1 de fevereiro de 2024

Novidades sobre o Eletroma e campos morfogênicos

 

...todo remédio da farmacopeia humana é, até certo ponto, projeção de elementos quimioelétricos sobre as agregações celulares, estimulando-lhes as funções ou corrigindo-as, segundo as disposições do desequilíbrio em que a enfermidade se expresse.
A. Luiz [1]

Uma grande variedade de corpos se interpenetram e formam o corpo humano: o genoma como agregado de genes distribuídos, o proteonoma como agrupamento de elemento proteicos e muitos outros. O mais recente deles foi batizado de "Eletroma" [2] e é formado pelo agrupamento de elementos biológicos que são atuados pela eletricidade própria do organismo. Trata-se de um conceito relativamente novo em sua aplicação médica, porém, um assunto que já tem certa história. O objetivo de Luigi Galvani (1737-1798) com suas experiências elétricas e pernas de rã era estabelecer o papel da eletricidade nos organismos vivos.

A história porém está sendo reeditada com novas descobertas. Um exemplo são as pesquisas realizadas pela equipe do Dr. Michael Levin, que é diretor do Allen Discovery Center na Universidade Tufts [2b]. A reedição pode criar em uma verdadeira revolução na biologia e na medicina.

A equipe do Dr. Levin ressaltou o papel fundamental de campos elétricos na matéria viva que orientam o processo de formação de estruturas funcionais em embriões (girinos). Apresentam demonstrações experimentais em que a eletricidade é um tipo de "campo morfogênico" [3] para as células que participam da formação de embriões. 

Mas o que causa esses campos? Por enquanto, segundo a interpretação do Dr. Levin, eles são gerados pelas próprias células que, graças a um instinto inteligente primitivo  - uma espécie de "inteligência coletiva" - produz correntes elétricas e separação de cargas. Os campos criados pela separação das cargas induzem a formação apropriada de órgãos e outras estruturas menores "orientados" pelos campos elétricos. 

Uma parte considerável da explicação do Dr. Levin é que células contêm inteligência pela sua capacidade de resolver problemas no meio em que vivem. Cada célula de um tecido vivo sabe assim o que fazer conforme o ambiente em que seja colocada. Segundo esse pesquisador, elas "resolvem um problema computacional" enorme (como se tivem um tipo de "inteligência artificial") por meio dessa inteligência coletiva. Nesse processo, induzem à formação de padrões eletromagnéticos ou "campos bioelétricos configuracionais endógenos" [3] que foram registrados por equipamentos especiais desenvolvidos no centro coordenado pelo Dr. Levin. 

Para adiantar essas e outras conclusões, o emintente pesquidor utiliza a definição operacional de inteligência do famoso cientistas espiritualista ingles Willian James (1842-1910):
Inteligência é a capacidade de alcançar o mesmo objetivo usando meios diferentes.
Segundo o Dr. Levin [2b], um video de microscópio da bactéria Lacrymaria olor demonstra esse conceito. Um ser que não tem cérebro e nem sistema nervoso possui elevada competência na solução de problemas complexos em seu meio o que é intrigante, no mínimo. Assim, não importa o tipo de corpo em que a inteligência se manifeste: se o ser é inteligente ele tem competência para resolver problemas desde que confrontado com dificuldades e os estímulos apropriados. 

William James (1842-1910) pode ser invocado em uma definição operacional de inteligência que permite reconhecer essa propriedade mesmo em organismos unicelulares. 

Da Farmacêutica para a "Eletrocêutica"

Toda essa estória nos faz lembrar dos "campos morfogênicos" de R. Sheldrake [4] e, mais para trás no tempo, do "modelo organizador biológico" de Carlos A. Tinoco [5] e Hernani G. Andrade (1913-2003) [6] ou os campos "L" de Harold Saxton Burr (1889-1973). Antes, porém, que espíritas vejam nos campos elétricos morfogênicos do Dr. Levin uma comprovação das ideias de Sheldrake, Burr, Tinoco e Andrade, é preciso compreender as motivações das pesquisas do Dr. Levin que são bastante práticas. 

O objetivo é desenvolver novas formas de tratamento e regeneração de tecidos humanos, visando o projeto de futuros orgãos ou até membros no corpo humano. Não seria possível fazer crescer um novo braço em um amputado como aconteces nos axolotes? Além disso, algumas doenças como tumores poderiam ser tratados fazendo com que células tumorais reconhecessem o ambiente e passassem a se comportar como células normais com já se demonstrou em girinos... 

