5 de agosto de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - VIII

O "grande glomerado do sul" conforme ilustração de 1848. Fonte: "Mundos planetários e estelares: um exposição popular das grandes descobertas e teorias da moderna astronomia"  [1].

Continuação do post anterior: Comentários sobre "Uranografia geral" de "A gênese" de A. Kardec - VII.

Obra completa contendo todos os comentários e a conclusão.

Comentário sobre "Os desertos do espaço"

45

Relembra-se o espaço aparentemente vazio que existe entre as estrelas e entre os "aglomerados de estrelas", entendidos como associações estelares reunidas pela força da gravidade. Como vimos, na época de "A Gênese" a ideia de "galáxia" ainda não existia. Assim, o autor de "Uranografia Geral" não só defendeu a ideia de que o sol faz parte de um imenso aglomerado, mas também que há outros aglomerados no Universo, que ele denomina "ilhas estelares". O que existiria entre esses?

Inimaginável deserto, sem limites, se estende para lá da aglomeração de estrelas...

A solidões sucedem solidões e incomensuráveis planícies do vácuo se distendem pela amplidão afora.

...essas solidões mudas e baldas de toda aparência de vida...

Hoje se sabe que a nossa Via-Láctea tem um diâmetro de 100 mil anos luz, enquanto que a distância média entre as estrelas na galáxia varia enormemente conforme a posição da estrela na galáxia. Por exemplo, próximo ao núcleo das galáxias, a distância média é da ordem de frações de anos luz, enquanto que mais próximo da borda essa distância chega a dezenas de anos luz. Isso significa que a razão do diâmetro da galáxia para essa distância média varia várias ordens de magnitude.

46

Esse "deserto celeste" é afirmado como fazendo parte da "trama da criação". De fato, como podemos nós hoje afirmar que ele é absolutamente vazio? Preenchido por substância de densidade sutilíssima, esse vácuo que separa as ilhas estelares é o substrato de uma substância capaz de criar qualquer coisa - inclusive a matéria. Seria ele uma enorme reserva potencial de energia, validando a "visão e o poder infinito do Altíssimo", conforme descrito.

47

Sucedem-se lá os agregados longínquos de substância cósmica, que o profundo olhar do telescópio percebe através das regiões transparentes do nosso céu e a que dais o nome de nebulosas irresolúveis, as quais vos parecem ligeiras nuvens de poeira branca, perdidas num ponto desconhecido do espaço etéreo.

A descrição das ilhas estelares é contextualizada pelo autor ao descrever as chamadas "nebulosas irresolúveis" que foi também alvo de um comentário de A. Kardec: 

Dá-se, em Astronomia, o nome de nebulosas irresolúveis àquelas em que ainda se não puderam distinguir as estrelas que as compõem. Foram, a princípio, consideradas acervos de matéria cósmica em vias de condensação para formar mundos; hoje, porém, geralmente se entende que essa aparência é devida ao afastamento e que, com instrumentos bastante poderosos, todas seriam resolúveis.

Kardec se refere aqui às "nebulosas espirais" que,  como já vimos, foram tomadas inicialmente como provas da teoria de Laplace. Seu aspecto lenticular lembrava os vórtices postulados como origem para sistemas planetários. Pelo fato de não serem facilmente decompostas em estrelas menores, muitos astrônomos antigos nunca chegaram a considerá-las outros "universos ilhas". Algumas das conclusões de Kardec (feita no comentário à seção 47, ver Fig. 2) somente devem ser revisadas para cima: de fato, o número de estrelas em nossa galáxia é da ordem de centenas de bilhões e não "30 milhões de estrelas", o que eleva consideravelmente o número de mundos habitados e torna ainda mais assombrosa a "insignificância" da Terra no Universo.

Fig.1 - Ilustração de diversos tipos de nebulosas: Em (a) vemos uma galáxia espiral típica que se apresentava como "nebulosa lenticular" aos astrônomos do século 19. Sem resolução suficiente, era considerada na verdade uma nebulosa de formação planetária ou prova da teoria de Laplace. Com o desenvolvimento das técnicas de medida de distância (apenas na década de 1920), provou-se definitivamente que eram outros "universos ilhas" ou "galáxias" na acepção moderna. Em (b) temos a imagem de uma nebulosa planetária, verdadeiramente "irresolúvel" já que é formada por gás da explosão de uma estrela. A nebulosa de Órion (b') é outro exemplo de nebulosa irresolúvel. Tais nebulosas formadas de gás são muito menores que a galáxia que as abriga. Em (c) é ilustrado o aspecto de um aglomerado globular a vista desarmada. Ao se usar um telescópio, sua verdadeira constituição é revelada (c') como composta de milhares de estrelas - é uma nebulosa resolúvel. Tais objetos são muito menores que a galáxia, de forma que separar cada um desses objetos em classes distintas foi um grande desfio na astronomia.  

O aspecto nebuloso dessas formações celestes depende, de fato, do "poder de resolução" do instrumento óptico usado para observá-las. A vista desarmada muitos aglomerados estelares nada mais parecem do que meras manchas ou nuvens luminosas (Fig. 1). Ao se utilizar um telescópio mais potente, esses aglomerados se desfazem em milhares de estrelas. A descrição apresentada por Kardec corresponde, de fato, à opinião de um dos mais ilustres astrônomos europeus do Séc 18, que foi Sir W. Herschel, conforme descreve H. Curtis [2]:

A história das descobertas científicas oferece muitos exemplos quando homens, com algum estranho dom de intuição, olharam para a frente a partir de dados escassos, e vislumbraram ou adivinharam verdades que foram totalmente verificadas após décadas ou séculos somente. Herschel foi um gênio muito afortunado. Do próprio movimentos de muito poucas estrelas, ele determinou a direção do movimento do sol quase com a mesma precisão que as investigações mais modernas, devido a uma feliz seleção de estrelas para esse propósito. Ele notou que os aglomerados de estrelas que aparecem nebulosos em textura em telescópios menores e com menor potência são resolvidos em estrelas com instrumentos maiores e mais poderosos. A partir disso, argumentou que todas as nebulosas poderiam ser resolvidas em estrelas pela aplicação de ampliação suficiente, e que as nebulosas eram, de fato, unidades separadas, uma teoria que havia sido sugerida anteriormente de forma puramente hipotética por Wright, Lambert e Kant. A partir de sua aparência no telescópio, ele, novamente com presciência quase sobrenatural, excluiu algumas poucas nebulosas definitivamente como gasosas e irresolúveis.

