18 de março de 2012

O Espiritismo como forma de conhecimento (texto de Érico Bomfim)


Ao longo de nossos estudos no eradoespirito também podemos postar textos ou artigos originais de pessoas que tenham interesse em participar do blog. Este é um exemplo. Trata-se de um texto interessante para reflexão escrito por Érico Bomfim. Saiba mais sobre este autor no final do post. 

O Espiritismo se opõe frontalmente às tendências majoritárias da filosofia recente. Ao resgatar a sobrevivência da alma e a reencarnação, o Espiritismo é visto como uma verdadeira anomalia na história do pensamento; é visto como afinado com ideias antiquadas e primitivas, como sendo um aglomerado de velhas supertições. No entanto, como explica Kardec (2009a) “uma ideia não é supersticiosa senão porque ela é falsa; ela cessa de sê-lo desde o momento em que é reconhecida verdadeira. A questão, pois, é saber se há, ou não, manifestações de espíritos”.

É em razão de seu conteúdo, portanto, que o Espiritismo sofre ataques. Nunca em razão de sua forma. No entanto, os mais diversos conteúdos são examinados pelas ciências. Segue-se daí que não é o conteúdo que determina uma atividade humana como sendo uma ciência. É a forma. Explicamos.

Por forma, aqui, entendemos as estruturas de acordo com as quais constroem-se as diversas ciências, segundo a epistemologia contemporânea (ver Apêndice). Por conteúdo, entendemos o assunto abordado. Por exemplo, a Filosofia da Natureza, dos pré-socráticos, e as diversas ciências da natureza estudam, por vezes, os mesmos assuntos. No entanto, suas formas são diferentes. O nível de especulação na primeira é muito maior, porque o de observação é muito menor.

A observação restringe as teorias (muito mais do que as “comprova”). É por isso que confia-se muito mais nos postulados da astronomia do que nos da cosmologia pré-socrática. Pode-se dizer que a confiança que se tem na ciência se dá porque nela a observação dos fatos tende a não permitir que os equívocos se perpetuem. De fato, quando uma teoria está errada, espera-se que os fatos o mostrem.

O Espiritismo está para todos os sistemas metafísicos anteriores (religiosos ou filosóficos), assim como a astronomia está para a cosmologia pré-socrática. O Espiritismo é a primeira atividade humana a estudar o suprassensível pela forma científica. Todos os sistemas anteriores tinham um alto nível de especulação. A coisa é bastante simples: nunca antes houve uma ciência que perguntasse aos espíritos (após verificar sua existência* ) como é o seu mundo. É por fazer isso que os postulados espíritas gozam de tanta segurança. Negar o Espiritismo porque ele parece “anacrônico” ou “antiquado” seria como negar que o Sol é o centro do sistema solar porque Jesus não pode ter encarnado na periferia. Ora, se a Astronomia observa que o Sol está no centro do sistema solar, ele não se deslocará para satisfazer a um capricho cristão. Do mesmo modo, se os espíritos reencarnam e progridem, e se essas são leis do mundo espiritual, não deixarão de fazê-lo porque isso parece uma ideia ultrapassada. “A questão, pois, é saber se há, ou não, manifestações de espíritos”, porque, se houver, não deixará de haver porque são vistas como superstição. Mas ainda se fará uma objeção: será possível fazer ciência do que não se dá aos sentidos, mas está além desses; será possível fazer ciência do suprassensível?

A História, muitas vezes, nos fala de um passado do qual nós não tivemos a experiência e nem por isso deixa de ser ciência. A ninguém ocorre questionar que o Brasil se tornou independente de Portugal em 1822 por não poder vê-lo com seus próprios olhos. As manifestações espíritas equivalem aos documentos históricos, porque tanto as primeiras como os segundos nos pintam um mundo do qual nós não podemos ter conhecimento a não ser através deles.

Os críticos que unirem obstinação e ignorância extrema farão ainda um ataque final: “Como poderá haver ciência do sobrenatural, uma vez que este foge a quaisquer leis e regularidades, que são necessidades da atividade científica?” De fato, segundo Marilena Chaui (2010) a atitude científica “opera um desencantamento ou desenfeitiçamento do mundo, mostrando que nele não agem forças secretas, mas causas e relações racionais que podem ser conhecidas e que tais conhecimentos podem ser transmitidos a todos”.

