2 de janeiro de 2024

O que é Xamanismo?

Segundo D. Baxendale, esta é Galba uma das últimas xamãs dos povos Tuvan que vivem próximos dos montes Altai na Mongólia. (foto: flickr.com)
A palavra "xamã" e sua crença associada, o "xamanismo", envolvem práticas ancestrais estudadas pela Antropologia. Essa disciplina se dedica em parte a registrar e explicar as manifestações do xamanismo que existem em diversas partes do mundo entre povos considerados "primitivos". 

A palavra, entretanto, recebeu ao longo do tempo inúmeros significados. Essa multiplicidade de significados já foi apontada por exemplo em [1] que descreve diversas definições na Antropologia. Segundo esse autor, a palavra tem origem em alguns estudos realizados com a tribo dos Tungus na região da Sibéria a partir de 1920. Para os Tungus, os xamãs eram:
Pessoas de ambos os sexos que dominaram os espíritos, e que, à sua vontade, podem introduzir esses espíritos em si mesmos e usar o seu poder sobre os espíritos em seus próprios interesses, particularmente ajudando outros pessoas que sofrem com os espíritos. [1, p. 3]

Que coisa! Segundo essa definição original, aprendemos que o xamanismo opera provavelmente segundo os princípios da mediunidade. Pela definição operacional de A. Kardec (Cap. XV de "O Livro dos Médiuns") "todo aquele que sente em qualquer grau a presença dos espíritos é por isso mesmo médium". 

Porém, o conceito evoluiu nos estudos antropológicos de forma a incorporar outras práticas que são consideradas vulgarmente "mágicas" na elasticidade semântica que esse adjetivo pode implicar. O autor de [1] apresenta uma definição sintetizada que agrega outras características do xamã:

Um xamã é uma pessoa que, à vontade, pode entrar em um estado psíquico incomum (na qual ele faz sua alma empreender uma jornada para o mundo espiritual ou ele se torna possuído por um espírito) para fazer contato com o mundo espiritual em nome dos membros de sua comunidade.

Essa definição inclui talvez a possibilidade de "desdobramento", quando a contraparte não corpórea do xamã pode se afastar do corpo físico e realizar determinadas tarefas em contato com o mundo espiritual. Nas descrições acadêmicas das atividades dos xamãs, porém, há uma confusão entre a noção de "influência dos espíritos" e a "possessão". Esses estados psicológicos tendem a ser sempre apresentados como equivalentes.

Em outra definição mais recente [2]:

O "xamanismo” foi recentemente descrito como uma forma de interação entre um praticante e espíritos, que não está disponível para outros membros de uma comunidade. O praticante (um “xamã”) atua em nome dessa comunidade – ou em nome de membros individuais dessa comunidade – para desempenhar uma variedade de papéis sociais que podem incluir curar, bem como prejudicar, afetando o resultado das atividades de subsistência, e assim por intervenção com espíritos ou através de conhecimentos adquiridos pela comunicação com espíritos.

Portanto, o xamanismo pode assim ser considerada uma manifestação do "mediunismo" (ou prática mediúnica) por meio da qual determinados favores, para o bem ou para o mal, são obtidos usando as capacidades do "xamã". Esse é um membro especial de uma sociedade como "guardião de poderes sobre os Espíritos" cujo papel deve ser destacado em todas as descrições do xamanismo. 

Ornamentos mexicanos. (Fonte: www.publicdomainpictures.net)

R. Walsh em 1989 [3] considera que o xamanismo não pode ser definido em termos de categorias à posteriori, mas que deve ser tomado como um fenômeno único. Essa necessidade vem da homogeneidade das descrições de atuação dos xamãs diante das enormes diferenças de crenças e religiões associadas ao xamanismo:

É interessante notar que os elementos desta definição centram-se em práticas e experiências e não em crenças e dogmas. Isto é consistente com a afirmação de Michael Harner de que "o xamanismo é, em última análise, apenas um método, não uma religião com um conjunto fixo de dogmas. Portanto, as pessoas chegam a conclusões derivadas de sua própria experiência sobre o que está acontecendo no universo, e sobre que termo, se houver, é mais útil para descrever a realidade última".

Em suma: é mais uma prova de que se trata de um fenômeno mediúnico e generalizado na população mundial sem relação com suas religiões. Porém, essas religiões podem promover ou sufocar o xamanismo.

