4 de setembro de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - V

Ilustrações de seres marinhos por Ernst Haeckel (1834-1919).

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - IV". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

O princípio vital

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Do ponto de vista de seus ingredientes materiais, seres vivos podem ser decompostos pela química em elementos que são indistinguíveis daqueles que formam os minerais. Assim, a síntese de compostos orgânicos constituiu um duro golpe aos que acreditavam que seres vivos eram feitos de uma matéria especial. Neste parágrafo, Kardec pergunta se seres vivos podem ser reduzidos ainda mais aos elementos puramente materiais em um sentido mais profundo:

Sem falar do princípio inteligente, que é questão à parte, há, na matéria orgânica, um princípio especial, inapreensível e que ainda não pode ser definido: o princípio vital. Ativo no ser vivente, esse princípio se acha extinto no ser morto; mas nem por isso deixa de dar à substância propriedades que a distinguem das substâncias inorgânicas.

Em uma lógica que ainda não é apreciado pelas ciências estabelecidas, o Espiritismo tem no princípio inteligente um elemento fundamental que justifica a existência da própria vida. Os seres vivos abrigam o princípio inteligente que evolui ao longo dos séculos em consórcio com a evolução das formas vivas até que ele alcançe o estado da razão. Entretanto, não é esse o tema principal do Parágrafo ora em análise, mas sim o "princípio vital". 

Para se ter entendimento mais exata do motivo para se propor a existência desse terceiro elemento nos seres vivos é relevante uma revisão histórica, inclusive para compreender o debate então vigente sobre ele até o Século XIX. Adiantamos aqui que, em tese, a biologia moderna aboliu completamente a necessidade do princípio vital em suas explicações sobre a vida. Apresentaremos essa revisão mais para a frente.

Para que se tenha uma noção aproximada da relevância do princípio vital (ou como assim parecia sua manifestação aos téoricos da biologia no Século XIX) fazemos aqui uso de uma comparação. Ninguém duvida que um processador eletrônico moderno (que existe em computadores, tablets e telefones celulares) é formado de elementos químicos bem conhecidos. Diversas substânias minerais entram na composição dos "chips" eletrônicos: elementos como o silício, o ferro, o alumínio, germânio e outros. Entretato, a estrutura, composição e arranjo desses elementos nos equipamentos eletrônicos não é suficiente para explicar como esses dispositivos se comportam. Tomo de um telefone celular ligado e corretamente configurado, toco em uma determinada janela que abre um "aplicativo" que me permite ler um mapa onde eu me localizo. Que mágica é essa capaz de conhecer minha posição de forma automática e instantânea ? 

Para compreender como se comportam computadores, celulares e outros dispositivos eletrônicos complexos (Fig. 1), que respondem ao ambiente e realizam funções sofisticadas, precisamos da ideia dos "algoritmos". Esses são longas sequências de comandos inscritos em linguagem lógica que são "decodificados" em arranjos de correntes elétricas que percorrem os circuitos desses equipamentos. Os algoritmos representam estruturas de nível hierárquico superior capazes de controlar a matéria que compõe os equipamentos sem, entretanto, alterar sua estrutura. Além deles, a eletricidade é um importante ingrediente que flui nos equipamentos eletrônicos causando determinados comportamentos. 

Assim, um paralelo entre seres vivos e equipamentos eletrônicos pode ser traçado de forma grosseira, ao se identificar as estruturas orgânicas dos seres com o hardware dos equipamentos, a eletricidade com o princípio vital e os algoritmos com o princípio inteligente. Dessa forma, fica mais fácil compreender a afirmação de Kardec:

Ativo no ser vivente, esse princípio se acha extinto no ser morto; mas nem por isso deixa de dar à substância propriedades que a distinguem das substâncias inorgânicas.

Um equipamento sem fonte de energia não funciona. Da mesma forma, seres vivos são obrigados a extrair do meio a energia que permite a eles viver. Entretanto, a eletricidade (que se caracteriza pela intensidade, modulação e temporização com que flui nos circuitos integrados) permite um paralelo mais preciso com a ideia do princípio vital nos seres vivos. A eletricidade confere aos equipamentos propriedades que não existem naqueles em que esse fluxo for inconforme ou inexistente, ainda que estejam plenamente "carregados". 