Ora, todo aquele que está familiarizado com Kardec sabe que nada ilustraria melhor sua postura do que o trecho citado acima. Mas para os que ainda não o estão, deixemos que o próprio Kardec lhos mostre:
O Espiritismo repudia, no que lhe concerne, todo efeito maravilhoso, quer dizer, fora das leis da Naureza. Ele não faz nem milagres nem prodígios, mas explica, em virtude de uma lei, certos efeitos até hoje reputados como milagres e prodígios, e por isso mesmo demonstra sua possibilidade.(Kardec, 2009a) 
[O Espiritismo] diz e prova que os fenômenos sobre os quais se apoia não têm de sobrenatural senão a aparência. (…) Mas eles não são mais sobrenaturais que todos os fenômenos aos quais a Ciência hoje dá solução, e que pareceram maravilhosos numa outra época. Todos os fenômenos espíritas, sem exceção, são a consequência de leis gerais e nos revelam um dos poderes da Natureza, poder desconhecido, ou dizendo melhor, incompreendido até aqui, mas que a observação demonstra estar na ordem das coisas. (…) Aqueles que o atacam a esse respeito é porque não o conhecem(Kardec, 2009). 
O maravilhoso, expulso do domínio da materialidade pela ciência, entrincheirou-se no da espiritualidade, que foi o seu último refúgio. O Espiritismo, em demonstrando que o elemento espiritual é uma das forças vivas da Natureza, força incessantemente agindo concorrentemente com a força material, fez de novo entrar os fenômenos que dela ressaltam no círculo dos efeitos naturais, porque, como os outros, estão submetidos a leis. Se o maravilhoso foi expulso da espiritualidade, não tem mais razão de ser, e é então somente que se poderá dizer que passou o tempo dos milagres (Kardec, 2009b).
O Espiritismo, portanto, longe de se nutrir do sobrenatural, operou o desencantamento final do Universo.

Apêndice: alguns critérios para se avaliar uma teoria ou hipótese.

Aqui são expostos de maneira muito geral e extremamente simplificada alguns esboços dos critérios das principais teorias da filosofia da ciência contemporânea para se avaliar uma teoria ou hipótese:
  1. Popperiano: Para o filósofo da ciência Karl Popper, uma hipótese só é científica se for falsificável, isto é, apenas se houver algum fato que, se observado, a torne falsa. Uma hipótese que sabe-se de antemão que se encaixa em qualquer fato observável não é, portanto, tolerável na ciência. Por exemplo, se um criacionista diz que Deus forjou as provas da evolução para testar a nossa fé, é difícil imaginar qualquer fóssil ou qualquer prova da evolução que, se encontrado, convença-o de que sua hipótese é falsa. Ainda que se encontre um ancestral de uma espécie qualquer congelado e em perfeitas condições, o criacionista dirá que Deus criou aquela prova para testar a nossa fé. Não há qualquer fato que, se observado, torne a hipótese criacionista falsa, para um criacionista. Sua hipótese de que Deus criou as provas da evolução para testar a nossa fé se adapta a qualquer fato que se verifique, porque o criacionista alegará que Deus, sendo onipotente, pode ter criado qualquer prova da evolução, com aquele intuito de nos testar.
  2. Kuhniano: para o filósofo da ciência Thomas Kuhn, uma teoria resiste até que acumule anomalias, ou seja, fatos que ela não explica. Em outras palavras, quando observam-se diversos fatos que uma teoria não explica, essa teoria é substituída por outra em que os fatos se encaixem. A teoria em que os fatos se encaixam é parte de um paradigma estável, porque não acumulou anomalias.
  3. Lakatosiano: Para o filósofo da ciência Imre Lakatos, uma teoria é tão melhor quanto mais antecipa os fatos. Uma teoria que prevê os fatos, além de se adequar aos já observados, é considerada integrante de um programa de pesquisa progressivo. A teoria que faz previsões equivocadas e precisa de explicações adicionais para dizer por que errou, correndo assim atrás dos fatos, integra um programa de pesquisa degenerante.
(*) Não tratamos aqui das evidências da sobrevivência e da comunicabilidade dos espíritos. Este seria um assunto para muitos artigos.

Referências

Chaui M. (2010). “Convite à Filosofia”. Ed. Ática. São Paulo.
Chibeni S.. “O que é Ciência?”
Kardec A. (2009) . “O Livro dos Espíritos”. Ed. IDE. Araras, SP.
  • (2009a) “O que é o Espiritismo".  Ed. IDE, Araras, SP.
  • (2009b) “A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo”.  Ed. IDE, Araras, SP.

Sobre Érico Bomfim.

Nascido em 1991, no Rio de Janeiro e cursando (2012) o último ano de bacharelado em piano pela UFRJ. 

10 de março de 2012

Aborto, Infanticídio e o artigo de Giubilini e Minerva.

Muita gente pensa que discussões de natureza filosófica são inúteis. Não conseguem entender a amplitude das consequências de se assumir posturas ou visões aparentemente 'práticas' em relação a certos assuntos mas que, sob análise mais detalhada, não passam de visões filosoficamente mal embasadas, com deficiências fundamentais em vários níveis. Isso acontece com frequência nas questões ligadas ao aborto, infanticídio, eutanásia e pena de morte. 

