmados senão depois de muitas discussões. Entretanto, muitos críticos podem seguir um caminho ainda mais extravagante. Sobre isso também escreveu Kardec:
Cremos que, em certos casos, o silêncio é a melhor resposta. Há, por outro lado, um gênero de polêmica que nos impomos a norma de abster-nos: é a que pode degenerar em personalismos. Ela não só nos repugna, como nos tomaria um tempo que podemos empregar mais utilmente, além do que seria bem pouco interessante para os nossos leitores, que assinam o jornal para se instruírem e não para ouvir diatribes(2) mais ou menos espirituosas. Ora, uma vez embrenhados nesse caminho, dele seria difícil sair; eis porque preferimos ai não entrar, e julgamos que assim o Espiritismo só terá a ganhar em dignidade. (RS, 1858,p. 293)
Uma 'polêmica personalista' é um debate cujo objetivo implícito é a disputa pessoal buscada por alguns dos polemistas. Aqui estão em jogo forças que distanciam muito o debate de qualquer tipo de discussão equilibrada e imparcial. De fato, não pode haver imparcialidade onde se busque determinados tipos de ganhos (que podemos considerar 'morais', em contraposição a ganhos materiais ou pecuniários). O gosto de se sentir apreciado e vencido em um debate é recompensa considerada de alto preço, que sempre ocorreu em vários setores da sociedade. Infelizmente também reconhecemos que muitos espíritas e mesmo alguns setores do movimento espírita endossam esse tipo de discussão contra a qual Kardec colocou-se já em 1858. E isso por uma boa razão: por se tratar simplesmente de perda de tempo. Tal como qualquer outro recurso, o tempo também é um bem que devemos considerar diante de determinados tipos de ganho, lembrando ainda que o tempo é recurso irreversível: uma vez perdido, é impossível recuperá-lo.  Kardec reconhece ser muito difícil sair desse tipo de caminho porque ninguém quer se sentir vencido, ainda que a discussão tenha objetivo  intangíveis e de pouquíssima importância.

O julgamento da História

Que é feito hoje da memória dos que criticaram Kardec na sua época? Tentamos nos lembrar de alguns nomes do passado. Para ajudar o leitor, listamos alguns desses nomes nas notas de Apêndice deste post (3). Com essa nota, também rendemos nossa justa homenagem a eles.

O Ceticismo como um vício filosófico.

Finalmente, relembramos o que disse Kardec sobre o ceticismo exacerbado. Para ele ficou claro que ele se caracterizava mais como um vício filosófico, algo que nasce não só da falta de conhecimento, mas da falta de madureza intelectual:
Há céticos que negam até à evidência, nem milagres poderiam convencê-los. Há mesmo aqueles que ficariam bem desgostosos se fossem forçados a crer, porquanto seu amor-próprio sofreria com a confissão de que estavam enganados. Que responder a pessoas que por toda parte só vêem ilusão e charlatanismo? Nada; deve-se deixá-los tranquilas, a repetirem, enquanto quiserem, que nada viram e até mesmo que nada lhes pode ser mostrado. Ao lado desses céticos endurecidos, há os que querem ver a sua maneira; os que, firmados numa opinião, a esta tudo querem ajustar, não compreendendo existirem fenômenos que não podem sujeitar-se a sua vontade. Eles não sabem ou não querem adaptar-se às condições necessárias. (RS, 1858, p. 153)
Entre os críticos, há os que poderíamos chamar de 'analfabetos filosóficos' que parecem se enquadrar na classe de contraditores de que fala Kardec. Procuram eles ajustar tudo o que vêem a sua maneira muito particular de ver o mundo, não compreendem - ou não querem compreender - que existe uma realidade maior que não se deixa perceber da mesma forma que a 'realidade menor' de suas vidas particulares, que existem milhares de nuances e detalhes nos fenômenos da Natureza a requerer esforço e dedicação (as vezes de vidas inteiras) para que sejam compreendidos. Jamais negaremos a tais o direito de não acreditar, afinal é assim que vivem os homens, cada um segundo sua visão de mundo, mas seria justo que pudessem destruir fenômenos ou apagar a realidade tão só com efeitos de retórica? 

De qualquer forma, o efeito de suas palavras, ao contrário do que se pode imaginar, é fazer propaganda justamente dos princípios ou ideias que pretendem combater.

Referências


H. Israel, ed (1931). Hundert Autoren gegen Einstein. Leipzig: Voigtländer.
Z. Wantuil e F. Thiesen (1987), Allan Kardec - Pesquisa Bibliográfica e Ensaios de Interpretação.  Vol. II. Ed. FEB.

Notas de Apêndice

(1) Um exemplo clássico tirado da Física moderna é o da teoria da relatividade de Einstein. Para isso ver 'Críticas à teoria da Relatividade'. Poucos sabem que, ao longo de sua carreira como cientista, Einstein enfrentou uma crítica furiosa contra suas conclusões e teorias. Por que? Uma resposta razoável é porque a Relatividade possui respostas definitivas para os fenômenos que ela se propõe a explicar. Mas, igualmente possível é imaginar que muita gente invejou a notoriedade que Einstein adquiriu com o lançamento de sua teoria. Assim, não é difícil perceber porque muitos lançam críticas a médiuns modernos, que alcançaram notoriedade em vida. Há aqui muito mais que mera descrença.

(2) Diatribes: s.f. Crítica severa e mordaz; escrito ou discurso agressivo e injurioso.

(3) A lista abaixo traz alguns nomes de críticos e céticos do Espiritismo da época de Kardec (ano da crítica entre parênteses). Talvez o leitor possa se lembrar de alguns deles. A referência principal de onde tiramos tais nomes é Z. Wantuil e F. Thiesen (1987).

Pe. François Chesnel (1859);
Dr. Jobert de Lamballe (1859);
Sr. Oscar Comettant (1859);
Dr. Louis Figuier (1860);
Sr. George Gandy (1860);
Sr. Émile Deschanel (1860);
Dr. Armand Trousseau (1862);
Pe. Lapeyre (1862);
Pe. P. Nampon (1863);
Sr. Robin (1863);
Pe. A. Barricand (1864);
Mons. Pantaleón Monserra Y Navarro (1864);
Sr. Rewile (1865);
Sr. Jules Claretie (1866);
Pe. Poussin (1868);

28 de setembro de 2011

Entrevista III - Alexandre F. da Fonseca e a temática espírita na atualidade (parte 2/2).