Fig. 1 Equipamentos eletrônicos modernos funcionam sob princípios que não dependem apenas dos componentes químicos que os formam. Assim, eles fornecem um paralelo para se compreender as questões ligadas à necessidade do princípio vital nos seres vivos, como apresentadas a partir do Parágrafo 16 no Capítulo X. 

Esse paralelo corresponde à proposta de se entender um ser vivo como um "sistema" organizado de forma hierárquica em que estruturas nos níveis mais inferiores (o "hardware") são operados pelos níveis superiores intangíveis (software). Para isso, "informação" flui entre os níveis, de forma que não é possível decompor e explicar um ser vivo tão somente em termos dos seus elementos químicos. A biologia moderna possui outras paradigmas para explicar as correntes de informação responsável pelo funcionamento dos seres vivos como, por exemplo, a ideia de que informação está "codificada" nos genes que instruem as células na realização de tarefas específicas. Entretanto, haverá sempre uma causa anterior subjacente à organização dos genes como, por exemplo, a fonte de informação responsável pelos próprios genes.

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Neste parágrafo algumas perguntas sobre o princípio inteligente são apresentadas:

Será o princípio vital alguma coisa particular, que tenha existência própria? Ou, integrado no sistema da unidade do elemento gerador, apenas será um estado especial, uma das modificações do fluido cósmico, pela qual este se torne princípio de vida, como se torna luz, fogo, calor, eletricidade?

Como resposta preliminar, Kardec cita as mensagens do Cap. VI em "Uranografia Geral" (ver nossa análise em "Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - CONCLUSÃO") que parecem indicar que o princípio vital não é um elemento a parte, ou seja, não seria um "terceiro princípio", além do material e inteligente. 

Ao contrário, ele é extraído do meio como uma modificação do fluido cósmico universal. De novo nosso paralelo com os equipamentos eletrônicos permite compreender essa proposta uma vez que corrrentes elétricas são extraídas do meio por uma transformação dos recursos energéticos disponibilizados ao equipamento. O princípio vital seria um recurso extraído do meio por meio de transformações especiais específicas aos seres vivos.  

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Na análise dos corpos orgânicos, a Química encontra os elementos que os constituem: oxigênio, hidrogênio, azoto e carbono; mas não pode reconstituir aqueles corpos, porque, já não existindo a causa, não lhe é possível reproduzir o efeito, ao passo que possível lhe é reconstituir uma pedra.

Kardec chama a atenção para outro aspecto que permite compreender a necessidade do princípio vital. Como veremos mais tarde, essa impossibilidade de se reproduzir o efeito apenas pela reunião dos ingredientes fundamentals visíveis ainda continua. Até hoje ainda não foi possível sintetizar um ser vivo - por mais simples que seja - por meios químicos. 

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Neste Parágrafo, Kardec parece apoiar a identificação do princípio vital com a eletricidade:

Os corpos orgânicos seriam, então, verdadeiras pilhas elétricas, que funcionam enquanto os elementos dessas pilhas se acham em condições de produzir eletricidade: é a vida; que deixam de funcionar, quando tais condições desaparecem: é a morte. Segundo essa maneira de ver, o princípio vital não seria mais do que uma espécie particular de eletricidade, denominada eletricidade animal, que durante a vida se desprende pela ação dos órgãos e cuja produção cessa, quando da morte, por se extinguir tal ação.

Não só isso, mas seria possível identificar o princípio com o próprio fluxo de energia no corpo vivo. Essa energia se manifesta de várias formas: química, elétrica e mecânica. Porém, a noção de ''conservação de energia" foi praticamente contemporânea da publicação de "A Gênese" [1]. Dessa forma, na época de Kardec, não seria possível fazer uma distinção clara entre o conceito emergente de energia [2] e o princípio vital. Da mesma forma, quando biologistas aboliram esse princípio da Biologia no início do Século XX, eles não tinham ideia de que ele poderia retornar, anos mais tarde, sob uma nova roupagem teórica e conceitual.

