10 de março de 2012

Aborto, Infanticídio e o artigo de Giubilini e Minerva.

Muita gente pensa que discussões de natureza filosófica são inúteis. Não conseguem entender a amplitude das consequências de se assumir posturas ou visões aparentemente 'práticas' em relação a certos assuntos mas que, sob análise mais detalhada, não passam de visões filosoficamente mal embasadas, com deficiências fundamentais em vários níveis. Isso acontece com frequência nas questões ligadas ao aborto, infanticídio, eutanásia e pena de morte. 

Podemos chamar esses problemas de 'problemas limiares', pois eles ocorrem quando consideramos as  posturas de determinadas doutrinas aplicadas no início ou no final da vida dos indivíduos - dai o termo 'limiar' ou 'limite'. Uma vez que inexiste uma teoria ou 'visão' suficientemente abrangente do que seja um 'ser humano', permanecem disputas entre grupos rivais que se apegam a determinados pontos de vista quando se trata de legislar sobre esses limites. Dessa forma surgem questões do tipo: quando começa realmente a vida de um indivíduo? Quando ela termina? Sob que bases irá se estabelecer o direito de se 'deixar viver' ou 'cessar a vida' nesses limites?

Nosso objetivo aqui ainda não é discutir essas questões sob a ótica espiritualista. Porém, não precisamos ir tão longe na análise que hora nos propomos, após uma breve leitura do artigo "After-birth abortion: why should the baby live?" (Aborto depois do nascimento: por que os bebês devem viver?) de A. Giubilini e F. Minerva (2012, ref. 1), e que pretende apresentar uma 'nova visão' com o objetivo de justificar o infanticídio como uma generalização de práticas abortivas.

Leitores menos avisados podem pensar que nosso objetivo aqui é dar força ao discurso reacionário e fanático (Nota 1) dos que 'defendem a vida' nessas questões. Nada disso. Insistimos que não é necessário tanto esforço e empenho assim para refutar tanto os argumentos como as conclusões desses dois autores. Nosso objetivo é discutir esse artigo e a sua 'cientificidade' como sugerida pela formação acadêmica de seus autores.

Objetivos do artigo

O resumo do trabalho traz de forma sumária o objetivo dos autores:
"O aborto é largamente aceito por razões que nada tem a ver com a saúde do feto. Mostrando que: (1) tanto o feto como o recém nascido não tem o mesmo status moral de pessoas; (2) o fato de ambos serem pessoas potenciais é moralmente irrelevante; (3) a adoção nem sempre é de interesse das pessoas, os autores argumentam que o que chamamos de 'aborto pós nascimento' (requisitar a morte de um recém nascido) deve ser permitido em todos os casos em que o aborto é, inclusive se o recém nascido não é portador de deficiência." (Ref. 1, Abstract)
O objetivo dos autores é estender a validade ou permissão para execução de um recém nascido (inclusive se ele não é deficiente) com base nas mesmas premissas que permitem que o aborto seja realizado. Com certo cinismo, os autores preferem chamar essa nova prática de 'aborto pós-nascimento' a infanticídio (Ref. 1, parágrafo 9). A questão das palavras é a menos importante aqui. Para esse objetivo, eles lançam mão de 3 'princípios' que reduziremos a apenas um que, além disso, é incoerente do ponto de vista da lógica.  

Análise da definição principal dos autores

Iniciamos pela análise da primeira premissa que, veremos, é a principal . Por 'pessoa' os autores entendem:
Um indivíduo que é capaz de atribuir a sua própria existência ao menos um valor básico de forma que, caso seja suprimida sua existência, isso represente uma perda para ele. (Ref. 1, Parágrafo 14)
E, explicam:
Nosso ponto é que, embora seja difícil dizer exatamente quando um indivíduo pode ser chamado de 'pessoa', uma condição necessária para o indivíduo ter o direito a X é que ele seja prejudicado por uma decisão que o impeça de ter X. (Ref. 1, Parágrafo 15)
Ora, os próprios autores reconhecem que a definição que usam, como descrita acima permite que se atribua o caráter de 'pessoa' a certos animais (como mamíferos e outros). Também afirmam que isso é uma 'condição necessária', sem dizer nada sobre ser uma condição 'suficiente'. Por isso, essa definição exclui pessoas em condições severamente restritivas (como pacientes em estado de coma e, até mesmo, determinada classe de desvios mentais). Uma vez que fetos e recém nascidos guardam pouca diferença do ponto de vista dessa definição, tudo o que se pode aplicar a fetos seria igualmente aplicável a recém nascidos que, consequentemente, teriam um status de 'pessoa' inferior a de alguns animais. Para os autores, fetos e recém nascidos 'apenas tem a capacidade de sentir prazer e dor' e, portanto, 'tem apenas o direito de não sentir dor' (Ref 1, parágrafo 16). É interessante também ver que os autores não retiram o caráter de 'pessoa' a um indivíduo tão só porque tenha qualquer deficiência: afirmam que "pessoas com síndrome de Down e mesmo aquelas afetadas por outras incapacidades severas frequentemente são descritas como felizes" (Ref. 1, parágrafo 7).

