2 de julho de 2015

O suicídio na visão espírita e de outras religiões


Se cada fase da vida tem algo de importante para nos ensinar, é preciso descobrir o que está reservado para nós no ocaso da existência. (A. Trigueiro, "Viver é a melhor opção", 1)

Muitas vezes, viver é um ato de coragem. (Sêneca)
Diz-se que "religião não se discute", entretanto, é na religião que encontramos uma das maiores forças de manutenção da vida humana. Um assunto que mostra todo poder da religião é a questão do suicídio. André Trigueiro recentemente lançou um livro sobre esse tema (1). Lembro-me de ler alguém reclamando que essa obra só apresenta a visão espírita do suicídio. Consultando o que há disponível na rede, encontramos várias referências sobre a visão religiosa do suicídio. Neste post fazemos um resumo dessa breve pesquisa. É interessante comparar as justificativas para a condenação do suicídio nessas diversas visões com a perspectiva espírita, que traz uma novidade. É interessante também observar que há exceções à condenação do "matar-se a si mesmo", de acordo com as referências de várias religiões. 

Já escrevemos algo sobre um tipo de suicídio neste blog (2). Mas, como se manifestam as diversas religiões sobre ele? Mais importante do que isso, como elas justificam suas posições? Há duas bases para se posicionar em relação ao suicídio:
  1. A visão de princípios;
  2. A visão das consequências do suicídio.
Para se convencer disso, basta considerar que, para doutrinas materialistas, a questão do suicídio é de reduzida importância, pois não há alma nem sobrevivência. A lógica materialista acredita que vale a pena continuar a viver desde que existam vantagens em existir. Desaparecendo essas vantagens, cessa também a necessidade de viver. Portanto, a vida para o materialismo não tem valor em si, mas é relevante apenas como condição para eventuais prazeres em existir:
O que faz a vida merecer ser vivida? Certamente muito mais ceder ao sangue suicida que há em mim e procurar o esquecimento no abraço frio da morte. (Zane Grey
Podemos falar em um "valor da vida" para cada visão religiosa - incluindo o materialismo - que é derivado da visão que cada doutrina tem da existência humana. Uma vez que o assunto é complexo, optamos por apresentar tudo em apenas um único post que, por isso, resultou extenso. Isso não significa que o assunto tenha sido exaurido. O que colocamos abaixo é apenas um resumo. A referência principal que usamos aqui como orientação pode ser lida integralmente em (3). 

Judaísmo

De acordo com (4): 
O suicídio é proibido pela lei Judaica. O Judaísmo tradicionalmente vê o suicídio como um pecado. Não é visto como alternativa a se cometer certos pecados capitais que justificariam abandonar a vida ao invés de cometê-los.
Entretanto, não há referências explícitas no Talmude sobre o suicídio. A fundamentação é, portanto, de princípios e baseada em interpretações do texto bíblico. Estudiosos e autoridades no Judaísmo porém, podem suspender a proibição do suicídio em determinadas circunstâncias, como foi o caso de Jacob Emden, que afirmou ser o suicídio uma opção a alguém condenado à pena de morte. O suicídio seria então uma maneira de se expiar o pecado que originou a condenação.

Catolicismo

Como é bastante conhecido, o Catolicismo explicitamente condena o suicídio. A razão também tem com base princípios como a proibição "Não matarás" (Êxodo 20:13), ou uma lógica como a que se lê em (5):
O suicídio contradiz a inclinação natural do ser humano em se preservar e perpetuar. Ele se coloca gravemente em oposição ao amor por si próprio. Ele também ofende o amor ao próximo, porque injustamente quebra os laços de solidariedade com a família, nação e outras sociedades humanas para as quais temos obrigações.  O suicídio é contrário ao amor ao Deus vivo. (parágrafo 2281)
É possível lembrar que a condenação ao Inferno sempre correu em paralelo com a condenação do suicídio em diversas religiões cristãs. Entretanto, em uma versão moderna do catecismo da Igreja (5) podemos ler:
Não se deve temer pela punição eterna das pessoas que tiraram suas próprias vidas. Por meios apenas conhecidos por Ele, Deus pode conceder oportunidade de arrependimento. A Igreja ora pelas pessoas que tiraram suas próprias vidas. (parágrafo 2283, grifo meu
Por que a Igreja teria deixado de ameaçar com o inferno os suicidas? Talvez a condenação eterna esteja muito desacreditada na modernidade e a estratégia de se abrandar a pena recorrendo a um possível meio "somente conhecido por Deus" é mais lógica diante da crença maior em um Deus bom.

Protestantismo

Com bases semelhantes, religiões de origem protestante também condenam o suicídio. É interessante ir à origem dos movimentos protestantes e de lá extrair uma perspectiva mais moderna sobre o suicídio. Assim, para a Igreja Luterana (6):
Certamente, não temos o desejo de condenar ninguém que opte pela auto destruição. É impossível a nós descer a níveis tão baixos, em que muitos cristão chegam, e irresponsavelmente cometem tais atos. Talvez o Senhor não os julgará responsáveis, mas nós não sabemos. 
Esse mesmo texto em (6) cita uma passagem em que Lutero (1483-1546) afirmou:
Não tenho certeza se os suicidas certamente estão condenados. Penso que eles talvez não quisessem se suicidar, mas capitularam frente ao poder do demônio.
Desde esse ponto de vista, o suicídio não pode ser automaticamente condenado porque as razões para o ato são desconhecidas (a decisão de se matar segue sentimentos e intenções privadas do indivíduo). Lutero ainda foi perspicaz o suficiente em ressaltar que sua opinião não implicava na redução da gravidade do suicídio como pecado.

A opinião presente dos evangélicos nacionais sobre o suicídio pode ser lida aqui (7):
As Escrituras Sagradas relatam a história de algumas pessoas que cometeram suicídio, dentre estas: Saul (I Samuel 31:4), Aitofel (II Samuel 17:23), Zinri (I Reis 16:18) e Judas (Mateus 27:5). Todos foram maus, perversos e pecadores, o que provavelmente após a morte experimentaram a condenação eterna. Ora, sem a menor sombra de dúvidas a Bíblia vê o suicídio do mesmo modo que o assassinato – e assim o é – um auto-assassinato. Cabe a Deus decidir quando e como a pessoa morrerá. Tomar de assalto este por em suas próprias mãos, de acordo com a Bíblia, é atentar contra Deus.
Admitido isso, também não creem que um "cristão verdadeiro" perca sua salvação com o suicídio.

Islã

A recente onda de atentados de fundamentalistas islâmicos no ocidente por suicídio pode levar a se pensar que o suicídio seja amplamente aprovado pelo Islã, mas isso não é verdade. De acordo com (3):
E não se matem. Certamente Alá será mais misericordioso convosco. Corão, Sura 4 (An-Nisa). Ayat 29.
E, nos ditados de Maomé, suicidas são condenados explicitamente ao inferno. Porém, segundo Daud Matthews (8), não se deve julgar quem se suicida porque não são conhecidas as circunstâncias que levaram à decisão de se matar:
Aqui só podemos afirmar o que o Islã diz sobre o suicídio como ato. Ainda assim, não podemos julgar um caso específico de suicídio porque nunca sabemos o que apenas Alá sabe sobre o estado do suicida no momento em que comete o ato. Uma pessoa que parece se atirar de uma sacada pode ter caído por acidente, o que não sabemos. Assim, nunca devemos julgar e deixamos que isso seja feito pelo Criador que definitivamente sabe muito mais do que nós.
Como pode então existir fundamentalistas islâmicos que se suicidam em nome do Islã? É que, como todas as religiões antigas, o Islamismo se fragmentou em muitas vertentes interpretativas e algumas delas sustentam que o suicídio deve ser incentivado se for feito com objetivo de guerra religiosa. Não é na origem do movimento que devemos procurar os problemas que surgiram com as várias religiões, mas nos seguidores que interpretam de forma diferente os fundamentos. 

Hinduísmo
A prática do Sati era um rito funeral em certas comunidades asiáticas em que viúvas recentes cometiam suicídio atirando-se no fogo da pira funerária de seus maridos. Foi banida pelos Britânicos no Século XIX. Ver (10).

De acordo com Jarayan V (9)
O suicídio em Sânscrito é chamado "Atmahatya" que significa matar a própria alma. Essa palavra representa amplamente a atitude do Hinduísmo para com o suicídio. Suicídio é matar a si mesmo, pura e simplesmente. Porque o Hinduísmo vê o suicídio de forma tão negativa, como um ato desprezível e um pecado, pode ser entendido pelas seguintes razões (...)
Uma lista resumida dessas causas é fornecida na continuação do texto: "porque o Hinduísmo vê a vida como sagrada (mesmo a de insetos e animais), porque cada ser humano tem um papel e responsabilidade a desempenhar no mundo, porque o suicídio, motivado por paixões más, ignorância e ilusão, representa mau uso da autonomia que Deus deu ao homem e porque, com a vida, o homem tem obrigações para consigo mesmo, com os outros, os deuses e com seus ancestrais".

