24 de março de 2012

Deus e suas Causas I

"Levou menos de uma hora para átomos se formarem, algumas centenas de milhões de anos para se fazer estrelas e planetas, mas cinco bilhões de anos para um homem surgisse!" G. Gamow, 'A criação do Universo' (1952).

A imagem presente - sustentada por teorias cosmológicas recentes - tanto quanto se ocupa apenas com fenômenos materiais, revela que o universo foi criado a partir de um instante apenas, denominado 'Big Bang'. Ironicamente, esse nome foi criado pelo cosmologista Fred Hoyle que detestava a ideia da explosão inicial. Em um programa de rádio em que discutia o tema, ele criou a palavra (que visava caracterizar pejorativamente a ideia). Poderíamos traduzir o apelido de Hoyle por 'teoria do estrondão'.

O Big-Bang é o momento assinalado para a origem do elemento material. Mas a matéria não é a única coisa que existe no Universo (mesmo segundo o conhecimento academicamente aceito) . Há também 'leis' ou 'princípios' que servem para 'organizar' ou estruturar a matéria. Esses princípios regulam como a matéria interage consigo mesma e com outros elementos, a fim de produzir quase tudo que nós vemos com nossos sentidos ordinários e, principalmente, aquilo que não conseguimos ver. Sem as leis o Universo seria um amontoado caótico de matéria ao ponto de ser impossível descrevê-lo como, de fato, o conhecemos.

A teoria do Big-bang constrói um relato da história pregressa do Universo. Nesse relato, as leis da Física surgem ou são dadas 'desde o princípio', ou seja, não são 'derivadas' da mesma origem postulada. Por isso, a ideia de um 'princípio' é problemática: seria mais fácil se o Universo sempre tivesse existido, porque, então, não seria necessário explicar como surgiram as leis. Por isso também, há muitos cosmologistas que defendem uma origem 'acausal' (sem causa) para o Universo. A tarefa seria ainda mais fácil caso fosse possível algo mais: uma corrente de cientistas procura uma forma de se unificar todas as leis da Física. Está claro que, se todas as leis puderem ser unificadas, isto é, se for possível encontrar uma teoria onde todas as leis possam ser derivadas a partir de uma só, fica mais fácil explicar a origem do Universo. A teoria do Big-Bang é, portanto, uma teoria (reconhecidamente) incompleta, na medida em que não se encontrou ainda tal unificação. 

Naturalmente, a motivação para a unificação é sustentada também por outro princípio, o de que é possível reduzir todos os fenômenos a interações entre elementos primitivos segundo as leis da Física. Essa ideia é conhecida como reducionismo. De forma muito simplificada, a imagem reducionista está representada na figura abaixo, onde a origem é identificada pelo Big Bang. 

O Big-Bang tem, na visão de Universo revelada pela Cosmologia, exatamente o mesmo papel que Deus teria em uma descrição da origem do Mundo pelas diversas 'cosmogonias' religiosas historicamente conhecidas. Mas, sendo uma causa primária, o Big-Bang não é necessário para explicar satisfatoriamente quase tudo o que vemos a nossa volta. 

Na figura acima, nós colocamos as leis naturais como oriundas também dessa origem primeira postulada. Para a discussão a seguir, importa pouco se as leis naturais tiveram um princípio único ou foram 'dadas' desde o princípio.

O Big-Bang desempenha o papel de Deus na Cosmologia moderna.

O que nos interessa é discutir o papel da ideia de Big-Bang e compará-la a nossa discussão sobre 'Deus e suas Causas'. Chegamos à conclusão: o Big-Bang é a causa primária postulada pela Ciência para dar conta da origem da Matéria e, espera-se, de suas leis. Dessa forma, nós também não precisamos do Big-Bang para explicar satisfatoriamente quase tudo o que vemos a nossa volta. 
Todas as outras ciências (Biologia, Química, etc e mesmo a Física) prescindem da idéia do Big-Bang para existir, quer dizer, teorias e pesquisas nessas áreas não necessitam admitir uma causa primária para explicar seus fenômenos particulares.
Mas isso não significa que o Big-Bang não tenha ocorrido. Assim, o fato da ideia de Deus ser inútil para desenvolvimentos particulares na Ciência, não implica que ele não exista, contradizendo um dos argumentos do  ateísmo, o de que não se vê Deus na Natureza. 