O autor de "Uranografia Geral" corretamente identificou as verdadeiras "nebulosas irresolúveis" como "os agregados longínquos de substância cósmica" já identificado por ele como responsáveis pela criação da vida. 

De forma distinta, para ele os outros aglomerados estelares (as galáxias) são onde "se revelam e desdobram novos mundos, cujas condições variadas e diversas das que são peculiares ao vosso globo lhes dão uma vida que as vossas concepções não podem imaginar". 

Essas declarações podem ser vistas como audaciosas no contexto das dificuldades na época de A Gênese, quando não se fazia qualquer ideia das distâncias envolvidas e, portanto, da real dimensão que esses diversos objetos tinham (Fig. 1).

Comentário sobre "Eterna sucessão dos mundos"

48 

Recapitula-se como introdução ao tema a ideia de uma lei universal única, "primordial e geral", que "assegura eternamente" a estabilidade do Universo. Reafirma-se a harmonia do Universo como consequência dessa lei.

49

Ressalta-se que a mesma lei que preside á formação dos mundos, pela agregação da matéria cósmica disseminada no espaço, também resulta na sua destruição: 

Se é exato dizer-se, em sentido literal, que a vida só é acessível à foice da morte, não menos exato é dizer-se que para a substância é de toda necessidade sofrer as transformações inerentes à sua constituição.

O termo "substância" aqui deve ser entendido como as entidades mais fundamentais que existem no Universo. Por exemplo, a matéria e o espírito. Ambos estão sujeitos à vida e a morte como disfarces da lei de transformação. Portanto, nascimento e morte de mundos no espaço são estágios de uma transformação incessante levada a cabo pela ação da lei universal sobre o princípio material.

50

Como entender o destino dos astros cadaverizados? Se na Terra, o corpo que morre retorna ao solo para reintegrar-se aos elementos e dar vida à novas formas de existência, como entender o destino dos astros que não mais cumprem a missão de abrigar a vida? É isso o que o autor pretende discutir quando pergunta:

Ora, dar-se-á que essa terra extinta e sem vida vai continuar a gravitar nos espaços celestes, sem uma finalidade, e passar como cinza inútil pelo turbilhão dos céus? Dar-se-á permaneça inscrita no livro da vida universal, quando já se tornou letra morta e vazia de sentido?

A própria questão da "morte das estrelas" era de difícil abordagem no Século 19, visto que não havia ainda uma teoria que explicasse a evolução estelar, pois nem mesmo se sabia como brilhavam as estrelas. Portanto, de novo, o autor de "Uranografia Geral" se adianta para sua época. E a resposta está na mesma lei universal. Através dos bilhões e bilhões de anos, a matéria residual de planetas e estrelas "falecidas" torna a se agregar e compor novas nebulosas. Essas reciclam o material antigo para criar novas estrelas e planetas.  Entretanto, tal ideia era de difícil comprovação pela evidência. 

Modernamente se sabe que as estrelas e planetas atuais foram formados a partir dos resíduos reciclados de primitivas estrelas que existiram no universo primordial [3]. Não sabemos que mundos já teriam existido muito antes dos planetas de hoje. Mas, há evidências de que a matéria que compõe os nossos corpos já esteve presente em antiquíssimas estrelas. Foi o que quis dizer o cientista e distinto divulgador de ciência Carl Sagan com a frase "We are made of star stuff" (somos feitos de matéria estelar). Precisamente a mesma coisa diz o autor de "Uranografia Geral", mas com relação aos astros presentes:

Esses elementos vão retornar à massa comum do éter, para se assimilarem a outros corpos, ou para regenerarem outros sóis. E a morte não será um acontecimento inútil, nem para a terra que consideramos, nem para suas irmãs. Noutras regiões, ela renovará outras criações de natureza diferente e, lá onde os sistemas de mundos se desvaneceram, em breve renascerá outro jardim de flores mais brilhantes e mais perfumadas.
Fig. 2 Imagem de campo ultra profundo do telescópio Hubble (Wikipedia). Cada ponto é uma galáxia ou "universo ilha" (há apenas uma estrela na imagem). Isso nos faz lembrar a descrição de Kardec: "Transportando-nos pelo pensamento às regiões do espaço além do arquipélago da nossa nebulosa, veremos em torno de nós milhões de arquipélagos semelhantes e de formas diversas, contendo cada um milhões de sóis e centenas de milhões de mundos habitados", conforme se lê no comentário à seção 47. Trata-se de uma descrição bastante audaciosa para a época, mas que se revelou muito precisa como demonstra esta imagem. 

51 

Descreve-se a aparência presente do Universo diante do fato de que a luz leva certo intervalo de tempo (que pode ser considerável) para atravessar as distâncias "inimagináveis" entre as estrelas. Isso significa que muitos dos sistemas estelares que acreditamos ver podem, na realidade, já não mais existir: 

Onde os vossos olhos admiram esplêndidas estrelas na abóbada da noite, onde o vosso espírito contempla irradiações magníficas que resplandecem nos espaços distantes, de há muito o dedo da morte extinguiu esses esplendores, de há muito o vazio sucedeu a esses deslumbramentos e já recebem mesmo novas criações ainda desconhecidas.