Para isso, separação de cargas (polarização) e campos elétricos específicos seriam "desenhados" ou "induzidos" por drogas específicas ou "quimioelétricas". Essas drogas seriam supridas por uma "eletroceutica" específica que começa pelo projeto de campos elétricos morfogênicos induzidas por elas. 

Consequências para a visão espírita

Feita essa introdução é possível especular com respeito à amplitude dessas descobertas recentes sobre o eletroma e o "corpo elétrico". Inicialmente, as conclusões sobre a importância dos "canais iônicos" [10] me fizeram lembrar do fragmento de texto citado no início deste post. Parece ser uma validação de uma ideia trazida por André Luiz em seu livro "A Evolução em dois mundos" [1]. Seria por isso que o autor espiritual já falava em 1958 sobre os "elementos quimioelétricos"? Mas nessa época, a descoberta do DNA e os avanços na genética destacavam a importância do "genoma" na formação do corpo humano. Não se via qualquer importância para a eletricidade no contexto da formação do corpo humano ou das doenças.

Notem bem a distância que essas novas descobertas [9] colocam a biologia: a morfogênese não se deve unicamente à ação de "genes" no "genoma" e reações bioquímicas, mas faz uso de um elemento invisível orientador e intermediário que é gerado no interior da matéria viva. Lembramos que campos elétricos são entidades físicas invisíveis e sem fronteiras definidas. O mecanismo de ação à distância que move íons e proteinas no citoplasma das células [8] é o conhecido "efeito de dieletroforese". Para a biologia, trata-se de um efeito "epigenético" que atua sobre as células fazendo-as modificar seu comportamento muito além do que está "programado"  pelos genes.

O primeiro passo dado em direção às consequências dos estudos do grupo do Dr. Levin para a visão espírita está na própria noção de inteligência que usa. Pois, se essa é definida como uma propridade sem referência ao tipo de "veículo de manifestação" (que é material), é que a inteligência é um princípio independente, o próprio "princípio inteligente" encontrado nas Questões 23-25 de "O Livro dos Espíritos" de A. Kardec.

Um dos experimentos do Dr. Levin  fornece a prova [2b]. Ao isolar células embrionárias que se tornariam a pele de um sapo, os pesquisadores da Universidade de Tufts descobriram que, ao invés de morrerem ou se desenvolverem como uma massa disforme de células de pele, elas se transformam em seres multicelulares novos, os Xenobots [7]. Esses nadam, se viram sozinhos em labirintos e até conseguem gerar novos xenobots pela assimilação de células da pele! Ou seja, é como se Xenobots tivessem uma "memória" de experiências passadas (que nunca teriam tido pela evolução Darwinista) quando não eram células de pele...

Assim, além da existência de um interface morfogênica, esses experimentos demonstram a existência do princípio inteligente em cada célula que compõe um organismo complexo. Cada célula de nosso corpo tem memória, inteligência e competência para resolver problemas desde que estimulada. É um ser a parte, que contribui com a sua "parte" no ambiente multicelular que  o envolve e cujo comportamento está apenas parcialmente "programado" nos genes que  carrega.

Ao mesmo tempo em que essas descobertas recentes parecem colocar um ponto final nos debates sobre "camposo morfogênicos", no meu entendimento, elas têm consequências tremendas para uma nova visão da vida e do papel do princípio inteligente (o espírito) na matéria.

Referências e comentários

[1] A. Luiz (1958). Evolução em dois Mundos, 2a  Parte 4a Ed. FEB.  Ver Cap. XIX.

[2]  V. Smink (2023) O que é electroma, rede do corpo humano recém-descoberta que pode revolucionar tratamento do câncer. Saúde "G1". Acessível em: https://g1.globo.com/saude/noticia/2023/03/04/o-que-e-electroma-rede-do-corpo-humano-recem-descoberta-que-pode-revolucionar-tratamento-do-cancer.ghtml 

[2b] Youtube (2023). From Mind to Matter - Dr. Michael Levin. Ver vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=Ed3ioGO7g10      

[3] Levin, M., Pezzulo, G., & Finkelstein, J. M. (2017). Endogenous bioelectric signaling networks: exploiting voltage gradients for control of growth and form. Annual review of biomedical engineering, 19, 353-387. Acesso aqui.