Podemos ver ou sentir o Big-Bang? A resposta é 'não', porque não temos órgãos sensoriais sensibilizáveis por evidências do tipo levantadas por cosmologistas para se sustentar a ideia do Big-Bang:
  • Observações com espectroscopia mostram que galáxias espalhadas de forma mais ou menos uniforme por todo o céu estão se movendo a uma velocidade tanto maior quanto maior a distância em que se encontram de nós (efeito do redshift);
  • Há uma radiação residual distribuída por todo o céu, ligada a uma fonte térmica alguns graus acima de zero absoluto.
Tais fatos são considerados evidências que suportam a ideia de um universo em expansão. O primeiro indica que, de fato, o Universo continua se expandindo, enquanto que o segundo é tomado como evidência direta da explosão inicial. Acrescentamos que, para se constatar tais fatos, são necessários equipamentos (telescópios munidos de espectrógrafos sensíveis e radiotelescópios) que não estão disponíveis a qualquer um dos mortais. Mesmo de posse de tais equipamentos, anos foram necessários para se acumular tais 'evidências', o que aconteceu depois que a teoria do Big-Bang já havia sido postulada.

Obviamente, nenhuma teoria sustenta a ideia de Deus, não só porque inexistem evidências - do tipo esperada pelas ciências materiais, mas porque se acredita que tudo - inclusive as leis - tenham surgido da matéria. Para contornar esse problema (em direção a uma ciência que admita a ideia de Deus), temos que enfrentar outro mais sério: há inúmeras concepções e ideias sobre Deus. 
Como existem muitas ideias e conceitos sobre Deus e admitindo que ele seja único e existente, é absolutamente impossível que mais de uma dessas ideias esteja correta ao mesmo tempo. Logo, a imensa maioria das noções (possivelmente quase todas) que os homens tiveram ou têm sobre Deus está equivocada.
Não temos, em particular, elementos para defender a noção de que Deus é uma pessoa como fazem algumas interpretações religiosas.  Ao eliminar a influência de todas as tradições religiosas, que é o caminho que o mundo moderno decidiu seguir com as descobertas da Ciência, como poderemos conceituar a noção da Divindade? 

Em outras palavras, se um dia a Ciência defender a ideia de Deus como necessária, qual será a ideia que ela irá propor?

Certamente a Ciência defenderá a noção de Deus como causa primária de todas as coisas. No que difere esta ideia da noção do Big-Bang? Em princípio, o Big-Bang foi uma ocorrência que surgiu do nada (por definição), enquanto que Deus é uma entidade causal inteligente. Para muitas religiões é ainda muito difícil aceitar a noção de que, para se ter inteligência como atributo, não é necessário que se tenha todos os atributos secundários de uma pessoa.

Mas, não vemos que a imortalidade da alma resulta na não necessidade de se ter um corpo físico para que a consciência se manifeste? Assim, desde que a própria consciência não é um atributo da matéria, a noção de Deus, como causa primária, não pessoal e inteligente necessariamente ganha força. Por outro lado, a própria compreensão de que a consciência não nasce simplesmente de arranjos da matéria, não cria um embaraço para o reducionismo e, portanto, para a noção de que o Big-Bang seria a causa suficiente para tudo no Universo? Então, podemos falar em consequências cosmológicas da sobrevivência e da constatação de que a consciência não depende da matéria. Há algo muito maior, transcendente e inobservável na origem do Universo, muito além do simples nascimento da matéria.

Essa é precisamente a noção sustentada pela Doutrina Espírita (1), a de que Deus manifesta-se no mundo através de atributos essenciais de inteligência e de que ele não precisa agir diretamente como causa secundária. A ciência, tão só examinando efeitos gerados por causas secundárias, jamais conseguirá reunir 'evidências' de que Deus existe - principalmente se nossas noções particulares de existência (atributos de corporeidade, tangibilidade, presença etc) forem invocadas. Isso, entretanto, não significa que ele não exista, mas, existindo, não significa tão pouco que sua imagem coincida com aquelas derivadas de muitas concepções religiosas. 

Falaremos mais sobre isso em um próximo post.

Referência

(1) A. Kardec. Questão #1 de 'O Livro dos Espíritos'.

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