9 de maio de 2020

A Evolução de Deus

Deus-pai. Por: Cima da Conegliano (~1459).

Toda religião é verdadeira de uma forma ou de outra. 
Cada religião é verdadeira quando entendida metaforicamente. 
Mas, quando ela se prende a suas próprias metáforas, 
que são interpretadas como fatos, então temos problemas.  J. Campbell
A enorme dificuldade de alguns cientistas contemporâneos em aceitar a ideia de Deus está na raiz dos embates presentes entre ciência e religião. A primeira como mensageira avançada de uma revelação perene e a segunda como tendo iniciado uma revelação não menos importante para a vida humana, mas que parece ter sido sufocada pela ciência. Fundamentalmente, a religião aqui deve ser tomada em seu sentido amplo e original, como os muitos caminhos que levam a uma união ou "religação" do humano com o Divino entendido como causa do sentimento de transcendência universal encontrado em qualquer povo ou cultura. 

Inicialmente isolados por distâncias então enormes, povos antigos desenvolveram noções diferentes para o Divino. O que há em comum entre essas visões é justamente essa ânsia pela transcendência, o reconhecimento de um poder muito superior ao homem. Esse poder era visto nos inúmeros fenômenos naturais que os primitivos não entendiam a causa, e que, muitas vezes, modificavam de forma dramática a vida humana. O mediunismo como uma via, ainda que muito limitada, de contato dos humanos com os Espíritos foi uma das forças que talharam muitas religiões antigas. A morte como o destino último exercia seu fascínio. Em torno do fim da vida se levantaram inúmeras concepções de alguma forma ligadas à noção de Deus que controlaria a morte diretamente. Os antigos criaram diversos sistemas de crença que se distinguem enormemente em variedade de deuses no politeísmo até a síntese monoteísta, quase tão antiga quanto o primeiro.

Assim como se pode falar da 'progresso das concepções científicas' ao longo dos séculos recentes, é possível registrar evolução semelhante nas inúmeras ideias de Deus nas religiões, embora a um ritmo muito menor do que no caso da ciência. É como se à Humanidade tivesse sido negada uma compreensão mais dilatada do Divino, ao passo que, com as noções científicas, tendo as causas os fenômenos naturais facilmente acessíveis, nosso progresso foi muito maior. Há várias maneiras de se entender esse estado de coisa: apenas uma delas é pela negação da ideia de Deus porque, ainda que tenhamos feito muitos progressos em ciência, nenhum ser humano poderá garantir que esse progresso acabou.

Dessa forma, continuam a existir questões não resolvidas no Universo que invocam continuamente a ideia de Deus como solução. Como o Universo é muito grande, de certa forma nosso progresso foi muito pequeno, se comparado ao que ainda devemos progredir. Em relação à compreensão de Deus ainda estamos no mesmo ponto em que estavam os povos antigos. Definitivamente, a ideia de Deus é um dos temas sobre os quais ainda será necessário fazer progressos, inclusive científicos.

O Deus que morreu

Como são inúmeras as imagens de Deus dentre milhares de escolas religiosas que existem, essa variedade tem sido uma das principais bases para o ateísmo negar Deus: não é possível que todas essas noções sejam verdadeiras ao mesmo tempo. Ou, de outra forma, qual delas é a verdadeira?

Certamente, o maior de todos os erros religiosos foi ter tornado Deus à imagem e semelhança do homem. Nas diversas igrejas que surgiram depois do movimento cristão primitivo, a ideia pode ter sido sugerida a partir de antigo texto bíblico, como 1 Genesis: 26, 
Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança.
Depois, quando todo o texto se tornou suspeito e muito mais ameno a uma interpretação meramente figurativa, a concepção foi alterada para garantir que Deus teria em comum com os homens características como 'capacidade de raciocínio', 'livre-arbítrio', 'emoções' etc, ou seja, atributos todos derivados de uma personificação de Deus. Ora, de forma alguma os antigos negaram aos seus deuses (não bíblicos) tais capacidades. Assim, essas concepções fazem eco a esse passado distante: é uma versão pouco aprimorada dos deuses do politeísmo, onde, para ser aceito e compreendido, Deus foi concebido à imagem e semelhança do homem. 

Essa ideia de Deus herdada dos antigos cria um problema enorme para as religiões porque ela implica em rastros ou evidências de sua existência plenamente acessíveis à ciência. Como tais evidências nunca foram encontradas, essa noção de Deus tem sido severamente abalada pela evolução do conhecimento científico. Em qualquer parte para onde se olhe não se vê prova alguma da existência de um Deus antropomórfico. Pior ainda, a noção de ordem e hierarquia da Natureza implica em fortes restrições para as arbitrariedades dos supostos desejos Divinos. Assim, esse Deus feito à imagem e semelhança do homem morreu para sempre. É contra ele que se levantaram centenas de vozes da ciência e da razão como, por exemplo, uma mais extremas, a de F. Nietzsche (1844 - 1900):
Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? [1]
Tal como a ideia de Terra plana, a noção antropomórfica de Deus foi aquela ajustada à realidade de uma época que o tempo implacável levou para sempre. O apego a noções antropomórficas de Deus em diversas religiões é o maior empecilho ao diálogo entre a ciência e a religião, bem como uma das principais forças propulsoras do ateísmo moderno. A incapacidade de seus crentes atuais em entenderem a metáfora oculta na imagem, levará, no mínimo, à reinterpretação dessas religiões.