Continuamos aqui a 2a parte da entrevista de Alexandre Fonseca.

Para acessar a primeira parte.

EE - 6 Onde você acha que essa nova ciência deveria se desenvolver ? (academia versus ambiente do movimento espírita)

Essa é uma boa pergunta. Eu penso que estando os Espíritos por toda a parte, dependendo do tipo de projeto de pesquisa, qualquer lugar pode se tornar um laboratório legítimo de pesquisa espírita. Ao meu ver, é a seriedade e os objetivos de um trabalho de pesquisa que vai determinar se o projeto vai ou não contar com a assistência de bons Espíritos. 

Em termos das “frentes de trabalho”, o local de pesquisa mais comum na primeira “frente” é a academia, sem contudo excluir o que chamamos de “atividade de campo”, onde o cientista vai ao local onde pode encontrar de modo mais abundante o objeto de seu estudo. O biólogo costuma ir às florestas investigar determinadas espécies em seu próprio habitat, enquanto que o astrônomo não tem como reproduzir em laboratório a grandeza do cosmos.

Pensando em termos da segunda “frente de trabalho”, o laboratório de pesquisa mais comum pode ser tanto o centro espírita quanto um gabinete de leitura e estudos. Porém, essa questão merece mais atenção pois o centro espírita, em minha opinião, não deve formalmente se transformar em “centro de pesquisas”, sob pena de prejudicar as outras atividades para as quais ele se dedica. Apenas ressalto que nada impede que pessoas que lidam com a mediunidade, por exemplo, possam fazer registros e anotações que permitam colher aprendizados posteriores, a exemplo do que fez Hermínio C. de Miranda na obra “Diálogo com as Sombras”. Nada impede que um grupo de trabalho de passes, realize um acompanhamento da evolução da saúde de alguns assistidos. E se algum grupo dispuser de um médium de efeitos físicos que procure investigar os fenômenos e suas condições e não apenas assisti-los pela satisfação da curiosidade.

Outra ressalva importante é que ninguém, no centro espírita, deve ser constrangido(a) a realizar algum trabalho de pesquisa, nem mudar sua postura em sua atividade rotineira, em nome de um ideal no aspecto científico do Espiritismo. Por exemplo, não é porque se pode fazer anotações sobre a mediunidade em um grupo de desobsessão que os doutrinadores ou dialogadores faltarão com a atenção, respeito e caridade em suas conversas com os Espíritos.

EE 7 - Como você acha que deveriam ser divulgados os trabalhos dessa nova ciência?

É necessário haver um espaço apropriado, seguro e de baixo custo para divulgar com a devida rapidez e facilidade os resultados das pesquisas espíritas. O melhor que conhecemos dentro da Ciência é o esquema de publicação de artigos inéditos de pesquisa através do método de análise por pares, o chamado “peer review” (comentamos sobre ele na questão 5). Esse esquema permite a publicação rápida dos trabalhos de pesquisa que, por conseguinte, permite a divulgação do quê vém sendo pesquisado e como vém sendo pesquisado aos outros pesquisadores. Graças a esse esquema, a Ciência constrói seu conhecimento na base da contribuição de muitos cientistas. 

O movimento espírita atual valoriza muito a obra publicada na forma de livro. O lado positivo é que o livro é uma forma de registro permanente de um conhecimento adquirido. O lado negativo é que interesses diversos aliados à falta de espírito crítico de editores e leitores tornam o livro uma fonte de informações muitas vezes insegura. No processo de divulgação dos trabalhos de pesquisa não se pode perder tempo ou recursos. Na preparação de um livro, leva-se um tempo maior para juntar e compor o seu conteúdo. Depois de pronto, os custos de produção e distribuição de um livro são elevados. Além disso, nem sempre a maioria dos leitores interessados tem recursos financeiros para aquisição de muitos livros. Assim, a opção de uma revista de artigos de pesquisa preenche os requisitos de rapidez e baixo custo de divulgação. Em tempos de acesso mais fácil à internet, é possível editar e criar uma revista científica em que os artigos possam ser divulgados a custo zero para o leitor, o que levaria a um ganho enorme em termos de visibilidade do trabalho de pesquisa. Visibilidade é algo tão importante na pesquisa científica que algumas editoras acadêmicas tem criado revistas de “open access”, em que o leitor não paga para ler os artigos. 

Esse tipo de metodologia de edição e escolha de artigos funciona da seguinte maneira: especialistas em uma determinada área do conhecimento relacionada ao tema de um artigo recém submetido para publicação, são escolhidos pelos editores da revista para analisarem se os conceitos, métodos e rigores de análise do problema em questão, foram empregados pelo(s) autor(ers) do artigo. Isso é feito de modo anônimo, pelo menos, para os autores. Por ser uma atividade humana, é natural que haja defeitos nessa forma de avaliação dos artigos, mas até onde conhecemos, essa é a melhor forma de garantir que um artigo de pesquisa é legítimo, cujos resultados foram obtidos de modo criterioso e sensato, podendo assim ser lido com a confiança de que os critérios de bom-senso na pesquisa foram seguidos. Obviamente que a publicação de um artigo ainda não significa demonstração científica de algo novo, mas é o primeiro passo para que a comunidade de cientistas e estudiosos da área tomem conhecimento formal da pesquisa. 

EE 8 - O que você acha da crescente onda de valorização de fundamentos da física quântica por parte do movimento espírita?

Um exagero que denota a falta de noção de como a Ciência de fato se desenvolve. Na ânsia de ver o Espiritismo mais divulgado e aceito pela sociedade, alguns companheiros acreditam que a relação entre as teorias e descobertas modernas da ciência, como a Física Quântica, e o Espiritismo mostrariam que o Espiritismo tem valor científico. Infelizmente, isso é um engano que demonstra a falta de conhecimento do significado do aspecto científico do Espiritismo. O movimento espírita tem um potencial enorme de trabalho em pesquisa genuinamente espírita, com um poder de demonstração de seriedade no aspecto científico muito maior quando comparado ao ganho aparente que se imagina obter das afirmações da relação entre a física quântica e os conceitos espíritas. Isso, sem falar dos textos pseudo-científicos envolvendo física quântica que são divulgados no meio espírita como a favor do Espiritismo, mas que contém afirmações completamente contrárias a ele. 

EE 9 - Como você vê uma possível interação entre o Espiritismo e uma disciplina exata como a Física, por exemplo?