As criações novas são "desconhecidas" porque ainda não se tornaram visíveis as mudanças carregadas pela propagação dos sinais luminosos gerados nessas criações. Essa observação é reforçada por Kardec por meio de um comentário. Portanto, o autor conclui que os seis mil anos de nossa história conhecida nada são diante dos intervalos de tempo (que hoje sabemos chegam a bilhões de anos) que a luz leva para atualizar o aspecto do Universo observável localmente. Isso representa uma severa limitação ao que podemos conhecer presentemente no Universo: quanto mais distante contemplamos, mais antiga e, portanto, desatualizada, será sua imagem para nós. 

52

O autor conclui pela insignificância do homem e de seu planeta diante da enormidade do espaço e das criações no Universo. Também conclui que, ainda que o pensamento se esforce para entender essas construções do espaço, tal esforço apenas pode abarcar uma parte muito pequena do que é visível, dada nossa pequenez e nossas limitadas percepções. Como consequência da lei de evolução, apenas quando "houvermos habitado esses diversos degraus da nossa hierarquia cosmológica" é que seremos capazes de realmente compreender a "sucessão ilimitada de mundos" e a perspectiva da "eternidade imóvel". 

Referência

[1]  O. M. Mitchel (1848). "The planetary and stellar worlds: a popular exposition of the great discoveries and theories of modern astronomy. New York, Baker & Scribner.

[2] Curtis, H. D. (1920). Modern theories of the spiral nebulae. Journal of the Royal Astronomical Society of Canada, 14, 317.

[3] Frebel, A., Aoki, W., Christlieb, N., Ando, H., Asplund, M., Barklem, P. S., ... & Yoshii, Y. (2005). Nucleosynthetic signatures of the first stars. Nature, 434(7035), 871-873.










7 de julho de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - VII




Comentário sobre "As estrelas fixas".

37

Trata-se de uma descrição precisa do que entendemos como sendo a Via-Láctea como vista desde a Terra, ou seja, como a projeção da galáxia Via-Láctea no céu. De fato, a imensa maioria das "estrelas fixas" pertencem à nossa galáxia. As que estão muito distantes fundem-se na forma de uma nuvem de estrelas - exatamente como cada molécula de vapor se funde para formar uma densa névoa. Nenhuma delas está absolutamente imóvel: a influência gravitacional entre elas é responsável pelo seu movimento, assim como a energia dinâmica herdada da nebulosa primordial que as criou confere a elas um movimento próprio.

38

Destaca-se, em especial, a passagem:
Esses diversos sóis estão na sua maioria, como o nosso, cercados de mundos secundários, que eles iluminam e fecundam por intermédio das mesmas leis que presidem à vida do nosso sistema planetário. Uns, como sírio, são milhares de vezes mais magníficos em dimensões e em riquezas do que o nosso e muito mais importante é o papel que desempenham no universo. também planetas em muito maior número e muito superiores aos nossos os cercam. outros são muito dessemelhantes pelas suas funções astrais. 
que confere especial valor profético ao autor.  Na época em que essa mensagem foi dada, a existência de planetas ao redor de outras estrelas era mero tema de ficção. Ele dependia mais da crença de alguns astrônomos, com base em suposições sem qualquer base experimental ou alicerçada em dados. 

Hoje, esses novos mundos têm um nome: exoplanetas ou planetas extra-solares. Uma lista desses exoplanetas pode ser encontradas em: http://exoplanet.eu/catalog/, que conta com aproximadamente 4800 entradas em 2021. O que foi descoberto confirma a descrição do autor de Uranografia Geral, embora os tipos de planetas detectáveis dependa demais das técnicas de medida disponíveis. Estima-se em trilhões em nossa galáxia os planetas do tamanho da Terra. 


Fig 1. Concepção artística moderna da superfície de um planeta em um sistema de três estrelas. Esse assunto é tema de um comentário de Kardec na seção 38. Fonte: pixels.com. 

O autor continua e chama a atenção para os sistemas de múltiplas estrelas, ou seja, sistemas em que mais de uma estrela formam arranjos ligados por forças gravitacionais. Essa informação resultou no comentário de Kardec:
É o a que se dá, em Astronomia, o nome de “estrelas duplas”. São dois sóis, um dos quais gira em torno do outro, como um planeta em torno do seu sol. De que singular e magnífico espetáculo não gozarão os habitantes dos mundos que formam esses sistemas iluminados por duplo sol! Mas, também, quão diferentes não hão de ser neles as condições da vitalidade!
Uma representação artística moderna do "singular e magnífico espetáculo" que Kardec comenta acima pode ser visto na Fig. 1. De fato, dada a possibilidade de estrelas de cores diferentes, a superfície dos planetas que orbitam esses sistemas deve mostrar uma policromia jamais vista na Terra. Por condições de vitalidade, entendemos as condições de posição, distância e rotação que os planetas nesses sistemas devem ter para que seja possível haver vida neles. Se o tipo de vida terreno for assumido, provavelmente os planetas devem, por exemplo, se localizarem a distâncias maiores das estrelas que os abrigam para evitar o excesso de luz. Isso tornaria os anos (como revoluções em torno de uma estrela principal) bem mais longos. 

Da mesma forma como há estrelas cercadas de inúmeros planetas, "outros astros, sem cortejo, privados de planetas, receberam os melhores elementos de habitabilidade". Desnecessário dizer que a comprovação da existência de estrelas desacompanhadas de planetas é muito mais difícil. Para isso, seria necessário vencer as distâncias imensas até essas estrelas e constatar que elas não possuem planetas. 

39

Reafirma-se corretamente que as estrelas fixas vistas da Terra pertencem à Via-Láctea que nada mais é do que uma das galáxias na "ordem das nebulosas" que compõem o Universo visível.