O infinito como ponte entre ciência e religião (não literalmente falando)
Se há um Deus, Ele é infinitamente incompreensível, pois, não tendo partes ou limites, Ele não tem relação conosco. Nós, portanto, somos incapazes de conhecer o que Ele é ou se Ele é. — Blaise Pascal (Pensees, 233)
A ideia de uma ligação entre Deus e a noção de infinito não é recente. De fato, os principais teólogos da Igreja defenderam a ideia de infinitude ligado à noção de Deus. Em primeiro lugar porque limitar Deus seria torná-lo parte de sua criação; não podendo haver limites a Deus, ele é concebido como infinito. Algumas passagens do texto bíblico  foram interpretadas como a implicar na noção de infinitude de Deus:
Mas, na verdade, habitaria Deus na terra? Eis que os céus, e até o céu dos céus, não te poderiam conter, quanto menos esta casa que eu tenho edificado1 Reis 8:27 
Grande é o nosso Senhor, e de grande poder; o seu entendimento é infinito. Salmos 147:5
Poderá alguém esconder-se sem que eu o veja?, pergunta o Senhor. "Não sou eu aquele que enche os céus e a terra? pergunta o Senhor.  — Jeremias 23:24
Entretanto, quando a maioria passa os olhos nessas passagens, dificilmente não as considera como meras figuras de linguagem que contrastam demais com outras em que o Deus do autor bíblico se contradiz. É possível questionar se esses autores tiveram algum dia uma ideia comum sobre Deus. A explicação mais óbvia é que a Bíblia, vendida presentemente como um livro único, na verdade, é um amontado de textos de autores diferentes que não tinham a mesma ideia de Deus.

De qualquer forma, é possível ler em S. Tomás de Aquino [2], a noção de 'infinitude de Deus' em várias partes de sua obra monumental:
E como o ser divino não é recebido em nenhum outro, mas é o seu próprio ser subsistente, como já demonstramos, é manifesto que Deus é infinito e perfeito. (Questão 7, Artigo 1, "Da infinidade de Deus", [2])
Por isso mesmo que o ser de Deus é por si subsistente e não recebido por nenhum sujeito — como infinito que é — é que se distingue de todos os demais, e todos dele diferem; assim como, se a brancura por si subsistente existisse, o fato mesmo de ela não existir em outro ser a diferenciaria de qualquer brancura existente num sujeito. (Questão 7, Artigo 1, "Da infinidade de Deus", [2])
Entretanto, a infinitude de Deus implicaria em um poder tão grande que seria possível a ele derrogar suas leis e atuar arbitrariamente no mundo dos homens, o que resultou em uma explicação conveniente para os chamados milagres. É óbvio que a resposta parece simples para inúmeros crentes, mas os princípios e as descobertas da ciência estão sempre a contradizer sumariamente qualquer explicação miraculosa. Ficaria assim aparentemente explicado a ordem do cosmo medieval, bem como a de inúmeras passagens de textos do Novo e Velho Testamentos aparentemente incompreensíveis. Entretanto, é errôneo julgar que S. Tomas acreditava que Deus tudo podia. Há limites para a ação divina mesmo para Ele:
Deus, pela perfeição do seu poder, pode tudo, mas lhe escapa à po­tência o que não tem natureza de possível. Assim também, se atendermos à imutabilidade do seu poder, Deus pode tudo o que pôde; porém, certas coisas que, antes quando eram factíveis, tinham a natureza de possível, já não a têm quando feitas. E, então dizemos que não as pode, por não poderem elas ser feitas. ("Se Deus pode tornar o passado inexistente", Art. 4, resposta à 2a questão, [2])
Assim, Deus não pode mudar o passado, o que também era conveniente para a doutrina da predestinação. Desnecessário dizer que, sendo a concepção dominante de Deus trinitarista, a mesma infinitude teve que ser estendida para todas as pessoas da Trindade. 

Hoje, distantes das controvérsias do princípio e iluminados pelas descobertas da ciência, podemos questionar porque Deus, sendo infinito, incriado e estando em todos os lugares etc, teve que se tornar homem para continuar a ser Deus. O automatismo observada nos fenômenos da Natureza, a existência de aleatoriedades, de limites ao que pode ser observado, a aparente infinitude de hierarquias de escala (microuniversos dentro de universos), a vastidão do espaço e do tempo etc, são questões relevantes para uma nova noção de Deus que seja incorporada à imagem científica do Universo. 

Mas Deus sempre permanece

Livres da ideia de um Deus humanizado, muitos podem imaginar que Deus foi completamente eliminado pela ciência. Entretanto, isso é um erro porque nunca foi objetivo da ciência buscar Deus, portanto, ela nunca teria podido negá-lo. Algumas noções da Divindade, como aquelas que o supõem como intervindo miraculosamente na vida dos homens, são de difícil ou impossível aceitação depois das descobertas da ciência. Mas é uma extrapolação não garantida afirmar a inexistência de Deus com base nas descobertas presentes da Ciência.