Imagino que é possível trabalhar na “interface” em que determinados fenômenos sejam da alçada tanto da Física quanto do Espiritismo. Os fenômenos de efeitos físicos são exemplos disso por se tratarem de efeitos materiais de causas espirituais. Porém, diversos companheiros do movimento espírita, talvez por algum entusiasmo, talvez por ignorância (sem intenção pejorativa), tem tentado associar de modo precipitado alguns conceitos da Física com os do Espiritismo de uma forma que eu chamaria de inversa. Por exemplo, com relação aos fluidos espirituais há obras inteiras que tentam adaptar teorias e modelos modernos originalmente desenvolvidos para descrever as propriedades da estrutura atômica da matéria, aos conceitos de fluido. Muitos se esquecem de que a história da ciência mostra que primeiro os cientistas desenvolveram as teorias para o comportamento da matéria em escala macroscópica e só depois, por meio do aprimoramento e refinamento dos experimentos, é que com base nos resultados experimentais, os cientistas propuseram novas teorias para a estrutura atômica da matéria. Assim, em minha opinião, antes de ficar imaginando que os fluidos ou o Espírito tenham ou sejam uma função de onda como descrita pela teoria quântica, busquemos investigar e esgotar o nosso conhecimento sobre as propriedades e condições físicas dos fluidos e fenômenos espíritas na escala normal de tamanho, que é macroscópica, e só depois quando tivermos sólidas informações sobre essas propriedades, começarmos a imaginar, por exemplo, como poderia ser a estrutura em escala atômica daquilo que chamamos de fluidos espirituais. 

Para isso, poderemos contar com a possibilidade de usar diversos equipamentos modernos e sensíveis que a nossa tecnologia já disponibiliza obviamente na medida em que existam recursos financeiros para aquisição ou aluguel desses equipamentos. Apesar das dificuldades naturais, há companheiros espíritas que tem imaginado novos experimentos capazes de investigar as condições em que os fenômenos de efeito físico ocorrem. Vide, por exemplo, o artigo de Ademir Xavier em (livro do 6º encontro da LIHPE). 

EE 10 - Como você vê as contribuições presentes de movimentos de grupos de pesquisadores espíritas para o desenvolvimento da temática espírita? (que sugestões você daria para tais grupos).

Primeiramente, dos poucos grupos de pesquisadores espíritas que conheço, é preciso que eles recebam nossos sinceros parabéns e incentivo pelo esforço que tem realizado no propósito de desenvolver pesquisa espírita. Temos relatos de estudos que demonstram o número razoável de teses e monografias acadêmicas envolvendo temática espírita ou de interesse espírita. Nas duas “frentes de trabalho” há grupos como a Liga dos Historiadores e Pesquisadores Espíritas (LIHPE) que promovem encontros anuais onde pesquisadores apresentam em formato próximo ao acadêmico, seus trabalhos de pesquisa espírita, e grupos acadêmicos de pesquisa espírita e espiritualista como o Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (NUPES). Essas contribuições estão motivando o engajamento de jovens em novos projetos de pesquisa o que sem dúvida é positivo para o processo nas duas “frentes de trabalho” mencionadas anteriormente. 

Entretanto, noto que o movimento espírita em si parece ter pouco interesse ou mesmo nem tem conhecimento da existência desses grupos e trabalhos de pesquisa que vém sendo realizados até então. Eu acredito que isso se deve, em parte, ao fato da divulgação desses trabalhos de pesquisa ainda não ser perfeita, com baixa visibilidade que, como comentamos anteriormente, é algo importantíssimo ao desenvolvimento da pesquisa em qualquer área. Na minha opinião, a criação de uma revista espírita dedicada a artigos de pesquisa espírita, que tivesse o método de análise por pares (o “peer review”) e divulgasse seus artigos de modo gratuito (pela internet, por exemplo), permitiria um maior o acesso de um número maior de leitores a trabalhos de pesquisa espírita legítimos.

EE 11 - Alguma mensagem final para nosso blog?

O blog A Era do Espírito tem se dedicado ao esclarecimento de conceitos importantes sobre Ciência, Ciência Espírita, e os limites de validade de ambas. Em particular, esses conceitos tem nos servido de base para compreendermos os limites de validade da crítica feita ao Espiritismo. Estamos vivendo em uma época em que há facilidade de acesso à informação combinada com a falta de formação científica e filosófica de grande parte dos espíritas. E, diante da afirmativa de Kardec de que a verdadeira fé só o é aquela que é capaz de encarar a razão face a face em todas as épocas da humanidade, ao apresentar estudos sobre assuntos pouco discutidos em outros blogs, páginas ou periódicos espíritas, este blog tem preenchido uma importante e difícil lacuna de informar (e por que não dizer, formar) os leitores em assuntos necessários para o fortalecimento da fé espírita.


21 de setembro de 2011

Entrevista III - Alexandre F. da Fonseca e a temática espírita na atualidade (parte 1/2).

Apresentamos aqui a primeira parte de uma entrevista com Alexandre Fontes da Fonseca, conhecido articulista de 'O Reformador' e pesquisador espírita. Alexandre é nosso conhecido e nos cedeu esta entrevista onde discorre sobre diversos temas de interesse atual para o movimento espírita e para a pesquisa da temática espírita. Alexandre é físico e trabalha na Universidade Federal de Volta Redonda. Para saber mais sobre o Alexandre, você pode visitar sua página do Grupo de Modelagem Física de Nanoestruturas.  As respostas do Alexandre estão em azul abaixo.

EE 1. Como você conheceu o Espiritismo?

Meu pai frequentava um centro espírita na minha cidade natal, e ele me levava com ele. Só na adolescência, porém, que tive oportunidade de participar de grupo de jovens do setor de Evangelização do centro, e comecei a ler as das obras básicas e algumas das obras psicografadas pelo Chico Xavier. 

EE 2. Você acha que o Espiritismo tem algo a contribuir para nosso conhecimento científico atual?

Sem dúvida! Sendo uma doutrina que revela as leis naturais que envolvem a existência e sobrevivência da alma, e a possibilidade de comunicação entre a alma dos ditos “mortos” com a dos ditos “vivos”, ela naturalmente abre um campo novo de pesquisa que é de interesse tanto científico quanto filosófico e religioso. Em particular, o Espiritismo oferece uma base teórica com a qual é possível investigar e compreender os fenômenos que, mesmo hoje, ainda são considerados sobrenaturais. 

EE 3. Quais são os seus principais interesses na 'interface' Espiritismo - Ciência?