Podemos chamar esses problemas de 'problemas limiares', pois eles ocorrem quando consideramos as  posturas de determinadas doutrinas aplicadas no início ou no final da vida dos indivíduos - dai o termo 'limiar' ou 'limite'. Uma vez que inexiste uma teoria ou 'visão' suficientemente abrangente do que seja um 'ser humano', permanecem disputas entre grupos rivais que se apegam a determinados pontos de vista quando se trata de legislar sobre esses limites. Dessa forma surgem questões do tipo: quando começa realmente a vida de um indivíduo? Quando ela termina? Sob que bases irá se estabelecer o direito de se 'deixar viver' ou 'cessar a vida' nesses limites?

Nosso objetivo aqui ainda não é discutir essas questões sob a ótica espiritualista. Porém, não precisamos ir tão longe na análise que hora nos propomos, após uma breve leitura do artigo "After-birth abortion: why should the baby live?" (Aborto depois do nascimento: por que os bebês devem viver?) de A. Giubilini e F. Minerva (2012, ref. 1), e que pretende apresentar uma 'nova visão' com o objetivo de justificar o infanticídio como uma generalização de práticas abortivas.

Leitores menos avisados podem pensar que nosso objetivo aqui é dar força ao discurso reacionário e fanático (Nota 1) dos que 'defendem a vida' nessas questões. Nada disso. Insistimos que não é necessário tanto esforço e empenho assim para refutar tanto os argumentos como as conclusões desses dois autores. Nosso objetivo é discutir esse artigo e a sua 'cientificidade' como sugerida pela formação acadêmica de seus autores.

Objetivos do artigo

O resumo do trabalho traz de forma sumária o objetivo dos autores:
"O aborto é largamente aceito por razões que nada tem a ver com a saúde do feto. Mostrando que: (1) tanto o feto como o recém nascido não tem o mesmo status moral de pessoas; (2) o fato de ambos serem pessoas potenciais é moralmente irrelevante; (3) a adoção nem sempre é de interesse das pessoas, os autores argumentam que o que chamamos de 'aborto pós nascimento' (requisitar a morte de um recém nascido) deve ser permitido em todos os casos em que o aborto é, inclusive se o recém nascido não é portador de deficiência." (Ref. 1, Abstract)
O objetivo dos autores é estender a validade ou permissão para execução de um recém nascido (inclusive se ele não é deficiente) com base nas mesmas premissas que permitem que o aborto seja realizado. Com certo cinismo, os autores preferem chamar essa nova prática de 'aborto pós-nascimento' a infanticídio (Ref. 1, parágrafo 9). A questão das palavras é a menos importante aqui. Para esse objetivo, eles lançam mão de 3 'princípios' que reduziremos a apenas um que, além disso, é incoerente do ponto de vista da lógica.  

Análise da definição principal dos autores

Iniciamos pela análise da primeira premissa que, veremos, é a principal . Por 'pessoa' os autores entendem:
Um indivíduo que é capaz de atribuir a sua própria existência ao menos um valor básico de forma que, caso seja suprimida sua existência, isso represente uma perda para ele. (Ref. 1, Parágrafo 14)
E, explicam:
Nosso ponto é que, embora seja difícil dizer exatamente quando um indivíduo pode ser chamado de 'pessoa', uma condição necessária para o indivíduo ter o direito a X é que ele seja prejudicado por uma decisão que o impeça de ter X. (Ref. 1, Parágrafo 15)
Ora, os próprios autores reconhecem que a definição que usam, como descrita acima permite que se atribua o caráter de 'pessoa' a certos animais (como mamíferos e outros). Também afirmam que isso é uma 'condição necessária', sem dizer nada sobre ser uma condição 'suficiente'. Por isso, essa definição exclui pessoas em condições severamente restritivas (como pacientes em estado de coma e, até mesmo, determinada classe de desvios mentais). Uma vez que fetos e recém nascidos guardam pouca diferença do ponto de vista dessa definição, tudo o que se pode aplicar a fetos seria igualmente aplicável a recém nascidos que, consequentemente, teriam um status de 'pessoa' inferior a de alguns animais. Para os autores, fetos e recém nascidos 'apenas tem a capacidade de sentir prazer e dor' e, portanto, 'tem apenas o direito de não sentir dor' (Ref 1, parágrafo 16). É interessante também ver que os autores não retiram o caráter de 'pessoa' a um indivíduo tão só porque tenha qualquer deficiência: afirmam que "pessoas com síndrome de Down e mesmo aquelas afetadas por outras incapacidades severas frequentemente são descritas como felizes" (Ref. 1, parágrafo 7).