Entretanto, o Hinduísmo mantem uma crença estranha de que o suicídio é permitido em alguns casos, principalmente se cometidos por gurus como um ato de auto sacrifício ou imolação. De acordo com tal crença, casos de imolação por fogo (agnipravesa), fome lenta (prayopavesa) ou por suspensão da respiração (entrada no estado de samadhi) são considerados suicídios válidos. Portanto, para o Hinduísmo, apenas é condenável o suicídio por razões banais ou por auto ilusão.

Budismo

Das doutrinas antigas, o Budismo pode ser considerado uma das mais sofisticadas (3):
O Budismo ensina que todas as pessoas experimentam o sofrimento (dukka), que se origina primariamente de atos anteriores negativos (karma) ou que resultam do processo natural do ciclo de nascimento e morte (samsara). Outras razões para a prevalência do sofrimento dizem respeito ao conceito de ilusão (maya). Uma vez que tudo está em estado constante de impermanência ou fluxo, indivíduos passam por insatisfação com os eventos naturais da vida. Para quebrar a samsara, o Budismo advoca o nobre caminho óctuplo e não apoia o suicídio. 
Como o primeiro preceito determina que não se tire a vida de ninguém - inclusive a própria - o suicídio é considerado um ato negativo pelo Budismo. De acordo com a crença, alguém que cometa suicídio por razões negativas pode renascer em condições bastante tristes como consequência de seus pensamentos negativos. Para o Budismo, a condenação do suicídio não pode ser absoluta, devendo-se observar as razões do ato que, se negativas, são contrárias ao caminho da iluminação.

Mesmo assim, na tradição Budista, há duas estórias de monges que estavam muito próximos da morte e que, afirmando terem atingido a iluminação, cometeram suicídio - ou o que seria hoje conhecido como "eutanásia". Tais contos implicam que o Budismo antigo pôde aceitar o suicídio em certas circunstâncias (que não envolvem pensamentos negativos). Entretanto, conforme o texto (3) explica, "pessoas que alcançaram a iluminação não cometem suicídio", o que ressalta a opinião negativa que o Budismo tem hoje do suicídio.

Xintoísmo

O excessivo caso de suicídios no Japão (11) leva a se considerar influências culturais e religiosas nessa prática. A religião nacional do Japão é o Xintoísmo. Diz-se que o Xintoísmo é excessivamente condescendente com os suicidas. A origem pode ser a crença de que a vida continua na forma dos Kamis (deuses) e que a morte nada significa além da continuidade. Mas sobre esse aparente apoio dado ao suicídio, encontramos vozes no Japão que se colocam contra alguns posicionamentos ocidentais (12):
Um simpósio entre religiões no Japão explorou as atitudes das comunidades japonesas com o suicídio, incluindo o uso comum do termo "morte voluntária" - escreve Hisashi Yukimoto.
Promovido pela conferência dos bispos católicos do Japão, a conferência considerou a tendência recente de se designar o suicídio pelo termo "jishi" - que significa "morte voluntária"  ou "matar-se a si mesmo".  Muitas pessoas, incluindo membros de famílias enlutadas, agora preferem usar "jishi" (o título oficial do encontro foi "A missão dos religiosos - sobre a morte voluntária").
Um dos conferencistas, Wataru Kaya, um sacerdote xintoísta e psiquiatra, enfatizou a importância das preces e da compaixão para aqueles que se matam voluntariamente, com base na cultura tradicional japonesa. Ele reiterou que o Xintoísmo "não vê a morte voluntária como um mal absoluto".
Mas, Hiroshi Saito, que gerencia o escritório de estudos do Instituto da Doutrina Oomoto, um cisma xintoísta desde 1892, observa que o cânon Oomoto diz: "O suicídio é um pecado entre os pecados". Advertiu ainda, "ao se usar o termo 'morte voluntária', acredito que o sentido de pecado que existe ao se praticar o suicídio está sendo inconscientemente reduzido". 
Saito criticou as considerações de José M. Bertolote, do Departamento de Saúde Mental da Organização Mundial de Saúde que, em um artigo na revista "The Economist", disse que o suicídio no Japão é parte de uma cultura que prega ainda "o padrão ético de se preservar a honra e se fazer responsável por meio do suicídio". Saito afirmou que essas são "visões muito tendenciosas...Poucas pessoas veem o suicídio hoje no Japão como uma virtude". 
Espiritismo

Além de outras obras fundamentais, a questão do suicídio foi introduzida por A. Kardec na IV Parte de "O Livro dos Espíritos", mais precisamente entre as questões 944 e 957. O assunto se inicia pela questão #944: 
944. Tem o homem o direito de dispor da sua vida?
Não; só a Deus assiste esse direito. O suicídio voluntário é uma transgressão da lei divina.
a) – Não é sempre voluntário o suicídio?
O louco que se mata não sabe o que faz.
É importante considerar porém que, para o Espiritismo, o suicídio deve ser evitado a todo custo por causa das consequências do ato que são positivamente estudadas por meio de comunicações mediúnicas. Trata-se, assim, de uma extensão do suicídio frustrado. Mesmo para o materialismo, o suicídio pode não valer pena se o suicida não tiver competência suficiente para se matar e, do ato, resultarem sequelas e piora da situação. Suicidas em desespero podem não calcular corretamente o risco a que estão sujeitos, caso não consigam se livrar completamente de suas vidas.

Tomando como ponto de partida que o suicídio foi motivado por pensamentos e intenções negativas, a IV Parte do "Livro dos Espíritos" exploras os possíveis caminhos morais que o suicida poderia tomar caso raciocinasse diferente. Com certo escrutínio psicológico, os Espíritos identificam a grande causa como a falta de fé no futuro a principal razão para o ato suicida.  A escalada do suicídio nos tempos modernos confirma essa identificação porque ela tem, no materialismo, a sua principal doutrina de apoio:
A propagação das idéias materialistas é, pois, o veneno que inocula a ideia do suicídio na maioria dos que se suicidam, e os que se constituem apóstolos de semelhantes doutrinas assumem tremenda responsabilidade. Com o Espiritismo, tornada impossível a dúvida, muda o aspecto da vida. O crente sabe que a existência se prolonga indefinidamente para lá do túmulo, mas em condições muito diversas; donde a paciência e a resignação que o afastam muito naturalmente de pensar no suicídio; donde, em suma, a coragem moral. (O "Evangelho S. o Espiritismo" Capítulo V, "Suicídio e Loucura".Parágrafo 16)
A certeza da vida futura tem, portanto, a capacidade de anular o efeito do suicídio nesses casos:
A calma e a resignação hauridas da maneira de encarar a vida terrestre e da fé no futuro dão ao espírito uma serenidade que é o melhor preservativo contra a loucura e o suicídio. Com efeito, é certo que a maioria dos casos de loucura se deve à comoção produzida pelas vicissitudes que o homem não tem a coragem de suportar. Ora, se encarando as coisas deste mundo da maneira por que o Espiritismo faz que ele as considere, o homem recebe com indiferença, mesmo com alegria, os reveses e as decepções que o houveram desesperado noutras circunstâncias, evidente se torna que essa força, que o coloca acima dos acontecimentos, lhe preserva de abalos a razão, os quais, se não fora isso, a conturbariam.(O "Evangelho S. o Espiritismo" Capítulo V, "Suicídio e Loucura". Parágrafo 14)
Com relação ao "suicídio por sacrifício", há condições específicas que o desqualificariam como um suicídio, conforme pode-se ler na questão #951 de "O Livro dos Espíritos":
951. Não é, às vezes, meritório o sacrifício da vida, quando aquele que o faz visa salvar a de outrem, ou ser útil aos seus semelhantes? 
Isso é sublime, conforme a intenção, e, em tal caso, o sacrifício da vida não constitui suicídio. Mas Deus se opõe a todo sacrifício inútil, e não o pode ver de bom grado se tem o orgulho a manchá-lo. Só o desinteresse torna meritório o sacrifício e, algumas vezes, quem o faz guarda oculto um pensamento, que lhe diminui o valor aos olhos de Deus.
O "valor aos olhos de Deus" é uma designação metafórica para o real estado da consciência no momento da realização do ato. Por sua importância, essa "exceção" é comentada por Kardec:
Todo sacrifício que o homem faça à custa da sua própria felicidade é um ato soberanamente meritório aos olhos de Deus, porque é a prática da lei de caridade. Ora, sendo a vida o bem terreno a que maior apreço dá o homem, não comete atentado o que a ela renuncia pelo bem de seus semelhantes: faz um sacrifício. Mas, antes de o cumprir, deve refletir sobre se sua vida não será mais útil do que sua morte. (grifo meu)
É claro que o ato só é justificável se tem como consequência o bem dos semelhantes. Dito isso, ainda assim são raríssimas as evidências mediúnicas que atestariam essa exceção. A maior parte delas relata grandes sofrimentos com a morte planejada.