Eu particularmente tenho dois interesses distintos entre si que eu chamaria de “frentes de trabalho”, ambas envolvendo aspectos diferentes da ideia que temos de Ciência e sua relação com o Espiritismo. 

Uma dessas “frentes” é o que acredito ser um dos maiores desafios da pesquisa espírita que é investigar os fenômenos espíritas dentro dos paradigmas e métodos das diversas áreas do conhecimento humano como a Física, a Química, a Biologia, a Medicina, etc. Digo grande desafio, pois o fenômeno da vida, do ponto de vista material, ainda é pouco compreendido pelas ciências materiais, o que dificulta qualquer tentativa de se investigar, pelo lado da matéria, teorias ou modelos para este fenômeno que incorporem o elemento espiritual como força atuante no fenômeno da vida. É difícil meditar sobre onde e como o princípio inteligente atua nos seres vivos se mal conhecemos como eles são e como se comportam em termos do conhecimento das ciências materiais. 

Isso, porém, não impede que se pesquise as características e condições materiais em que alguns fenômenos espíritas ocorrem; ou efeitos indiretos da espiritualidade como, por exemplo, a ação da prece ou dos passes na saúde humana, etc.

A segunda “frente de trabalho”, na minha opinião, é a que mais importância teria no cenário do movimento espírita e que traria consequências positivas na forma como a sociedade encara o Espiritismo. Essa “frente” consiste em desenvolver o “aspecto científico” do Espiritismo. Apesar de parecer redundante, podemos dizer que a atividade de pesquisa realizada constantemente por uma comunidade ou grupo de pessoas é que torna, perante a sociedade, uma área do conhecimento ativa no seu aspecto científico. Por exemplo, a comunidade de pesquisadores em Física mantém ativa a pesquisa científica nessa área. E isso não ocorre por causa da simples existência de físicos, mas porque uma boa parcela deles faz pesquisa profissionalmente. Assim, na minha opinião, as pessoas do movimento espírita que tem afinidade ao estudo e pesquisa, mesmo não possuindo experiência profissional em pesquisa científica ou acadêmica, podem ser orientadas a realizar um bom trabalho de pesquisa espírita, contribuindo de forma segura e racional para o progresso do aspecto científico do Espiritismo ou daquilo que chamamos de “Ciência Espírita”. 


Enquanto que a primeira “frente de trabalho” é, em geral, muito difícil, e só pode ser realizada por pesquisadores profissionais das diversas áreas do conhecimento humano, a segunda “frente de trabalho” está mais próxima do movimento espírita pois requer apenas um bom conhecimento das obras básicas da Doutrina Espírita, o gosto pelo estudo, observação e meditação, e um pouco de orientação sobre O QUE e COMO é um trabalho de pesquisa. Na minha opinião, uma das consequências a médio ou longo prazos da segunda “frente de trabalho” é mostrar à sociedade que o Espiritismo possui um subgrupo de pessoas que trabalham de modo sério no seu aspecto científico o que, portanto, implica na existência de uma ciência espírita. Outro benefício direto é combater as novidades que se apresentam de modo místico e incoerentes com os princípios próprios do Espiritismo, o que perderiam o espaço e o valor para aquilo que se obtém através do estudo e pesquisa sérios.

EE 4. O que significa para você 'ciência espírita'?

O conceito de ciência é amplo e filosoficamente envolve vários fatores. Entretanto, se eu puder apresentar uma definição em poucas palavras, eu diria que ‘ciência espírita’ consiste de conhecimentos que são obtidos através de atividades de pesquisa baseadas em conceitos, métodos e rigores de análise definidos e descritos pelo paradigma espírita.

EE 5. Como você vê o desenvolvimento dessa nova ciência?

Apesar de conhecer vários companheiros no movimento espírita se esforçando tanto na primeira quanto na segunda “frente de trabalho” mencionadas na questão 3, minha impressão é que esse desenvolvimento ainda é pequeno. Isso ocorre não somente pelas pessoas que fazem parte do movimento espírita não serem cientistas ou pesquisadores profissionais, mas principalmente pela falta de interesse pelo estudo sério e metódico. Felizmente, a nossa juventude espírita vive uma época de maior acesso ao livro e à informação o que é um ponto positivo. O obstáculo aparente é a falta de noção do que é um trabalho de pesquisa já que, infelizmente, não se aprende a realizar pesquisa científica nas escolas e nem mesmo nos cursos de nível superior. Profissionalmente, isso se aprende nos cursos de Pós-Graduação do tipo strictu-senso, que são os cursos de Mestrado e Doutorado, mas dentro do movimento espírita, não há necessidade de se ter títulos de pós-graduação para realizar pesquisa de qualidade. As qualidades necessárias fundamentais são o conhecimento sólido do Espiritismo e o interesse e gosto pelo estudo. 

H. G. Andrade. (1913-2003).
Podemos citar alguns exemplos de pessoas que trabalharam na segunda “frente de trabalho” acima mencionada. O primeiro exemplo que desejo citar são as pesquisas sobre reencarnação e outros assuntos relacionados à área psíquica realizadas pelo sr. Hernani G. Andrade. Cito, também, a obra “Diálogo com as Sombras” de Hermínio C. Miranda que contém o relato das observações e conclusões que foram frutos de uma atividade legítima de pesquisa espírita no campo da desobssessão.

De correspondências que troco com alguns companheiros espíritas, tenho a impressão de que já existem vários grupos no movimento espírita que realizam trabalhos de pesquisa em assuntos espíritas ou de interesse espírita, mas que, por falta de uma melhor divulgação, não alcançam um número maior de pessoas. Baseado nas condições que, via de regra, sempre estão presentes junto aos grupos ou comunidades de pesquisadores das diversas disciplinas científicas ou acadêmicas, eu acredito que existem fatores que, se pudessem ocorrer no movimento espírita, ajudariam a “alavancar” o desenvolvimento da ciência espírita. Enumeramos alguns desses fatores a seguir: 

Primeiro, como já comentado, precisamos de recursos humanos, isto é, pessoas dispostas ao árduo e paciente trabalho de estudo e pesquisa. 

Segundo, precisamos de recursos financeiros para a pesquisa em si, para fomentar encontros de pesquisadores, aquisição de materiais, equipamentos, investigações de campo, etc. 