40

O autor explica que as constelações (e, por derivação as ideias astrológicas ligadas a essas figuras no céu) são meras ilusões. O conteúdo do que é explicado nessa seção é ilustrado na Fig. 2.

Fig. 2 Constelações são projeções sem perspectiva na esfera celeste de conjunto de estrelas que podem estar, na verdade, muito distantes entre si.

41

O autor reintroduz o assunto do movimento das estrelas que compõem a Via-Láctea afirmando que essas estrelas:
Rolam, não segundo roteiros traçados pelo acaso, mas segundo órbitas fechadas, cujo centro um astro superior ocupa.
ou seja, que "em parte nenhuma existe o repouso absoluto". No que segue, é dado como exemplo o movimento do sol.

42

O movimento do sol descrito pelo autor é chamado modernamente de "movimento solar próprio". Todas as estrelas têm também um "movimento estelar próprio", o que foi descoberto por E. Halley  em 1677 em suas observações na Ilha de Santa Helena [1]. Esse movimento modifica o aspecto do céu ao longo de milhares de anos, visto que ele é imperceptível no tempo médio de uma vida humana. Isso é ilustrado na Fig. 3.

Fig. 3 Animação do movimento próprio na constelação da Ursa Maior conforme os anos gravados na parte superior em verde. Como tempo, o aspecto do céu muda pois cada estrela está dotada de um movimento particular.

43

Considerando a influência gravitacional mútua exercida entre as estrelas, o autor pondera que nosso sol é um corpo secundário a se mover conforme a força exercida por outro corpo maior. Hoje sabemos que o movimento do sol - e de sua vizinhança estelar - é regido por forças que se dirigem para o centro da galáxia, ou seja, esse movimento se dá em torno dela. Isso resulta no conceito de "ano galático" como o tempo que o sol leva para dar uma volta completa em sua órbita em torno do centro galático, que é da ordem de 230 milhões de anos. Em torno desse centro, o sol se move à velocidade de 830.000 km/h ou 1/13000 da velocidade da luz.  Essas medidas não eram conhecidos no Sec. XIX. 

Repete-se o número de estrelas do sistema "Via-Láctea" já apresentado anteriormente:
...uma trintena de milhões de sóis se pode contar na Via Láctea.
Esse número é uma estimativa baseada nas estrelas visíveis, ou seja, acessíveis por meio da tecnologia óptica e não fotográfica. O número de estrelas visíveis a vista desarmada em uma noite límpida é da ordem de 6000. Ao se usar instrumentos, esse número cresce consideravelmente, pelo que se chega ao valor de 30 milhões. Com a descoberta do formato real da Via-Láctea [2] e de que a maior parte dela está oculta de nossa observação, esse número subiu consideravelmente, embora não seja possível conhecer o número exato ou mesmo com marge de erro inferior a, digamos, 10%. Estima-se, entretanto, como 300-400 bilhões o número dessas estrelas.

44

À guiza de conclusão e introdução do próximo assunto, o autor relembra que: 
Em parte nenhuma há imobilidade, nem silêncio, nem noite! O grande espetáculo que então se nos desdobraria ante os olhos seria a criação real, imensa e cheia da vida etérea, que no seu imenso conjunto o olhar infinito do criador abrange. 
Isso para introduzir o conceito de que a Via-Láctea é apenas um dos sistemas perdidos na imensidade do Universo. Apoiado em uma ideia que não tinha comprovação na época em que A Gênese foi escrita, o autor defende vivamente a "hipótese dos universos-ilhas" pela qual nossa Via-Láctea é apenas uma "ilha no arquipélago infinito". 

Para ver isso, basta consultar a referência [3] para a qual a ideia era considerada "audaciosa e pitoresca, que falava alto à imaginação de escritores populares de astronomia e que foi mantida pela literatura astronômica por muitos anos". Isso até 1870 e, por volta de 1900, diversas descobertas tornaram a teoria de "universos-ilhas"  suspeita.

Mas isso será assunto de um próximo post.
 
Referências

[1] Brandt, J. C. (2010). St. Helena, Edmond Halley, the discovery of stellar proper motion, and the mystery of Aldebaran. Journal of Astronomical History and Heritage, 13, 149-158.
[2] Xu, Y., Reid, M., Dame, T., Menten, K., Sakai, N., Li, J., ... & Zheng, X. (2016). The local spiral structure of the Milky Way. Science Advances, 2(9), e1600878.
[3] MacPherson, H. (1919). The problem of island universes. The Observatory, 42, 329-334.





6 de junho de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - VI

 

Continuação do post anterior: Comentários sobre "Uranografia geral" de "A gênese" de A. Kardec - V.

Obra completa contendo todos os comentários e a conclusão.

Comentário sobre "Os cometas" e "A Via-Láctea".

28

Cometas, também conhecidos com "astros errantes", dado o seu movimento inusitado pelo céu, sempre chamaram a atenção, quase sempre pelo medo. Esclarecida sua verdadeira origem, como pequenos astros dotados de movimento próprio, em órbitas muito diferentes das dos planetas, cometas podem ser vistos como relíquias de um passado muito distante, quando o sistema solar ainda estava em formação.

Como suas órbitas podem chegar até os confins do sistema solar, o autor os descreve como "guias que nos ajudarão a transpor os limites do sistema a que pertence a Terra". Na verdade, seu estudo pode tanto no levar para bem longe como, principalmente, para bem distante no tempo.

29

O autor resume de forma breve as diversas teorias antigas sobre os cometas. Ele cita de passagem algumas ideias sobre a natureza dos cometas, como a de que eles seriam "mundos nascentes", como "mundos em estágio de destruição" ou como mundos "pressagiadores de desgraças", todas já obsoletas na época de "A Gênese".

