9 de abril de 2023

Considerações espíritas sobre a sexualidade

Estudo de Dante segurando a mão de Amor. Dante Gabriel Rossetti  (1828–1882)  

A sexualidade humana é um importante manifestação do ser. Enquanto participa da matéria, o Espírito está subordinado às disposições do sexo como, por exemplo, às diferenças entre as formas masculina e feminina. Não restam dúvidas de que o corpo exerce uma influência decisiva sobre as ações da alma nessas questões, porém, não as determina univocamente.

Quantos dramas e dores são resultado das consequências adversas da sexualidade! Porém, quantos desses dramas se originaram também da cultura equivocada de uma época que é cultivada como regra de normalidade?

O assunto é complexo pois relaciona de maneira intricada questões de natureza física, cultural (ou social) e espiritual ainda pouco explorados no movimento espírita. Sobram discussões acaloradas sobre a origem de certos comportamentos sexuais, com desdobramentos e orientações relevantes de interesse público. 

Em uma série de posts a partir deste, apresentaremos algumas reflexões, sem a pretensão a qualquer status de verdade absoluta. 

Sexo nos Espíritos

Não é possível utilizar exclusivamente as obras de Kardec para se analisar de forma ampla, do ponto de vista espírita, as questões de sexualidade. Isso porque, no Século XIX, tais assuntos não foram tratados e nem poderiam ser tratados com a mesma liberdade que o Século XXI envolveu as questões ligadas ao sexo. Além disso, importantes conceitos biológicos ainda não eram conhecidos na época da Codificação. Considerando questões de fundamento, porém, é suficiente iniciar nossa discussão, p. ex., com a Questão 200 de O Livro dos Espíritos (LE) [1]:

200. Têm sexos os Espíritos?

“Não como o entendeis, pois que os sexos dependem do organismo. Há entre eles amor e simpatia, mas baseados na semelhança dos sentimentos.”

Por óbvio, tendo em vista a "Escala Espírita" (LE, Cap. I, Parágrafo 100), não é uma regra geral que, para todos os Espíritos, "amor e simpatia" existam de forma generalizada. Há que se levar em conta o progresso feito pela alma. Portanto, a resposta dada é uma consideração de caráter geral sujeita a detalhamentos futuros, sem entretanto apresentar uma negativa absoluta (1) considerando o início da resposta: "Não como o entendeis" (Non point comme vous l'entendez...). 

A grande novidade trazida pelos Espíritos na Codificação foi a informação de que "são os mesmos os Espíritos que animam os homens e as mulheres" (LE Questão 201, ce sont les mêmes Esprits qui animent les hommes et les femmes [1]). Ou seja, uma vez que o princípio inteligente é independente da matéria, não é um dos seus atributos a diferenciação sexual. Essa diferença nasceu na matéria com veremos. Tal princípio tem importantes consequências. Em uma versão mais justa da sociedade, homens e mulheres gozariam de idênticos direitos. Portanto, não foi por aderência a causas de igualdade de gênero, incipientes no Século XIX, que o movimento espírita nascente advogou essa igualdade, mas porque ela é um corolário da natureza assexual do espírito.  

Com relação à igualdade, algumas  pessoas podem se inconformar com a resposta à Questão 822(a) do LE "dos direitos, sim; das funções, não" (des droits, oui; des fonctions, non). Entretanto, é preciso se lembrar que, por volta de 1850, a economia no mundo não se baseava em formas de produção amplamente mecanizada (não existia sequer energia elétrica!) e os trabalhos "mais rudes" (LE, Questão 819) se destinavam naturalmente aos mais fortes fisicamente. Hoje, com máquinas e computadores a desempenharem funções mais pesadas e complexas, não há mais o que se falar sobre diferenças de funções entre homens e mulheres. O fundamento disso está na igual "inteligência e capacidade de progredir" (LE, Questão 817) que ambos possuem em igual teor. 

Sexualidade nos Espíritos

É um fato derivado de milhares de descrições de aparições de Espíritos (por intermédio de médiuns especiais) que eles em sua maioria se manifestam seja como homens ou como mulheres. A aparência externa dos Espíritos é uma expressão de sua vontade, o que se aplica, inclusive, ao tipo de indumentária com que se apresentam. 

Assim, do fato de não se atribuir aos Espíritos o mesmo valor biológico para o sexo, isso não significa que eles não tenham sexualidade.  Por esse termo podemos entender um conjunto de pensamentos, sentimentos, atrações, repulsões, aparências e maneirismos relacionados ao sexo que são manifestações do Espírito estando ele ou não sob influência da matéria. 

Entretanto, enquanto encarnado, ele sofre forte influência da matéria, que faz com que sua sexualidade oscile no tempo. Separado do corpo (como desencarnados) consideramos que os Espiritos têm uma "sexualidade residual" que se torna um traço mais ou menos marcante de sua personalidade integral conforme seu grau de adiantamento.

Essa influência forte da matéria sobre o espírito em matéria de sexo existe porque ele foi "inventado" ao longo do processo de evolução como um mecanismo eficiente de perpetuação das espécies. Tal informação precisa ser desenvolvida e incorporada a uma descrição espírita mais moderna do assunto. Embora sem referência ao instinto sexual, essa influência da matéria é prevista no LE. Para ver isso, consideremos a resposta da Questão 605(a) [1] (grifos nossos): 

De modo que, além de suas próprias imperfeições de que cumpre ao Espírito despojar-se, tem ainda o homem que lutar contra a influência da matéria?