 A concepção espírita: Deus como causa primária.

1. O que é Deus?
"Deus é a inteligênica suprema, causa primária de todas as coisas." [3]
 
Podemos imaginar algo gigantesco, incontável, inacessível por qualquer critério, instrumento ou meio possível, o oceano onde a verdade está inteiramente guardada, a causa que deu início a tudo? Um ser que, por estar presente em tudo, é por isso mesmo inacessível diretamente aos seres por ele criados em escala infinitamente inferior. Um ser desse tipo jamais se conformará a qualquer imagem que os homens possam fazer dele. Assim, Deus, como causa primordial de tudo não é humano, não tem sexo, não se apresenta sob qualquer forma, não tem qualquer atributo, nem desejos, percepções, sensações, intenções ou ideias dos homens, ainda que esses últimos, por diversos atavios e por fixação no momento de culto, tenham criado inúmeras representações Dele.

Mas, o mais importante que os Espíritos revelaram sobre a questão de Deus, não tem a ver com definições, descrições ou comportamentos Dele, mas com aquilo que nos é dado saber sobre Ele:
"Deus existe; disso não podeis duvidar e é o essencial. Crede-me, não vades além. Não vos percais num labirinto donde não lograríeis sair. Isso não vos tornaria melhores, antes um pouco mais orgulhosos, pois que acreditaríeis saber, quando na realidade nada saberíeis. Deixai, conseguintemente, de lado todos esses sistemas; tendes bastantes coisas que vos tocam mais de perto, a começar por vós mesmos. Estudai as vossas próprias imperfeições, a fim de vos libertardes delas, o que será mais útil do que pretenderdes penetrar no que é impenetrável" [4]
Deus é o incognoscível, mas como consequência de nossas limitações. Por sua infinitude e grandeza, criou Ele o Universo de tal forma que o homem, nada mais do que uma partícula nele, somente pode comprendê-lo como a causa final de tudo o que foi descoberto e do que está para ser revelado.  Entretanto, a restrição severa feita pelos Espíritos sobre o que podemos hoje saber sobre Deus é acompanhado por uma promessa:
11. Será dado um dia ao homem compreender o mistério da Divindade? 
“Quando não mais tiver o espírito obscurecido pela matéria e, pela sua perfeição, se houver aproximado de Deus, ele o verá e compreenderá.” [3]
Como consequência de seus ensinos, as religiões criaram diversos sistemas de fé com base em concepções que fizeram da Divindade. Pelos Espíritos, entretanto, aprendemos que somente podemos fazer uma ideia limitada de Deus, porque a nós falta um sentido especial (ver [3], Questão 10). Os Espíritos recomendam o exame sistemático de nossas falhas e sua correção como a mais importante tarefa, independente da ideia limitada que temos de Deus. Conhecida essa limitação, que está na natureza da condição da existência humana, não é mais possível sustentar pela religião a separação sistemática daqueles que não dividem conosco as mesmas ideias de Deus. Hoje, como antes, sabemos que estão todos errados, e que a nós cabe apenas conhecer Sua existência como causa muita acima de nossa capacidade de compreensão. No que essa causa puder nos tornar melhores amanhã do que hoje somos, nisso é o que devemos nos concentrar.

Um dia, entretanto, conheceremos a Verdade. Por hora, depende apenas de nós o quão rápido avançaremos na direção dela. 

Referências

[1] F. Nietzsche. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Sobre versões dessa obra ver: https://pt.wikipedia.org/wiki/Assim_Falou_Zaratustra (acesso em maio de 2020).
[2] Permanência. Suma Teológica. https://permanencia.org.br/drupal/node/8 (Acessado em maio de 2020).
[3] A. Kardec. "O Livro dos Espíritos". Parte Primeira, "Das causas primárias", Capítulo , "Deus e o Infinito". Questão 1. Versão ipeak.com.br (acesso em maio de 2020)
[4] Ver ref. [3], resposta à Questão 14.

21 de março de 2020

Orem e Lutem (Vergniaud)