[6] H. G. Andrade. O psi quântico. Ed. Casa Editora Espírita "Pierre-Paul Didier". H. G. Andrade chamou esse campo de "CBM" ou "campo biomagnético" e acreditava ser possível induzir campos eletrostáticos em um "continuum" quadridimensional a partir de campos magnéticos. As descobertas modernas apontam para algo bem mais simples: os campos são eletrostáticos, porém, são estabelecidos por correntes de íons (os tais "canais iônicos") que existem em torno e dentro de qualquer célula viva. 

[7] Blackiston, D., Lederer, E., Kriegman, S., Garnier, S., Bongard, J., & Levin, M. (2021). A cellular platform for the development of synthetic living machines. Science Robotics, 6(52). Acesso aqui.

[8] Henslee, E. A. (2020). Dielectrophoresis in cell characterization. Electrophoresis, 41(21-22), 1915-1930.

[9] Nunn, A. (2023). We Are Electric: The New Science of Our Body's Electrome, by Sally Adee. Bioelectricity, 5(2), 147-149.

[10] Funk, R. H., Monsees, T., & Özkucur, N. (2009). Electromagnetic effects–From cell biology to medicine. Progress in histochemistry and cytochemistry, 43(4), 177-264.



2 de janeiro de 2024

O que é Xamanismo?

Segundo D. Baxendale, esta é Galba uma das últimas xamãs dos povos Tuvan que vivem próximos dos montes Altai na Mongólia. (foto: flickr.com)
A palavra "xamã" e sua crença associada, o "xamanismo", envolvem práticas ancestrais estudadas pela Antropologia. Essa disciplina se dedica em parte a registrar e explicar as manifestações do xamanismo que existem em diversas partes do mundo entre povos considerados "primitivos". 

A palavra, entretanto, recebeu ao longo do tempo inúmeros significados. Essa multiplicidade de significados já foi apontada por exemplo em [1] que descreve diversas definições na Antropologia. Segundo esse autor, a palavra tem origem em alguns estudos realizados com a tribo dos Tungus na região da Sibéria a partir de 1920. Para os Tungus, os xamãs eram:
Pessoas de ambos os sexos que dominaram os espíritos, e que, à sua vontade, podem introduzir esses espíritos em si mesmos e usar o seu poder sobre os espíritos em seus próprios interesses, particularmente ajudando outros pessoas que sofrem com os espíritos. [1, p. 3]

Que coisa! Segundo essa definição original, aprendemos que o xamanismo opera provavelmente segundo os princípios da mediunidade. Pela definição operacional de A. Kardec (Cap. XV de "O Livro dos Médiuns") "todo aquele que sente em qualquer grau a presença dos espíritos é por isso mesmo médium". 

Porém, o conceito evoluiu nos estudos antropológicos de forma a incorporar outras práticas que são consideradas vulgarmente "mágicas" na elasticidade semântica que esse adjetivo pode implicar. O autor de [1] apresenta uma definição sintetizada que agrega outras características do xamã:

Um xamã é uma pessoa que, à vontade, pode entrar em um estado psíquico incomum (na qual ele faz sua alma empreender uma jornada para o mundo espiritual ou ele se torna possuído por um espírito) para fazer contato com o mundo espiritual em nome dos membros de sua comunidade.

Essa definição inclui talvez a possibilidade de "desdobramento", quando a contraparte não corpórea do xamã pode se afastar do corpo físico e realizar determinadas tarefas em contato com o mundo espiritual. Nas descrições acadêmicas das atividades dos xamãs, porém, há uma confusão entre a noção de "influência dos espíritos" e a "possessão". Esses estados psicológicos tendem a ser sempre apresentados como equivalentes.

Em outra definição mais recente [2]:

O "xamanismo” foi recentemente descrito como uma forma de interação entre um praticante e espíritos, que não está disponível para outros membros de uma comunidade. O praticante (um “xamã”) atua em nome dessa comunidade – ou em nome de membros individuais dessa comunidade – para desempenhar uma variedade de papéis sociais que podem incluir curar, bem como prejudicar, afetando o resultado das atividades de subsistência, e assim por intervenção com espíritos ou através de conhecimentos adquiridos pela comunicação com espíritos.

Portanto, o xamanismo pode assim ser considerada uma manifestação do "mediunismo" (ou prática mediúnica) por meio da qual determinados favores, para o bem ou para o mal, são obtidos usando as capacidades do "xamã". Esse é um membro especial de uma sociedade como "guardião de poderes sobre os Espíritos" cujo papel deve ser destacado em todas as descrições do xamanismo. 