Sim; quanto mais inferior é o Espírito, tanto mais apertados são os laços que o ligam à matéria. Não o vedes? O homem não tem duas almas; a alma é sempre única em cada ser. São distintas uma da outra a alma do animal e a do homem, a tal ponto que a de um não pode animar o corpo criado para o outro. Mas, conquanto não tenha alma animal, que, por suas paixões, o nivele aos animais, o homem tem o corpo que, às vezes, o rebaixa até ao nível deles, visto que o corpo é um ser dotado de vitalidade e de instintos, porém ininteligentes estes e restritos ao cuidado que a sua conservação requer.

A biologia moderna acrescentou uma grande quantidade de detalhes sobre essa influência que não mais podemos desprezar. 

Origem do sexo 

É preciso se lembrar que, por meio da revelação científica da evolução natural e da genética (que não eram conhecidas na época em que o LE foi publicado), sabemos hoje que os organismos precisam aumentar sua variabilidade genética para sobreviverem (2). Esse material genético é representado pela molécula de DNA (ácido desoxiribonucleico) que traz em si informação sobre como "montar" um organismo vivo por meio de processos complexos de síntese de proteínas e outras substâncias. 

A inserção de material genético em outra célula ocorre de diversas formas e tem como objetivo aumentar essa biodiversidade. Dessa forma, organismos de uma determinada espécie conseguem sobreviver frente a mudanças do ambiente (basta ver como operam os vírus). Uma das maneiras de fazer isso é por meio do sexo que nada mais é do que a inserção de material genético de uma célula em outra de uma mesma espécie [2] observando determinadas regras que permitem o desenvolvimento de uma progênie (descendência) viável, ou seja, que seja capaz de se reproduzir. 

Enquanto permaneciam no seio tépido e mais ou menos estável de muitos ambientes primitivos, células procariontes (que não têm núcleo distinto) se reproduziam de forma assexuada, por meio da divisão celular. Crê-se que, por causa de mudanças no ambiente, tais células primitivas "descobriram por acaso" o sexo há vários bilhões de anos. Essa descoberta é um dos mistérios na biologia e um dos vários "elos perdidos" na árvore de evolução dos seres primitivos. 

Fig. 2 Árvore filogenética moderna contendo os três grandes troncos primitivos de seeres: as bactérias (bacteria), as arqueias (archaea) e os organismos eucariontes (eukaryota). 1 e 2 representam organismos hipotéticos relacionados à origem da vida (1) e do sexo (2). Segundo [2], os procariontes modernos também se envolvem em reprodução sexuada.

A Fig. 2 representa uma versão muito simplificada da "árvore filogenética" contendo os três grandes troncos de seres a partir de um elo inicial (denominado 1) que supostamente deu origem à vida na Terra. Cada "nuvem" representa um arranjo de milhares de grupos e subgrupos de espécies diferentes. Os organismos eucariontes (que contém um núcleo celular distinto, de "κάρυον" para caroço ou núcleo) formaram a base unicelular para organismos mais complexos (multicelulares) que resultaram em plantas, animais e fungos (mas não apenas esses!). De alguma forma, um organismo primitivo unicelular procarionte desconhecido desenvolveu o sexo há bilhões de anos (assinalado por 2 na Fig. 2). Esse traço se perpetuou em todas as espécies desde então, por ser altamente eficiente e benéfico para as espécies. 

A existência de 1 e 2 é admitida cientificamente por causa de características comuns entre inumeráveis espécies de seres muito diferentes entre si, o que indica serem eles descendentes de um "elo" primitivo comum. Por exemplo, segundo [2]:
O ancestral comum de toda a vida moderna, tronco principal do diagrama, é uma entidade hipotética deduzida do fato de que todas as formas de vida moderna compartilham muitas características complexas - por exemplo, genomas baseados em DNA, código genético em tripleto, síntese de proteínas baseadas em ribosomos, caminhos metabólicos - e, portanto, devem ter evoluído de um ancestral que também possuía tais características complexas.  
O sexo é visto modernamente como um característica que se perpetuou em diversos organismos unicelulares (inclusive bactérias), mas que atingiu seu ápice com o desenvolvimento de células especializadas na reprodução (os chamados "gametas").  Organismos multicelulares podem ser considerados "colônias de células" que aproveitam as vantagens da união via cooperação-especialização. Parte do organismo multicelular (o chamado "soma") é especilizado em funções de captação de energia, metabolismo, proteção etc. Outra parte, o "germe" se especializou em reprodução. O soma se justifica até o momento em que o germe consegue se reproduizir e gerar  descendentes. Do ponto de vista biológico, assim, o fato mais relevante para os seres é sua reprodução, posto que isso garante a continuidade da espécie a que pertencem.

 André Luiz: a origem do sexo e dos espíritos?

Algumas dessas informações que formam a imagem moderna da evolução do sexo foram sugeridas e ampliadas em alguns ditados mediúnicos mais recentes fora da conjunto de obras da Codificação. Embora o caráter resumido, elas representam claramente um salto em relação ao estabelecido em diversas obras de Kardec cujo contexto científico não comportava ainda a evolução das espécies

Um desses ditados é Evolução em dois mundos de André Luiz [3], um livro publiado em 1958 (aproximadamente 100 anos depois do LE) e que foi psicografado em capítulos intercalados pelos médiuns F. C. Xavier e W. Vieira. Não obstante terem sido psicografados individualmente a mais de 400 km de distância, os textos produzidos por esses médiuns se combinam em uma "nova gênese" para o Espiritismo.