30

Depois de criticar as concepções que os antigos fizeram dos cometas, o autor declara que eles

...não têm por destinação, como estes, servir de habitação a humanidades. Eles vão sucessivamente de sóis em sóis, enriquecendo-se, às vezes, pelo caminho, de fragmentos planetários reduzidos ao estado de vapor, buscar, nos seus centros, os princípios vivificantes e renovadores que derramam sobre os mundos terrestres.

Em suma, para o autor, os cometas podem ir de estrela em estrela, de forma a trasportar "princípios vivificantes e renovadores" que são "derramados" sobre os mundos. Essa ideia está ligada à ainda misteriosa origem dos cometas. 

Concebida em 1950 [22] por J. Oort, a hipótese moderna é que os cometas têm sua origem principal em uma gigantesca nuvem que envolve o sistema solar, a chamada "nuvem de Oort". Por causa de perturbações de diversos tipos - principalmente encontros com outras estrelas - essa nuvem pode se agitar, o que causa a precipitação dos cometas em direção ao sol. Assim, eles se tornam conhecidos, visto que na imensidão da distância dessa nuvem, eles não podem ser vistos. Note que isso faz da própria ideia da nuvem de Oort uma hipótese, já que ela não pode ser observada diretamente desde a Terra. 

A ideia de que cometas poderiam estar ligados a "princípios vivificantes e renovadores que derramam sobre os mundos" está ligado ao conceito de panspermia [23]. Segundo essa hipótese, a vida na Terra não teve origem nela, mas foi "semeada" por cometas que trouxeram os princípios da vida de fora. 

Fig. 1 Concepção artística do objeto Oumuamua cuja origem foi determinada como externa ao sistema solar.  Embora, a princípio, não seja um cometa (pois nenhuma cauda foi observada), cometas também podem se originar fora do sistema solar. 

Que cometas possam passar de uma estrela a outra é muito difícil de ser demonstrado, embora isso  seja possível para alguns cometas - conforme previsto pela teoria da nuvem de Oort. Recentemente, um corpo estranho, descoberto e batizado Oumuamua [24] (Fig. 1), se aproximou do sol com velocidade muito grande e teve sua origem confirmada como sendo externa ao sistema solar.

31

Partindo dessa ideia, de que cometas podem vagar entre as estrelas, o autor descreve o que veríamos se pudéssemos acompanhar em pensamento a marcha dos cometas. Descreve corretamente que observações incompletas não seriam capazes de prever seu retorno, se um cometa fosse capturado por alguma outra estrela a exercer uma força em seu ponto mais afastado - o afélio (a tradução usa as palavras "perigeu" e "apogeu", entretanto, periélio e afélio são os termos mais precisos que descrevem sua posição mais próxima e distante do sol, respectivamente, e não da Terra). 

32

É uma introdução onde o autor descreve a aparência leitosa da Via-Láctea à vista desarmada como uma ilusão, enquanto que o telescópio decompôs esse rastro em milhares de estrelas. Tal fato somente pode ser compreendido depois da invenção do telescópio (por volta de 1609).

33

O autor define a Via-Láctea como uma coleção de estrelas e planetas em que o sol e seu cortejo de planetas é apenas um dos integrantes. Estima em 30 milhões o número de estrelas constituintes da Via-Láctea. Estima também a distância entre as estrelas em mais de 100.000 vezes o raio da órbita terrestre (que forma a "unidade astronômica" ou U. A., da ordem de 150 milhões de quilômetros). A estrela mais próxima do sol está localizada a 4,4 anos-luz de distância ou aproximadamente 280.000 U. A. Os valores dados pelo autor são estimativas: as distâncias corretas entre as estrelas mais próximas já era conhecida na época de "A Gênese". 

Hoje essa noção foi substituída pela da "galáxia". O que vemos como sendo a Via-Láctea é a projeção do disco galático na esfera celeste, sendo que a maior parte da galáxia está oculta da nossa visão na Terra. O número exato de estrelas que compõem a galáxia Via-Láctea não é conhecido, mas estimativas vão desde 100 a 400 bilhões de estrelas. As distâncias médias entre as estrelas na Via-Láctea é da ordem de várias centenas de anos-luz.

34

Mesmo aproximados, os valores permitem saber como o sistema solar - e, portanto, a Terra - é pequeno:

...pode-se igualmente julgar da exiguidade do domínio solar e, a fortiori, do nada que é a nossa pequenina terra. Que seria, então, se se considerassem os seres que a povoam!

O cálculo das distâncias e dos números "astronômicos" têm como objetivo mostrar o quão pequeno é o nosso mundo, em vários sentidos, inclusive em seu aspecto moral. Por outro lado, lá na imensidão de incontáveis mundos povoados de inteligência prodigiosa, temos as provas da criação "em toda a sua majestade".

35

Concordando com o que havia de ser ainda demonstrado (a saber, que muitas nebulosas eram, de fato, outras vias-lácteas), para o autor nossa Via-Láctea:

não representa mais do que um ponto insensível e inapreciável, vista de longe, porquanto ela não é mais do que uma nebulosa estelar, entre os milhões das que existem no espaço.

Ele estaria falando das muitas galáxias que existem em nosso universo observável. Modernamente, não se sabe o número exato delas, que é, não obstante, estimado entre 200 bilhões a dois trilhões de galáxias. Portanto, as conclusões do autor de "Uranografia geral" continuam bastante válidas. 

36

Como fechamento do tema, o autor relembra a "hierarquia de escalas" que existe entre os diversos sistemas estelares, que demonstra a incrível pequenez da Terra:

...a Terra nada é, ou quase nada, no sistema solar; que este nada é, ou quase nada, na via láctea; esta por sua vez é nada, ou quase nada, na universalidade das nebulosas e essa própria universalidade é bem pouca coisa dentro do imensurável infinito, começa-se a compreender o que é o globo terrestre.