Ornamentos mexicanos. (Fonte: www.publicdomainpictures.net)

R. Walsh em 1989 [3] considera que o xamanismo não pode ser definido em termos de categorias à posteriori, mas que deve ser tomado como um fenômeno único. Essa necessidade vem da homogeneidade das descrições de atuação dos xamãs diante das enormes diferenças de crenças e religiões associadas ao xamanismo:

É interessante notar que os elementos desta definição centram-se em práticas e experiências e não em crenças e dogmas. Isto é consistente com a afirmação de Michael Harner de que "o xamanismo é, em última análise, apenas um método, não uma religião com um conjunto fixo de dogmas. Portanto, as pessoas chegam a conclusões derivadas de sua própria experiência sobre o que está acontecendo no universo, e sobre que termo, se houver, é mais útil para descrever a realidade última".

Em suma: é mais uma prova de que se trata de um fenômeno mediúnico e generalizado na população mundial sem relação com suas religiões. Porém, essas religiões podem promover ou sufocar o xamanismo.

Em particular, a modernidade tende a eliminar essas práticas antigas por considerá-las frutos da superstição. Em seu lugar surgiu o "xamanismo moderno" que se insere por meio de vasta literatura de auto-ajuda recente que pretende despertar o "xamã interior" de cada indivíduo [4].  Esse novo xamanismo nada tem a ver com o original.

Por outro lado, a mediunidade continua a exercer sua influência de outras formas na sociedade moderna. Porém, isso é uma assunto para outro post.

Referências

[1]  Reinhard, J. (1976). Shamanism and spirit possession: the definition problem. Spirit possession in the Nepal Himalayas, 12-20. Link de acesso aqui.

[2] Pollock, D. (2019). Shamanism. Oxford Bibliographies. DOI: 10.1093/OBO/9780199766567-0132

[3] Walsh, R. (1989). What is a shaman? Definition, origin and distribution. Journal of Transpersonal Psychology, 21(1), 1-11.

[4] Basta considerar apenas um exemplo (entre milhares nos últimos anos):  Lobos, M. (2021). Awakening Your Inner Shaman: A Woman's Journey of Self-Discovery through the Medicine Wheel. Ed. Hay House Inc. 


18 de dezembro de 2023

Quantos Espíritos já reencarnaram na Terra?


Será lícito calcular a população de criaturas desencarnadas em idade racional, nos círculos de trabalho, em torno da Terra, para mais de vinte bilhões, observando-se que alta percentagem ainda se encontra nos estágios primários da razão e sendo esse número passível de alterações constantes pelas correntes migratórias de espíritos em trânsito nas regiões do planeta.
A. Luiz (Anuário Espírita, ed. 1964, nº 1)

Uma das dúvidas recorrentes que podem surgir no estudo da reencarnação é de sua relação com a demografia. Conforme a resposta à Questão 166 de "O Livro dos Espíritos", por exemplo, há a declaração de que "todos nós temos muitas existências" e mais, que "os que dizem o contrário querem manter-vos na ignorância em que eles mesmos se encontram".

O problema que surge é de como acomodar a ideia de "muitas vidas" em uma população mundial que apenas muito recentemente atingiu cifras acima de um bilhão de indivíduos. Na maior parte da história da Humanidade, a população do planeta não excedeu ao montante de indivíduos das nações mais populosas do Ocidente da ordem de vários milhões. Se todos os Espíritos sempre estiveram nas cercanias do orbe terreno, o mais provável é que eles experimentaram apenas uma encarnação no planeta Terra em toda a história da humanidade. E essa vida ocorre justamente no momento presente quando a Terra atingiu a maior população desde então.

Uma solução possível é considerar que a declaração dos Espíritos é de caráter geral: não são encarnações vividas todas elas exclusivamente na Terra. Nosso planeta receberia um fluxo contínuo de novos Espíritos provindos de mundos dispersos no espaço. Sabemos que existem muitos bilhões desses mundos só em nossa galáxia, que é uma entre bilhões de galáxias... Logo isso está de acordo com a Questão 172, cuja resposta explica que as várias vidas podem ser vividas "em diferentes mundos". 