O que dizem as cartas psicografadas

Como uma extensão dos casos de sequelas de suicídios malogrados, a visão das "consequências" se explica ao se conhecer com precisão o estado da alma após a morte. O Espiritismo traz uma contribuição inovadora porque afirma ser possível conhecer essa situação por meio de evidências. Os meios de contato com os mortos constituem um processo antigo, cuja importância para o pensamento religioso e psicológico tem o seu reconhecimento no Espiritismo. O problema do suicídio adquire uma nova dimensão apenas quando a visão da vida futura é aceita abertamente.

Em "O Céu e o Inferno", II Parte do Capítulo V, há duas comunicações analisadas por A. Kardec. A do "Suicida da Samaritaine" e a do "Sr. Félicien". Há também outros trechos, como na "Revista Espírita" de Agosto de 1860  e Janeiro de 1869. No caso do suicida de Samaritaine, a conformação do sofrimento pode ser lida na resposta dada à invocação do Espírito, que ainda alimentava a ideia de desaparecer, ignorante de seu estado: 
5. Que motivo vos levou a vos suicidardes?  
Eu morri? ...Não... habito meu corpo... Não sabeis quanto sofro!... Asfixio... Que uma mão compassiva tente acabar comigo!
Encontramos em nossas pesquisas 14 autores de cartas psicografadas por Chico Xavier reportados como suicidas. Desses destacamos como exemplo Francisco A. Nogueira Filho (1960-1978). Sua morte se deu por enforcamento a 15 de agosto de 1978. Sobre sua carta (13), destacamos alguns trechos:
Ignoro que forças indomáveis me fizeram aceitar a ideia de uma corda que me pendurasse o corpo, a fim de que tudo acabasse para mim. (...)
O que se passou, não tenho vocábulos para contar. Quanto tempo me arrastei naquelas sombras densas, arrependido e infeliz, não sei dizer.
Tive medo da vida, sem a presença de meu pai, mas o medo era o que eu sentia e não aquela temeridade que acabou por me perder. 
(...) Depois de um tempo que para mim teve a duração de séculos, uma voz me veio atender aos gritos de socorro... (grifos meus)
A explicação para as "sobras densas" (que também aparece nas comunicações obtidas por Kardec) pode ser achada neste comentário de A. Kardec ("Céu e Inferno", II Parte, Cap. V, "O Suicida de Samaritaine"):

Sua alma, embora separada do corpo, ainda está completamente mergulhada no que se poderia chamar o turbilhão da matéria corpórea; as ideias terrestres ainda são vivazes; ele não acredita que está morto.
A "duração de séculos", em verdade, foi menos de cinco anos, pois a data da primeira mensagem é de janeiro de 1982. Em todas essas cartas - que tocaram profundamente os parentes e lhes serviram como lenitivos para as dores da separação - os Espíritos suicidas reconhecem a falta, a passagem pelo sofrimento e a perspectiva de reparação no futuro. 

Com relação ao sofrimento experimentado por suicidas com a morte, já havia observado Kardec pelas comunicações que não havia uma regra uniforme para todos os casos:
Esse estado é frequente nos suicidas, mas nem sempre se apresenta em condições idênticas; varia sobretudo na duração e na intensidade segundo as circunstâncias agravantes ou atenuantes da falta. Ela é frequente entre aqueles que viveram mais da vida material do que da vida espiritual. Em princípio, não há falta sem punição; mas não há regra uniforme e absoluta nos meios de punição. (O Céu e o Inferno, II Parte, Exemplos, Capítulo V - Suicidas: O suicida da Samaritaine)
De fato, em uma das cartas psicografadas, um dos autores reporta o estado de uma parenta suicida cuja culpa não teria se estabelecido pelo seu estado de doente mental. 

Perspectivas com as evidências de além-tumulo


Nossa pesquisa bastante imperfeita mostra que, embora textos considerados sagrados possam veementemente condenar os suicidas, a maior parte das autoridades religiosas mais lúcidas são cuidadosas em ressaltar a impossibilidade da condenação absoluta - punição eterna -  pelo desconhecimento das causas que levaram o ato. Em todos os casos, o suicídio é condenável porque:
  • Entende-se que o direito de subtração da vida não compete ao homem a quem a vida foi dada por um poder superior;
  • O suicídio rompe laços de família e de obrigação que o indivíduo tem com sua sociedade e com o poder criador.
Nossa conclusão é que, embora as diferenças patentes entre as crenças, fundamentalmente as religiões condenam o suicídio por motivos semelhantes. Porém, o Espiritismo permite pesquisar as consequências do ato após a morte:

  • Por causa do rompimento abrupto do fluxo vital que viria a termo com a morte natural, o suicida está exposto a uma variedade de sofrimentos cuja duração não pode ser prevista e que gerará consequências para sua vida futura.
Alguns intelectuais, ignorantes da fenomenologia psíquica, mantem a opinião de que a visão de sofrimento dos suicidas no além túmulo é um recurso psicológico - que se acredita inválido - para desmotivar o suicídio. Tal como a condenação eterna, seria um recurso para "assustar criancinhas". Ingenuamente creem eles, em suas visão materialista, que o ser não sobrevive e, portanto, não há porque se preocupar com isso. Como já dissemos antes, o materialismo não tem como frear o impulso suicida, sendo na verdade um potencializador dele, porque sua principal motivação é a falta de fé no futuro e a crença errônea de que a morte é o fim do ser. O Espiritismo, ao abrir um canal com os mortos - antes considerado proibido ou inaceitável por algumas religiões - permite conhecer em detalhes o estado da vida futura, conforme os atos previamente cometidos. Trata-se, portanto, de uma extensão dos casos das sequelas dos suicídios frustrados em estado desencarnado. 

Não mais nosso estado presente de compreensão se baseará em antigas tradições ou crenças, mas na comprovação e nas evidências - que ainda não são universalmente aceitas por razões alheias aos fatos. É um novo mundo que se abre, permitindo o planejamento de nossas vidas pelo conhecimento das consequências finais dos erros alheios. A certeza na continuidade abranda as dores do agora e permite que o suicídio deixe de ser considerado como solução final. O suicídio é, acima de tudo, um problema de saúde espiritual e como tal deve ser tratado.

Agradecimento.

Agradeço a Eliana Ferrer Haddad (Correio Fraterno) pela sugestão do tema.

Referências

(1) A. Trigueiro (2015). Viver é a melhor opção - a prevenção do suicídio no Brasil e no mundo. 1a Ed. Editora Correio Fraterno.

(2) Ver: Alguns pontos sobre a visão espírita do suicídio assistido.

(3) Religious views on suicide. Em http://en.wikipedia.org/wiki/Religious_views_on_suicide (acesso em junho de 2015). Em português sobre o suicídio há http://pt.wikipedia.org/wiki/Suic%C3%ADdio. Ver também:
(4) Jewish views on suicide. Em http://en.wikipedia.org/wiki/Jewish_views_on_suicide

(5) Catechism of the Catholic Church.
(6) Ver http://www.atruechurch.info/lutheransuicide.htm (acesso em junho de 2015). Original:
"Assuredly we would not wish to judge anyone who resorts to self-destruction. It is impossible for us to plumb the depths of gloom into which even Christian people may sink and irresponsibly lay unholy hands upon themselves. Perhaps the Lord will not hold them responsible, but we do not know." (What's the Answer, CPH, 1960, p. 144).
(7) http://renatovargens.blogspot.com.br/2013/11/os-evangelicos-e-o-suicidio.html

(8) What Does Islam Say On Suicide & Its Punishment? Ver: http://www.onislam.net/english/ask-about-islam/islam-and-the-world/worldview/166359-suicide-an-islamic-prespective.html (Acesso em junho de 2015). Versão original:
"Here we can only state what Islam says about suicide as an act. Yet, we cannot always judge a specific case of suicide because we never know what Allah knows about the state of the doer the moment he/she commits it. A person who seems to have thrown himself down from the balcony might have fell by accident, while we don’t know it. So, we are never to judge and we leave the final judgment of each case for the Creator, Who definitely knows better." 
(9) http://www.hinduwebsite.com/hinduism/h_suicide.asp (Acesso Junho de 2015)

(10) Sati: http://en.wikipedia.org/wiki/Sati_(practice)

(11) "Suicide rates Data by country". World Health Organization. 2012. Retrieved 13 June 2015

(12) ENInews (2011) Japanese religious bodies discuss suicide and 'voluntary death'. Em http://www.ekklesia.co.uk/node/15647

(13) F. C. Xavier e C. Ramacciotti (1982). "Entes queridos". Ed. GEEM.

24 de junho de 2015

Sobre o11o ENLIHPE (Agosto de 2015)


O 11o ENLIHPE acontecerá em São Paulo, no auditório da USE-SP em Santana entre 29 e 30 de agosto.

O evento contará com a participação de grupos de trabalho que apresentarão sínteses das atuais pesquisas sobre reencarnação, que foram encontradas nos periódicos Capes. Além disso, Cosme Massi fará uma conferência. 

Para mais informações visite: 
Como novidade, este ano o evento será aberto ao grande público, com foco nos jovens espíritas universitários.