A evolução do sexo é tratada, por exemplo, no Cap. VI. Com sua linguagem peculiar, o autor espiritual descreve desta forma o pararecimento do sexo (2, p. 48):
Dobadas longas faixas de tempo, em que bactérias e células são  experimentadas em reprodução agâmica, eis que determinado grupo apresenta no imo da própria constituição qualidades magnéticas positivas e negativas que lhes são desfechadas pelos Orientadores Espirituais encarregados do progresso devido ao Planeta. 
Pressente-­se a evolução animal em vésperas de nascer... 
A "reprodução agâmica" é a divisão celular simples, que é a base da reprodução de muitos organismos primitivos procariontes ("bactérias e células"). Com vimos, da origem da vida até a invenção do sexo passaram-se "longas faixas de tempo". Acredita-se que os primeiros organismos vivos surgiram entre 3-3,5 bilhões e anos, enquanto que  os primeiros organismo que se reproduziram sexualmente surgiram 1,3 bilhões de anos antes dos primeiros animais mais evoluídos [4]. 

A base da explicação de A. Luiz é que a evolução dos seres e o processo de especiação não ocorreu de forma aleatória e cega, mas foi guiado, manipulado e modificado - respeitando as leis físicas e o tempo - por Espíritos superiores em processos inacessíveis aos cientistas humanos. O que a ciência vê como  mutações randômicas de origem desconhecida ou eventos cataclísmicos ambientais são, na verdade, modificações aparentemente aleatórias promovidas por tais Espíritos. Esses são descritos como "orientadores espirituais" responsáveis pela evolução na Terra.  É o que o autor descreve em [3], Seção "Concentrações fluido-magnéticas" (2, p. 50):
Eras imensas transcorreram; e esse princípio inteligente, destinado a crescer  para a glória da vida, em dois planos distintos de experiência, quando se mostra ativado em constituição mais complexa, recebe desses mesmos Arquitetos da Sabedoria Divina os dons da reprodução mais complexa...
Segundo A. Luiz, o processo de evolução do lado material gerou organismos diferenciados e, do lado espiritual, levou ao desenvolvimento do princípio inteligente ou do espírito - note o "e" minúsculo. Portanto, esse princípio espiritual colhe, a partir de sua associação com a matéria, características que também podem ser transferidas entre gerações ou mesmo espécies em um processo de "simbiose" espírito-matéria. 

Uma dessas características é a diferenciação "positiva" e "negativa" descrita no trecho acima que representa o aparecimento do binômo macho-fêmea ou dos gêneros sexuais. Do ponto de vista material, o sexo necessitou da diferenciação entre células do tipo "sêmen" e do tipo "óvulo", que são conhecidas como células reprodutivas especiais do macho e da fêmea, respectivamente. Expresso de outra forma, esse binômio representa a dicotomia "doador/receptor" de material genético. Essa diferenciação é consequência da especialização celular nos organismos multicelulares (os gametas), embora ela também exista de forma especial entre organismos unicelulares modernos [2].

No texto de Evolução em Dois Mundos, André Luiz assim confirma:
  • A imagem científica moderna da evolução a partir de elos primitivos comuns, 
  • O aparecimento e ramificação das espécies a partir da seleção de características vantajosas, 
  • O surgimento do sexo no início do desenvolvimento de seres unicelulares após "eras imensas",  
  • A origem comum dos homens e dos seres vivos que são "irmãos de jornada evolutiva" (3).
Além disso, ele lança uma proposta audaciosa para detalhar a origem do elemento espiritual em íntima associação com as formas vivas, desde as mais primitivas (4). A influência superior guiando a evolução é descrita como "experiências de seleção natural-espiritual" que não se passaram exclusivamente na matéria. A nós é possível especular que parte dessas características comuns (e que levam a ciência a acreditar em um único "ancestral primitivo") também se confundem com características que foram aprendidas pelo próprio elemento espiritual. Obviamente, o sexo se encontra entre tais características que, nos espíritos mais desenvolvidos, se manifestam como a citada sexualidade residual sujeita à vontade de sua personalidade integral.

Talvez algumas dessas sugestões poderão ser verificadas nos desenvolvimentos futuros das teorias  de especiação e origem da vida. Certamente, o princípio inteligente está por trás do comportamento inteligente observado nas estratégias de sobrevivência de muitas espécies superiores. Por associar conceitos modernos da biologia com a evolução do princípio inteligente, a proposta de A. Luiz parece ser a única existente dentre as explicações espiritualistas que desenvolve alguns detalhes relevantes para entender questões ligadas à sexualidade e ao comportamento sexual.

Continua no próximo post.

Referências

Referências como disponíveis em abril-maio de 2023.

[1] Kardec (1860). A. O Livro dos Espíritos. 2a Edição segundo a versão original em Francês disponível aqui: https://www.cesakparis.fr/wp-content/uploads/2010/02/allankardec-esprits.pdf

[2] Goodenough, U. (2007). The emergence of sex. Zygon, 42(4), 857-872. Ver link: https://openscholarship.wustl.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1098&context=bio_facpubs 

[3] A. Luiz (1958). Evolução em dois mundos. 4a Edição. FEB (Federação Espírita Brasileira).

[4] Otto, S. (2008). Sexual Reproduction and the Evolution of Sex. Nature Education 1(1):182. Ver link: https://www.zoology.ubc.ca/~otto/Reprints/Otto2008.pdf

Comentários

(1) A pergunta da Questão 200 do LE é um dos mais interessantes e relevantes questionamentos do LE. Com isso Kardec elimina qualquer possibilidade futura de que o "sexo dos Espíritos" se tornasse tão inútil como a do "sexo dos anjos" cuja expressão é sinônimo de debate irrelevante.

(2) De acordo com os princípios da evolução natural, as espécies precisam gerar organismos com algum tipo de diferenciação para que possam se adaptar a mudanças e variações sempre presentes na Natureza. O princípio da "sobrevivência dos mais aptos" é um dos mais relevantes fundamentos da evolução das formas na matéria.