Referências

1. CAHAN, David. The awarding of the Copley Medal and the ‘discovery of the law of conservation of energy: Joule, Mayer and Helmholtz revisited. Notes and Records of the Royal Society, v. 66, n. 2, p. 125-139, 2012.
2. HARRER, Benedikt W. On the origin of energy: Metaphors and manifestations as resources for conceptualizing and measuring the invisible, imponderable. American Journal of Physics, v. 85, n. 6, p. 454-460, 2017.




11 de agosto de 2022

Katsugoro e outros casos de reencarnação no Japão.


"Onde você estava antes de nascer em nossa casa?"

O pequeno Katsugoro de oito anos perguntou a seus irmãos. Para sua surpresa, nenhum deles se lembrava de uma vida anterior como Katsugoro se lembrava. Neste livro, o linguista e parapsicólogo Ohkado Masayuki examina em profundidade esse importante caso sugestivo de reencarnação do Século 19, além de numerosos outros relatos contemporâneos de crianças japonesas que se lembram de vidas passadas. De forma única, o autor também explora casos de crianças que se lembram como estavam entre as vidas e, muitas vezes, mesmo como elas morreram nas vidas anteriores, bem como do intervalo de transição para uma nova vida. Suas descrições tem grandes semelhanças com relatos de experiência de quase-morte. Ainda em outros casos, as crianças relatam memórias antes da concepção, entre a concepção e o nascimento, frequentemente sem associação com memórias de vidas passadas. Ohkado argumenta que a evidência acumulada sugere fortemente que a consciência humana sobrevive à morte do corpo e continua a existir entre um corpo e outro. Esse livro demonstra que os pequeninos em torno de nós são seres espirituais conscientes, que podem ter tido experiências extraordinárias e profundas. 

O caso de Katsugore, assim como exemplos semelhantes por todo o mundo, inspiraram o trabalho do Dr. I. Stevenson da Universidade da Virgínia. Com sua análise completa e comprometida, a obra "Katsugoro e outros casos de reencarnação no Japão" de Ohkado Masayuki traz uma contribuição importante ao conjunto de dados que sugerem a realidade do fenômeno da reencarnação.

Sobre o autor: Ohkado Masayuki é parapsicólogo e professor de linguística no Departamento de Linguagem e Cultura da Universidade Chubu, Japão. Foi professor visitante do MIT, Universidade de Amsterdam e na Divisão de Estudos da Percepção na Universidade da Virgínia.


Observação: Essa é a primeira obra de Masayuki disponível apenas em inglês no site indicado acima.


12 de julho de 2022

Tradução de "Gintanjali" pelo blog Era do Espírito

Capa da tradução de "Gitanjali" lançada em agosto de 2022. 
Baixe o PDF aqui.

Lançamos hoje uma versão online de uma tradução que fizemos da obra Gitanjali de Rabindranath Tagore. Já comentamos aqui uma obra psicografada por Divaldo Franco do famoso poeta indiano. Essa obra chamou nossa atenção para Gitanjali, publicado em 1914 e disponível em acesso público em [1].

Uma tradução do título desse conjunto de poemas, que deu a Tagore o prêmio Nobel de literatura em 1913, é "Oferenda de canção". É uma referência aos cultos hinduístas em que presentes são colocados nos altares de seus muitos deuses. O poeta aqui também faz sua oferenda, só que na forma de "canções" que falam ao coração.

Não é muito difícil perceber a presença do Espiritismo velado nesses poemas. Vejamos alguns exemplos:

Saí no carro do primeiro raio de luz e prossegui minha viagem pelas vastidões dos mundos, a deixar meus rastros em muitas estrelas e planetas. (Poema 12, 2)

É a alma que vive na pluralidade dos muitos mundos habitados a existir nas vastidões universais. 

Dia após dia me fazes merecedor de regalos simples e pequenos que me concedes sem perguntar – esse céu e a luz, esse corpo, a vida e o espírito – poupando-me dos perigos dos desejos em excesso. (Poema 14, 2)

É a alma que deve aprender a se contentar com os presentes aparentemente simples e pequeninos que a Divida Providência lhe dispensa a cada dia.