Terceiro, precisamos desenvolver uma mentalidade de pesquisa, análoga à que existe nos meios acadêmicos porém, sem o prejuízo que existe nos mesmos por causa do egoísmo e do orgulho. Essa mentalidade de pesquisa envolve o desenvolvimento de um senso-crítico que assegure a validade da análise das novidades que surgem na atividade de pesquisa. Isso envolve tanto a capacidade de auto-crítica quanto a de análise crítica da produção intelectual de outrem. Enquanto no meio acadêmico isso muitas vezes ocorre de modo agressivo, no movimento espírita o dever moral impõe o respeito ao próximo mesmo diante de uma crítica. Em outras palavras, se faz necessário por em prática a recomendação de Jesus: “Seja seu dizer sim, sim, não, não” (Mateus 5:37). 

Quarto, precisamos de mecanismos de divulgação dos resultados de pesquisa mais rápidos, eficientes e baratos, e que sejam similares ao que toda área de pesquisa do conhecimento humano tem: revistas científicas ou acadêmicas dedicadas exclusivamente a artigos de pesquisa, que utilizam o sistema de “peer review” para a análise dos artigos. Esse método, mesmo sendo imperfeito, contribui para maximizar as garantias de que os conteúdos publicados tiveram critério na sua execução e bom-senso nas conclusões. As novidades publicadas por meio desse método são mais confiáveis e menos suscetíveis a erros do que aquelas oriundas de publicações individuais, onde nem sempre o conteúdo passou pela devida análise crítica.

No próximo post, Alexandre discorre sobre o que seria necessário para aprimorar o desenvolvimento da Ciência Espírita.

13 de setembro de 2011

Uma abordagem estatística para a determinação do tempo de vida entre encarnações sucessivas.


Durante o 7 ENLIHPE (20/8/2011), tivemos a oportunidade de apresentar o trabalho: "Uma abordagem estatística para a determinação do tempo de vida entre encarnações sucessivas."

Como se sabe, o Espiritismo introduzido por A. Kardec foi o primeiro movimento espiritualista no ocidente a compreender a importância da reencarnação. Este é o único mecanismo que pode explicar tanto anomalias observadas na personalidade humana com também fornecer uma visão do mundo mais de acordo com os princípios de justiça natural e equidade. Portanto, é importante compreender as consequências da reencarnação não somente para cada um de nós como indivíduos, mas também como um fenômeno social e, principalmente, demográfico. Assumindo a reencarnação como uma das leis da Natureza que é válida para todos os seres humanos, ela certamente tem consequências coletivas que apenas começamos a vislumbrar.

O objetivo do trabalho foi construir um modelo numérico para calcular o intervalo de tempo entre reencarnações sucessivas de uma individualidade humana O trabalho baseou-se nos seguintes princípios:
  1. Existe uma base de tempo única que pode ser usada para determinar o intervalo de tempo entre duas existências (o que chamamos de 'tempo de erraticidade');
  2. Existe conservação da 'individualidade', isto é, a personalidade humana sobrevive à morte física e conserva sua consciência (que é, de fato, a fonte dessa personalidade). A consciência é conservada em uma unidade não material (ou incorpórea) chamada 'Espírito' (note a letra maiúscula 'E');
  3. O Espírito não pode ser 'destruído' (não existe uma 'segunda morte');
  4. Para cada Espírito está associado um único corpo durante uma encarnação;
  5. A reencarnação implica na existência de competição entre populações desencarnadas distintas no mundo espiritual (que distinguimos entre uma vizinhança no 'plano físico' e de 'outros planos' ou zonas espirituais distantes da Terra);
  6. No plano físico (mundo terreno), cada indivíduo nasce de outros dois. Entretanto, no que concerne à origem dos Espíritos, não se conhece o mecanismo de seu nascimento. De fato, a origem dos Espíritos é um mistério. Para todos os efeitos, podemos assumir que existe um reservatório infinito de individualidades desencarnadas no mundo espiritual (desde que o Universo é infinito);
  7. A existência humana no plano físico é limitada à vida do corpo físico. Não existe um limite para a existência do Espírito (conforme o princípio #3);
Os princípios estabelecidos acima são baseados em questões dadas pelos próprios Espíritos conforme o 'Livro dos Espíritos' (LE). Por exemplo: o princípio #1 está baseado na questão LE#224; o princípio #2  em LE-Q#92 e 150; o princípio #3 em LE-Q#83; o princípio #4 em LE-Q#137; princípio #5 em LE-Q#172 e 173; o princípio #6 em LE-Q#81 e, finalmente, o princípio #7 em LE-Q#68.

No trabalho, fizemos várias predições concernentes à maneira como as populações em ambos os planos físico e espiritual interagem, utilizando um conjunto de assunções adicionais sobre o estado atual da população total. Nós finalmente fizemos alguns cálculos numéricos mostrando que o 'tempo de erraticidade' está oculto na taxa de natalidade da população do plano físico.

O gráfico abaixo mostra a evolução temporal da expectativa de vida no plano físico (esquerda) e o tempo de erraticiadde (direita) em anos para a população brasileira segundo nosso modelo.  Ambos intervalos são dados como função do tempo desde 1970 a 2000.


Como tais predições poderiam ser validadas? Se for possível rastrear uma vida anterior para um grupo de indivíduos (uma população, digamos de 100 pessoas), encontrando-se a data de falecimento anterior - o que, de certa forma, pode ser feito conforme demonstrou I. Stevenson (1966) - o tempo de erraticidade poderia ser estatisticamente calculado uma vez que a data de nascimento da vida presente é conhecida. Isso abriria a possibilidade de se testar nossas assunções, o que caracterizaria uma extensão das teorias de dinâmica populacional (só que agora englobando componentes desencarnadas).

Tais resultados mostram a fertilidade heurística dos princípios espíritas, que não somente admitem a sobrevivência da personalidade à morte física, mas também que ela evolui ao longo de muitas vidas no plano físico.

Referências
  • Kardec A. (1857). 'O Livro dos Espíritos'. Há muitas edições (inclusive eletrônicas) desta obra;
  • Stevenson I. (1966) Twenty Cases Suggestive of Reincarnation. (1966). (Second revised and enlarged edition 1974), University of Virginia Press, ISBN 0813908728.