Entretanto, não é necessário ter doutorado em filosofia (que é o título acadêmico de um dos autores) para se perceber que a definição de 'pessoa' que fundamenta a premissa dos autores não é válida, pois ela não é uma condição independente. Em outra palavras, a definição de pessoa usada pelos autores depende justamente do que pretendem subtrair dos recém nascidos, que é a chance de ter a condição de se atribuírem valor a suas existências. 

Para tornar a questão mais clara, podemos fazer uso de um exemplo simples  que os próprios autores da Ref. 1 chegam a citar (talvez ingenuamente, ver parágrafo 15). Podemos aplicar o raciocínio a bilhetes de loteria (Fig. 1) ao dizer que de todos os bilhetes emitidos antes de um sorteio de um prêmio, os melhores certamente são os bilhetes premiados (ou seja, de todos os seres vivos, 'pessoa' são apenas aqueles que são prejudicadas caso sofram uma perda). Isso é uma premissa obviamente válida. Dado que o sorteio ainda não aconteceu (dado que recém nascidos ainda não são crescidos), eu posso, certamente, me livrar de um determinado bilhete (jogá-lo fora ou dar para o primeiro desconhecido na rua) porque não sei se ele é premiado ou não (posso me livrar dos recém nascidos também). Ora a 'premissa' depende justamente de esperar correr o sorteio (esperar que o recém nascido vingue). A conclusão é obviamente inconsistente, pois sou levado a me desfazer de um bilhete possivelmente premiado.

Fig. 01
Esse erro elementar permite entender a confusão em que os autores se metem ao tentar encontrar outras razões ou direitos residuais (ou 'reais' como eles descrevem) que seriam atribuídos aos responsáveis pela criança, dado que ela não é uma pessoa :
Agora, dificilmente pode-se dizer que um recém nascido tem objetivos, já que o futuro que imaginamos para ele é meramente uma projeção de nossas mentes sobre suas vidas potenciais. Eles podem começar a ter expectativas disso ou desenvolver um mínimo senso de auto percepção em idade bem pequena, mas não nos primeiros dias ou semanas depois do nascimento. Por outro lado, não somente objetivos mas também planos bem desenvolvidos  são conceitos que certamente se aplicam àquelas pessoas (pais, parentes, sociedade) que poderiam ser positiva ou negativamente afetados com o nascimento da criança. Logo, os interesses e direitos dessas pessoas envolvidas representam as considerações prevalecentes na decisão de se proceder ou não com um aborto ou aborto pós nascimento. (Ref. 1, parágrafo 16).  
E, mais para frente (na seção "Feto e recém nascido não são pessoas potenciais"):
Pode se afirmar que alguém é prejudicado ao ser impedido de se tornar uma pessoa capaz de ter consciência de estar viva. Assim, por exemplo, pode-se dizer que teríamos sido prejudicados caso nossas mães tivessem decidido nos abortar antes do nascimento ou se tivéssemos sido mortos logo após ele. Entretanto, ao mesmo tempo que você pode ajudar uma pessoa ao trazê-la à existência (desde que essa vida valha a pena), não faz sentido dizer que se prejudica uma pessoa ao impedi-la de se tornar uma pessoa. A razão se deve ao nosso conceito de de 'prejuízo' na seção anterior que exige que esse alguém esteja na condição de experimentar esse prejuízo(Grifos nossos, Ref. 1, parágrafo 19).    
Portanto, os autores claramente utilizam de maneira equivocada uma definição que não é suficiente. Essa definição é ruim não porque é arbitrária, mas porque define seu objeto por meio de uma característica que ele não tem

Também parece ser consequência da visão deficiente dos autores o tentar localizar onde estaria esse 'futuro' e atribuí-lo aos adultos responsáveis pela criança. É como se quisessem tornar esse futuro palpável, já que é realmente relevante para a definição que fazem uso para uma 'pessoa': "Onde está o futuro da criança? Na cabeça dos pais, pois feto e recém nascido não são pessoas...". Em um movimento precário de extrapolação de premissas insuficientes, eles pretendem substituir o dever desses adultos em velar pelo bem estar do recém nascido pelo direito de se livrar deles, caso sejam um empecilho. 