(3) Essa informação é de grande relevâncias para distinguir a maneira como o Espiritismo considera as questões sexuais de outras doutrinas religiosas. Sendo a Humanidade um subproduto da evolução natural dos seres (a inteligência do homem tem origem no desenvolvimento da inteligência dos animais), não é o homem um "ser a parte" ou "especialmente criado por Deus" para o qual os animais são apenas "outras criaturas" para servir ao homem. É nos animais que vamos encontar muitas explicações para o comportamento humano ainda ligado ao instinto onde o sexo é um dos principais indutores.

(4) Com comentário final ressaltamos que, segundo o LE, a origem dos Espíritos é considerada um mistério (ver resposta à Questão 81). Entretanto, na época de lançamento do LE, não havia uma ideia clara sobre o aparecimento dos seres vivos (ver Questão 44 com uma descrição sobre a origem dos seres vivos na Terra que nos lembra das teorias de geração espontânea), estando muitas respostas dadas dependentes do vitalismo característico da época de Kardec. Porém, índícios de elementos comuns entre os homens e os animais pode ser lidos, por exemplo, na resposta à Questão 606 e em outras partes do LE. O assunto é interessante para estudos mais amplos sobre ideias passadas pelos Espíritos a favor da evolução do elo de ligação da Humanidade com os seres vivos. Tais estudos entretanto desviam do assunto principal deste texto.



22 de fevereiro de 2023

Experiências fora do corpo na Epilepsia


A epilepsia é uma doença que afeta o sistema nervoso e que se caracteriza pela existência de crises recorrentes [1]. Durante essas convulsões epiléticas pode haver perda da consciência concomitante a episódios de movimentos descontrolado do corpo. Em geral, as crises têm curta duração mas, se excederem 5 minutos, necessitam de cuidado médico especial. Crises epiléticas podem resultar em acidentes severos, basta imaginar sua ocorrência no trânsito, por exemplo. Não obstante a existência de muitas drogas avançadas, 30% dos pacientes não tem controle sobre as crises.

As causas para a epilepsia são inúmeras [2]: influência genética, traumas, anormalidades no cérebro, infecções, desordens no desenvolvimento etc. Sua ocorrência está ligada a mudanças na estrutura neural do cérebro. Também existem complicadores tais como a idade, o histórico familiar, a incidência de acidentes vasculares, infecções e demência.

O que acontece à consciência durante a crise epilética é um assunto de interesse científico recente. Há crises em que não ocorre perda da consciência e outras em que ela é afetada. Durante as crises [2], pacientes podem experimentar a sensação de dejà-vu - quando têm a nítida impressão de já terem vivenciado a situação. Ou o seu oposto ocorre: um "jamais vu", em que perdem a capacidade de reconhecer o ambiente em que estão. 

Por causa da natureza espiritual do ser humano, existem, entretanto, outras experiências "anômalas" registradas durante as crises epiléticas. Exemplos interessantes são descritos por Greyson et al (2014) [3], artigo que encontramos depois das indicações em Muito além dos Neurônios [4] do dr. Nubor O. Facure. Ao se encontrar o primeiro artigo, é possível achar outros como [5] e [6].

Experiências fora do corpo são conhecidas na literatura médica como um "fenômeno autoscópico". Nele o paciente vê a si mesmo como se estivesse fora de seu corpo. No artigo [3], os autores encontraram que, em uma amostra de 100 pacientes, 7 descreveram experiências que podem ser consideradas autoscopias em crises epiléticas. Não há correlação sobre a incidência dessas experiências com outros fatores como demografia, histórico médico, idade, frequência e duração das crises. Para cada paciente que teve a experiência, a taxa de incidência é baixa, da ordem de uma ou duas ao longo de vários anos. Dessa forma, não se pode associar sua ocorrência a outros fatores tais como medicamentos usados ou mudanças nas condições de saúde.

Recorremos a [3] para conhecer algumas das experiências vividas em crises epiléticas. Depois de descrever detalhes do quadro clínico dos casos reportados, os autores passam a sumarizar suas autoscopias:

1) Uma paciente de 28 anos que apresentou o maior número de experiências e percepções verificáveis:
Ela relatou deixar seu corpo durante cada convulsão parcial complexa: enquanto seu corpo ficava imóvel, ela sentia que estava flutuando acima dele, e que podia ver seu corpo e os arredores desde cima. No entanto, ela relatou uma dupla consciência em que, embora parecendo pairar acima de seu corpo, também permanecia consciente das sensações corporais. Relatou que, se alguém tocasse seu corpo, tinha a sensação de se "encaixar" de volta nele, o que resultava no fim da convulsão. A experiência de estar fora de seu corpo foi desagradável e alarmante, já que temia que algo pudesse acontecer ao seu corpo por estar fora de seu controle. Acreditava que suas percepções visuais extracorpóreas eram precisas e que se encontrava fisicamente separada de seu corpo. Mas não atribuiu qualquer significado espiritual a esse evento, considerando-o  "apenas algo que acontece" quando seu cérebro falha.
2) Uma paciente de 30 anos com cerca de 300 crises por mês desde os 15 anos:
Ela relatou 2–3 experiências extracorpóreas associadas a convulsões, que duraram entre 10 e 20 segundos. Afirmou que se sentiu levantar, olhando para baixo e vendo seu corpo inerte, e que podia ver e ouvir outras pessoas. Declarou se sentir leve durante a experiência que foi para ela assustadora. 
Embora a impressão realística, a experiência passada parece a ela rebuscada e vaga, confundindo-se com sua imaginação.
3) Um paciente de 43 anos que apresentou quadro de crises depois de um trauma cerebral aos 25 anos:
Ele relatou uma (única) experiência extracorpórea associada a uma convulsão: afirmou que estava acordado durante a convulsão e se viu passando por ela, inclinado sobre um dos joelhos. Percebeu que seu irmão entrou na sala e tentou dizer algo ao irmão para impedir (sua crise). Alegou ter tido dupla consciência, pois sentiu as sensações corporais de passar pela convulsão, mas também se observou passando por ela.
Esse paciente também declarou que a memória da experiência se apresenta a ele agora como um sonho.
A sensação de bicorporiedade é evidente por esses relatos, uma vez que as percepções entram por duas vias: a do corpo físico e a do corpo espiritual desdobrado durante os breves momentos de crise epilética.  Os autores em [3] consideram que, ainda que não seja "clinicamente" possível distinguir tais experiências de meras ilusões, é possível corroborar os fatos descritos pelos pacientes na experiência extracorpórea com o que de fato ocorreu durante as crises. 