6 de setembro de 2011

Vídeo I - 'Visitantes da outra margem' - Fenômenos de Materializações descritos por Tom Harrison (Inglaterra)

A médium de efeitos físicos Minnie Harrison.
Apresentamos aqui uma sequência de vídeos do arquivo original: Visitors from the 'Other Side' (Visitantes da 'outra margem') com legendas em português inseridas por nós. Esses vídeos trazem entrevistas e palestras de Tom Harrison (1918-2010, veterano da 2a Guerra Mundial) que testemunhou fenômenos de efeitos físicos produzidos por sua mãe, Minnie Harrison, de 1946 a 1954 na cidade de Middlesbrough, Inglaterra.

Os videos são rico em informações sobre o fenômeno de ectoplasmia, quase todos semelhantes aos casos nacionais conhecidos (Ana Prado, Francisco Lins Peixoto, Antônio Feitosa e Otília Diogo). A mediunidade  de Minnie Harisson foi, entretanto, desconhecida no Brasil e mesmo no exterior, posto que sua ocorrência foi pouco divulgada em sua época.

Atenção:
Apresentaremos as traduções legendadas dos filmes não necessariamente em sequência de posts. Os videos serão postados conforme nossa disponibilidade de tempo para legendá-los. Aguardem!
Video I (duração 10:11)



Conteúdo

00:17 Introdução por Pat Hamblin;
01:28 Primeira entrevista com Sr. Harrision;
04:58 Sr. Harrison explica a diferença entre mediunidade de efeitos físicos e de efeitos intelectuais;

Outros videos.

2a Parte da Entrevista com Tom Harrision onde ele descreve o início da fase de incorporação e os primeiros fenômenos de aporte no grupo. Não perca!

Referências
  • Conforme havíamos comentado em um post anterior, apresentamos aqui continuação de nosso estudo de obras raras sobre materializações de Espíritos;
  • A. Kardec, 'O Livro dos Médiums'. Sobre a diferença entre mediunidade de efeitos físicos e intelectuais. Capítulos 2 e 3;
  • M. Prescott Blog: Beyond Belief.
  • Ver todos os videos aqui.

1 de setembro de 2011

Considerações sobre as ideias de verdade e controvérsias em torno dos ensinos dos Espíritos. (II/2)



Segunda parte. Para acessar a primeira parte clique aqui.


3 - Analisando o critério da concordância universal. 

Se na descrição de um simples fenômeno material somos obrigados a fazer grandes concessões de tolerância para com aqueles que sustentam opiniões diferentes, imaginemos por um momento a situação com os fenômenos e princípios espíritas. Isso é particularmente forte se considerarmos que o objeto de estudo do Espiritismo não está sujeito à apreensão direta pelos sentidos humanos ordinários nem por quaisquer "aparelhos de medida". Isso não significa, porém, que esses fenômenos estão condenados eternamente a serem inexplicáveis, muito menos que seremos sempre impotentes em explicá-los. O que se passa com o Espiritismo (que resulta em sua independência das ciências comuns) é que ele trata de fenômenos pelos quais as ciências não se interessam. As ciências estudam a matéria e o Espiritismo o espírito. Para assegurar o progresso principalmente moral do ser humano, aguardou-se o lento mas inexorável avanço da intelectualidade humana e o conhecimento espírita foi e tem sido revelado, em função direta dessas mesmas necessidades morais. Diante das dificuldades humanas de se conhecer a verdade (como exemplificadas anteriormente), não é difícil concluirmos que existem claramente limites à revelação espírita.

A fonte primordial da informação espírita são os Espíritos. Mas como se deu a aceitação dessas informações por eles propostas? Vamos aqui analisar brevemente o famoso critério da concordância universal (CCU) que muitas pessoas acreditam é a base para a aceitação dos princípios espíritas. Argumentaremos depois que não é o CCU que valida esses princípios. A referência principal sobre esse assunto é a Introdução ao O Evangelho segundo o Espiritismo [4], Parte II, "Autoridade da Doutrina Espírita". Todas as citações de Kardec feitas a seguir foram extraídas dessa referência. Kardec aponta duas grandes razões para a existência de um critério de aceitação das informações espíritas:
(a) "Garantia para a unidade futura do Espiritismo", com anulação das teorias contraditórias (Parágrafo 14).
(b) "Garantia contra as alterações que poderia sujeitar o Espiritismo às seitas que se propusessem apoderar-se dele em proveito próprio ou acomodá-lo à vontade." (Parágrafo 16).
Tal critério protege assim os fundamentos do Espiritismo contra enxertias, sejam da parte dos próprios Espíritos (menos esclarecidos) ou dos encarnados. Prevê-se que tais enxertias ocorressem por falha na compreensão e, principalmente, aplicação lógica dos princípios espíritas, fato que a história acabou por demonstrar. A primeira coisa que notamos é que o CCU foi uma descoberta inteligente de Kardec diante do dificílimo problema da autenticidade das mensagens dos Espíritos. Assim sendo, ele não é resultado do ensino dos Espíritos e, portanto, não pode ser tomado como um princípio da doutrina. Analisando a referência citada acima, podemos dizer que o critério tem 3 principais fundamentos.
  • O Espiritismo não é uma construção humana, ou seja, não é resultado de uma simples teorização em torno de observações e análise de fatos; 
  • Os Espíritos têm ampla liberdade de comunicação, o que anula a possibilidade de privilégios na concessão da informação espírita (o que, do contrário, tiraria o caráter "natural" da revelação espírita); 
  • Os Espíritos têm diversos graus de evolução. Se a fonte de informação espírita são os Espíritos, a validade das mesmas depende do grau de lucidez que eles possuem em relação aquilo que pretendem informar. Disso vem que nem todos os Espíritos estão igualmente aptos a servir de fonte de informação e daí imediatamente, a necessidade de uma seleção das mesmas.
Por razões didáticas, podemos dizer que os três fundamentos acima possibilitam enunciar o que chamariamos de "CCU fraco":
Uma garantia existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que exista entre as revelações que eles façam espontaneamente.
Existem entretanto condições operacionais (em relação ao caráter das mensagens) para que o CCU seja válido. Essas, por sua vez, se dividem em dois tipos: condições gerais e condições específicas. São condições gerais:
  1.  "Tudo o que seja fora do âmbito exclusivamente moral" (Final do Parágrafo 6);
  2.  Comunicações que tratem dos fundamentos doutrinários: "Vê-se bem que não se trata aqui das comunicações referentes a interesses secundários" (Parágrafo 9).
Ao mesmo tempo, são condições específicas (ver Parágrafo 8):
  • Que um só médium receba comunicações de diversos Espíritos;
  • Que vários médiums diferentes (em um certo grupo ou em vários lugares) recebam comunicações de diversos Espíritos.
Ocorre aqui porém que se tanto na situação (I) como em (II) houver a incidência de obsessão (influência negativa por parte da fonte original da informação), a aceitação do CCU fraco não é possível. Disso resulta o que chamaríamos de CCU forte:
"Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares". (Parágrafo 9).
Ao CCU fraco é assim acrescentada a exigência de repetitividade geográfica e mediúnica de uma certa informação. Poderíamos ainda adicionar uma necessidade de confirmação temporal da informação, isto é, de que uma dada tese referente a um princípio se confirme ao longo do tempo. Isso ocorreu diversas vezes durante a codificação. Do ponto de vista histórico, Kardec parece também ter sido o único a aplicar o CCU forte:
"Na posição em que nos encontramos, a receber comunicações de perto de mil centros espíritas sérios, disseminados pelos mais diversos pontos da Terra, achamo-nos em condição de observar sobre que princípio se estabelece a concordância".(Parágrafo 13).
A razão de ser do CCU fraco é que ele parece ser válido desde que os médiuns não estejam sob influência de Espíritos mistificadores (obsessão etc). A exigência do CCU forte foi cumprida plenamente no momento da codificação por conta da abundância de fenômenos espontâneos ocorridos na época. As condições gerais enunciadas por Kardec (condições 1 e 2) são de crucial importância para se entender a aplicação do CCU. De fato, não tem muito sentido exigir um critério de concordância (seja por vários médiuns ou através várias instâncias temporais) com as comunicações pessoais de Espíritos familiares por exemplo. Seria mesmo ridículo exigir que os Espíritos se comunicassem por médiuns diferentes após fornecerem muitas vezes provas indubitáveis de que são eles mesmos que se apresentam a determinado médium. A especificidade da mensagem dita assim o grau de recorrência ao CCU. O grau de obviedade com que constatamos a concordância dos Espíritos esclarecidos em relação às questões morais é o que fundamenta a condição geral (A). Suprimir tal condição é equivalente a dizer que o CCU (na forma forte) sempre foi operacional com relação às questões morais. Parece assim ser importante compreender exatamente o que se entende por pontos fundamentais e pontos secundários, coisa que  fazemos brevemente a seguir.