Entretanto, não é necessário ter doutorado em filosofia (que é o título acadêmico de um dos autores) para se perceber que a definição de 'pessoa' que fundamenta a premissa dos autores não é válida, pois ela não é uma condição independente. Em outra palavras, a definição de pessoa usada pelos autores depende justamente do que pretendem subtrair dos recém nascidos, que é a chance de ter a condição de se atribuírem valor a suas existências. 

Para tornar a questão mais clara, podemos fazer uso de um exemplo simples  que os próprios autores da Ref. 1 chegam a citar (talvez ingenuamente, ver parágrafo 15). Podemos aplicar o raciocínio a bilhetes de loteria (Fig. 1) ao dizer que de todos os bilhetes emitidos antes de um sorteio de um prêmio, os melhores certamente são os bilhetes premiados (ou seja, de todos os seres vivos, 'pessoa' são apenas aqueles que são prejudicadas caso sofram uma perda). Isso é uma premissa obviamente válida. Dado que o sorteio ainda não aconteceu (dado que recém nascidos ainda não são crescidos), eu posso, certamente, me livrar de um determinado bilhete (jogá-lo fora ou dar para o primeiro desconhecido na rua) porque não sei se ele é premiado ou não (posso me livrar dos recém nascidos também). Ora a 'premissa' depende justamente de esperar correr o sorteio (esperar que o recém nascido vingue). A conclusão é obviamente inconsistente, pois sou levado a me desfazer de um bilhete possivelmente premiado.

Fig. 01
Esse erro elementar permite entender a confusão em que os autores se metem ao tentar encontrar outras razões ou direitos residuais (ou 'reais' como eles descrevem) que seriam atribuídos aos responsáveis pela criança, dado que ela não é uma pessoa :
Agora, dificilmente pode-se dizer que um recém nascido tem objetivos, já que o futuro que imaginamos para ele é meramente uma projeção de nossas mentes sobre suas vidas potenciais. Eles podem começar a ter expectativas disso ou desenvolver um mínimo senso de auto percepção em idade bem pequena, mas não nos primeiros dias ou semanas depois do nascimento. Por outro lado, não somente objetivos mas também planos bem desenvolvidos  são conceitos que certamente se aplicam àquelas pessoas (pais, parentes, sociedade) que poderiam ser positiva ou negativamente afetados com o nascimento da criança. Logo, os interesses e direitos dessas pessoas envolvidas representam as considerações prevalecentes na decisão de se proceder ou não com um aborto ou aborto pós nascimento. (Ref. 1, parágrafo 16).  
E, mais para frente (na seção "Feto e recém nascido não são pessoas potenciais"):
Pode se afirmar que alguém é prejudicado ao ser impedido de se tornar uma pessoa capaz de ter consciência de estar viva. Assim, por exemplo, pode-se dizer que teríamos sido prejudicados caso nossas mães tivessem decidido nos abortar antes do nascimento ou se tivéssemos sido mortos logo após ele. Entretanto, ao mesmo tempo que você pode ajudar uma pessoa ao trazê-la à existência (desde que essa vida valha a pena), não faz sentido dizer que se prejudica uma pessoa ao impedi-la de se tornar uma pessoa. A razão se deve ao nosso conceito de de 'prejuízo' na seção anterior que exige que esse alguém esteja na condição de experimentar esse prejuízo(Grifos nossos, Ref. 1, parágrafo 19).    
Portanto, os autores claramente utilizam de maneira equivocada uma definição que não é suficiente. Essa definição é ruim não porque é arbitrária, mas porque define seu objeto por meio de uma característica que ele não tem

Também parece ser consequência da visão deficiente dos autores o tentar localizar onde estaria esse 'futuro' e atribuí-lo aos adultos responsáveis pela criança. É como se quisessem tornar esse futuro palpável, já que é realmente relevante para a definição que fazem uso para uma 'pessoa': "Onde está o futuro da criança? Na cabeça dos pais, pois feto e recém nascido não são pessoas...". Em um movimento precário de extrapolação de premissas insuficientes, eles pretendem substituir o dever desses adultos em velar pelo bem estar do recém nascido pelo direito de se livrar deles, caso sejam um empecilho. 

Quanto ao segundo argumento, o de que fetos e recém nascidos não são pessoas potenciais, ele não é valido, pois é baseado na premissa que já demonstramos ser inconsistente. Alem disso, ao justificar a razão para se livrar de um recém nascido os autores consideram:
Não obstante isso, criar tais crianças pode ser um fardo intolerável para à família e sociedade como um todo, quando o estado é responsável economicamente por ela... Portanto, sustentamos que, quando tais circunstâncias ocorrem depois do nascimento e que justificariam um aborto, elas devem justificar também o aborto após nascimento. (Ref. 1, parágrafo 8, grifo deles.)
No que consiste esse  'fardo intolerável' (unbearable burden)? Em falta de condições econômica suficientes para criar a criança. De novo, não é necessário ter doutorado em filosofia para se concluir que o aborto pós nascimento está sendo sugerido especialmente para crianças de famílias pobres.