A continuação do estudo na Questão 173 retorna ao ponto anterior. Os Espíritos afirmam que se "pode viver muitas vezes no mesmo globo, se não se adiantou bastante para passar a um mundo superior". E, a resposta da questão 173(a) confirma que se pode "reaparecer muitas vezes na Terra". De qualquer forma, o assunto abre possibilidades de vários estudos em torno de demografia e reencarnação. Tivemos a oportunidade de contribuir nessa direção em um estudo anterior [1].

Quantas pessoas já viveram na Terra?

O problema parece ser uma sutileza, mas não é tão simples resolver. Em um interessante artigo recente, T. Kaneda e C. Haub [2] se propõem a calcular o número total de habitantes que já viveram na superfície da Terra. Esse número é importante pois, se ele for da ordem da população presente, estaríamos de fato em um momento singular de nossa história. 

Acontece que o exercício é um jogo de hipóteses e suposições sobre a curva de crescimento da população antiga, bem como suas condição de vida mas não de sua taxa de mortalidade. Segundo Kaneda & Haub: 

Qualquer estimativa do número total de pessoas que já viveram depende essencialmente de três fatores: o período de tempo que se pensa que os humanos estiveram na Terra, o tamanho médio da população em diferentes períodos e o número de nascimentos por 1.000 habitantes durante cada um desses períodos. A estimativa, no entanto, não depende do número de mortes em qualquer período de tempo. (grifo nosso)

Obviamente, o cálculo também depende da "semente de população inicial", bem como a data inicial assumida para o início da integração. De acordo com Kaneda & Haub:

Determinar quando a humanidade realmente surgiu não é simples. Acredita-se que os hominídeos mais antigos tenham surgido já em 7 milhões de anos a.C. As primeiras espécies do gênero Homo apareceram por volta de 2 milhões a 1,5 milhão a.C. As evidências atuais apoiam o aparecimento do Homo sapiens moderno por volta de 190.000 a.C. O Homo sapiens moderno originou-se na África, embora a localização exata seja debatida há muito tempo. Pensa-se que diversos grupos viveram em diferentes locais de África durante os primeiros dois terços da história humana.

De forma sumária, a população mundial até os últimos séculos sempre cresceu, acredita-se, a uma taxa baixíssima. Em 1. d. C ela atingiu a cifra de 300 milhões de indivíduos (pouco mais do que a população presente do Indonésia). Por volta de 1800 (d. C.) ela atinge 1 bilhão de pessoas e chega em nossa época com 8 bilhões. 

O cálculo da "população dos que já viveram" integra a taxa de natalidade observada ao longo do tempo. O número resultante é admirável, já que a população de crianças era grande, pois supõe-se que a taxa de natalidade na pré-história e antiguidade era elevada. Essa taxa era da ordem de 80 por mil habitantes (!) contra 17 por mil habitantes hoje em dia (ver https://www.macrotrends.net/countries/WLD/world/birth-rate). 

A taxa efetiva de crescimento - de onde se tira a população total "na data" - era baixa, pois a mortalidade era igualmente elevada. Morria-se muito frequentemente até o início da idade fértil, mas nascia-se a uma taxa um pouco maior, logo a população dos que atingiram essa idade fértil e conseguiam criar seus filhos era pequena. 

Dito isso, para resumir, a Fig. 1 ilustra o resultado gráfico do estudo de Kaneda.

Fig. 1 Crescimento populacional integrado no tempo até 2050 d. C. em duas versões segundo [2]: a curva azul é a população "encarnada por certo período" ("presente") na Terra (próxima a 8 bilhões de indivíduos em 2023), enquanto a de cor laranja integra os que já viveram desde então (os que nasceram).

Segundo [2] entre 190 mil a. C. e 50 mil a. C. a população dos que já tinham vivido na Terra equivalia à população presente da Terra, cerca de 7,8 bilhões de indivíduos. 

Em 1. a. C., essa população total "já vivida" atingiria o valor de 55 bilhões. 

Em 2022, a população integral dos que já viveram chegou a 117 bilhões de pessoas. 

Em 2050, Kaneda estima que chegaremos a 120 bilhões de pessoas que já viveram.

Conclusão

O que isso significa? 

Se calcularmos a razão 177 bilhões para 7,9 bilhões em 2022 (ver Tabela 1 do trabalho [2]) estimamos de forma muito grosseira o número possível de existências que qualquer pessoa presentemente encarnada na Terra já poderia ter vivido:  esse número é da ordem de 14,8 ou aproximadamente 15. 