Uma importante conclusão é feita pelos autores em [3] sobre o que parecem sugerir os dados de tais experiências produzidos por pacientes de crises epiléticas (grifo nosso):
No entanto, pode ser prematuro concluir dessas correlações sugestivas que as experiências extracorpóreas são um epifenômeno de condições neurofisiológicas particulares. Conforme observado acima, as distorções da imagem corporal provocadas pela estimulação elétrica ou magnética do cérebro diferem relevantemente e fenomenologicamente das experiências fora do corpo espontâneas. Os dados deste estudo sugerem que experiências extracorpóreas associadas a convulsões não estão ligadas a nenhuma região do cérebro. Além disso, as descobertas de que experiências fora do corpo foram relatadas com menos frequência em pacientes com epilepsia do que na população em geral, e que pacientes com epilepsia as descrevem em apenas uma pequena minoria de suas convulsões, alertam que a inferência de um nexo causal entre a atividade convulsiva e as experiências fora do corpo é problemática.
Colocando-se de outra forma:
  1. As experiências fora do corpo em crises epiléticas não são meros "epifenômenos" gerados por condições fisiológicas particulares;
  2. Não se pode associar os relatos dessas anomalias percepticas a regiões específicas do cérebro. No caso de pacientes epiléticos, as lesões ocorrem em diversas partes. Isso enfraquece a tese de que os desdobramentos seriam "gerados em regiões específicas do cérebro" e, de novo, meros epifenômenos;
  3. Não se pode ter pressa em afirmar nexo causal entre as crises e as experiências fora do corpo porque elas não ocorrem sempre, não há controle nem repetição do evento a cada crise, o que difere de outras alterações na consciência muito mais comuns durante as crises.

Mais detalhes sobre esse e outros estudos interessantes, o leitor poderá obter ao ler os trabalhos sugeridos [3-6].

Referências

[1] Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Epilepsia 

[2] Mayo Clinic (2023). Explaining epilepsy. https://www.mayoclinic.org/diseases-conditions/epilepsy/symptoms-causes/syc-20350093  (acesso em fevereiro de 2023)

[3] Greyson, B., Fountain, N. B., Derr, L. L., & Broshek, D. K. (2014). Out-of-body experiences associated with seizures. Frontiers in human neuroscience, 8, 65. Ver: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnhum.2014.00065/full (acesso em fevereiro de 2023)

[4] Facure N (2009). Muito além dos neurônios. Ed: São Paulo, FE Editora Jornalística, 5a edição.

[5] Devinsky, O., Feldmann, E., Burrowes, K., & Bromfield, E. (1989). Autoscopic phenomena with seizures. Archives of Neurology, 46(10), 1080-1088. https://jamanetwork.com/journals/jamaneurology/article-abstract/589440 

[6] Greyson, B., Broshek, D. K., Derr, L. L., & Fountain, N. B. (2015). Mystical experiences associated with seizures. Religion, Brain & Behavior, 5(3), 182-196. https://med.virginia.edu/perceptual-studies/wp-content/uploads/sites/360/2018/06/Mystical-experiences-associated-with-seizures.pdf

4 de janeiro de 2023

Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - VIII

Gorila e borboleta. Fonte: Wikipedia (Ana L. Araújo).

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - VII". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec. Última parte.

O homem corpóreo

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Do ponto de vista corpóreo e puramente anatômico, o homem pertence à classe dos mamíferos, dos quais unicamente difere por alguns matizes na forma exterior. Quanto ao mais, a mesma composição de todos os animais, os mesmos órgãos, as mesmas funções e os mesmos modos de nutrição, de respiração, de secreção, de reprodução.

Com essa descrição, Kardec coloca a Humanidade em seu devido lugar de natureza. Finalmente a Humanidade havia sido destronada como objetivo único da criação pelas mãos da ciência. Não há mais o que falar sobre qualquer privilégio natural; fisicamente o Homem não se distingue de um animal, pelo menos do ponto de vista "corpóreo". Além disso:

É tão grande a analogia que suas funções orgânicas são estudadas em certos animais, quando as experiências não podem ser feitas nele próprio.

É o caso das inúmeras pesquisas em farmacologia que resultaram em drogas importantes para o tratamento de humanos, drogas que foram experimentadas nos animais durante seu desenvolvimento. 

A questão agora é: diante desse quadro de semelhanças físicas, como é possível "resgatar" o destino espiritual do homem? A resposta passa pelo reconhecimento de que os animais têm seu princípio espiritual, o que depende de uma lei de evolução estendida também a esse princípio.

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A referência da Wikipedia apresenta a classificação (árvore) científica moderna dos humanos: 

  1. Reino: Animalia, 
  2. Filo: Cordata, 
  3. Classe: Mamalia, 
  4. Ordem: Primata, 
  5. Subordem: Halorfini, 
  6. Infraordem: Simiforme, 
  7. Família: Hominidae, 
  8. Subfamília: Homininae, 
  9. Tribo: Hominini, 
  10. Genus (Gênero): Homo, 
  11. Espécie: Sapiens.