4 - O que são pontos fundamentais e o que são pontos secundários. Exemplos.

Por Doutrina Espírita entendemos o conjunto de princípios fundamentais que sistematizam o Espiritismo, as regras de aplicação desses princípios a diversas situações e fenômenos em que ele representa uma alternativa lógica e racional de explicação. Também a essa doutrina estão associados os diversos conjuntos de preceitos e regras éticas que caracterizam a conduta espírita na mais pura acepção da palavra. Por promoverem o progresso da alma humana, tais regras fortalecem as relações dessa com a Divindade, de onde deriva imediatamente o aspecto religioso do Espiritismo.

De modo resumido os princípios fundamentais do Espiritismo são:
  1. Existência de Deus. Deus aqui entendido como um ser existente de toda eternidade, sem princípio nem fim, todo poderoso e bom. Sem tentar descrever o impossível, tais atributos são os mínimos necessários para a noção da Divindade. 
  2. Existência do Espírito. O Espírito aqui é o princípio inteligente independente da matéria, a constituir um outro princípio. Por ser independente da matéria, o Espírito não sucumbe nem desaparece frente às transformações desta, de onde se tem a noção da imortalidade do ser. 
  3. Evolução do Espírito. À medida que o tempo transcorre, o estado que caracteriza o Espírito se transforma. Esse estado dá, por exemplo, as características do Espírito. Da faculdade que o Espírito tem de interagir com a matéria, ele passa por transformações que modificam sua personalidade e características. Essa evolução leva ao aprimoramento moral do ser e de sua inteligência. No homem, o período de tempo necessário para o aprimoramento é muito maior que o tempo de vida médio de sua vida material. Daí segue, como corolário desse princípio, a ideia de reencarnação. 
  4. Comunicabilidade dos Espíritos. É possível ao Espírito, desprovido da parte material, entrar em comunicação com o mundo material por meio de pessoas dotadas de uma faculdade especial chamada mediunidade. 
  5. Pluralidade dos mundos habitados. No Universo são inúmeros os mundos onde a vida é abundante, e os Espíritos, segundo semelhantes princípios, evoluem e tem sua existência mais ou menos material de acordo com o progresso atingido. 

Os princípios fundamentais estão todos eles contidos nas obras básicas editadas por Kardec. Essas obras também trazem ideias secundárias que auxiliam a explicação espírita do mundo segundo os princípios fundamentais. Além disso, a vasta literatura espírita contemporânea também contém inúmeras obras que desenvolvem substancialmente a aplicação dos princípios fundamentais e, porque não dizer, propõem princípios secundários novos. Esse fato é permitido pelo caráter progressista da doutrina, e os que teimam em não aceitá-lo estão, de fato, atrasando a marcha desse progresso. Vejamos um exemplo concreto que nos auxilie nesse ponto. Suponhamos que um certo Espírito proponha uma modificação na lei III de evolução afirmando que a marcha de desenvolvimento do Espírito não é incessante mas que, em determinado ponto de sua vida maior, seja permitido por lei ao Espírito estacionar. Não é difícil ver que semelhante ideia depõe contra vários outros princípios e leva imediatamente a uma contradição com a noção de livre-arbítrio pois, se ao Espírito é possível estacionar, ele não tem, por lei, nenhuma responsabilidade sobre seus atos durante o período de falta de progresso. Essa ideia deve ser rejeitada por estar em contradição com uma série de noções que protegem os fundamentos da doutrina.