Em suma, apenas quando essas escalas são justapostas é que podemos compreender o real significado de nossa vida no concerto universal, o que nos livra da ilusão de achar que tudo se limita à nossa Terra - em todos os sentidos, inclusive moral...

Referências

[22] Oort, Jan Hendrik. "The structure of the cloud of comets surrounding the Solar System and a hypothesis concerning its origin". Bulletin of the Astronomical Institutes of the Netherlands, v. 11, p. 91-110, 1950.
[23] Hoyle, F., & Wickramasinghe, C. (1981). Comets-a vehicle for panspermia. In Comets and the Origin of Life (pp. 227-239). Springer, Dordrecht.
[24] Bannister, M. T., Bhandare, A., Dybczyński, P. A., Fitzsimmons, A., Guilbert-Lepoutre, A., Jedicke, R., ... & Ye, Q. (2019). The natural history of ‘Oumuamua. Nature Astronomy, 3(7), 594-602.

7 de maio de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - V

Tratado de Astronomia de Elias Loomis, 1880.

Continuação do post anterior: Comentários sobre "Uranografia geral" de "A gênese" de A. Kardec - IV.

Obra completa contendo todos os comentários e a conclusão.

Comentários sobre "Os sóis e os planetas" e "Os satélites".

20

O autor apresenta uma descrição do que era então a hipótese nebular (originalmente proposta por P. S. Laplace em 1796 [1]) para a origem do sistema solar. Modernamente, essa hipótese se tornou a teoria que explica a origem comum dos planetas e permite entender porque eles compartilham quase que um mesmo plano orbital e giram em torno do sol no mesmo sentido. A “força molecular de atração” é a força gravitacional entre os constituintes da nuvem primordial adensada a partir do fluido cósmico. 

Lembramos novamente que, na época de A Gênese, não se sabia a diferença entre as diversas nebulosas. Em particular, o que hoje conhecemos como “galáxias” – e que têm o aspecto de redemoinhos e formações lenticulares - eram imaginadas como provas da teoria de Laplace. Hoje sabemos que essas são, na verdade, sistemas estelares imensos, sem prejuízo à ideia original da hipótese nebular para a formação do sistema solar.

21

Essas nuvens que formam sistemas planetários têm o nome moderno: discos protoplanetários. Eles são considerados "discos de acreção", responsáveis pela formação de planetas. Modernamente, diversas imagens [2] (Fig. 1), usando ondas de rádio, foram obtidas desses discos, comprovando a teoria de Laplace e a descrição de A Gênese.

Fig. 1 Disco protoplanetário em volta da estrela Elias 2-27 como fotografado pelo grande radiotelescópio de Atacama [2].

Essa seção contém assim uma descrição sobre como, de uma nuvem disforme que, compreensivelmente, toma o formato esférico (por causa da força de atração), foi possível se chegar à forma do disco e, depois, à formação  dos planetas. Para isso o autor descreve a ação de duas forças: uma centrípeta (em direção ao centro) e outra centrífuga (que foge do centro).  De fato, hoje se conjectura que não apenas a força gravitacional é do tipo centrípeto [3]. Campos magnéticos auxiliam a tornar a nuvem compacta. À medida que se adensa, a parte central da nuvem cria condições para fusão nuclear pelas enormes pressões do material que é atraído para uma quantidade crescente de matéria que "cai" em sua direção (o processo de "acreção"). Essa parte central forma a estrela principal (ou mais de uma) do sistema. 

O processo de formação do disco é algo complexo e envolve forças de viscosidade entre partes da nuvem. O disco se forma porque, como o momento angular deve ser conservado, o processo de adensamento faz com que partículas da nuvem próximas ao eixo do disco caiam em direção ao centro e sejam "expelidas" para a borda equatorial. Esse processo contribui para que ele fique ainda mais denso.

O acender da estrela central é um evento importante porque dá origem a uma outra força "centrífuga": a força de radiação da luz que "varre" a matéria localizada fora do plano equatorial. Somente o que está no disco - que é opaco - deixa de sofrer o efeito dessa força repulsiva. 

Dentro da nuvem ocorre fragmentação que permite formar objetos menores, os chamados "planetesimais". Pelo idêntico processo de adensamento, material da nuvem cai em direção a esses centros que, paulatinamente, formam os novos planetas. É esse o processo de criação de planetas que é descrito pelo autor:
Aquela massa conservou o seu movimento equatorial que, modificado, se lhe tornou movimento de translação em torno do astro solar. Ademais, o seu novo estado lhe dá um movimento de rotação em torno do próprio centro.

O movimento de rotação do planeta é resultado do momento angular inicial da pequena nuvem em torno do planetesimal que o criou.

22

Lembramos que não se sabia, na época de A Gênese, a verdadeira origem das galáxias. Essas eram entendidas como nebulosas que se enquadravam na hipótese de Laplace. Assim, nessa seção o autor descreve a hierarquia de formação de estrelas - como adensamentos da "nebulosa geratriz" - e de planetas por processo idêntico em torno das estrelas:

Ora, cada um de seus mundos, revestido, como o mundo primitivo, das forças naturais que presidem à criação dos universos gerará sucessivamente novos globos que desde então lhe gravitarão em torno, como ele, juntamente com seus irmãos, gravita em torno do foco que lhes deu existência e vida. Cada um desses mundos será um sol, centro de um turbilhão de planetas sucessivamente destacados do seu equador. Esses planetas receberão uma vida especial, particular, embora dependente do astro que os gerou.