Essa classificação apresenta o elo comum dos humanos com os símios como pertencente à Ordem dos primatas e com ramificações até a Infraordem "simiforme" ou antropóides. A Família dos hominídeos inclui  4 Gêneros: Pongo, Gorila, Pan e Homo. Para ficar mais clara essa classificação, a Fig. 1 apresenta uma representação dos ramos a partir de Hominidae.

Fig. 1 Posição do Gênero Homo a partir da Família Hominidae. Fonte Wikipedia.

Hoje acredita-se que a espécie Homo Sapiens surgiu entre 300 mil e 200 mil anos atrás e não foi a única. Habilis, Erectus,  Ergaster, Naledi, Neanderthalensis e outras todas desaparecidas precederam os humanos modernos. Entre esses não mais existem quaisquer espécies. Não obstante a variedade de tons de pele e de outras características, tais diferenças não justificam a classificação em mais de uma espécie e nem mesmo a ideia de raça. Todos os quase 8 bilhões de indivíduos no mundo pertencem rigorosamente ao mesmo tipo humano.

Sobre os símios, Kardec comenta:
Como o homem, esses macacos caminham eretos, usam cajados, constroem choças e levam à boca, com a mão, os alimentos: sinais característicos.
Esses são sinais de inteligência, uma evidência do elemento espiritual a eles associado.

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Kardec reconhece a existência de um princípio de evolução nas formas como um aperfeiçoamento entre as espécies:
Acompanhando-se passo a passo a série dos seres, dir-se-ia que cada espécie é um aperfeiçoamento, uma transformação da espécie imediatamente inferior.
Com isso ele ecoa noções de evolução pré-Darwinistas [1] de sua época que já reconheciam uma mudança gradual entre as espécies de animais, ainda que não se soubesse exatamente o mecanismo responsável por isso. Essas noções tiveram início com a constatação de que as espécies não eram fixas. Pioneiros dessas ideias foram Georg L. Leclerc (Comte de Buffon 1707-1788); Erasmus Darwin (1731-1802), avô de Charles Darwin; Jean-Baptiste C. de Lamarck (1744-1829); Charles Lyell (1797-1875) e George Cuvier (1769-1832). 

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Ainda que isso lhe fira o orgulho, tem o homem que se resignar a não ver no seu corpo material mais do que o último anel da animalidade na Terra. Aí está o inexorável argumento dos fatos, contra o qual seria inútil protestar.
Muitos  têm o orgulho ferido, pois alguns cristão ainda hoje se recusam a aceitar a evolução das espécies como o mecanismo que resultou na formação da espécie humana. Acreditam que a Humanidade tem um lugar especial, se não exclusivo, na Criação. 

É o excessivo valor dado ao corpo que leva a esse preconceito. Ao contrário, o corpo é a plataforma física a partir da qual se eleva sem fim o espírito imortal. 

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O Espiritismo, entretanto, reconhece as descobertas da ciência sobre a evolução corpórea e as incorpora em seus ensinos. Estende, porém, essa compreensão ao princípio espiritual que colhe da evolução das formas os elementos para seu aprimoramento. Assim, o Espiritismo descortina "um mundo novo" que permite a nós compreender também a existência dos animais como companheiros de jornada evolutiva, o derradeiro golpe à vaidade humana.
Pois bem! o Espiritismo, a loucura do século XIX, segundo os que se obstinam em permanecer na margem terrena, nos patenteia todo um mundo, mundo bem mais importante para o homem, do que a América, porquanto nem todos os homens vão à América, ao passo que todos, sem exceção de nenhum, vão ao dos espíritos, fazendo incessantes travessias de um para o outro.
Esclarecida de alguma forma o aparecimento do elemento material, permance a questão da origem do princípio espiritual.  Ao colher informes e vivências em sua associação com a matéria, segue por tempo desconhecido a evoluir até o destino final ainda inacessível ao nosso grau de entendimento presente. 

Referências

[1] Pre-Darwinian Theories: https://www2.palomar.edu/anthro/evolve/evolve_1.htm













1 de dezembro de 2022

Bens, direitos, deveres e obrigações da alma


Nada do que se expressa sobre Jesus nos Evangelhos se refere a coisas terrenas​, ​mas a um conjunto de “negócios espirituais” da alma, seus direitos e obrigações. Emmanuel referiu-se a isso quando comentou em “Vê como vives” [1]:
Com a precisa madureza do raciocínio, compreenderá o homem que toda a sua existência é um grande conjunto de negócios espirituais e que a vida, em si, não passa de ato religioso permanente, com vistas aos deveres divinos que nos prendem a Deus.
Guardados os inúmeros problemas de tradução, textos apócrifos e interpolações mal-intencionadas feitas ao longo do tempo ​que modificaram os Evangelhos originais, é a única interpretação possível para muitos dos ensinos de Jesus no Novo Testamento.

Entretanto, nunca foi intenção de Jesus “reformar” o sistema legal de seu tempo, que tinha regulamento próprio, pois tudo o que Jesus ensinou dizia respeito aos interesses da alma. Assim, por trazer uma nova revelação, seus ensinamentos frequentemente usavam recursos alegóricos. Esses recursos se mostraram eficientes, pois os ensinos morais atravessaram quase que intactos as inumeras versões do Novo Testamento. Neste post, tecemos algumas observações sobre parte da revelação da Justiça Divina trazido por Jesus conforme se pode ler em Mateus 5.

Interpretação espírita de alguns ensinamentos em Mateus 5.