Tomemos agora um exemplo de uma controvérsia no movimento espírita que ilustra bem as dificuldades de compreensão dos princípios espíritas e do ensino dos Espíritos. Trata-se da famosa proposição do elevado Espírito Emmanuel sobre as "almas gêmeas" no seu livro O Consolador [5]. Antes de tudo, conviria considerar uma afirmação desse Espírito contida logo na introdução ("Definição") de seus livro:
  "Alem do mais, ainda nos encontramos num plano evolutivo, sem que possamos trazer ao vosso círculo de aprendizado as últimas equações, nesse ou naquele setor de investigação e de análise. É por essa razão que somente poderemos cooperar convosco sem a presunção da palavra derradeira".
Na questão 298 de "O Livro dos Espíritos" [1], Kardec questiona os Espíritos sobre a ideia das almas gêmeas, entendidas como dois seres unidos desde sua origem e predestinados a se encontrarem fatalmente algum dia. Tratava-se, sem sombra de dúvida, de um ponto secundário, já que os princípios fundamentais nada dizem sobre a criação dos Espíritos (ver questão 78 de "O Livro dos Espíritos"). Além disso, a ideia da almas gêmeas não contradiz nenhum outro ponto fundamental. Em "O Consolador", Emmanuel por diversas questões (desde 323-328, "Terceira Parte", "Amor") reafirma a ideia das almas gêmeas, entendidas como seres que se buscam na Eternidade e cuja existência propicia o progresso aos Espíritos, já que esses, quando separados e caídos no crime anseiam por se encontrar, constituindo isso um incentivo ao seu progresso. Emmanuel, de fato, reconhece sua ignorância não só em relação à criação dos Espíritos como também sobre como se estabelece o vínculo afetivo entre eles:
 "Para todos nós, o primeiro instante da criação do ser está mergulhado num suave mistério, assim como também a atração profunda e inexplicável que arrasta uma alma para outra, no intuito dos trabalhos, das experiências e das provas, no caminho infinito do Tempo."
Entretanto, inquirido a examinar melhor seus pontos de vista, Emmanuel humildemente pede seja mantido o texto original, chamando a atenção para a complexidade do assunto. Esse Espírito sinalizou que ainda estamos longe de ter a pretensão à verdade sobre um tema tão complexo. Por outro lado, se os Espíritos que auxiliaram Kardec, em diversos pontos de "O Livro dos Espíritos", afirmaram que a criação dos Espíritos está mergulhada em um profundo mistério, como poderiam ter dado uma resposta definitiva à questão das almas gêmeas? Parece-nos que, nesse caso, bem como em muitos outros, eles haveriam de estar igualmente longe de dar uma "resposta derradeira". De qualquer forma, o CCU na forma forte não pode ser invocado nesse caso por não se tratar de um ponto fundamental. Podemos tomar a proposição de Emmanuel como uma opinião pessoal sua em conformidade com o que vimos que esse Espírito diz na introdução de "O Consolador". Entretanto, certos setores do movimento espírita extremamente ligados à letra e desatentos às sutilezas das ideias de verdade e ensino dos Espíritos (a se aplicarem igualmente para as explicações das coisas materiais), tomaram esse caso como mais um exemplo a depor contra a "pureza doutrinária" do Espiritismo que se imagina poder ser imposta a todo custo.

5 - Conclusões

Não foi senão por uma longa e difícil marcha que a Humanidade, pela colaboração de inúmeros luminares da cultura, inteligência e moralidade, conseguiu compreender que a noção de verdade só pode ser formulada dentro de bases estritamente relativas. Acompanhando o progresso das religiões e das ciências (mais notadamente dessas últimas) chegou-se a conclusão que as concepções a respeito das coisas e dos fenômenos do Mundo tem uma grande dependência com as épocas, recursos de pesquisa e tendências culturais dos indivíduos. No estágio em que nos encontramos, jamais poderemos aspirar à verdade absoluta.

O CCU pode ser invocado como um princípio metodológico que foi aplicado no início da codificação para estabelecer os fundamentos. Entretanto, não é ele quem valida esses princípios, como muitos poderiam pensar. Seria o mesmo que acreditar que os princípios que organizam as ciências materiais só valem porque os cientistas neles acreditam, os que são apenas a origem desse conhecimento. As doutrinas declaradas de muitas disciplinas científicas tem como fundamento o próprio princípio, muitas vezes inverificável, que deve ser assumido como válido a fim de que suas conclusões sejam determinadas. Ai está a base para a validade dos princípios espíritas: no fato de gerarem explicações plausíveis e verificáveis da Natureza que nos cerca. É a capacidade que os fundamentos espíritas têm em explicar determinadas anomalias que observamos com aspectos da personalidade humana e com determinados fenômenos que representam a maior fonte de validação de sua "comprovação". 

Assim, no escopo do que trata a Doutrina Espírita, tais conclusões são igualmente válidas. Elas servem ainda mais para reforçar definitivamente nossa extrema pequenez diante do universo em que vivemos, a ideia de que nossas pretensões são ínfimas. Essa já é a opinião emitida por Espíritos elevados quando inquiridos sobre nosso tamanho nesse Universo. Imediatamente transparece a importante conclusão da inutilidade de quaisquer querelas que venham se formar ao redor das concepções espíritas, sejam elas fundamentais ou secundárias. Se nos é possível fechar a correspondência com o passado, digamos que a única "heresia" que se pode suspeitar hoje em dia é a da sustentação de tais querelas contra nossos companheiros muitas vezes dentro do próprio movimento espírita. Ela é antiética e depõe contra todos os princípios evangélicos que o Espiritismo sustenta abertamente.

Por outro lado, o sentimento de impotência diante da verdade com relação a muitas questões profundas, não invalida em nenhum ponto os efeitos inquestionavelmente benéficos em nossas vidas que a aceitação e prática dos princípios espíritas - revelados na medida em que podemos compreender - podem gerar. De fato, estaremos talvez muito distantes de compreender por bases racionalmente sólidas princípios como o do amor, caridade e misericórdia. A própria evolução onde estagiamos hoje dá-nos muito mais capacidade para sentir esses conceitos.

Há uma base sim muito sólida onde se estabelecem os princípios e desenvolvimentos espíritas. Para conquistá-la, o espírita deve abraçar com zelo o estudo da doutrina e desvencilhar-se um pouco de velhas concepções. Isso significa avaliar coerentemente o conteúdo dos novos ensinos, compará-los aos antigos, notar as sutilezas nas novas noções aparentemente tão simples. E nunca esquecer também que o mundo onde vivemos é de fato muito maior que nossas vãs concepções podem imaginar.

6 - Referências

[1] Allan Kardec, "O Livro dos Espíritos", 71 edição, Federação Espírita Brasileira (1991).
[2] Eamon Duffy, "Santos e Pecadores, a História dos Papas", Cosac & Naif Edições Ltda, São Paulo (1998).
[3] Silvio Seno Chibeni, "A Excelência Metodológica do Espiritismo II", Reformador, Dezembro de 1988, pp. 373-378 (FEB).
[4] Allan Kardec, "O Evangelho segundo o Espiritismo", 104 edição, Federação Espírita Brasileira (1944)
[5] Emmanuel, "O Consolador", 4 edição, Federação Espírita Brasileira.