Não seriam estes os pássaros de Tagore que foram recontados em sua obra "Pássaros Livres" pelo médium Divaldo Franco?

Então, tuas palavras tomarão asas nas canções de cada um dos ninhos de meus pássaros, e tuas melodias brotarão em flores de todos os meus bosques. (Poema 19, 3)

São as referências a Deus na figura do grande amado:

És tu quem lança o véu da noite sobre os olhos combalidos do dia para renovar sua visão nas frescas alegrias do despertar. (Poema 25, 3)

Tu não desdenhaste minhas brincadeiras infantis na poeira, e os passos que ouvi em minha sala de jogos são os mesmos que ecoam entre as estrelas. (Poema 43, 3)

Ou uma referência à bravura que a alma encarnada deve ter para viver bem, tendo como companheira a morte como grande libertação:

De agora em diante, medo algum cairá sobre mim neste mundo, e tu sairás vitorioso em todas as minhas batalhas. Deixaste-me a morte por companheira e eu a coroarei com minha vida. Tua espada está comigo para cortar meus grilhões e nenhum medo cairá sobre mim neste mundo. (Poema 52, 4)

E onde mais, se  não no plano espiritual superior, seria possível encontrar esta descrição de pátria:? 

Onde o espírito é destemido e a fronte se mantém erguida;
Onde o conhecimento é livre;
Onde o mundo não se divide em fragmentos desde as estreitas paredes do lar;
Onde as palavras nascem das profundezas do mais verdadeiro;
Onde o inesgotável empenho lança seus braços em direção à perfeição;
Onde a corrente cristalina da razão não se perde pelos cursos dos tristes desertos de areia dos hábitos desfalecidos;
Onde o espírito é conduzido por ti na direção da ação e do pensamento sem limites - 
Dentro desse céu de liberdade, oh meu Pai, faz com que aí se erga a minha pátria. (Poema 35)

Para baixar o PDF com a tradução, basta clicar aqui ou na referência apresentada na figura acima. A tradução também pode ser encontrada na aba "Livros do blog".

Referências

[1] Gitanjali by Rabindranath Tagore: https://www.gutenberg.org/ebooks/7164 

1 de julho de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - IV

Imagem da referência: Les merveilles de l'industrie ou, Description des principales industries modernes por Louis Figuier. - Paris : Furne, Jouvet, (1873-1877)

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - III". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

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A questão da origem dos compostos orgânicos é considerada neste parágrafo por Kardec. Essa indagação é relevante porque, nas diversas teorias sobre a vida que surgiram no Século XIX, havia os que achavam que apenas a Natureza poderia criar compostos orgânicos. A síntese em laboratório de compostos orgânicos foi um passo importante para se entender que, nos fundamentos que sustentam a vida, estão regras que se aplicam a qualquer tipo de matéria. 

De qualquer forma, era necessário explicar a origem dos compostos químicos desde a gênese da Terra. Estariam os materiais já disseminados ou eles teriam sido formados pelas inúmeras modificações ocorridas no planeta? De fato, considerando que, em sua origem, a Terra se encontrava aquecida com todos os elementos volatilizados:
no ar se encontravam, em estado gasoso, todas as substâncias primitivas. Precipitadas por efeito do resfriamento, essas substâncias, sob o império de circunstâncias favoráveis, se combinaram, segundo o grau de suas afinidades moleculares.
Dado esse princípio geral, é objeto da pesquisa científica presente determinar as rotas de síntese que percorreram séculos desde a gênese e que explicam as presente constituição química dos materiais encontrados de forma natural no planeta. 

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O desenvolvimento científico não ocorre de forma independente nos diversos ramos de especialização. Uma determinada área pode contribuir substancialmente com o desenvolvimento de outra. Foi assim que a química se tornou fundamental para o avanço da geologia, da mesma forma como essa última com a astronomia contribuíram para compreender a gênese.