Atenção: para unificar as referências aos textos do Evangelho, em complementação aos versículos extraídos da versão "Almeida revisada", citamos alguns termos equivalentes conforme versão em latim da Vulgata: http://www.drbo.org/lvb/chapter/47005.htm
Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. (Mateus 5:19)
A vida futura da alma é o “reino dos céus” não como lugar, mas como conjunto de bens e direitos a que o Espírito tem acesso após muitos estágios de sua vida encarnada.

Os bens ou direitos ​resultam do cumprimento de obrigações da alma que também são de natureza espiritual. Assim, o “será chamado o menor no reino dos céus” (minimus vocabitur in regno caelorum) ​é um estado possível da alma na vida futura. É “situação processual” perante a Lei Maior de onde se derivam os bens a que tem direito, bem como seus deveres e obrigações.

Com o tempo mudam os interesses e as ações da alma. Seus direitos e deveres precisam refletir suas decisões, conforme ela se aproximar ou se afastar da Lei.  Assim, os que “violam um destes mandamentos, por menor que seja” (qui ergo solverit unum de mandatis istis minimis) e “assim ensinam aos homens” (et docuerit sic homines), ou seja, dão testemunho do erro, são rebaixados por Jesus.   Por outro lado, ele eleva de posição aqueles que os cumprem e que também assim “ensinam aos homens”, ou seja, que os defendem como verdade. E “ensinar aos homens” não é mais relevante que realizar a ação: para Jesus, por óbvio, não basta simplesmente dizer o que deve ser feito, mas dar o exemplo pelo cumprimento correto da lei (qui autem fecerit et docuerit).

As Bem-aventuranças compõem a parte principal de seus mandamentos anunciados por ele no Sermão do Monte. Se a posição pode ser abaixada ou elevada é porque não há posições absolutamente eternas e imutáveis nos estágios da alma. Disso resulta que não há penas eternas igualmente.
Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus. (Mateus 5:20)
A justiça dos “escritas e fariseus” (scribarum et pharisaeorum) representa o sistema jurídico de todos os tempos, tomado por Jesus como comparação para a Justiça Divina. Mas, essa justiça se baseava na lei de Moises que supostamente provinha do próprio Deus. Ela é, porém, imperfeita e incompleta. E mais: não corresponde à lei Divina anunciada em parte como revelação por Jesus. Portanto, adverte que a nova justiça entre seus reais seguidores deve “exceder” àquela dos escribas (quia nisi abundaverit justitia vestra plus quam scribarum), ainda que essa última fosse considerada de origem divina. 
Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo. (Mateus 5:21)
O cânone existente proibia o assassinato (non occides). Ocorrendo esse e verificado os fatos, o indivíduo culpado se tornava “réu no juízo” (reus erit judicio) e deveria ser julgado pela justiça. Mas qual justiça? Exatamente a dos “escritas e fariseus”, ou o sistema jurídico que define tipos de punição conforme o crime realizado.
Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno. (Mateus 5:22)
Assim interpôs três possíveis “penas” a três crimes que, na verdade, resume-se a um só a partir da postura mental do Espírito. O rol das “transgressões imputáveis” é expandido na lei Divina, ainda que a morte não lhes suceda como consequência.  Posteriormente, essas transgressões seriam estendidas por Jesus ao incluir o pensamento no mal

As violações enumeradas e suas penas crescem a partir de um impulso violento de oposição: a cólera “contra seu irmão” (quia omnis qui irascitur fratri suo), a agressão verbal simbolizada pelo “Raca” e, depois, “Louco” (fatue).  E, para cada uma delas, os julgamentos: 
réu no juízo (reus erit judicio), 
réu no sinédrio (reus erit concilio) e 
réu no fogo do inferno (reus erit gehennae ignis). 
Essa última comporta a tradução opcional “réu no fogo do Geena”, entendido como uma localidade na Jerusalém antiga que havia se tornado um depósito de lixo. É uma referência ao lugar “mais ínfimo” de uma cidade, não necessariamente ao “fogo eterno”, mesmo porque Jesus posteriormente esclarece como sair de lá (ver mais adiante). Quem preferir a interpretação da eternidade das penas está preparado para o “fogo eterno” ao chamar seu irmão de “Louco”? O Geena correspondia ao Vale de Hinom (Geh Ben-Hinom) na Jerusalém dos tempos de Jesus [2]. Esse era o local onde, em uma época mais remota, crianças eram sacrificadas no fogo em adoração ao deus Moloch [2][3]. 
Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti. (Mateus 5:23)
Reconciliar-se com o próximo é a primeira obrigação antes de se buscar adorar a Deus. Importa se lembrar se “teu irmão tem alguma coisa contra ti” (quia frater tuus habet aliquid adversum te), do contrário de nada valem as oferendas. É estado da mente que pede o exame da consciência: há alguém que tenha algo contra mim? E o "opositor" não é menos que um irmão (frater) para Jesus, pois não pode haver oposição senão em razão de um desentendimento transitório. Portanto, como todos são irmãos em essência, todos deverão agir como irmãos. Mas quando? Depois da reparação.
Deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta. (Mateus 5:24)
O “deixa ali diante do altar a tua oferta” (relinque ibi munus tuum ante altare) é mera ação ritual ou mecânica se apartada do cuidado com os próprios atos e suas consequências para quem quer que seja.
Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão. (Mateus 5:25)
Trecho de relevância ímpar, pois confere a alma o poder de se "livrar do julgamento" ao se reconciliar "depressa" com seu adversário. Não só implicitamente não condena o homem a qualquer eternidade penal, mas o exime de juízo verificado sua capacidade de congraçamento e concórdia com seu irmão transformado em inimigo. A alegoria é clara na imagem do "adversário que te entrega ao juiz, e o juiz te entrega ao oficial" (ne forte tradat te adversarius judici, et judex tradat te ministro).
Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil. (Mateus 5:26)
Porém, uma vez "condenado", tão pouco Jesus afirma ser impossível sair de lá, mas que a saída se condiciona ao pagamento do “último ceitil” (novissimum quadrantem), desde que, como visto, não se reconcilie antes com o adversário.