O que mudou, desde então, dessa descrição? A hipótese das galáxias com o "redemoinhos de estrelas" apenas confirma a descrição de Uranografia Geral. Pois, de fato, o movimento do turbilhão estelar se dá em torno do centro da galáxia, por idêntico processo de formação de disco de acreção. E, no processo de formação das estrelas pelo adensamento de nuvens locais, os planetas são criados em uma escala muito menor. Em torno dos planetas, por sua vez, por idêntico processo, os satélites são criados em escala ainda menor - e até satélites de satélites, assim como outros corpos menores. Em suma, se vê ordem e hierarquia em toda parte.

23

O autor descreve o que era então a concepção científica mais adiantada sobre a origem dos sistemas planetários como "matéria condensada, porém, ainda não solidificada, destacadas da massa central pela ação da força centrífuga". Essa é, de fato, o cerne da hipótese nebular de Laplace. Tão tarde quanto em 1964, R. Thiel a expõe no seu "Romance da Astronomia" [4] (grifos meus):

A medida que o globo nebuloso foi esfriando e se condensou, à baixa temperatura do espaço, aumentou a sua velocidade de rotação. Sob a ação da força centrífuga, a esfera converteu-se em um elipsoide, em disco, senão de vez em lente. Em dado momento, nessa esfera aplainada, a força centrífuga superou a gravitação, a atração para dentro. Em consequência disso, desprendeu-se um anel da nebulosa, mais ou menos como o de Saturno. Naturalmente, esse anel continuou a acompanhar a rotação geral, foi esfriando mais e mais; e, se isso não houver ocorrido com absoluta regularidade, surgiu em qualquer parte um núcleo de massa que puxou para si o resíduo do anel nebuloso. Formou-se assim um planeta que entrou automaticamente a rodar, porque o novo planeta, segundo a Lei de Kepler, gira mais lentamente por fora do que no interior.

Longe de parecer desatualizada, a teoria da criação dos planetas exposta pelo autor de "Uranografia Geral" faz eco ao que era então considerado uma tese ateísta: a ideia de que os planetas e estrelas poderiam ter se formado sem a necessidade de Deus, com base na ação de forças naturais (uma ideia que remonta a Demócrito de Abdera na Grécia). 

É preciso entender  o contexto dos embates entre ciência e religião no Século XIX para perceber que o texto de A Gênese estava, de fato, muito avançado para sua época. Tendo se libertado da ideia de uma intervenção direta da Divindade no mundo material e considerando o papel relevante das forças da Natureza, o Espiritismo pode livremente apoiar muitas das hipóteses naturalistas que foram proposta para explicar os fenômenos físicos. 

Fig. 2 Concepção artística moderna de um disco protoplanetário como estágio intermediário da formação do sistema solar. Os planetas se originam da acreção de material em centros menores, os planetesimais. Imagem: Wikipidia.

O que mudou no nosso entendimento do processo de criação desde então? Ao invés de uma massa que se destaca do centro da nebulosa, forma uma anel que atrai para si seus fragmentos formando planetas, o processo de "nucleação" da nebulosa maior (disco protoplanetário, Fig. 2) repetiu-se em escala menor através da formação dos planetesimais. Esses são núcleos menores de acreção que, atraindo para si os restos do disco original, formaram os planetas.  Um resumo do entendimento moderno pode ser lido em na Wikipedia [5].

24

Nossas considerações feitas da Seção 23 são relevantes para entender a descrição da formação dos satélites feitas nesta seção. Pois que, da mesma forma como se concebia que planetas teriam se destacado do bojo da nebulosa primordial, por idêntico processo, os satélites teriam se separado dos planetas destacados, em estágio posterior. É por isso que aqui se afirma:

Antes que as massas planetárias houvessem atingido um grau de resfriamento, bastante a lhes operar a solidificação, massas menores, verdadeiros glóbulos líquidos, se desprenderam de algumas no plano equatorial, plano em que é maior a força centrífuga, e, por efeito das mesmas leis, adquiriram um movimento de translação em torno do planeta que as gerou, como sucedeu a estes com relação ao astro central que lhes deu origem.

O entendimento moderno da criação dos satélites segue caminho semelhante, porém, também envolve outros mecanismos que detalham particularidades da composição observada dos corpos celestes ligados gravitacionalmente. Um desses mecanismos é o da colisão: a Lua não teria se originado de um disco protoplanetário menor da Terra (por meio da acreção binária de matéria dentro da nuvem), mas sim, surgido de uma grande colisão [6] de um corpo menor com a "prototerra" (batizada de Theia), uma versão maior de um corpo primitivo que não sobreviveu.

Entretanto, esse modelo somente se tornou a crença acadêmica dominante a partir de 1984 e, ainda hoje, está cercado de controvérsias. Em um artigo recente, R. Malcuit [7] enumera diversas de suas deficiências e apresenta hipóteses alternativas. De fato, toda a teoria de formação desses corpos menores (e também dos planetas) ainda apresenta diversas deficiências, de forma que não existe consenso absoluto em relação a esses mecanismos.

25

Naturalmente a hipótese nebular é aplicada à formação da Lua. O autor atribui às "condições em que se efetuou a desagregação da Lua" a causa para o seu movimento muito particular, o de sempre mostrar a mesma fase para a Terra. De fato, esse movimento pode ser explicado por uma "coincidência" entre os movimentos de rotação e translação da Lua em torno da Terra. Se os períodos de rotação e translação forem muito próximos, o efeito será o do corpo menor sempre mostrar a mesma face para o corpo maior (Fig. 3).

Fig. 3 Ilustração da trava de maré que faz com que a Lua sempre mostre a mesma face para a Terra (no centro). Fonte: Wikipedia.

Outra questão muito diferente é sobre a origem dinâmica para esse efeito. Ele é atribuído ao "trava de maré" (tidal locking). Como descrito na seção, a Lua possui uma "figura ovoide" ou forma que se afasta de uma esfera e que modernamente recebeu a designação técnica de "esferoide prolato". 