Insistimos na simplicidade desse cálculo cuja conclusão se baseia no estudo demográfico de Kaneda & Haub. Esse é o número médio grosseiramente falando que qualquer pessoa encarnada presentemente poderia ter vivido na Terra considerando que todos os desencarnados presentes nunca aqui viveram (o que claramente não é razoável). 

Evidentemente, também não se pode tratar como lineares as distribuições de datas de reencarnações e, portanto, "tempos de erraticidade", sendo esperado que essa frequência seja maior quanto mais no presente elas ocorreram (mas isso são detalhes para um outro texto ou, quiçá trabalho mais detalhado).

Obviamente,  as condições de existência no passado não permitiam uma existência longeva. Meninas não atingiam a idade fértil e, muito menos, tinham condição de criar seus filhos até que esses atingissem essa mesma idade. O que interessa, porém, para o Espírito imortal é ter a chance, mesmo que breve, de uma existência como encarnado na Terra. 

Portanto, não parecem razoáveis algumas conclusões recentes de confrades espíritas, de que a maior parte da população presente vive sua primeira existência na Terra. Isso é concluído,  p. ex., em [3], onde o autor declara:

Este cenário portanto fortalece a tese de que vivemos num momento singular da história humana em que muitos Espíritos que não tiveram (ainda) oportunidades num largo período de tempo voltaram a reencarnar recentemente.  

Em um vídeo divertido no canal "Paranormal Cortes" [4], Laércio Fonseca afirma "categoriacamete" que "7 bilhões de Espíritos que estão nesse planeta estão na sua primeira encarnação". Ainda segundo Fonseca, eles foram trazidos para cá por "tecnologia alienígena avançadíssima" de outros mundos. 

Isso é possível, porém, há que se estudar com maior cuidado a evolução populacional para se ter uma imagem mais precisa das implicações para a dinâmica da reencarnação gerada pela demografia. 

Referências

[1] A. Xavier (2012). Uma Abordagem Estatística para Calcular o Tempo Médio entre Encarnações Sucessivas, O Espiritismo nas Ciências Contemporâneas, J. R. Sampaio e M. A. Milani Filho (editores), CCDPE-ECM.

[2] T. Kaneda e C. Haub (2022). How Many People Have Ever Lived on Earth? Link: https://www.prb.org/articles/how-many-people-have-ever-lived-on-earth/ (acesso em dezembro de 2023)

[3] A. C. Gonçalves (2019). Aspecto Demográficos da Reencarnação dos Espíritos. Jornal de Estudos Espíritas 7, 010206.

[4] Canal Paranormal Cortes. (2023) Você sabe mesmo sobre Reencarnação? . https://www.youtube.com/watch?v=bVc7KHYd51k (acesso dezembro de 2023)


7 de maio de 2023

Diferença entre mediunidade e obsessão

A visão no poço dos mártires por G. Henry Boughton (1833-1905)

Uma questão que pode surgir nos estudos de Espiritismo é sobre a semelhança entre mediunidade e obsessão. Afinal, não são ambas resultado da ação dos Espíritos ? Os conceitos não seriam baseados em um mesmo mecanismo mais fundamental? Não é a mediunidade um estado patológico da mente sobre o qual a obsessão também se explica? Tais questões merecem meditação mais profunda como objetivo de se formular respostas.

Especialistas no assunto reconhecem as dificuldades nesses conceitos. Em seu livro Mediunidade: um ensaio clínico [1], o Dr. Nubor Facure pondera (p. 13):

Doença é uma perturbação no bem-estar físico, psíquico, social e espiritual do indivíduo. Sendo assim, pode-se, como máximo de cuidado ético e respeito ao médium, considerar que certas manifestações clínicas da mediunidade podem ser consideradas como "doença", especialmente naqueles momentos em que sua presença perturba o indivíduo na sua homeostase física e psíquica.

É um ponto de vista que reflete a visão médica: doença é tudo aquilo que pode "perturbar o indivíduo em sua homeostase física e psíquica". 

Entretanto, pode-se argumentar que essa definição leva a se considerar como doença qualquer coisa que perturbe um índivíduo como causa. Assim, alguém abalado em sua saúde com excesso de trabalho, por exemplo, poderia acreditar que trabalho é doença. Portanto, as dificuldades em se lidar com a mediunidade nas suas fases iniciais podem perturbar o indivíduo, sem que isso implique em considerá-la como doença em si.