3 de junho de 2015

Divaldo Franco e Rabindranath Tagore

Esta vida é travessia de oceano
onde nos encontramos em um estreito navio. Na morte,
alcançamos a praia e nos dirigimos a diferentes mundos.
(R. Tagore, em Stray Birds, 1916 (4))

Assim cantarei, e os meus serão poemas e canções imortais.
(R. Tagore, psicografia de Divaldo Franco, Pássaros Livres, 1990 (5)).

Certas coisas têm acontecido comigo,
quando sozinho em meu quarto 
que me convenceram de que há inteligências espirituais
nos advertindo e guiando.  
William Butler Yeats (1865-1939).
De acordo com A. Kardec, a mediunidade, como faculdade das "pessoas que servem como intermediárias entre os Espíritos e os homens", não é simplesmente a capacidade de se comunicar ou trocar informação. A psicografia, em particular, é a capacidade que médiuns têm em emprestar suas mentes para que os Espíritos escrevam e manifestem conteúdo, artístico inclusive. Nesse processo, o Espírito mentalmente induz ideias e conceitos ao médium que pode ou escrever com suas próprias palavras ou captar e transcrever expressões semânticas inteiras conforme sugerido pelo autor. Nesse caso, concebemos a existência de uma escala de transparência mental entre o médium e o autor espiritual, de forma que alguns médiuns conseguem fielmente replicar o que o autor pretende escrever, enquanto que outros apenas pobremente transmitem o que mentalmente recriam para si ouvindo ou vendo. O uso de linguagem poética, entretanto, é uma boa indicação da eficiência do processo de "canalização" entre o desencarnado e o médium, porque elementos sutis de identificação podem ser transmitidos. A escrita automática é o termo dado a um tipo específico de mediunidade. O termo "psicografia" é muito mais geral para representar a experiência mediúnica de escrita. Portanto, esse termo é preferido por espíritas.

Um exemplo desse fenômeno é a colaboração entre Divaldo P. Franco (1927-) (2) e Rabindranath Tagore (1861-1941). De acordo com Divaldo Fraco, ele nunca tinha ouvido falar em Tagore quando foi visitado por esse Espírito certa noite em 1949. O episódio é descrito pelo próprio Divaldo, conforme citação do livro Semeador das Estrelas (3) :
No ano do aparecimento psicográfico de Marco Prisco, em 1949, certa noite eu estava deitado, quando ouvi uma música de uma beleza indefinível, tocada numa espécie de cítara. Ao som dessa música, muito plangente e muito profunda, tive uma visão belíssima de jardins verdejantes e floridos, cortados por um riacho de águas claras no qual deslizava uma barca. Nesta, uma Entidade veneranda, de túnica alva, de tez bem escura, em cuja fisionomia, de serena beleza, sobressaíam os olhos negros, enormes e brilhantes, e a barba alvinitente, cujos fios pareciam ter cambiantes prateados. — Eu sou Rabindranath Tagore, poeta da Índia, e desejo que me grafes alguns pensamentos — disse-me o Espírito. Imediatamente, levantei-me e providenciei o material para a psicografia, entrando em transe mediúnico, logo em seguida. Enquanto psicografava, continuei a ouvir a melodia, penetrante e bela. Eu confesso, honestamente, que nunca havia ouvido falar neste nome ou lera qualquer coisa a seu respeito. A partir dessa noite, durante certo tempo, Tagore foi ditando as várias mensagens que constituiriam seu primeiro livro, que, no entanto, só veio a ser publicado muitos anos depois, em 1965, com o título de Filigranas de Luz.
O autor de Stray Birds ("Aves Errantes", 4) retornou para cantar novos pássaros em livros como Pássaros Livres (5) e Estesia, depois do livro citado Filigranas de Luz em 1965. Não consegui encontrar versões em inglês para esses versos e prosas, de forma que, recentemente, traduzimos de forma imperfeita alguns enxertos para que leitores em língua inglesa apreciem - ainda que de forma pobre - o que Tagore transmitiu a Divaldo depois de sua última existência neste mundo. Assim, alguns desses versos podem ser lidos em inglês no post Divaldo Franco and Rabindranath Tagore do blog "piritist Knowledge. Desses, replico aqui "Pássaros Livres" ou Free Birds que consta no livro de mesmo nome (5). Outros podem ser encontrados no post citado.

Free Birds

My singings are songs that the heart unfasten with rapture thrill.
My songs are melodies that tenderness liberates from my soul's depths and launches toward travelling winds to reach far distances.
My sensibility is sharpen by love and I release the sweet music of hope standing on the tiny window of my pettiness.
I spread through the air the scores of a pentagram chanted by life from the bottom of my being.
By searching my King and my Lord, I modulate my word, I call, I sing and implore.
Like free birds dressed in light they fly to reach open space toward the infinite.
During either the heavy monsoons or droughts, my birds in the same way sing in freedom, enhancing the landscape with sound and beauty.
My birds are living poems of love that liberate themselves from the narrow cage of emotion where they are born to earn the vastness, like birds of happiness.
Take my songs my Lord and convert them into peace carrying birds heralding the eternal springtime for all the unfortunate ones in the world.
So I will sing and mine will be poems and songs of immortal kind.

R. Tagore (Divaldo Franco's psychograhy)

Diz-se que a obra de Tagore em inglês não representa de forma fiel a beleza de seus versos em Bengali (6). O famoso poeta espiritualista irlandês W. Butler Yeats (1865-1939) disse que "Tagore não sabe inglês, nenhum indiano sabe inglês" (6 e 7). Seria então possível que, ao escrever pela mente de Divaldo, Tagore tenha conseguido "grafar seus pensamentos" melhor do que conseguiria se o fizesse em Bengali e usasse um tradutor para o inglês? (ou digamos, para o português, caso fosse possível a Divaldo transmitir em Bengali)? De qualquer forma, a linguagem original foi o Português e é bem provável que exista interferência no "enlace Divaldo-Tagore", tanto quanto na tradução imperfeita que fiz. Entretanto, pode-se imaginar o uso potencial da mediunidade no futuro quando grandes artistas desencarnados poderão voltar e nos transmitir obras na linguagem própria do médium.

Para tanto, é necessário apenas que eles encontrem um instrumento mediúnico fiel.

Referências

(1) A. Kardec (1861) "O Livro dos Médiuns", Vocabulário Espírita. Capítulo 32.

(2) http://www.divaldofranco.net/

(3) S. C. Schubert (1989). O Semeador de Estrelas, 4a edição, Livraria Espírita Alvorada.

(4) http://www.kkoworld.com/kitablar/Rabindranat_Taqor_Kocheri_qushlar_eng.pdf (acesso em maio de  2015). Essa tradução parece conter frases que não consegui compreender direito, talvez não seja a melhor já feita a partir dos originais.

(5) D. Franco (1990). Pássaros Livres. 2a edição. Livraria Espírita Alvorada.

(6) Ver opinião de Amartya Sen citada na Wikipedia: "qualquer um que conheça os poemas de Tagore em seu original em Bengali não se sente satisfeito com a tradução (feita com ou sem a ajuda de Yeats). Mesmo as traduções de prosa sofrem de alguma forma com distorções." Citação original em Sen, A. (1997), "Tagore and His India", The New York Review of Books.
(7) http://en.wikipedia.org/wiki/Rabindranath_Tagore.

19 de maio de 2015

Aprofunda-se o mistério da matéria escura (em direção ao universo invisível)

Fig. 1 Imagem da APOD/Nasa mostrando a distribuição de matéria escura (machas azuis) em uma pequena região do céu localizada a "apenas" 3,4 bilhões de anos-luz de distância. Esta imagem, obtida a partir do desvio da luz sobre as estruturas de fundo, é considerada a melhor "prova" da existência da matéria escura. De forma simples, a luz dos objetos de fundo é desviada por um excesso de gravidade que não pode ser contabilizado pelo que é visível na imagem. Há uma força de atração (gravidade) apontando para uma região "vazia" (em azul), região que estaria preenchida por um tipo de matéria invisível. Ver (8) para mais detalhes.
Para os que se interessam pelos últimos acontecimentos de fronteira em pesquisa da física e da cosmologia, os recentes estudos sobre a chamada "matéria escura" (1) são realmente empolgantes. Embora pareça moderno, o assunto em si remonta à década de 1930, quando o astrônomo F. Zwicky (1898-1978) corretamente apontou que o excesso de velocidade observado em galáxias distantes é explicável pela existência de um tipo de matéria invisível que ele chamou de "dunkle materie" ou matéria escura. O termo se inspirou no fato de que boa parte da massa não podia ser observada - ou não estava associada ao que emite luz. A designação tornou-se inapropriada com o tempo, pois não foi possível encontrar nada transparente e atrativo o suficiente para causar o fenômeno. Trata-se verdadeiramente de matéria invisível, que não pode ser sentida como a "matéria normal". 

Vamos aqui apresentar um pequeno resumo do status do conhecimento presente, das tendências recentes de explicação e as consequências de algumas delas para nosso conhecimento (inclusive espírita).  