"O naufrágio", J. M. William Turner (1805).
No céu nenhuma estrela!... As ondas furiosas se quebram, franjando de espuma as pontas dos rochedos! Os ventos desencadeados e a tempestade que urra abafam os gritos dos náufragos e os apelos apressados do canhão da angústia!... De um lado, a rocha que esmaga, do outro, o abismo que devora!... 
Alguns homens corajosos, colocados na mastreação, percebem ao longe uma pálida e trêmula luz! Seria o farol? Pobre navio, tantas vezes enganado na espera, não ousas dirigir-te até ele, e, entretanto, esse ponto luminoso te atrai como se fosse o termo de teus perigos! 
Ó náufragos, qual seria dentre vós o insensato que nessa hora de tempestade não quereria curvar a fonte e orar? Não é ela toda-poderosa, essa humilde prece que sobe até o Criador e faz raiar sobre vós, nesse momento de dúvida tenebrosa, a inspiração que salvará a todos! Essa claridade interior vos mostrará vosso navio, ao invés de correr sobre escolhos, ir diretamente para o porto!...
Marinheiros, orem e lutem contra os elementos furiosos, lutem,  pois o porto lá está!... Com o porto, a salvação e a vida, o novo mundo, o país tão procurado, o Sol, os belos dias, o calor vivificante, as fontes frescas, as sombras, os frutos saborosos, a rica natureza, o sedutor desconhecido, as descobertas, os estudos, o objetivo da viagem!...
Amigos, certamente compreendereis meu pensamento e nesse navio perdido, reconhecereis a sociedade moderna. Oh, sim, a tempestade bufa, o vento das paixões ruge, a incredulidade obscurece os grandes pensamentos, apaga as altas aspirações! Mas Deus ouve o grito dos náufragos: a prece de alguns deles e a radiosa claridade de sua Doutrina dissiparão a tempestade, acalmarão os ventos e iluminarão a noite!
Vós que começais a perceber o farol, devotai-vos para salvar a tripulação, dai coragem, esperança, fé aqueles e a quem falta, tomai nas mãos o leme, a inteligência, a fim de dirigir todos para a luz, para o progresso, para a salvação! 
Mensagem do Espírito Vergniaud recebida por M. W. Krell em março de 1873. Reproduzido com algumas modificações de "Reflexos da Vida Espiritual", 1a Ed., CELD (2002)

1 de março de 2020

O sistema de Sírius segundo Emmanuel

Representação do Cão Maior superimposta ao mapa Stellarium. Sírius é a estrela mais brilhante do céu.

(...) Pouco depois, ei-la que aporta em portentosa esfera, inconfundível em magnificência e grandeza. O espetáculo maravilhoso de suas perspectivas excedia a tudo que pudesse caracterizar a beleza no sentido humano. A sagrada visão do conjunto permanecia muito além da famosa cidade dos santos, idealizada pelos pensadores do Cristianismo. Três sóis rutilantes despejavam no solo arminhoso oceanos de luz mirífica, em cambiâncias inéditas, como lampadários celestes acesos para edênico festim de gênios imortais. (...) Ao crepúsculo, quando se despediam no espaço os raios dos três sóis diferentes, em deslumbramento de cores, Alcione reuniu-se a numeroso grupo de amigos e orou com fervor, suplicando as bênçãos do Pai misericordioso. O firmamento enchia-se de claridades policrômicas e deslumbrantes. Satélites de prodigiosa beleza começavam a surgir na imensidade, envolvendo a paisagem divina num oceano de luz. (Emmanuel, "Renúncia", ver [1])

É comum encontrar descrições de sistemas astronômicos em mensagens mediúnicas.  Camille Flammarion, por exemplo, descreve um relato de A. Aksakof de que um médium teria feito revelações em 1859 sobre a existência de dois satélites em Marte [2], 18 anos antes da descoberta. Outros exemplos de descrições já foram abordadas neste blog [3]. Diante das dificuldades em se confirmar tais previsões, ressaltamos a cautela que devemos ter na sua interpretação. Isso porque o contexto ou ambiente não é aquele dos olhos terrenos, mas a impressão dos Espíritos. Muitas vezes, a descrição é embelezada pelo lirismo que o autor espiritual, pelo filtro mediúnico, pretende conferir às palavras, o que pode não corresponder exatamente à intenção do autor. De qualquer forma, teoricamente, os Espíritos (superiores) podem produzir descrições de objetos ainda inacessíveis a observatórios terrestres.

Tal é o caso da descrição que abre este post. Foi colhida do livro Renúncia e antecede o Capítulo II, que, como narrativa, tem seu início no ano de 1662. O autor espiritual, Emmanuel, conhecido guia de F. C. Xavier descreve o sistema estelar de Sírius ou a "estrela do cão" (ou α  Canis Majoris) como é conhecida na Terra. Os personagens principais de Renúncia são Pólux e Alcíone. Alcíone, um Espírito superior habitante do sistema de Sírius, visita alguma região inferior do Plano Espiritual para consolar e advertir um outro espírito (Pólux) a quem ela está ligada por laços afetivos. Uma vez que Pólux estava em um plano de vida inferior, não percebe a aproximação de Alcíone. Pólux, com intensas saudades dela, começa a orar e pede que seja concedida a oportunidade de se encontrar e ouvir Alcíone. Depois de confortar e orientar Pólux, Alcíone retorna ao sistema de Sírius. Tal como no caso relatado em [3], trata-se de uma descrição do Mundo Espiritual. 

A evolução de nosso conhecimento sobre Sírius

Até 1846, o nosso Sistema Solar somente ia até Urano. Nesse ano (1846), foi descoberto Netuno [4]. Plutão não era conhecido até 1930. Em 1992, um corpo foi o primeiro objeto transnetuniano descoberto depois de Plutão. Sem falar de novidades da sonda espacial New Horizons, em 2015. Então, usando de uma expressão coloquial, “se dentro do nosso quintal" ainda estamos detectando novos corpos, imaginemos no Sistema de Sírius, distante 8 anos-luz da Terra?