De resto, não precisamos nos preocupar com outros 'argumentos' e justificativas colocadas pelos autores, já que o principal deles é inconsistente. O terceiro argumento, por exemplo, o de que 'adoção nem sempre é uma alternativa' também se baseia na primeira definição refutada, já que o status moral da criança deriva da mãe pelo raciocínio dos autores, a qual pode preferir o assassinato de seu filho a levá-lo à adoção (segundo sugestão dos autores, ver Ref. 1, parágrafo 24). 

Conclusão

A maneira como os argumentos são colocados por esses dois autores incorre em tantos erros primários de lógica e raciocínio que essa publicação, não obstante ter sido considerada 'muito importante' (Ver Notas) por alguns críticos, não se assemelha a proposta de pesquisadores acadêmicos no assunto. Os autores não tornam explícitas as condições suficientes para sua definição de 'pessoa', que consideramos ser relevante em todas as discussões desse tipo. Há falha nas definições que permitem desqualificar esse artigo como algo útil tanto para os que defendem as ideias de seus autores (na forma de uma nova variedade de infanticídio) como os que defendem o aborto de forma geral.

Ninguém nega o direito de publicação aos autores ou ao editor da revista, mas certamente este artigo, pela sua qualidade duvidosa, não está a altura que o assunto merece.

Por outro lado, propomos meditar a seguinte questão: se a prática de 'novo infanticídio', como sugerida pelos autores da Ref. 1, pode ser considerada abominável e, pelas mesmas razões que nos levam a supor não existirem diferenças morais entre um feto e um recém nascido (por causa de seu desenvolvimento orgânico), então, não seria igualmente uma prática abominável o aborto quando este não represente claramente uma ameaça à vida da mãe? 

Agradecimento

Agradeço ao A. Caroli Rocha por me indicar todas as referências.

Notas 

Poucas críticas apareceram até agora explorando as relações e consequências dos argumentos dos autores. Destacamos outras referências abaixo:
  1. Artigo científico defende como moralmente aceitável a morte de um recém-nascido. De fato, o maior impacto provocado pelo artigo foi contra seus autores por parte dos assim denominados 'fanáticos'. 
  2. Um exemplo é o texto de João P. Coutinho 'Bebês para abate', publicado na Folha de S. Paulo a 6 de Março de 2012.
  3. Blog de R. Azevedo (2/3/2012), "Eles chegaram lá: dupla de especialistas defende o direito de assassinar tambem os recém nascidos".
Referências

1 - A. Giubiline e F. Minerva (2012), J. Med. Ethics, doi:10.1136/medethics-2011-100411


3 de março de 2012

Conceitos básicos de Física Quântica II


O homem não pode, pelas investigações das ciências, penetrar em alguns dos segredos da natureza? A ciência lhe foi dada para seu adiantamento em todas as coisas, mas não pode ultrapassar os limites fixados por Deus. (´'O Livro dos Espíritos, Questão #19)

Apresentação elementar de conceitos básicos em física quântica para que o leitor possa melhor julgar e se posicionar diante dos que pretendem misturar espiritualismo com essa especialidade da física.

O caráter não ordinário da experiência das duas fendas (ver post anterior) é porque a Natureza revela um comportamento ondulatório, mesmo para objetos pertencentes ao mundo físico que antes imaginávamos bem sólidos. Como dissemos, o experimento das duas fendas surgiu nos estudas da óptica, ou seja, com fenômenos luminosos. Poderíamos nos perguntar se a luz, apresentando esse comportamento, de fato revela algo essencial e definitivo na natureza em seu comportamento ondulatório. Contrariamente ao esperado tal não acontece. A luz também se comporta como uma partícula!

O efeito fotoelétrico

O experimento crucial que demonstra esse fato é o efeito fotoelétrico explicado por Einstein (1905) como a colisão de fótons com elétrons. Na Fig.3 ilustramos o efeito. Um placa (E de emissor) é iluminada por luz. Elétrons são arrancados e recolhidos por uma segunda placa (C de coletor):