Segundo Kardec

A palavra "médium" tem uma acepção clara segundo Kardec [2] (Vocabulário Espírita):

MÉDIUM. (do latim, medium, meio, intermediário). Pessoa que pode servir de intermediário entre os Espíritos e os homens.

E a mediunidade é a faculdade dos médiuns. Quanto à obsessão, ela está definida, p. ex., em várias partes das obras de Kardec. Por exemplo em [1], Parágrafo 237 (Capítulo 23, "Da Obsessão")

...a obsessão, isto é, o domínio que alguns Espíritos logram adquirir sobre certas pessoas. 

Também encontramos definições semelhantes com, p. ex., no Parágrafo 70 (Capítulo 2,  "Escolhos da mediunidade"):

Um dos maiores escolhos da mediunidade é a obsessão, isto é, o domínio que certos Espíritos podem exercer sobre os médiuns, impondo-se-lhes sob nomes apócrifos e impedindo que se comuniquem com outros Espíritos.

Observamos que a interferência entre os dois fenômenos já transparecia a Kardec que estudou a obsessão como uma perturbação ao fenômeno mediúnico.

É importante considerar que a mediunidade se caracteriza como um processo de comunicação. No fenômeno obsessivo (no contexto mediúnico), seu objetivo não é simplesmente comunicar algo, mas agir sobre o médium de maneira a prejudicar a ele e a todos os que dele se servem. Na obsessão, o canal (não só o médium, mas também a linguagem) se transforma em um instrumento para realização de atos em prejuízo ao círculo mediúnico.

Obsessão fora da mediunidade na acepção restrita.

Entretanto, a obsessão também age sobre pessoas que não podemos considerar, em tese, "médiuns". Desde a mais sutil fascinação, até os últimos graus de possessão (conforme as definições que podemos encontrar em [1]), o sujeito obsediado não está na posse completa de suas faculdades cognitivas. Poderíamos caracterizar esse estado de coisas como um fenômeno mediúnico?

Em parte a confusão se deve a distinção entre possíveis significados dados à palavra mediunidade conforme podemos ler em [3] (grifos nossos):

Quando analisamos um texto ou um discurso onde o termo médium aparece, é importante reconhecer em qual desses sentidos está sendo empregado, a fim de se evitarem mal-entendidos e discussões sem fundamento. Assim, por exemplo, a afirmação feita no parágrafo 159 de O Livro dos Médiuns de que “todos [os homens] são quase médiuns” deverá ser entendida apenas na acepção ampla do termo, pois sabemos, pela questão 459 de O Livro dos Espíritos, que todos somos passíveis de receber a influência dos Espíritos, ainda que sob a forma sutil de intuição. Incorreremos em grave equívoco se concluirmos daí que todos somos mais ou menos médiuns no sentido restrito e usual da palavra, ou seja, se julgarmos que todos podemos produzir manifestações ostensivas, tais como a psicofonia, a psicografia, os efeitos físicos etc.

Dessa forma, a existência de possível generalização semântica do termo mediunidade (a acepção ampla) pode levar a conclusões precipitadas se misturada à concepção mais restrita dada acima por Kardec.

Entretanto, essa distinção no nível da linguagem não resolve o problema que nos preocupa aqui. Ele se liga à provável origem comum que ambos os efeitos (mediunidade e obsessão) podem ter.  É por essa razão que o Dr. Nubor Facure pondera [1] (p. 14, grifos nossos):

As doenças mentais são fragilidades a alma e, por isso, facilitadoras da atuação compartilhada de Espíritos, e escancaram as portas para a obsessão. Esses Espíritos são irmãos nossos comprometidos com a ignorância, quase sempre perturbadores, querelentes e exigents de direitos que cobram do paciente perturbado mentalmente. Esse quadro, extremamente comum, constitui uma associação clínica simbiótica de muita gravidade. Acredito que na esquizofrenia, na bipolaridade e nas paranoias diversas, ocorre uma frequente troca ambivalente entre o orgânico e o espiritual. A associação entre a doença mental e uma perturbação espiritual é, a meu ver, a regra na psicopatologia humana.