Breve resumo do conhecimento atual

Segundo Alexandre F. da Fonseca, existem mais de 31 mil artigos sobre o tópico "matéria escura" no Web of Science, de forma que é bastante difícil orientar-se no assunto sem algum tipo de filtragem. Para tanto,  é conveniente dividi-lo em duas grandes abordagens:

1) Conhecimento empírico: são inúmeras as provas da existência da matéria escura que começam a se acumular, ainda que observada em grandes estruturas no Universo (2, 3). A começar pelo artigo original de Zwicky (4), quando um tipo de matéria invisível foi proposta como sendo responsável pelo excesso de velocidade observada em estrelas nas galáxias. Embora a matéria escura possa ser observada a grandes distâncias, parecem falhar todas as tentativas de detectá-la próxima ao sol (5), o que aumenta ainda mais o mistério porque, se acredita, que essa matéria deveria preencher uniformemente o espaço de forma que o próprio sistema solar estaria "embebido" nela. Já existem, entretanto, evidências diretas da existência desse novo tipo de matéria (8); 

2) Conhecimento teórico: do lado teórico, existe outra divisão. A existência de perturbação no movimento de corpos celestes sempre pode ser explicada seja alterando a força responsável por esse movimento ou admitindo que existam outros corpos nas vizinhanças que causem perturbação na força gravitacional. Isso foi o que aconteceu com a descoberta de Netuno. No caso da matéria escura, a explicação logo evoluiu para duas escolas teóricas: uma que explica a existência da matéria escura como um tipo invisível de matéria (e que dá origem a desdobramentos em física de partículas) e outra que postulou uma mudança na própria lei de gravitação. Em uma de suas variedades, existe a chamada "dinâmica newtoniana modificada" ou, em inglês, MOND (Modified Newtonian Dynamics, (6). Atualmente existe um debate entre os proponentes de MOND e os defensores da matéria escura. O mainstream científico é claramente favorável à matéria escura e não à modificação da gravidade em resumo por duas razões:
i) Postular um novo tipo de matéria estaria mais de acordo com a chamada "navalha de Occam", que sugere que explicações mais simples devem ser favorecidas. A explicação mais "complicada" aqui corresponderia a modificar toda a física (lei da gravidade);
ii) Aplicações recentes da dinâmica modificada em alguns objetos celestes exigem a existência de matéria escura, ou seja, MOND não é capaz de explicar completamente o que se observa no céu.
É simples entender. O chamado aglomerado "Bullet" (8, ver Fig. 1) parece indicar que a força de atração está dirigida para uma região vazia no espaço. Essa região é vazia porque a luz dos objetos de fundo podem ser vistos através dela, o que indica que a densidade de matéria ordinária (mesmo que opaca porque não é iluminada) não é suficiente para explicar o fenômeno de mudança da direção da luz observado. Esse excesso se deve à presença de um tipo de matéria invisível. Outras estruturas semelhantes form detectadas (7), como a recente descoberta potencial de uma possível "galáxia invisível" (9).

Na categoria das explicações teóricas também estão propostas de física de partículas. Diz-se que a matéria escura seria formada por um tipo de partícula invisível "simples", que preencheria o espaço e que interagiria de forma fraca com a matéria ordinária (os chamados "WIMPs" - Weakly Interactive Massive Particles ou partículas massivas fracamente interagentes). Por causa disso, um experimento muito sensível foi montado em um laboratório subterrâneo (10), o chamado detector LUX que, até o presente  momento foi incapaz de detectar qualquer evento. Segundo análises mais detalhadas, os resultados desse experimento sepultam esperanças em detectar a causa da matéria escura como um elemento abundante no sistema solar. Esse resultado negativo fez crescer a suspeita de que a matéria escura seria um tipo de matéria invisível ainda mais complexa que sua prima visível e que se encontra ausente de nossas vizinhanças. Em um trabalho teórico recente (11) podemos ler:
Ainda assim, confrontado com a riqueza da física do mundo visível em torno de nós, é tentador imaginar que o mundo escuro seria igualmente complexo, cheio de estruturas, forças e matéria que é invisível para nós. Podemos esperar que todo um novo setor do Universo se abra a nós tão rico como o nosso próprio. 
Ao invés de se acreditar que os 21% de matéria escura seriam algo "sem estrutura" ou "simples", começam a aparecer os que defendem uma nova revolução na física, a de que nosso tipo de matéria ordinária é uma exceção e que um novo universo invisível está para ser desvendado.

Fig. 2 Distribuição de tipos de "matéria" existente no universo conhecido. A "nossa matéria" corresponde apenas a 4% do que seria observável. Cerca de 21% é considerado "matéria invisível. Fonte: http://chandra.harvard.edu/
Consequências da existência da matéria escura na forma "complexa"

Se a matéria escura como diz a ref. (11) pode formar átomos (12), moléculas e "estrelas escuras", "planetas escuros", "radiação escura" (14) etc, então estamos diante da maior revolução de todos os tempos, com consequências incríveis para a realidade dos "mundos habitados". Isso porque potencialmente seria possível a existência de "vida escura", ou seja, vida invisível, com seres habitando um universo separado do nosso fisicamente (mas não espacialmente). 

O espírito tem muitas propriedades distintas mas, certamente, a gravidade não é uma delas. Portanto, não se deve confundir esse universo material invisível com o plano espiritual - como seria tentador fazer e como alguns espiritualistas começam a acreditar. De fato, o espírito habita em um "universo paralelo", inacessível aos nossos sentidos e interage de forma desconhecida com nossa matéria. Já a matéria escura tem peso (é atraída para junto de corpos materiais) ou seja, exerce uma força conhecida sobre a matéria ordinária, a gravitação. Portanto, a matéria escura, como o nome diz, é um tipo de matéria que interage de alguma forma com sua prima ordinária tendo em comum com o espírito a invisibilidade.

A comprovação da existência de matéria invisível (Fig. 2) representa epistemologicamente uma revolução ainda maior do que a ideia de Copérnico ou a evolução de Darwin. Ela mostra que o Universo em que vivemos pode guardar segredos inimagináveis e que nossos mais avançados métodos de investigação são impotentes para desvendar esses mistérios. A existência da matéria escura está caracterizando uma crise na cosmologia (13) que prenuncia uma outra crise mais grave, de natureza epistemológica. Se boa parte do Universo é feita de coisas invisíveis (Fig. 2) como será possível fazer ciência? Se esse universo é cheio de detalhes e estruturas, como seria possível observá-lo? Teria a ciência da matéria atingido a fronteira onde apenas evidências indiretas existirão dessas novas substâncias, impossibilitando o desenvolvimento científico futuro no mesmo nível daquele conseguido com a matéria visível?

Creio que os fenômenos espíritas prenunciaram essa revolução de forma semelhante. O que seria ainda mais inimaginável é que coisas  invisíveis e indiretamente detectáveis haveriam de se manifestar com igual força tão longe de nós, nas grandes estruturas do Universo.

Referências e notas

(1) http://edition.cnn.com/2014/09/20/tech/innovation/dark-matter-experiment-data/
(2) Clowe, D., Bradač, M., Gonzalez, A. H., Markevitch, M., Randall, S. W., Jones, C., & Zaritsky, D. (2006). A direct empirical proof of the existence of dark matter. The Astrophysical Journal Letters, 648(2), L109
(3) Spergel, D. N., & Steinhardt, P. J. (2000). Observational evidence for self-interacting cold dark matter. Physical Review Letters, 84(17), 3760.
(4) Zwicky, F. (1937), "On the Masses of Nebulae and of Clusters of Nebulae", Astrophysical Journal 86: 217
(5) Pitjev, N. P., & Pitjeva, E. V. (2013). Constraints on dark matter in the solar system. Astronomy Letters, 39(3), 141-149.
(6) Sanders, R. H., & McGaugh, S. S. (2002). Modified Newtonian dynamics as an alternative to dark matter. arXiv preprint astro-ph/0204521.
(7) A palavra "detectada" é melhor do que "observada" aqui pois a matéria escura só pode ser inferida a partir de seus efeitos, ou seja, de forma indireta.
(8) Clowe, D., Randall, S. W., & Markevitch, M. (2006). Catching a bullet: direct evidence for the existence of dark matter. arXiv preprint astro-ph/0611496.
(9) Minchin, R., Davies, J., Disney, M., Grossi, M., Sabatini, S., Boyce, P. & Van Driel, W. (2007). 21 cm Synthesis Observations of VIRGOHI 21—A Possible Dark Galaxy in the Virgo Cluster. The Astrophysical Journal, 670(2), 1056.
(10) Ou  Large Underground Xenon dark matter experimentVer: http://lux.brown.edu/LUX_dark_matter/Home.html
(11) Fan, J., Katz, A., Randall, L., & Reece, M. (2013). Double-disk dark matter. Physics of the Dark Universe, 2(3), 139-156.
(12) Kaplan, D. E., Krnjaic, G. Z., Rehermann, K. R., & Wells, C. M. (2010). Atomic dark matter. Journal of Cosmology and Astroparticle Physics, 2010(05), 021.
(13) http://aeon.co/magazine/science/has-cosmology-run-into-a-creative-crisis/ 
(14) Ackerman, L., Buckley, M. R., Carroll, S. M., & Kamionkowski, M. (2009). Dark matter and dark radiation. Physical Review D, 79(2), 023519.