Fig. 3 Ilustração do princípio do efeito fotoelétrico.
Se as placas forem ligadas a um circuito elétrico externo, uma corrente elétrica flui. Esse sistema tem inúmeras aplicações tecnológicas tais como sensores de intensidade de luz (fotômetros), baterias solares, câmeras fotográficas digitais etc. A única explicação possível para o fenômeno é se admitirmos que partículas luminosas colidem diretamente com os elétrons, fornecendo energia a eles que é suficiente para iniciarem a jornada até a placa C. Cada partícula de luz fornece o chamado quantum de energia aos elétrons, que depende bastante da espectro (ou freqüência das oscilações luminosas) característico da fonte de luz. Para retirar um elétron do metal é necessário uma certa energia que chamamos de E. Os elétrons livres adquirem uma energia cinética que denotaremos por K. A relação fundamental descoberta por Einstein então se escreve:

hf = K + E

onde f é a freqüência da luz incidente (número de vibrações por segundo) e h é uma nova constante conhecida como constante de Planck (=6,6E-34 Js). Essa relação diz duas coisas: que a energia associada ao quantum de luz é dada pelo produto hf e que tal energia é dividida no fenômeno entre a energia de liberação (representada pelo potencial K) e a energia cinética ou energia de movimento (E) da partícula. Se existir um potencial mínimo para a liberação do elétron do material (concebivelmente, o elétron está associado ao material e precisa de energia para ser libertado), então apenas quando a energia luminosa conseguir atingir o valor característico do material é que o efeito fotoelétrico ocorrerá (o necessário para que E>0).


Na mecânica clássica (que é a mecânica dos objetos macroscópicos) sabemos que objetos possuem uma energia característica que é uma medida de sua liberdade dentro de um sistema ('sistema' aqui é entendido de forma bem geral como um arcabouço físico ou arrajo que permite que determinados fenômenos ocorram). Consideremos, por exemplo, um objeto movendo-se em uma dimensão como mostra a Fig.4. Esse objeto tem uma energia cinética inicial que chamamos de E. Imaginemos que ele seja lançado contra uma barreira de potencial de origem gravitacional, isto é, trata-se de um “morro” que o móvel pode transpor ou não dependendo de sua energia inicial. Se o “morro” tem altura A, dado que a massa do corpo é m e a aceleração da gravidade é g, somente haverá transposição da barreira se

E > mgA

ou seja, somente se E for maior que a energia potencial como determinada pela altura da barreira. Tal processo é chamado de espalhamento clássico. Sabemos que desde que o objeto tenha energia suficiente para transpor a barreira, ele será encontrado no lado direito como mostra a fig. 3. Se não ele retorna em sentido contrário como mostra a Fig. 4 para E < mgA .

Fig. 4 Processo de espalhamento 'clássico'.
Aspectos bastante inusitados aparecem se considerarmos o processo de espalhamento de uma “partícula quântica” por um potencial Vo (ver fig. 5). Como vimos uma partícula quântica não se comporta bem como uma partícula. Devemos associar uma onda de probabilidade a ela. Por causa do caráter probabilístico, não se pode falar que a partícula ultrapassou a barreira de uma maneira definitiva. Se quisermos “confinar” a partícula a uma região do espaço onde se tem maior certeza, então não podemos associar a partícula uma energia qualquer, muito menos uma energia definida. Ao invés de E, dizemos que existe uma energia média <E>. O fato é que se <E> > Vo, a partícula atravessa a barreira, mas a probabilidade de se encontrar a partícula antes da barreira não é nula. Isso porque a onda de probabilidade inicial é parcialmente transmitida e parcialmente refletida. Isso contrasta com o caso clássico onde para E > mgA, a partícula necessariamente é transmitida completamente.

Fig. 5 Tunelamento quântico.
Por outro lado, se <E> < Vo, é possível encontrar a partícula do outro lado da barreira! Esse fenômeno estranho é chamado de tunelamento quântico e é uma das marcas registradas da fenomenologia quântica. Tudo ocorre como se a partícula tivesse atravessado a barreira de potencial e aparecesse do outro lado. Uma outra maneira de se ver isso é considerar que a natureza ondulatória da matéria se manifesta através da incerteza de posição, o que designa uma probabilidade diferente de zero para se encontrar a partícula do outro lado da barreira, ainda que a energia dela seja insuficiente para atravessar o morro de potencial. Veremos depois onde ele se aplica (p. ex., a física nuclear faz uso do tunelamento quântico para explicar e explorar processos nucleares; geração de energia etc).

Fig. 6 Ilustração sumária sobre diferença entre o efeito de tunelamento clássico (acima) e quântico (abaixo).

O que podemos concluir disso tudo? Que, uma vez garantida as condições para que os efeitos quânticos ocorram, a Natureza se comporta de uma maneira bastante diversa da maneira como estamos acostumados a ver em nosso mundo (Fig. 6).