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Um exemplo da importância do conhecimento das leis que regem a relação entre átomos e moléculas é no fenômeno da cristalização, apresentado por Kardec neste parágrafo. Um cristal é um sólido regular formado por átomos, íons ou moléculas que se arranjam conforme uma configuração geométrica que se repete. Para ilustrar que a formação desses "corpos sólidos" é regido por leis específicas, Kardec aqui cita alguns exemplos. O açúcar candi (C12H22O11) forma cristais cúbicos que exigem de 5 a 15 dias para formação em uma solução resfriada e saturada de açúcar. A sílica forma cristais de seis faces. O diamante é formado de carbono que forma uma estrutura cúbica. Finalmente, o exemplo dos cristais de gelo e sua estrutura hexagonal é também citado como um fenômeno popularmente conhecido. 
  
Fig. 1 As 7 formas geométricas dos cristais. Algumas delas são citadas no Parágrafo 11 como estruturas regulares de corpos minerais que surgem na Natureza. Fonte: [1]

A forma dos cristais pode ser organizada em 7 classes como mostradas na Fig. 1. Nessa figura também são fornecidos outros exemplos. A organização muito regular dos cristais é explicada assim:
A disposição regular dos cristais corresponde à forma particular das moléculas de cada corpo. Essas partículas, para nós infinitamente pequenas, mas que não deixam por isso de ocupar um certo espaço, solicitadas umas para as outras pela atração molecular, se arrumam e justapõem segundo o exigem suas formas, de maneira a tomar cada uma o seu lugar em torno do núcleo ou primeiro centro de atração e a constituir um conjunto simétrico.
Modernamente a disposição regular é conhecida como resultado da maneira como se arranjam as ligações químicas entre as moléculas, átomos ou íons que formam cada substância. Para que seja possível o arranjo simétrico e a repetição da estrutura por milhares de distâncias na escala atômica, condições especiais devem existir. No caso da formação dos cristais de açúcar, por exemplo, o meio aquoso não pode estar aquecido. A redução da temperatura justamente corresponde à redução da agitação entre as moléculas, o que permite a elas encontrar um ponto de menor energia para a formação do cristal. Essa descrição em termos de "minimização de energia" ainda não era conhecida na época em que "A Gênese" foi publicada. 

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Como resultado da descoberta da grande unidade de princípios que governam as leis naturais, as mesmas regras que organizam minerais também imperam sobre a formação dos corpos orgânicos. Isso mostrará que,  do ponto de vista do elemento material, não há diferenças entre seres vivos e minerais. Neste parágrafo, Kardec explica que a química já demonstrou serem os corpos orgânicos formados majoritariamente por quatro elementos químicos principais:
  • Carbono
  • Nitrogênio
  • Oxigênio
  • Hidrogênio
e que outros elementos "entram acessoriamente". Igualmente relevante é o fato de que a enorme variedade e diversidade de aparências e comportamentos das substâncias orgânicas ser explicado pela química como resultado das diferentes proporções como cada um dos quatro elementos principais (e seus acessórios) entram em cada substância. Tanto assim que Kardec inclui uma tabela contendo uma análise química da época das proporções de cada elemento em diversas substâncias. No caso, o "açúcar de cana" (que contém um teor de sacarose maior), a proporção da tabela é: 42,47% de C, 6,9%  de H, 50,63% de N. 

Conforme já citado acima, a fórmula química do açúcar é C12H22O11. Hoje sabemos que a massa atômica do C é de 12u (unidades atômicas), a do H é 1u e a do O é 16u. Portanto, em termos de unidades de massa atômica, o açúcar (puro) teria o equivalente a 342u. Cada elemento de sua composição entraria nas seguintes razões:
  • C: 12 x 12u ou 144u: razão de 144/342 = 42,1%,
  • H: 22 x 1u ou 22u: razão de 22/342 = 6,4%,
  • O: 11 x 16u ou 176u, razão de 176/342 =  51,4%
o que corresponde aproximadamente aos valores que constam para o açúcar da cana na tabela de "A Gênese". Portanto, a tabela mostra a "proporção de massa" de cada elemento nas diversas substâncias citadas. 