6 de maio de 2015

Livro de Eugene Osty sobre as "Faculdades supranormais"

Eugene Osty (1874-1938)
A internet é mesmo uma invenção miraculosa. Encontramos em um arquivo da rede uma obra muito interessante de Eugene Osty (1874-1938, 1),  um dos pesquisadores mais engajados na metapsíquica. Seu título é Supernormal Faculties in Man, an experimental study (2), ou "Um estudo experimental sobre as faculdades supranormais no homem" em tradução livre. Essa obra é uma tradução de 1923 do francês por S. de Brath e é uma opção aos que não conhecem essa língua. Nessa obra, por exemplo, é possível ler o neologismo "paranormal" como se referindo a processos desconhecidos de acesso a informação. 

Do ponto de vista teórico, a discussão apresentada por Osty é enfadonha e pouco contribui para explicar qualquer coisa. Na época (3), existia uma controvérsia entre explicações de origem espírita e teosófica para o que metapsiquistas chamavam "faculdades metagnômicas" (ver abaixo). Essa controvérsia não deu em nada, como a maioria das controvérsias sobre esses assuntos, em que pese a importância que anti-espíritas e céticos tentam imputar às querelas para desqualificar os espíritas (ou teosofistas). O que interessa mesmo são os relatos ou testemunhos das chamadas "faculdades supranormais" encontrados na obra que, na linguagem de Kardec correspondem à fenomenologia da dupla vista ou visão psíquica (4). 

É conveniente fazer uma explicação inicial de caráter mais teórico por meio de um paralelo. Na vida ordinária, a imensa maioria das pessoas faz uso de cinco sentidos. Esses sentidos entram em ação, por exemplo, quando as pessoas se comunicam. Ouvidos e a faculdade da fala são mobilizados para a comunicação oral. Mãos e braços para a escrita. Ao se transpor esse paralelo para as novas faculdades do Espírito emancipado, obviamente, não é apenas a fala (psicofonia), a capacidade de escrever (psicografia) ou ou a audição (psicofonia) que resultam. Gostos, sensações, impressões e todas as outras capacidades encontradas em encarnados são bastante  aumentadas e estendidas na nova condição em que o ser desligado do corpo se encontra. Portanto, não é de estranhar a existência da dupla vista ou "faculdade supranormal". Essas podem prescindir (5) ou não da influência dos Espíritos para se manifestarem. Não se usa a palavra "mediunidade" nesses casos, porque não se trata aparentemente de uma comunicação explícita. 

A existência das "faculdades supranormais" está ligada à capacidade de emancipação da alma segundo Kardec. Essa capacidade é descrita por meio de seus efeitos já que não temos acesso direto à origem das faculdades integrais do Espírito (6). Portanto, a teoria que Kardec desenvolve (para a presciência, dupla vista, visão espiritual ou psíquica) é totalmente fenomenológica. Assim, não é surpreendente a variedade desses fenômenos, conforme descritos na obra de Osty, e que se adicionam a outros relatados na Revue Spirite de Kardec (ver, por exemplo, edição de Outubro de 1864).

Na parte I do livro encontramos alguns capítulos interessantes que, se por um lado mostram uma tentativa de encaixar os fenômenos em termos metapsíquicos, por outro lado mostram a criatividade na sistematização dos efeitos por parte de seu autor:
Cognição normal e supranormal (Cap. II);
Aspectos diversos da cognição supranormal (Cap. III)
1. Auto-cognição supranormal,
      Autosscopia;
Diagnóstico pre-cognitivo de si;
       2. Cognição supranormal do externo:
        Ambiente imediato;
         Ambiente distante no espaço;
        Ambiente distante no tempo;
Cognição supranormal dirigida a uma personalidade humana (Cap. IV)
Os indivíduos capazes de "cognição supranormal" são chamados "personalidades metagnômicas" (de metagnomen, do grego "meta" -  "além" e "gnome" derivado de  γιγνώσκειν - "gignoskein" - ou "conhecer", "saber", 7 ) e todos os fenômenos são associados diretamente a uma extensão das faculdades chamada "metagnomia". Alias sobre a questão dos nomes, Osty deixa claro sua opinião de "metapsiquista" na página 47 (3o parágrafo):
Não podemos deixar o leitor entender errado. E, para evitar me expor ainda mais no futuro com relação a objeções passadas, que surgem simplesmente pelo desejo de precisão  aplicada geralmente aos termos da literatura psíquica, deixarei de lado de propósito toda essa terminologia confusa que usa nomes prejudiciais aos métodos de produção dos fenômenos, com base nas diversas manifestações da cognição supranormal, ou permitir que qualquer um os interprete como bem queira. "Dupla vista", "segunda vista", "visão a distância", "audição a distância", "telepatia", "clarividência", "lucidez" e coisas parecidas são todas palavras que podem significar muita ou pouca coisa; elas devem desaparecer do uso. 
Sua previsão não aconteceu e ele acabou se expondo, pelo menos aqui em 2015. Havia entre os metapsiquistas a crença de que o uso incorreto de termos seria prejudicial à imparcialidade com que o fenômeno deveria ser tratado. Mas, o problema não está no nome, mas no fenômeno em si. Portanto, quando alguém diz observar fatos à distância de forma anômala, não consigo entender o que a caracterização de "metagnomia" pode ajudar em relação à "visão a distância". De qualquer forma, a divisão apresentada por Osty (que ele chama de "cognição" no espaço e no tempo, cognição em relação a alguém vivo versus alguém morto etc) parece ser útil e permite alguma direção dentro dessa floresta fenomenológica. Penso assim que podemos nos beneficiar dessa classificação, expurgando a verborragia metapsíquica, naquilo que ela, por sua vez, em nada ajuda a entender o fenômeno.

Na psicometria, a simples posse de um objeto
pode revelar ao sensitivo informações sobre seu
dono.

Um exemplo de caso

Vamos aqui apresentar um caso desse livro de forma resumida de forma a servir ao espaço deste blog. É assim que, na p. 55 (capítulo I), vamos encontrar essa interessante passagem de uma experiência feita por Osty com uma "personalidade metagnômica":
No dia 29 de Julho de 1920, pedi a Sra. Jeanne M., que sofre de uma doença obscura cujo diagnóstico parece impossível…, que escrevesse algumas linhas em um pedaço de papel. Ela copiou quatro linhas de um jornal em uma folha de um caderno escolar e assinou seu primeiro nome – Jeanne. Algumas horas depois, no final de uma sessão dirigida a outras pesquisas, coloquei esse papel nas mãos da Senhorita de Berly, uma personalidade metagnômica em estado de vigília, dizendo-lhe apenas: “Mergulhe no estado de saúde desta pessoa”. A escrita estava bem feita e não apresentava informações grafoscópicas que permitissem reconhecer a doença ou estado  de depressão.  A Senhorita de Berly sequer sabia da existência da paciente. Assim que seus olhos caíram nos escritos…., foi tomada por movimentos levemente convulsivos e, sem nenhum gesto de minha parte, disse as seguintes palavras: 
"Quão fraca é esta pessoa…tudo nela é fraco…que fraqueza. Ela deve sentir febres de tempos em tempos porque tenho sede. Ela adormece de repente, mas isso não dura muito… ela é fraca, muito fraca….que cérebro curioso, pesado e entorpecido…creio que esteja esgotada não importa sua idade…seu sistema nervoso está exausto…é o sangue que enfraquece todos os órgãos… há uma doença no sangue…"
De acordo com Osty, Mlle. de Berly não tinha qualquer indicação sobre a existência da paciente e, mesmo assim, ao apenas olhar para as linhas escritas no papel, pôde traçar um diagnóstico da doença de sua autora. Ainda de acordo com Osty - e que era crença da maioria dos metapsiquistas - descrições desse tipo feitas apenas pelo contato do "sensitivo" com algum objeto a ser "lido" não mudavam se seu emissor (a personalidade responsável pelo objeto ou fonte de dados) estivesse morta. Por exemplo, na p. 199, Osty afirma:
Experimentos acumulados mostram que o sensitivo lida com a personalidade morta da mesma maneira que a viva. A ação seletiva da faculdade acontece da mesma maneira. A informação que recebem e expressam são do mesmo tipo e referem-se aos mesmos assuntos.
Como a "leitura" se dava por meio de sensações que pareciam atravessar distâncias enormes ou avançar para frente ou para trás no tempo, acreditavam que se tratasse de algum tipo especial de sensibilidade que não dependesse de outros fatores, exceto do sensitivo e do objeto.