Novidades, de fato, vieram com o desenvolvimento de inúmeras técnicas mais recentes de detecção de planetas em outros sistemas estelares, a partir de uma primeira descoberta de um planeta a orbitar uma estrela da sequência principal, feita em 1995 [5]. Essa técnica tornou-se quase que uma área independente na Astronomia [6]. Hoje contamos com uma coleção de muitos exoplanetas conhecidos [7]. 

Há diversos trabalhos acadêmicos que propõem o caráter triplo de Sírius [8,9]. A estrela principal (chamada Sírius A) foi descrita como contendo uma companheira - claramente visível em telescópios, mesmo que amadores - chamada 'Sírius B'. A descoberta de Sírius B ocorreu em 1862 e foi realizada pelo fabricante de telescópios Alvan Clark e seu filho. Essa companheira é uma estrela muito pequena (do tipo 'anã branca') e orbita a principal com período de aproximadamente 50 anos. De fato, Sírius B é descrita como a mais brilhante anã-branca visivel. Ao longo do tempo reportaram-se irregularidades no movimento de Sírius B que foram creditados à existência de um terceiro corpo. Parece que tal corpo, em alguma época anterior foi observado, mas não conclusivamente descoberto.

Concepção artística moderna de um planeta em um sistema estelar triplo.
Em artigo recente [9], os autores discutem a possibilidade de observação desse terceiro corpo com base em medidas tomadas com o telescópio espacial Hubble. Uma conclusão preliminar (não inteiramente absoluta) descarta tal corpo dentro de um intervalo de massa específico. Esse descarte, é importante ressaltar, é feito para um intervalo de massa, o que implica que, corpos com pequena massa (ainda que emitindo luz, tal como as 'anãs marrons') poderiam existir. É importante lembrar que, dado o brilho intenso de Sírius A, a observação do sistema inteiro, inclusive um terceiro corpo, é bastante difícil. 

Uma 'anã marrom' é uma estrela de pequena massa que emite pouca luz visível e uma quantidade muito grande de infravermelho. Aos olhos humanos, uma anã marrom, se existir no sistema de Sírius, seria observada como uma estrela de cor magenta, desde que o observador estivesse bem próximo do sistema. O céu de um planeta que orbitasse uma das estrelas do sistema de Sírius, seria composto de três sois: Sírius A (o principal que dominaria o brilho do céu), Sírius B (a anã branca, menos luminosa e branca) e o ainda-a-ser-descoberto Sírius C de cor rosa-avermelhada, consideravelmente menos brilhante. O brilho relativo dessas estrela como visto desde o planeta dependeria da sua posição nesse no sistema triplo.

É interessante considerar que apenas recentemente as anãs-marrons foram propostas e descobertas como objetos que preenchem a lacuna entre as estrelas e os grandes planetas como Júpiter. Uma anã-marrom pode produzir luz por fusão de Deutério [16]. Entretanto, o pico de sua emissão de energia está no infravermelho que, como radiação eletromagnética, pode ser aparente aos Espíritos como luz.

Entretanto, a observação de um corpo desse tipo, desde a Terra, seria muito difícil, dada a distância e sua pequena luminosidade. A linha de investigação de um terceiro corpo ao redor de Sirius B é promissora, no sentido de que se prevê que o excesso de infravermelho observado com estrelas anãs-brancas seja explicável [10,11] como produzido por uma companheira muito mais débil como uma anã-marrom ou por um disco de poeira. Um trabalho científico de 2008 (ver [12]) parece ter detectado um excesso de infravermelho ao redor de Sírius B que pode ser interpretado como evidência da existência de uma companheira no limite inferior de estrelas do tipo 'anãs-marrons'. Em [9] é discutido, no limite de erro do Hubble, que uma estrela desse tipo poderia existir de forma estável tanto ao redor de Sírius A como de Sírius B. Não se esgotam em [9] outras possibilidades de  órbitas estáveis, já que esse trabalho seguiu uma linha particular de investigação no sistema restrito de três corpos. 

A narrativa dos Dogons

Ainda sobre Sírius, é preciso citar ao menos de passagem o trabalho feito pelo africanista Marcel Griaule (1893-1956) junto ao grupo étnico dos Dogons e publicado em 1950 [12b] em parceria com G. Diertelen. Segundo Griaule, esse povo teria cultuado Sírius e conhecido seu caráter triplo, mesmo sem contar com telescópios. O conhecimento avançado dos Dogons sobre Sírius seria um importante ingrediente da religão desse povo. A referência [12b] é uma descrição pormenorizada da crença Dogon sobre Sírius feita por esses pesquisadores.

O trabalho de Griaule alimentou especulações mais recentes, como as do livro de R. Temple "O Mistério de Sírius" [13], que creditou o conhecimento dos Dogons a avançadas raças alienígenas provenientes de Sírius (consoante a tese dos 'deuses astronautas' de von Däniken). Toda essa história serviu para fomentar um intenso debate entre ufologistas e céticos (inclusive com contribuições por Carl Sagan) que, no afã de desqualificar a tese ufológica, lançaram dúvidas sobre todo o trabalho de Griaule.