Em particular, a modernidade tende a eliminar essas práticas antigas por considerá-las frutos da superstição. Em seu lugar surgiu o "xamanismo moderno" que se insere por meio de vasta literatura de auto-ajuda recente que pretende despertar o "xamã interior" de cada indivíduo [4].  Esse novo xamanismo nada tem a ver com o original.

Por outro lado, a mediunidade continua a exercer sua influência de outras formas na sociedade moderna. Porém, isso é uma assunto para outro post.

Referências

[1]  Reinhard, J. (1976). Shamanism and spirit possession: the definition problem. Spirit possession in the Nepal Himalayas, 12-20. Link de acesso aqui.

[2] Pollock, D. (2019). Shamanism. Oxford Bibliographies. DOI: 10.1093/OBO/9780199766567-0132

[3] Walsh, R. (1989). What is a shaman? Definition, origin and distribution. Journal of Transpersonal Psychology, 21(1), 1-11.

[4] Basta considerar apenas um exemplo (entre milhares nos últimos anos):  Lobos, M. (2021). Awakening Your Inner Shaman: A Woman's Journey of Self-Discovery through the Medicine Wheel. Ed. Hay House Inc. 


3 comentários:

  1. Isso me lembrou do relato do grande sertanista Orlando Villas-Boas sobre como os índios do alto do Xingú cuidavam dos seus doentes e encaravam a morte.
    Certo dia, ele e seus irmãos notaram que um dos indígenas que lhes serviam de guia, repentinamente ficou muito doente, ao ponto de mau poder andar. O médico da expedição então o examinou e descobriu que ele estava com uma elevação no abdômen e necessitava de atendimento médico urgente, porém a expedição estava muito distante de qualquer cidade, naquela época e levaria semanas até alcançarem algum lugarejo, quiçá até um hospital.
    O indígena então foi levado até a maloca principal da tribo onde estavam, para ser cuidado pelo velho xamã. O médico da expedição pediu permissão para acompanhar os trabalhos do pajé mas lhe foi negado e era tratado com aspereza pelo velhinho, quando insistia.
    Depois de alguns dias o xamã então decidiu levar o doente para a mata densa. Com a ajuda de alguns homens da tribo, o homem gemendo foi colocado numa rede e se embrenharam na mata junto com o pajé.
    Alguns dias se passaram e o grupo finalmente voltou com o doente de pé, andando, trazendo no ombro a rede que o tinha levado para o mato, mostrando orgulhoso a cicatriz na barriga do "procedimento" que tinha sido feito na floresta, para espanto da expedição inteira.
    Orlando respeitosamente perguntou ao pajé o que foi que ele tinha feito. O pajé então respondeu que a mata é boa mãe; trás folha, trás raiz, remédio para a cura de tudo, os espíritos sabem aonde tem a erva e o fruto para sarar a doença, se for permitido, mas ele ainda precisa tomar chá, porque o chá é bom.
    Para o médico da expedição, o índio tinha claramente um câncer terminal que iria matá-lo em poucas semanas ou dias, porém, o retorno daquele homem antes moribundo, andando como se nada tivesse acontecido o deixou completamente perplexo e muito assombrado.
    Na minha opinião, de fato houve uma cirurgia espiritual durante o ritual de pagelança na floresta densa que fez o homem ficar recuperado, coisa que aquele médico se quer desconfiava naquela época, por isso o xamã/pajé não tinha paciência de explicar porque, provavelmente ele não estava preparado para entender.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não é só o médico que ficou perplexo. Eu mesmo tô de cara aqui.
      Pelo que eu saiba, ainda existe muita tribo isolada na Amazônia, que nunca se encontrou com o "homem branco". Esse tipo de coisa deve existir e muito no meio deles.

      Excluir
  2. De fato o xamanismo teve e tem importância crucial em todas as tribos da História. Fenômeno esse que ainda precisa ser melhor entendido pelas ciências antropológicas.
    Por exemplo,acredita-se hoje que os grupos humanos se espalharam pelo planeta em busca de itens de sobrevivência,muitas vezes perseguindo as manadas de animais que caçavam ou fugindo de pragas,secas e enchentes.
    Contudo,eles esquecem que somado a isso havia a influência dos xamãs e pagés,que guiavam as tribos para regiões jamais sonhadas por eles,verdadeiros oases,somente guiados por visões e presságios,suplantando até mesmo o oceano gelado,durante a grande era glacial.
    Foi assim que muitas tribos chagaram a ilhas isoladas como as da polinésia e ate mesmo na ilha de Páscoa,conhecidos pelos nativos coml Rapa-Nui.

    ResponderExcluir