Esse tipo de fenômeno mal explicado serviu para que muitos metapsiquistas duvidassem da presença de Espíritos em sessões mediúnicas ou da própria capacidade mediúnica de muitos médiuns. Acreditavam que informação sobre o morto poderia ser obtida sem sua presença. Entretanto, essa observação era limitada segundo Osty porque, no caso da personalidade viva, seria possível seguir remotamente por meio do sensitivo, todas as mudanças de personalidade ou humor experimentadas pela consciência observada, enquanto que isso seria impossível de se fazer com o morto (8). Ainda assim, com relação ao seu próprio estado (tipo de doença, ou estado futuro), o sujeito metagnômico era incapaz de conhecer qualquer coisa (ver p. 186). Ou seja, sua sensibilidade só se aplicava aos outros. Sem resolver de forma satisfatória o problema da fonte ou origem do conhecimento "metagnômico", Osty se pergunta (p. 204)
Existiria além da personalidade humana aparente um personalidade real, um individualidade transcendente revestida de matéria e participando da vida no mundo, cuja persistência seria uma memória contendo uma estória humana, de onde o sujeito metagnômico tiraria informação após a morte assim como o faz com a mesma personalidade antes da morte? 
Ou seria a fonte do conhecimento supranormal tão inalcançável para a nossa inteligência que nossos conceitos seria estranhos a ela?
Em nenhuma parte dessa obra Osty considera a intervenção dos Espíritos como mediadores da informação metagnômica, mas acreditava firmemente que apenas experiências poderiam resolver a questão.

Conclusões

Que o Espiritismo seria  simplesmente uma explicação para o processo de comunicação mediúnico em alguns casos parecia ser conhecimento compartilhado por muitos metapsiquistas, incluindo Osty. Eles se deixaram levar pelo aparente maravilhoso observado em muitos fenômenos do tipo "dupla vista", como classificados por Kardec, e que teriam na verdade os próprios Espíritos como "entidades mediadoras".  Com relação a pressentimentos (conhecimento de fenômenos futuros discutidos amplamente por Osty), o parágrafo 184 de "O Livro dos Médiuns" esclarece:
184. O pressentimento é uma intuição vaga das coisas futuras. Algumas pessoas têm essa faculdade mais ou menos desenvolvida. Pode ser devida a uma espécie de dupla vista, que lhes permite entrever as conseqüências das coisas atuais e a filiação dos acontecimentos. Mas, muitas vezes, também é resultado de comunicações ocultas e, sobretudo neste caso, é que se pode dar aos que dela são dotados o nome de médiuns de pressentimentos, que constituem uma variedade dos médiuns inspirados
No parágrafo 5 do Capítulo XVI em "A Gênese", também encontramos este trecho interessante:
Aquele a quem é dado o encargo de revelar uma coisa oculta pode a receber, à sua revelia, por inspiração dos Espíritos que a conhecem, e então transmiti-la maquinalmente, sem se dar conta. É sabido, ao demais, que, assim durante o sono, como em estado de vigília, nos êxtases da dupla vista, a alma se desprende e adquire, em grau mais ou menos alto, as faculdades do Espírito livre. Se for um Espírito adiantado, se, sobretudo, houver recebido, como os profetas, uma missão especial para esse efeito, gozará, nos momentos de emancipação da alma, da faculdade de abarcar, por si mesmo, um período mais ou menos extenso, e verá, como presente, os sucessos desse período. Pode então revelá-los no mesmo instante, ou conservar lembrança deles ao despertar. Se os sucessos hajam de permanecer secretos, ele os esquecerá, ou apenas guardará uma vaga intuição do que lhe foi revelado, bastante para o guiar instintivamente.
Portanto, grande parte da fenomenologia metagnômica seria explicada como um tipo de "comunicação oculta", onde a informação não se dá por meio de uma linguagem reconhecível, mas por "simbologia sensorial" que só faz sentido para a substância mental (espírito). A importância de se reconhecer o papel dos Espíritos nesse tipo de fenômeno vai muito além da mera experimentação: por meio dessa explicação seria possível criar novos experimentos e avançar nesse assunto tão fascinante.

Notas e referências

(1) Eugene Osty, o grande pesquisador francês de fenômenos espíritas.

(2) E. Osty (1923) Supernatural Faculties in Man, an experimental Study. Methisen & Son. London. Disponível em:
(3) Ecos daquela época ainda podem ser encontrados na rede presentemente: Ver "Les expériences d’Eugène Osty menées sur le sujet Rudi Schneider" em http://www.metapsychique.org/Les-experiences-d-Eugene-Osty.html (acesso em Abril de 2015)

(4) Fontes sobre o assunto na codificação podem ser encontradas em "A Gênese", Capítulo XVI ou "O Livro dos Espíritos" no Capítulo VIII. 

(5) Ou seja, pode ser que Espíritos estejam envolvidos como mediadores ou catalisadores dos fenômenos.

(6) Sequer sabemos como o cérebro coordena, processa e integra as informações. Do ponto de vista materialista, a consciência (e as percepções, mesmo que ordinárias) ainda é um mistério.

(7) Ver http://en.wikipedia.org/wiki/Gnome_(rhetoric)

(8) Isso seria possível ao se acessar a personalidade desencarnada por meio de outro médium. Entretanto, um arranjo desse tipo (uma mesma entidade manifestando-se por vários médiuns) não é discutido em nenhum lugar na obra, talvez pelo fato de Osty tratar os dois fenômenos de forma separada.

23 de abril de 2015

O Jornal de Estudos Espíritas publica artigo sobre Marte.

O Jornal de Estudos Espíritas (JEEhttps://sites.google.com/site/jeespiritas/) acaba de publicar o artigo "O problema da interpretação das mensagens espíritas: as paisagens de Marte por M. J. de Deus na psicografia de F. C. Xavier" (1), que foi assunto de um post anterior em março de 2015 (2). 

Indicamos a leitura desse artigo porque ele traz informação atualizada, bem como outras análises do assunto, além de referências acadêmicas mais completas. O artigo também traz um título e um resumo em inglês.

Recomendamos também a leitura de todo JEE, que em sua página de entrada se descreve:
O Jornal de Estudos Espíritas (JEE) é um projeto piloto de um periódico espírita em moldes acadêmicos destinado à divulgação de pesquisa original em Espiritismo. Seu escopo é amplo e abrange tópicos puramente doutrinários e multidisciplinares em que outras áreas do conhecimento humano possam contribuir para o progresso do Espiritismo em quaisquer um dos seus aspectos científico, filosófico e religioso.
e é editado pelo Alexandre F. da Fonseca. Este jornal já está no terceiro ano (volume 3) e contém análises bem apresentadas de diversos assuntos de interesse ao movimento espírita.

Referências

(1) Xavier A. (2015) Jornal de Estudos Espíritas 3, 010301.
(2) Paisagem de Marte (sobre a visita a Marte em "Cartas de uma Morta")

3 de abril de 2015

Redução da Maioridade Penal e Espiritismo


Quando alguém tiver um filho contumaz e rebelde, que não obedecer à voz de seu pai e à voz de sua mãe, e, castigando-o eles, lhes não der ouvidos, Então seu pai e sua mãe pegarão nele, e o levarão aos anciãos da sua cidade, e à porta do seu lugar; E dirão aos anciãos da cidade: Este nosso filho é rebelde e contumaz, não dá ouvidos à nossa voz; é um comilão e um beberrão. Então todos os homens da sua cidade o apedrejarão, até que morra; e tirarás o mal do meio de ti, e todo o Israel ouvirá e temerá. (Deuteronômio 21:18-21)

“Uma sociedade depravada certamente precisa de leis severas. Infelizmente, essas leis mais se destinam a punir o mal depois de feito, do que a lhe secar a fonte. Só a educação poderá reformar os homens, que, então, não precisarão mais de leis tão rigorosas.” (Resposta à questão 796 em "O Livro dos  Espíritos", Allan Kardec)

A questão da redução da maioridade penal tem diversas perspectivas possíveis:
  • A perspectiva do cidadão que com razão não se sente seguro com a escalada da violência alimentada por fluxo de jovens precocemente educados no crime;
  • A da justiça, que é obrigada a lidar com milhares de processos criminais de jovens envolvidos com a criminalidade;
  • A das mães e famílias dos jovens em ligação com o crime desde cedo, e que também têm a tarefa de zelar pela educação desses jovens;
  • A do Estado, que executa e é obrigado a definir políticas públicas para reduzir ou controlar a violência crescente, bem como prover educação apropriada aos jovens criminosos;
  • A perspectiva do próprio jovem criminoso que, conforme suas tendências internas e situações a que for exposto, talvez deixe de ser um criminoso, mas fatalmente deixará de ser jovem e terá que lidar com o estigma de ter sido classificado como criminoso um dia.  
A polarização se explica pela disputam de prioridade entre cada uma dessas perspectivas que são representadas por diversos grupos na sociedade. Mas, qual delas é a mais relevante? Faz sentido definir uma como mais relevante? Por que uma seria mais prioritária sobre a outra? Ainda assim, cada uma dessas perspectivas têm detalhes que nos parecem ainda mais complexos. Por exemplo: há indivíduos que amadurecem precocemente, enquanto outros nunca amadurecem. Do ponto de vista das ciências psicológicas, até que ponto seria possível determinar o grau de maturidade de um adolescente ou criança e, conforme esse grau, definir medidas educacionais versus punições mais apropriadas? Qual seria o impacto da adoção de uma redução na maioridade na mente infantil precocemente ligada ao crime ? 