Acontece que a Lua é um corpo extenso. Isso significa que há diferenças na força de gravidade entre as partes da Lua próximas da Terra daquelas que estão mais afastadas (as forças de maré). Essa diferença de força é a causa para a deformação do corpo lunar: ele tem uma forma ovoide justamente por causa dessas forças. 

Fig. 4. Ilustração do efeito das forças de maré sobre um corpo esferoide. Essas forças fazem com que ele se alinhe com a linha vermelha, quando retirado de sua posição. Por isso, a Lua sempre mostra a mesma face voltada para a Terra. Imagem: Wikipedia.

Perturbada de sua posição de equilíbrio, a gravidade fará com que a lua retorne à posição de alinhamento (Fig. 4), exatamente como sugere a imagem do "João Teimoso" do comentário de Kardec: 
Tendo o centro de gravidade num dos pontos de sua superfície, em vez de estar no centro da esfera, e sendo, em consequência, atraído para a Terra por uma força maior do que a que atrai as partes mais leves, a Lua pode ser tida como uma dessas figuras chamadas vulgarmente joão-teimoso, que se levantam constantemente sobre a sua base, ao passo que os planetas, cujo centro de gravidade está a distâncias iguais da superfície, giram regularmente sobre o próprio eixo.

Portanto, o efeito da força de maré sobre a Lua não se deve a uma diferença de densidade como proposta na passagem:

Para melhor compreender-se o seu estado geológico, pode ele ser comparado a um globo de cortiça, tendo formada de chumbo a face voltada para a Terra.
Não existe essa diferença de densidade, e a "face oculta" da Lua tem a mesma natureza e composição da face que se mostra à Terra. Destacamos o comentário prudente de Kardec que se confirmou à luz das novas "observações diretas" trazidas por missões espaciais. Esse comentário, de fato, se aplica a todas as hipóteses apresentadas em "Uranografia Geral":
Por muito racional e científica que seja essa teoria, como ainda não foi confirmada por nenhuma observação direta, somente a título de hipótese pode ser aceita e como ideia capaz de servir de baliza à Ciência. Não se pode, porém, deixar de convir em que é a única, até o presente, que dá uma explicação satisfatória das particularidades que apresenta o globo lunar.

É importante lembrar que esse efeito de trava de maré também ocorre em outros corpos do sistema solar, como é o caso do planeta Mercúrio e muitas luas de Saturno e Júpiter. 

26

O autor chama a atenção para a diferença de formação de satélites entre os diversos planetas do sistema solar. Dessa forma, "o número e o estado dos satélites de cada planeta têm variado de acordo com as condições especiais em que eles se formaram". O autor esclarece que Mercúrio, Vênus e Marte "não deram origem a nenhum astro secundário", o que é correto. Porém, as diversas edições de A Gênese insistem em lembrar os dois satélites de Marte, Fobos e Deimos (Fig. 5), descobertos em 1877.

Fig. 5. Foto HRSC da sonda Mars Express dos satélites de Marte, Fobos e Deimos, tirada em 16 de dezembro de 2017. Imagem: Flickr.

Entretanto, modernamente se sabe que esses satélites provavelmente não se formaram a partir do núcleo de acreção que originou Marte (sua origem é ainda cercada de mistérios [8]). Eles foram capturados posteriormente ou são resultado de um evento de colisão. Portanto, a descrição do autor de "Uranografia Geral" permanece válida em certo sentido.

27

Esta seção descreve a origem dos anéis de Saturno. Usando da teoria da nebulosa primordial, os anéis são explicados como compostos de "moléculas homogêneas, já em certo estado de condensação", ou seja, o material se apresentava "nos tempos primitivos" em estado uniforme, sem aglomerações que  teriam causado a transformação do anel em luas menores:

Se um dos pontos desse anel houvesse ficado mais denso do que outro, uma ou muitas aglomerações de substância se teriam subitamente operado e saturno contaria muitos satélites a mais.

A essa descrição devemos adicionar o entendimento moderno de que, dada a proximidade com um corpo super massivo como Saturno, o processo de acreção não teria vingado. O corpo resultante sofreria gigantescas forças de maré que causariam sua destruição [9]. Os anéis de saturno são formados por fragmentos de material que orbitam um plano específico do equador do planeta. 

Referências

[1] Aitken, R. G. (1906). The nebular hypothesis. Publications of the Astronomical Society of the Pacific, 18(107), 111-122.

[2] Forgan, D. H., Ilee, J. D., & Meru, F. (2018). Are Elias 2-27's spiral arms driven by self-gravity, or by a companion? A comparative spiral morphology study. The Astrophysical Journal Letters, 860(1), L5.
[3] Shu, F. H., Adams, F. C., & Lizano, S. (1987). Star formation in molecular clouds: observation and theory. Annual review of astronomy and astrophysics, 25(1), 23-81.

[4] Thiel, R (1964). E a Luz se Fez: o Romance da Astronomia. Ed. Melhoramentos, 2a Edição, p. 208.

[5] Wikipedia (2021). The formation and Evolution of the Solar System: https://en.wikipedia.org/wiki/Formation_and_evolution_of_the_Solar_System  

[6] Stevenson, D. J. (1987). Origin of the moon-The collision hypothesis. Annual review of earth and planetary sciences, 15(1), 271-315.

[7] Malcuit, R. (2021). A History of a Ruling Paradigm in the Earth and Planetary Sciences That Guided Research for Three Decades: The Giant Impact Model for the Origin of the Moon and the Earth-Moon System. In Geoforming Mars (pp. 137-199). Springer, Cham.

[8] Craddock, R. A. (2011). Are Phobos and Deimos the result of a giant impact?. Icarus, 211(2), 1150-1161.

[9] Reiffenstein, J. M. (1968). On the formation of the rings of Saturn. Planetary and Space Science, 16(12), 1511-1524.