Entretanto, a maneira como esses fenômenos são apreendidos pelas técnicas experimentais tem pouco a ver com a maneira como nos certificamos das coisas a nossa volta. Isso é uma lição importante a ser observada, já que ela nos revela que a maneira como vemos o mundo é muito particular e não pode ser estendida para outras 'realidades'. No caso quântico essa 'realidade nova' aparece quando consideramos fenômenos envolvendo partículas ou sistemas verdadeiramente microscópicos (mesmo um vírus é um ser vivo grande se comparado a um sistema quântico). Também, fenômenos quânticos podem ocorrer quando a temperatura dos sistemas físicos é abaixada para valores muito próximos ao chamado 'zero absoluto' (-273 graus abaixo do zero centígrado). Nessa condição, os efeitos quânticos também aparecem, pois então a matéria está 'congelada', o que permite que o comportamento microscópico de seus constituintes (os átomos) se revelem de forma organizada no nível macroscópica.

Veremos em detalhes isso nos próximos postos da série 'Conceitos básicos de Física Quântica'. 

Referências

 Einstein A. (1905) Annalen der Physik, 17,132.

Outros posts

Física Quântica e os espiritualistas no século 21 (análise preliminar).Conceitos básicos de Física Quântica I.

25 de fevereiro de 2012

Doze obstáculos ao estudo científico da sobrevivência e à compreensão da realidade do Espírito.

Tanto o espírito de um "vivo" como o de um "morto"" são, em si, inobserváveis sensorialmente. Toda evidência de sua existência é indireta, mediante o padrão inteligente exibido por algum meio (comportamento corporal, símbolos diversos)...portanto, os dois casos (o do espírito da pessoa "viva" e o da "morta") são epistemologicamente idênticos. (Chibeni, 2010).

O filósofo Silvio Chibeni recentemente postou uma apresentação sobre a pesquisa científica do espírito que se relaciona com muitos temas que tratamos aqui. Trata-se de um conjunto de slides elucidativos sobre a questão da pesquisa aplicada à realidade do Espírito e sobrevivência. A partir desses slides, complementamos com alguns comentários os 12 empecilhos à pesquisa do Espírito e da sobrevivência que são citados por Chibeni.

Depois de apresentar a fenomenologia associada às substâncias "matéria" e "espírito", Chibeni resume as visões presentes, que se dividem sucintamente entre (Chibeni, 2010):
  1. Materialismo, "só há substâncias materiais"; 
  2. Idealismo, "só há substâncias espirituais"; 
  3. Dualismo, "há dois tipos de substâncias";
  4. Ceticismo, "não podemos determinar isso".
Veja que, aqui, "ceticismo" não se refere ao mesmo conceito que tratamos na série de artigos sobre as "Crenças céticas", mas a uma postura filosófica. O Espiritismo admite abertamente o dualismo e, de acordo com essa visão, podemos listar um conjunto de "obstáculos" para a pesquisa científica do Espírito, entendendo essa pesquisa dentro do estudo científico da sobrevivência e não esse estudo dentro do referencial teórico e experimental das ciências naturais. Há considerável confusão feita entre esses dois conceitos, e o leitor dedicado deve prestar atenção em seus estudos, para não ser confundido também.