No fenômeno obsessivo puro ocorre assim uma simbiose entre os dois mundos que correm paralelos. Nesse fenômeno, não é objetivo principal a comunicação, mas uma influência nociva sobre o Espírito do doente. Uma explicação mais completa sobre os paralelos entre obsessão e mediunidade passa necessariamente por uma teoria neurológica da mediunidade. Algumas sugestões interessantes são dadas por N. Facure na obra que aqui citamos.

Fig. 1 Algumas áreas do cérebro. Segundo o Dr. N. Facure, há uma relação íntima entre o tipo de mediunidade e a área do cérebro do médium provavelmente responsável por sua intermediação. Imagem: Wikipedia.

De forma muito sucinta, na proposta de Facure, existe uma grande dependência do fenômeno mediúnico - principalmente se de efeito intelectual - com o cérebro. Essa dependência é tão grande a ponto de ser talvez possível mapear tipos de mediundidade conforme áreas no cérebro especializadas pela manfestação da consciência. Por exemplo, no chamado "lóbulo frontal" (Fig. 1), vias neurais por onde trafegam as informações destinadas às funções superiores da cognição, a incidência da mediunidade é responsável por fenômenos comunicativos mais elevados (psicografia, psicofonia etc) [4]:

Pelo exposto, podemos compreender que fenômenos como a psicografia, a vidência, a audiência e a fala mediúnica, devem implicar uma participação do córtex do médium já que aqui se situam áreas para a escrita, a visão, a audição e a fala.

Em outras regiões do cérebro - onde estão os circuitos ligados às manifestações mais primitivas e ligadas às sensações - eventual incidência da faculdade pode levar a outros tipos de fenômenos. Por exemplo, o médium sentir as mesmas sensações do Espírito que dele se aproxima. É o que descreve N. Facure com relação ao Tálamo, uma estrutura localizada no chamado "diencéfalo", uma estrutura localizada na base do cérebro [4]:

É possível que muitas das sensações somáticas referidas pelos médiuns, que dizem perceber a aproximação de entidades espirituais, como se estes lhes estivessem tocando o corpo, seja efeito de estímulos talâmicos.

Nesse caso, pela ação do córtex do médium os estímulos espirituais podem ser facilitados ou inibidos pela aceitação ou pela desatenção do médium, bem como por efeito de estados emocionais não disciplinados pelo médium.

Podemos especular que, por não terem carácter comunicativo, tais vias não conscientes podem se manifestar como fenômenos obsessivos. 

Para que o leitor possa fazer uma ideia mais justa do impacto e relevância dessa teoria, consideremos, por exemplo, o que a ciência descreve com as áreas do cérebro responsáveis pela sexualidade [5]:

O comportamento sexual é regulado por estruturas subcorticais, como o hipotálamo, tronco cerebral e medula espinhal, e várias áreas cerebrais corticais que atuam como uma orquestra para ajustar com precisão esse comportamento primitivo, complexo e versátil. No nível central, os sistemas dopaminérgicos e serotoninérgicos parecem desempenhar um papel significativo em vários fatores da resposta sexual, embora os sistemas adrenérgicos, colinérgicos e outros transmissores de neuropeptídeos também possam contribuir.

Agora, imaginemos que tais circuitos sejam em parte afetados pela mediunidade em certo grau, a ponto de se tornar um fenômeno obsessivo. Se esse é o caso, quantas pessoas no mundo, portadoras de distúrbios sexuais ainda pouco compreendidos (citamos, por exemplo, a Pedofilia mas poderíamos falar em inúmeras parafilias) não poderiam estar de fato sob influência obsessiva ? Quantas, consideradas incuráveis, não poderiam se beneficiar de um tratamento que considerasse os aspectos espirituais envolvidos? 

O assunto assim é de imensa importância para a Humanidade. 

Referências

[1] N. Facure (2014). Mediunidade, um ensaio clínico. Ed. Allan Kardec. Campinas, SP.

[2] A. Kardec (1944).O Livro dos Médiuns. 58a Edição. Ed. FEB. Tradução Guillon Ribeiro.

[3] S.S. Chibeni e C. S. Chibeni. Estudo sobre mediunidade. Reformador de agosto de 1997, pp. 240-43 e 253-55. Federação Espírita Brasileira. Uma versão acessível deste trabalho pode ser lido em: 

[4] N. Facure. Neurofisiologia da mediunidade. Link:

[5] S. Calabrò et al (2019). Neuroanatomy and function of human sexual behavior: A neglected or unknown issue?. Brain and Behavior, v. 9, n. 12, p. e01389. Link: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/brb3.1389