Quanto ao segundo argumento, o de que fetos e recém nascidos não são pessoas potenciais, ele não é valido, pois é baseado na premissa que já demonstramos ser inconsistente. Alem disso, ao justificar a razão para se livrar de um recém nascido os autores consideram:
Não obstante isso, criar tais crianças pode ser um fardo intolerável para à família e sociedade como um todo, quando o estado é responsável economicamente por ela... Portanto, sustentamos que, quando tais circunstâncias ocorrem depois do nascimento e que justificariam um aborto, elas devem justificar também o aborto após nascimento. (Ref. 1, parágrafo 8, grifo deles.)
No que consiste esse  'fardo intolerável' (unbearable burden)? Em falta de condições econômica suficientes para criar a criança. De novo, não é necessário ter doutorado em filosofia para se concluir que o aborto pós nascimento está sendo sugerido especialmente para crianças de famílias pobres.

De resto, não precisamos nos preocupar com outros 'argumentos' e justificativas colocadas pelos autores, já que o principal deles é inconsistente. O terceiro argumento, por exemplo, o de que 'adoção nem sempre é uma alternativa' também se baseia na primeira definição refutada, já que o status moral da criança deriva da mãe pelo raciocínio dos autores, a qual pode preferir o assassinato de seu filho a levá-lo à adoção (segundo sugestão dos autores, ver Ref. 1, parágrafo 24). 

Conclusão

A maneira como os argumentos são colocados por esses dois autores incorre em tantos erros primários de lógica e raciocínio que essa publicação, não obstante ter sido considerada 'muito importante' (Ver Notas) por alguns críticos, não se assemelha a proposta de pesquisadores acadêmicos no assunto. Os autores não tornam explícitas as condições suficientes para sua definição de 'pessoa', que consideramos ser relevante em todas as discussões desse tipo. Há falha nas definições que permitem desqualificar esse artigo como algo útil tanto para os que defendem as ideias de seus autores (na forma de uma nova variedade de infanticídio) como os que defendem o aborto de forma geral.

Ninguém nega o direito de publicação aos autores ou ao editor da revista, mas certamente este artigo, pela sua qualidade duvidosa, não está a altura que o assunto merece.

Por outro lado, propomos meditar a seguinte questão: se a prática de 'novo infanticídio', como sugerida pelos autores da Ref. 1, pode ser considerada abominável e, pelas mesmas razões que nos levam a supor não existirem diferenças morais entre um feto e um recém nascido (por causa de seu desenvolvimento orgânico), então, não seria igualmente uma prática abominável o aborto quando este não represente claramente uma ameaça à vida da mãe? 

Agradecimento

Agradeço ao A. Caroli Rocha por me indicar todas as referências.

Notas 

Poucas críticas apareceram até agora explorando as relações e consequências dos argumentos dos autores. Destacamos outras referências abaixo:
  1. Artigo científico defende como moralmente aceitável a morte de um recém-nascido. De fato, o maior impacto provocado pelo artigo foi contra seus autores por parte dos assim denominados 'fanáticos'. 
  2. Um exemplo é o texto de João P. Coutinho 'Bebês para abate', publicado na Folha de S. Paulo a 6 de Março de 2012.
  3. Blog de R. Azevedo (2/3/2012), "Eles chegaram lá: dupla de especialistas defende o direito de assassinar tambem os recém nascidos".
Referências

1 - A. Giubiline e F. Minerva (2012), J. Med. Ethics, doi:10.1136/medethics-2011-100411


2 comentários:

  1. Credo, credo mesmo, não pensei que existissem pessoas que pensam um absurdo desses em pleno século 21, mais acho que eles deveriam pensar que no futuro eles podem ser um desses bebês assassinados, pessoas egoistas e materialistas que se acham no direito de induzir pessoas menos avisadas a praticar tal atrocidade.Da até pena delas.

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  2. Bem, isso é verdade, mas nosso objetivo foi primeiro reparar que existem argumentos ilógicos nessa discussão. O fato de serem materialistas é 'menos importante' diante do fato de que não souberam se defender direito. Mais para frente, vamos discutir a questão do materialismo nisso tudo. Grato pelo comentário.

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