Fig.2 "Forma" da molécula da fibrina (segundo 2), substância citada por Kardec na Tabela que acompanha o parágrafo em estudo. 
Um exercício (de química e álgebra) que deixamos para o leitor é encontrar as quantidades em unidades atômicas de cada elemento da quadrupla (C, N, O, H) para a fibrina usando as proporções de massa dadas na tabela. Depois disso, ele pode comparar seu resultado com a fórmula mais contemporânea para a Glicil-N-Metilglicinamida [2] (Fig. 2) que é um outro nome pelo qual  fibrina é conhecida hoje em dia.

Um princípio geral que deve ser lembrado aqui é expresso na parte final do parágrafo:
Assim, na formação dos animais e das plantas, nenhum corpo especial entra que igualmente não se encontre no reino mineral.
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Esse princípio tem importância fundamental para explicar como surgem as inúmeros "tecidos orgânicos" na Natureza e como podem eles ser tão diversos em aparência. Um exemplo de reação química citada por Kardec para explicar a criação de compostos orgânicos muito específicos a partir de ingredientes bastante diferentes do produto  final é a reação de fermentação ("no suco de uva, não há vinho, nem álcool, mas apenas água e açúcar"). Em sua forma mais simplificada [3], essa reação pode ser escrita como:

C6H12O6 → 2 C2H5OH + 2 CO2

que expressa a conversão de um mol de açúcar em dois moles de etanol e dióximo de carbono. Essa reação não ocorre de forma simples, mas é resultado de uma cadeia de reações em que entram outros compostos chamados "enzimas" (e que também fazem parte das "condições necessárias" segundo Kardec). 

Kardec também se refere (sem citar referências) às concepções pueris antigas que acreditavam preexistir em cada material orgânico "animálculos" (sob "microscópica forma") responsáveis pela  aparência e função completa do ser no futuro. Essas teorias foram conhecidas como "preformacionistas" (final do Século XVII) das quais a chamada "tese do homúnculo" (Fig. 3) pretendia explicar o ser humano como resultado do crescimento de um ser preexistente e plenamente formado em sua "semente" ou sêmen.
Fig. 3 O homúnculo de Hartsoeker. Fonte [4]
Ao contrário,  Kardec enfatiza que, no crescimento dos vegetais:
Esse gérmen se desenvolve por efeito dos sucos que haure da terra e dos gases que aspira do ar.
Disso segue que toda a matéria que compõe os seres vivos foi acumulada a partir de elementos externos do meio em que ele vive e transformada por reações químicas em um "trabalho íntimo" que ocorre no interior de cada ser.  Conforme [5], o preformacionismo somente foi descartado no final do Século XIX com o desenvolvimento da teoria da célula, o que nos leva a concluir que Kardec estava aqui bem informado sobre os progressos científicos de sua época a ponto de defender, em "A Gênese", as ideias mais avançadas. 

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Resume-se o que foi anteriormente afirmado e enfatiza-se o papel das "condições propícias", que hoje são conhecidas como as "condições do ambiente" a favorecer a formação não só de compostos orgânicos mas também dos seres vivos. Essas condições surgem por causa da lei das afinidades que permite a combinação dos elementos químicos nas proporções corretas para a formação de produtos mais complexos, desde que verificadas as condições externas. 

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Kardec reafirma a "imutabilidade das leis da Natureza". Portanto, para conhecer o que se passou há milhares de anos - nas questões da gênese material e orgânica - basta observar seu comportamento na atualidade. Esse é outro importante princípio que subjaz à lógica científica moderna. 

Portanto, conclui Kardec, a formação dos seres vivos, assim como dos minerais, seguiu essas leis imutáveis sob condições específicas que se tornaram ativas à medida que a geologia e o clima da Terra se modificaram. "Miraculosamente" essa modificação nas condições foi para intensificar a combinação entre as substâncias e, portanto, a formação dos seres que delas dependiam direta ou indiretamente. 

Por fim, Kardec compara a reprodução dos seres ao processo de cristalização dos minerais, o que indica que, operando com base nas mesmas leis, essa semelhança de "forma e de cores" pode ser explicada novamente pela presença de átomos ou moléculas a se combinarem em proporções específicas verificadas as "condições propícias".

Referências