Tais são as questões que devem ser respondidas antes que possamos nos posicionar. Além dessas, há o problema de usar princípios ou fundamentos de religiões ou doutrinas filosóficas para decidir a questão. Esse seria um outro ponto de vista ou perspectiva possível na lista acima. Por exemplo, religiões que aceitam a tradição literal do Velho Testamento podem entender que a morte ou sacrifício de menores são atos naturais e concebíveis segundo a concepção de Deus que se encontram nesses textos.  Um exemplo que nos parece abominável hoje é o sacrifício do filho de Isaque em Gênesis 22:2 (1):
E disse: Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas, que eu te direi.
Ou, o que dizer de Deuteronômio 21:18-21 citado no início deste texto? O que esperar de doutrinas que acreditam piamente nessa noção de justiça divinamente inspirada? Hoje, mais do que nunca, é estranho ouvir falar de grupos religiosos que se movimentam para vetar ou propor leis conforme a crença que esposem. Como se acham investidos de poder divino, acreditam que a divindade fala por eles e assim determina que suas regras sejam impostas à sociedade. 

Com o esclarecimento dos povos (desenvolvimento científico, técnico e moral), religião e sociedade apartaram-se. Leis se apresentam como expressões de consenso da sociedade em uma determina época, seus valores, aspirações e crenças momentâneas de como cada indivíduo deve se comportar e de quais seriam os direitos correspondentes aos deveres. A tarefa da religião a partir de agora é melhorar os homens para que eles, por sua vez, melhorem suas leis. Assim, quanto mais evoluída for uma religião ou sistema de crença, tanto maior será o efeito benéfico que trará à sociedade, pela educação (essa sim induzida por crenças superiores) de seus seguidores.  

O objetivo desse post é apresentar alguns desses valores e crenças esposados pela Doutrina Espírita que considero relevantes para o posicionamento do espírita ante a mudança nas leis que regulam a maioridade penal. A referência fundamental é "O Livro dos Espíritos" complementado pelo "Evangelho Segundo o Espiritismo". Importante ressaltar: o que foi explicado nessas obras sobre a justiça, a governar a relação entre os encarnados, pode ser dividida em duas componentes: a "lei natural" - sempre presente e a "lei humana" condicionada ao estado de sociedade. Ao Espiritismo coube a tarefa de elucidar aspectos da lei natural.

Não cabe aqui estabelecer uma posição espírita para a questão da redução da maioridade penal (2), já que isso seria contrariar o que afirmamos acima.  Que o leitor julgue por si, com base em possíveis motivos já listados (3), favoráveis ou contrários à redução da maioridade penal.

Começamos pelo começo: a regra áurea.

Em "O Livro dos Espíritos", a justiça a que um encarnado está sujeito é regulada pela "lei natural" e pela "lei humana" (ver subquestão (a) da questão # 875).  Os questionamentos feitos por Kardec dizem respeito, portanto, apenas à lei natural, já que a lei humana é específica conforme a sociedade. Assim, no que diz respeito a essa lei, a diretriz máxima está exposta na questão #876 "Queira cada um para os outros o que quereria para si mesmo".  A questão # 877 complementa a anterior com relação ao primeiro dever que é "respeitar os direitos de seus semelhantes".

O direito mais fundamental do homem e a a missão da paternidade

Ainda segundo a lei natural, explicam os Espíritos na questão # 880, o primeiro de todos os direitos naturais do homem: O de viver. Por isso é que ninguém tem o de atentar contra a vida de seu semelhante, nem de fazer o que quer que possa comprometer-lhe a existência corporal.

A esfera de ação da sociedade no encaminhamento da criança e do adolescente (segundo a lei natural) está toda sob a tutela da paternidade. Aqui encontramos o campo de maior efeito sobre os atos das crianças.  Por causa disso, a questão 582 (na II Parte, Capítulo X) qualifica a paternidade e maternidade como uma missão:
582. Pode-se considerar como missão a paternidade?  
“É, sem contradita possível, uma verdadeira missão. Constitui, ao mesmo tempo grandíssimo dever, que empenha, mais do que o pensa o homem, a sua responsabilidade quanto ao futuro. Deus colocou o filho sob a tutela dos pais, a fim de que estes o dirijam pela senda do bem, e lhes facilitou a tarefa dando àquele uma organização física débil e delicada, que o torna propício a todas as impressões. Muitos há, no entanto, que mais cuidam de endireitar as árvores do seu jardim e de fazê-las dar bons frutos em abundância, do que de endireitar o caráter de seu filho. Se este vier a sucumbir por culpa deles, suportarão os desgostos resultantes dessa queda e partilharão dos sofrimentos do filho na vida futura, por não terem feito o que lhes estava ao alcance para que ele avançasse na estrada do bem.”
Portanto, segundo a lei natural, a educação dos filhos é de responsabilidade dos pais. É pela falta ou ausência desses, porém, que a criminalidade infantil pode se tornar um problema da sociedade (como condições necessárias, mas não suficientes, para manifestação dessa criminalidade). Ainda no segundo essa responsabilidade natural, a justiça verdadeira, quando outro é o caso, é ressaltada na questão seguinte: 
583. São responsáveis os pais pelo transviamento de um filho que envereda pelo caminho do mal, apesar dos cuidados que lhe dispensaram? 
“Não; porém, quanto piores forem as propensões do filho, tanto mais pesada é a tarefa e tanto maior o mérito dos pais, se conseguirem desviá-lo do mau caminho.”
Indiretamente a resposta implica a existência de Espíritos rebeldes, precocemente ligados ao mal e que, provavelmente, poderão reincidir em delinquência, se limites não forem estabelecidos a partir do lar.

Evolução do direito e justiça.

Finalmente, não deixa de ser elucidativa a questão # 796 que aparece na III Parte do Capítulo VIII do "Livro dos Espíritos":
796. No estado atual da sociedade, a severidade das leis penais não constitui uma necessidade?

“Uma sociedade depravada certamente precisa de leis severas. Infelizmente, essas leis mais se destinam a punir o mal depois de feito, do que a lhe secar a fonte. Só a educação poderá reformar os homens, que, então, não precisarão mais de leis tão rigorosas.”
Essa resposta explica duas coisas: o estado anterior da lei humana e o foco que se deve buscar - segundo os Espíritos - no desenvolvimento das leis futuras.  Deixa claro que apenas a educação é capaz de modificar os homens, de forma de forma a se dispensar o rigor das leis no futuro. 

Finalmente, a multiplicidade de pontos de vista (como apresentados no início deste post e que é a causa de polêmicas infindáveis como a da redução da maioridade penal) já teve sua causa explicada pela questão #974:
874. Sendo a justiça uma lei da Natureza, como se explica que os homens a entendam de modos tão diferentes, considerando uns justo o que a outros parece injusto? 
“É porque a esse sentimento se misturam paixões que o alteram, como sucede à maior parte dos outros sentimentos naturais, fazendo que os homens vejam as coisas por um prisma falso.”
Conclusão

O comentário da questão 796 nos deixa tranquilos quanto ao ponto fundamental apresentado pelos Espíritos para o abrandamento das leis humanas. Trata-se porém de uma resposta geral que explica porque as leis humanas anteriores (como no caso do Deuteronômio) eram tão severas. A que distância chegamos com o ensino dos Espíritos em comparação com aquelas regras, que hoje parecem tão ultrapassadas!

Nos tempos modernos, não compete mais a nenhuma religião ou doutrina alterar leis humanas. Isso acontecia no passado por força da importância que a religião tinha dentro do Estado e vice-versa.  No caso do Espiritismo, as respostas dadas pelos Espíritos dizem respeito à lei natural e sua justiça e não poderão ser extrapoladas nem copiadas para a lei humana que, por causa de suas inúmeras necessidades adicionais, é bem diferente da regra natural. No máximo o estudo e a convicção da lei natural poderá mostrar aos encarnados o estado em que se encontrarão no futuro, caso se desvirtuem dessa lei. Então, tal como o homens que bem planejam o futuro, os encarnados poderão viver melhor em sociedade. Que essa justiça natural existe e é operante é assunto para outro post.

Ainda assim, o espírita que quiser contribuir para o debate sobre a redução da maioridade penal não deve se esquecer da importância da educação infantil, da missão da paternidade, da necessidade de aprimorar nosso conhecimento sobre a psicologia humana, da existência no mal no coração de mentes perversas recém encarnadas e da infinita capacidade do amor no resgate desses corações desviados.

Referências e notas.

(1) O Deus do Velho Testamento parece ter predileção pela morte de crianças. Ver não só Gênesis 22:2 mas também: Êxodo 4:23, Êxodo 11:5, Êxodo 12:29, Números 31:17, Oséas 13:16,  I Samuel 15:3, Salmos 135:8, Salmos 137:9, Levíticos 26:29, Isaías 13:16, Jeremias 11:22 dentre outros versos bíblicos. (referência: https://www.bibliaonline.com.br/)

(2) Sobre pontos favoráveis e contrários:
  • https://acidblacknerd.wordpress.com/2013/04/25/euvi-reducao-da-maiorida-penal10-motivos-para-ser-a-favor-10-motivos-para-ser-contra/