De acordo com recentes reinterpretações [14,15], Griaule teria na verdade tomado de forma exagerada descrições passadas aos Dogons por meio de europeus ainda no Século XIX ou depois, dado o conhecimento do pesquisador em astronomia. De fato, edições posteriores do livro de Temple afirmam que Sírius C teria sido descoberta em 1995 e citam o trabalho de Benest e Duvent [8] que é, na verdade, um estudo teórico. Entretanto, a descrição cética do trabalho de Griaule-Diertelen pode ser uma 'conspiração' para desqualificar esses pesquisadores. Infelizmente para nós não é possível lançar dúvidas no trabalho do africanista Griaule (e Diertelen). Apenas registramos que invenção de fatos  pode existir em ambos os lados do debate.

Conclusão

É possível que a busca por uma terceira componente em Sírius tenha sido sugerida aos astrônomos pelos estudos de Griaule e a controvérsia com os céticos. Por outro lado, hoje (em 2020) ainda não é possível afirmar que um terceiro corpo com luz própria orbite o sistema duplo Sirius A-B. Com o avanço das técnicas de medida, a situação pode mudar radicalmente. Esse mesmo avanço na técnica permitiu concluir que uma provável Sírius C como previsto por  Benest e Duvent [8] (que orbitaria Sírius A a cada 6 anos) não deve existir, deixando abertas outras possibilidades.

A narrativa de Emmanuel oferece uma segunda opção de informação que pode gerar futuras buscas. Seria possível refinar estudos em astrodinâmica e propor novas possíveis órbitas que estão fora dos limites de massa deduzidos por estudos recentes? Seria possível confirmar que o excesso de infravermelho na luz de Sírius B se deve a uma companheira minúscula? Quais são as regiões do sistema Sírius A-B em que um terceiro corpo inacessível à óptica do Hubble pudesse ser encontrado?

Este post sugere que uma possível Sírius C seria uma "anã-marrom" como são conhecidas estrelas de massa reduzida. Foi uma descoberta relativamente recente que tais objetos podem produzir luz própria pela fusão de Deutério [16].

Colaboração

Texto escrito em colaboração com Maurício Brito que sugeriu o tema e chamou a atenção para a controvérsia dos Dogons.

Mauricio Brito: Jornalista - Bacharel em Comunicações Sociais, espírita atuante na Comunhão Espírita de Brasília e Centro Espírita da Fraternidade Cícero Pereira-CECIPE, ambos em Brasília/DF. Aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada/IPEA - Brasília/DF. email: mauriciobrit@gmail.com

Referências

[1] F. C. Xavier. Renúncia - História real. Século de Luís XIV. Em França, Espanha, Irlanda e Américas. Heroísmo e Martírio de Alcíone. Cap. I, "Sacrifícios do Amor", p. 25, Ed. FEB. 27a Ed. (1944)

[2] C. Flammarion. Mysterious Psychic Forces: An Account of the Author's Investigations in Psychical Research, Together with Those of Other European Savants. Small, Maynard and Company (1907).


[4] Smart, W. M. (1947). John Couch Adams and the discovery of Neptune. Popular Astronomy, 55, 301. http://adsabs.harvard.edu/full/1947PA.....55..301S

[5] Discovery of Exoplanets. Wikipedia. Acesso em Fevereiro de 2020.

[6] Perryman, M. (2012). The history of exoplanet detection. Astrobiology, 12(10), 928-939.

[7] A questão da encarnação em diferentes mundos: um novo tipo de matéria?

[8] Benest, D., & Duvent, J. L. (1995). Is Sirius a triple star?. Astronomy and astrophysics, 299, 621. Ver http://articles.adsabs.harvard.edu//full/1995A%26A...299..621B/0000621.000.html

[9] Bond, H. E., Schaefer, G. H., Gilliland, R. L., Holberg, J. B., Mason, B. D., Lindenblad, I. W., ... & Young, P. A. (2017). The Sirius system and its astrophysical puzzles: Hubble Space Telescope and ground-based astrometry. The Astrophysical Journal, 840(2), 70. Ver: https://iopscience.iop.org/article/10.3847/1538-4357/aa6af8/pdf

[10] Zuckerman, B., & Becklin, E. E. (1992). Companions to white dwarfs: very low-mass stars and the brown dwarf candidate GD 165B. The Astrophysical Journal, 386, 260-264. Ver: http://adsabs.harvard.edu/full/1992ApJ...386..260Z 

[11] Farihi, J., Becklin, E. E., & Zuckerman, B. (2005). Low-luminosity companions to white dwarfs. The Astrophysical Journal Supplement Series, 161(2), 394. Ver: https://iopscience.iop.org/article/10.1086/444362/pdf

[12] Bonnet-Bidaud, J. M., & Pantin, E. (2008). ADONIS high contrast infrared imaging of Sirius-B. Astronomy & Astrophysics, 489(2), 651-655.Bonnet-Bidaud, J. M., & Pantin, E. (2008). ADONIS high contrast infrared imaging of Sirius-B. Astronomy & Astrophysics, 489(2), 651-655. Ver: https://www.aanda.org/articles/aa/abs/2008/38/aa8937-07/aa8937-07.html

[12b] Griaule, M. and G. Dieterlen (1950). "Un systeme soudanais de Sirius," Journal de la Societe des Africanistes 20: 273-294. Ver: https://www.persee.fr/doc/jafr_0037-9166_1950_num_20_2_2611

Sobre o 'Enigma de Sírius', um vídeo recente pode ser acessado aqui: https://www.youtube.com/watch?v=nTDSt9niRfI (Acesso em fevereiro de 2020).