Seguem, assim, nossos comentários: 
  1. Considerar a questão metafísica ou "sobrenatural": Esse problema surge por dificuldade em se compreender a viabilidade de estudo científico da questão. Frequentemente, ou se considera o assunto como além do que seria o normal ou verificável (e, portanto, pertencente ao domínio da metafísica), ou, diante de uma visão mística dos fatos, toda a questão é tomada como pertencente ao 'reino do sobrenatural'. Assim sendo, considera-se o assunto de forma alienada da realidade; 
  2. Considerar que o assunto já foi analisado e a conclusão foi negativa: esse é o erro mais comum entre os céticos. É comum também entre os que se satisfazem com uma visão superficial, baseada em supostas pesquisas que não atentam para o rigor e o detalhe que o assunto exige. A respeito disso, vale um comentário de Kardec apresentado abaixo (Nota 1);
  3. Considerar que o que há de importante sobre o espírito já é investigado pela psicologia, etc., dentro de um referencial materialista: isso é uma variante algo mais sofisticada do empecilho anterior. Como uma teoria determina em último grau quais os fatos e ocorrências devem ser considerados, então, ao se assumir o materialismo como arcabouço teórico de investigação, está se restringindo severamente o universo de fatos. A "prova" obtida a favor de determinado ponto de vista simplesmente não é válida; 
  4. Considerar que esse referencial materialista foi "provado" pela ciência. Ciência entendida como 'conhecimento' nada tem a dizer sobre a questão da sobrevivência. Outra coisa bem diferente é a  opinião dos cientistas. Mas essa opinião não constitui ciência, principalmente se ela versa sobre assuntos que não estão diretamente relacionados aos objetos de sua pesquisa científica; 
  5. Tentar "detectar" o espírito por meios diretos: há uma quantidade enorme de pessoas que acreditam que manifestações físicas (efeitos físicos) são 'manifestações espirituais'. Outros dizem que, se o Espírito existe, ele necessariamente deve deixar rastros mensuráveis. Aqui, a falha é na compreensão do objeto de estudo:  a matéria se deixa apreender por determinados tipos de sinais (cores, sons, formas, gostos etc). O Espírito tem pensamento, vontade e sentimentos, todos atributos inacessíveis do ponto de vista sensorial (ver novamente a referência Chibeni, 2010). Não é difícil perceber que a questão não pode também ser decidida apelando-se para uma amplificação no nível de acuidade ou 'precisão' do equipamento;  
  6. Tentar "mensurar" o espírito: uma variante do erro anterior;
  7. Só considerar válida a evidência "reprodutível": aqui temos um ponto para muitas discussões. Mas a essência é muito simples: como os fenômenos dependem de inteligências que são independentes, insistir na reprodutibilidade é condenar o estudo do assunto desde o princípio. A fonte dos fenômenos espirituais necessariamente não pode ser controlada, pois é independente, logo não está sujeita a reprodução; 
  8. Tratar o assunto de forma puramente experimental, sem preocupação com o desenvolvimento de uma teoria que explique os fatos. Esse é um empecilho típico da parapsicologia. Em toda a história,  jamais se fez ciência de verdade sem teorias. Entretanto, alguns pesquisadores das "ciências psi" pretendem resolver a questão tão só apelando-se para o experimento. Para esses pesquisadores, invocar "explicações" tiraria a "neutralidade" e o "rigor" que o tema de pesquisa exige. Entretanto, isso está errado pois 'rigor' nada tem a ver com 'neutralidade' e o desenvolvimento científico normal exige que se proponham experimentos baseados em hipóteses ou teorias que não são, elas próprias, neutras; 
  9. Trabalhar com fragmentos teóricos (hipóteses isoladas). Por outro lado, quando explicações são dadas, elas são produzidas para cada fenômeno e não conseguem dar conta de todos os fatos. Não se procura correlacionar um fenômeno com outro. Fatos psíquicos diferentes, que se manifestam fenomenologicamente de forma diversa, são explicados por hipóteses diferentes ou mesmo totalmente antagônicas entre si;
  10. Adotar enfoque dogmático ou preconceituoso: dogmatismo e preconceito são regras no comportamento humano e não exceções. A compreensível "neutralidade" não deve ser anulada até o ponto em que se adote uma visão claramente radical da questão. Há que se reconhecer que ninguém é dono da verdade;
  11. Misturar ou conivir com o misticismo: de novo, isso ocorre por falha na compreensão do caráter científico do assunto a ser estudado. Para o misticismo, não há necessidade de se envolver a ciência, pois ele se considera uma fonte independente de conhecimento. Trata-se de um obstáculo, pois o misticismo oblitera ou impede essa compreensão científica;
  12. Descuidar do rigor: quando se fala na aplicação de um método (não necessariamente extraído ou importado das ciências ordinárias) há que se tratar do rigor sem o que é impossível chegar a conclusões válidas.  
Tais obstáculos permitem entender porque a pesquisa da questão da sobrevivência encontra-se grosso modo no nível presente, e, também, compreender a necessidade de conduzir esse estudo dentro do arcabouço teórico desenvolvido por Allan Kardec. Por quê? Talvez isso pareça contrariar à suposta 'neutralidade' que seria necessária para um estudo científico. Entretanto, não é possível considerar os fatos sobre os quais discorre o Espiritismo fora do arcabouço teórico que ele determina para colher os seus fatos.

Assim, ao se descuidar de utilizar o referencial teórico criado por Kardec, estamos abrindo brechas para as evidências sejam contaminas por concepções inadequadas ou pressupostos que não levem em conta a teoria por ele desenvolvida. Fica assim muito fácil rejeitar erroneamente a tese espírita, por uma questão de colheita incorreta de fatos que passam a ser descritos em uma ideologia diferente. Para mim, esse é um problema central, embora pouco reconhecido, que caracterizaria um décimo terceiro obstáculo para o estudo científico da sobrevivência e da realidade do espírito. Falaremos mais tarde sobre isso em um futuro post.

Essa apresentação é, assim, um resumo didático que recomendamos fortemente, já que demonstra uma exposição sumária e elucidativa dessas questões.

Referências
Nota 1

“O ceticismo, no tocante à doutrina espírita, quando não resulta de uma oposição sistemática por interesse, origina-se quase sempre do conhecimento incompleto dos fatos, o que não impede que alguns dêem a questão por encerrada, como se a conhecessem a fundo.” (A. Kardec, Artigo 17, Introdução de 'O Livro dos Espíritos')