[13] Temple, R. (1976). O mistério de Sirius. Madras, 2005. Trad. S. Maria Spada.

[14] Coppens, P. (2020). Dogon shame. Ver: https://www.eyeofthepsychic.com/dogonshame/

[15] de Montellano, B. R. O . The Dogons Revisitedhttp://www.ramtops.co.uk/dogon.html

[16] LeBlanc, F.  (2010). An Introduction to Stellar Astrophysics. United Kingdom: John Wiley & Sons.

5 de janeiro de 2020

Comentários a uma tirinha sobre como é ser ateu.


Premissa 1: Há uma distinção entre a crença que se tem na maneira como o mundo é e aquilo que o mundo verdadeiramente é. Mas, em relação a quais temas de crença essa diferença é capaz de mais impactar a vida do indivíduo, observado certo intervalo de tempo?

É perfeitamente possível ter uma crença sobre como o Universo é e existe, mas o Universo em si ser completamente diferente.

Isso implica que, para a vida prática, manter crenças muito diferentes do 'real' com fatos da Natureza, por exemplo, têm pouco ou nenhuma influência sobre o bem-estar e a adaptabilidade do indivíduo que manifesta essa crença. 

É por isso que é possível ser ateu e viver muito bem, ou acreditar que a terra é 'plana' sem que isso tenha qualquer efeito mais grave na vida do indivíduo que crê nisso.

Premissa 2: Em geral se assume que quanto mais próximo do 'real' estiver tudo aquilo que se crê, tanto mais certo estará a vida do indivíduo. Portanto, tanto mais preferível será sua crença (em relação à outra menos real). Entretanto, essa correlação é falsa.

Assim, pessoas usam suas próprias crenças para se distinguirem das outras. Determinados credos políticos - que pouco tem a ver com a vida prática - podem impactar na vida social e separar as pessoas, o que é um grave erro.

O ateu vive muito bem sem acreditar em Deus e o terraplanista igualmente bem sem acreditar na Terra esférica: cada um se acha mais certo do que o outro, porque pensam que suas próprias vidas dão prova da correção de suas crenças. 

A realidade é que não existe tal correlação.

Onde está o problema

O problema aparece quando o indivíduo mantem crenças muito diferentes da 'realidade' em relação aos fatos e coisas que estão perto dele, ou seja dos fatos e coisas que podem em curto prazo prejudicar muito o próprio indivíduo, seu corpo ou sua condição de vida. 

Assim, não convém discordar ou se inconformar com a realidade financeira da vida, ou manter ideias heterodoxas ou pouco confiáveis sobre as motivações reais das pessoas. Isso pode resultar em problemas graves de relacionamento ou em dificuldades financeiras que logo surgem. Da mesma forma, não convém discordar da opinião do médico ou especialista em saúde em se tratando do bem-estar do corpo.

Mas, o maior impacto, sem dúvida, existe quando o indivíduo passa a manter crenças errôneas em relação a ele mesmo. Por exemplo: falha em perceber que poderia ter conseguido um alvo de vida, mas se sentiu incapaz para isso.

Em suma: essa diferença entre realidade e crença pessoal é mais grave com as coisas ou fatos do mundo psicológico, relacionamento pessoal, vida afetiva, profissional etc. Dai a enorme literatura de auto-ajuda, que pretende 'reprogramar' a crença pessoal de acordo com a realidade.

O problema do prazo de verificação das crenças

Por outro lado, qual o impacto de se manter determinadas crenças relaciadas ao mundo espiritual?

É certo que, para a vida prática, desde que ela não impacte a relação entre as crenças sociais e a realidade social, mental e de saúde, pouco ou nenhum efeito será observado. Esse é uma as grandes motivações dos indivíduos anti-religiosos.

Mas é preciso considerar o prazo em que se observa os efeitos.

Pois a manutenção de crenças errôneas pode impactar em diferentes prazos: curto, médio e longo. Alguém que fume moderamente pode não sofrer em poucos meses dos males do tabaco. Lenta mas inexoravelmente esses males virão, mais a frente, quando seu corpo envelhecido não mais conta com os recursos necessários para contrabalançar os efeitos do fumo.

Porém, o reconhecimento disso depende fortemente da própria crença que se tem no mundo. Para o ateu e materialista, não há que se preocupar como o 'longo prazo', pois a vida termina com a morte. É por isso que se vêem tantos ateus e materialistas dedicados à defesa de determinadas crenças políticas, visto que a única sobrevivência futura que entendem é a da própria sociedade que se pensa poder ser melhorada por meio de doutrinas políticas. 

Mas e se não for assim? Uma das razões de existir das religiões é esta: dar ao indivíduo uma crença do mundo espiritual que traga consequências práticas para a sua vida futura.

Houve um tempo no passado em que toda a estrutura da sociedade foi montada com o fim único em garantir a salvação do indivíduo. Tão forte era a crença nessa necessidade que a arte, a ciência e a política se voltavam exclusivamente para esse objetivo de longo prazo.

Entretanto, em matéria de religião há uma multiplicidade muito grande de propostas e, em uma visão 'realista do mundo' (a de que existe uma e apenas uma realidade externa), é impossível que todas estejam corretas ao mesmo tempo.

Em particular é grave erro acreditar que só porque se mantém uma determinada crença em Deus, ele deve obrigações ou benesses de curto prazo ao crente. É quase que um princípio lógico, que pode ser enunciado de forma independente que, existindo Deus, as consequências para a vida do indivíduo não devem depender de sua sorte em acreditar na imagem correta de Deus. Primeiro porque acreditar no  que seria o 'certo' não está equitativamente distribuido nem no espaço, nem no tempo, de forma que seria uma contradição com a própria justiça de Deus.   

Um dos maiores paradoxos para os crentes religiosos é constatar a existência de ateus endurecidos que se deram muito bem na vida. Como pode Deus ser tão bom para eles? Pensam que a vida de delícias do descrente é uma cilada ou antecâmara dos tormentos que o aguardam na vida futura. Mas, na realidade, é a própria ideia que fazem de Deus é que está errada.

É ai que está a maior importância da descoberta de Kardec da comunicabilidade dos Espíritos. Para não espíritas trata-se de uma crença. Mas, na realidade,  Kardec descobriu um caminho de investigação que conduziu a descobertas surpreendentes. Tão surpreendentes que conseguiu unir ateus e cristão rigorosos, os primeiros a exigir 'evidências' sem teoria e os segundos em um grito de blasfêmia.

Uma vez verificada a existência do Espírito e sua possibilidade de comunicação, é possível inspecionar o impacto em longo prazo da manutenção de determinadas crenças, inclusive aquelas sobre o mundo espiritual. E esse é uma das maiores contriuições do Espiritismo, ainda que não reconhecido talvez mesmo entre a maioria dos espíritas.

Nessa investigação, Kardec descobriu que as consequências para a vida futura do homem não dependem da crença que ele mantem na Divindade. Essa correlação, se existir, advem da chance de seus atos serem impactados por tais crenças. 

O destino de felicidade ou não dos humanos depende inteiramente do compromisso que têm para com o bem. Para isso, Deus dotou o homem da capacidade de discernir entre o bem e o mal em um prazo de tempo que não se restringe apenas a uma vida.  

Essas descobertas abrem um mundo completamente novo. Primeiro porque torna cientificamente irrelevante a crença específica em Deus, mesmo porque isso muda conforme as várias existências que o indivíduo tem. É uma marca da consistência interna do Espiritismo com Kardec que seus princípios se reforcem e não se contradigam uns aos outros. 

Depois porque se conclui que, mesmo diferentes, todas as religiões estão corretas ao mesmo tempo. O caminho de vida do agnóstico ou do não religioso pode ser apenas um pouco mais espinhoso do que a do crente. Ao constatar que as consequências para a nossa vida futura dos nossos atos não dependem de nossas crenças, mas dos nossos atos, abre-se um caminho igualitário para todos. As eventuais diferenças estão todas nos aspectos externos da existência, o que inclui nossas crenças. 

A linha de evolução da vida é dupla: há uma que constantemente se renova a cada nova existência e outra que permanece perene além dessa vida. A cada oportunidade, independentemente dos aspectos transitórios (condições materiais, crenças, educação herdada, oportunidades etc), o Espírito tem a chance de se reinventar marcando na linha perene as suas escolhas. Conforme assim procede ele colhe, mais para frente, as consequências. 
Tal deve ser, para ele, a vida futura, quando esta não estiver mais perdida nas nuvens da abstração, mas uma atualidade palpável, completamente necessária da vida presente, uma das fases da vida geral, como os dias são fases da vida corpórea; quando verá o presente reagir sobre o futuro, pela força das coisas, e sobretudo quando compreenderá a reação do futuro sobre o presente : quando, em uma palavra, verá o passado, o presente e o futuro se encadeando por uma inexorável necessidade, como a véspera, o dia e o dia seguinte na vida atual, oh! então as suas ideias mudarão completamente, porque verá, na vida futura, não somente um objetivo, mas um meio; não um efeito distante, mas atual; será então, também, que essa crença exercerá, forçosamente, e por uma consequência muito natural, uma ação preponderante sobre o estado social e a moralização. 
Tal é o ponto de vista sob o qual o Espiritismo nos faz encarar a vida futura. [1]

Referências

[1] A. Kardec. I Parte, "A Vida Futura", Óbras Póstumas. https://obraspostumasak.wordpress.com/a-vida-futura/