Portanto, não há penas eternas, mas multa calculável e exigível como pagamento pelos delitos listados, até o último “ceitil”, ou seja, “até o último centavo”. É obrigação executada de forma parcelada, em caráter compulsório embora possa ser abrandada conforme o grau de reconciliação. 
Eu, porém, vos digo, que qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, em seu coração, já cometeu adultério com ela. (Mateus 5:28)
O regramento da época instituía uma pena para o adultério (non moechaberis). Jesus porém anuncia que o mero pensamento de cobiça já é adultério, um princípio que pode ser estendido para todo o sentimento no mal que se abriga no coração (in corde suo). Porém, qualquer código de justiça moderno considera inimputáteis quem cometer delitos "apenas pelo pensamento". Uma vez mais os reais seguidores de Jesus devem "exceder" a justiça comum da sociedade em que vivem.
Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. (Mateus 5:29) 
E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. (Mateus 5:30)
Note-se bem: essa não é uma pena imposta sobre a alma. Do contrário, é o corpo que sofre quando Jesus afirma que "todo o teu corpo (seja) lançado no inferno" (totus corpus tuum mittatur in gehennam). É o Vale de Hinom novamente figurado como local de julgamento e pena, tal como nos delitos de Mateus 5:22. Se o corpo sofre é porque a pena é aplicada durante a vida, mas quantos crimes ficaram impunes pela finitude da vida humana se considerada como uma só? 

Sobre essas passagens, comenta Kardec [4]:
Figura enérgica esta, que seria absurda se tomada ao pé da letra, e que apenas significa que cada um deve destruir em si toda causa de escândalo, isto é, de mal; arrancar do coração todo sentimento impuro e toda tendência viciosa. Quer dizer também que, para o homem, mais vale ter cortada uma das mãos, antes que servir essa mão de instrumento para uma ação má; ficar privado da vista, antes que lhe servirem os olhos para conceber maus pensamentos. Jesus nada disse de absurdo, para quem quer que apreenda o sentido alegórico e profundo de suas palavras. Muitas coisas, entretanto, não podem ser compreendidas sem a chave que para as decifrar o Espiritismo faculta. (grifos nossos)
O vale de Hinom da Jerusalém moderna.
Foto: wikipedia.
Os judeus do tempo de Jesus tinham como lei a necessidade de  conceder divórcio (libellum repudii) à esposa abandonada, numa época em que a mulher era considerada propriedade do marido. Em oposição a isso, Jesus ensina:
Eu, porém, vos digo que qualquer que repudiar sua mulher, a não ser por causa de prostituição, faz que ela cometa adultério. (Mateus 5:32)
pelo que se aprende que o delito se inicia no repúdio (rejeição, desprezo, desamparo), muito mais sutil, e não pelo abandono. Como Jesus sabia que os homens não se casavam em regime de amor incondicional, assinalou uma exceção "a não ser por causa de prostituição" (excepta fornicationis causa). 

Até que a sociedade aprendesse o regime de reciprocidade que existe no casamento como produto de direitos e obrigações iguais entre os cônjuges, 2000 anos se passariam. Porém, a recomendação de Jesus continua intacta: o repúdio ao parceiro, sistemático e talvez diário, é produto de um estado mental que se inicia muito antes da separação.

O regramento judaico proibia o "falso testemunho" (non perjurabis), e exigia o fiel cumprimento do que fosse prometido "diante do Senhor" (autem Domino).
Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos ao Senhor. (Mateus 5:33)
Jesus elimina a necessidade desse juramento e simplifica consideravelmente a atitude  do indivíduo diante dos outros:
Seja, porém, o vosso falar: sim, sim; não, não; porque o que passa disto provém do mal. (Mateus 5:37)
Além de condenação da mentira, é uma lição difícil aos que se consideram em "íntimo contato com Deus" e que o tomam como fiador nas ações ordinárias da vida.

O ápex da Lei Divida sintetizado por um novo mandamento.

E assim se chega ao topo dos ensinamentos de Jesus em Mateus 5:44:
Eu, porém, vos digo: amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem, (Mateus 5:44)
que é lição em flagrante oposição ao que se aprende seja desde o berço ou por instinto: "amar nosso próximo e odiar nossos inimigos" (diliges proximum tuum, et odio habebis inimicum tuum). É novísima e suprema lei áurea revelada aos homens e justificada por Jesus como esforço necessário para se "aproximar de Deus":
Sede vós, pois, perfeitos,como é perfeito o vosso Pai, que está nos céus. (Mateus 5:48)
Mas, no "sede vós, pois, perfeitos" (estote ergo vos perfecti) ninguém atinge o estado final de uma hora para outra. Por trás dessa imagem está o imenso caminho que a alma percorre até alcançar seu destino. Kardec comenta seu verdadeiro significado na medida do grau de caridade contido nas ações da alma [5]:
Não podendo o amor do próximo, levado até ao amor dos inimigos, aliar-se a nenhum defeito contrário à caridade, aquele amor é sempre, portanto, indício de maior ou menor superioridade moral, donde decorre que o grau da perfeição está na razão direta da sua extensão. 
Cumprir a lei de caridade  é suprema obrigação que a alma não se livra em sua vida maior, pois essa lei condensa em si todos os mandamentos. É um princípio universal que regula a vida do Espírito.

Em conclusão

Ao se (re)encarnar, participa-se de uma nova vida na Terra, sem que a vida real (a "vida eterna" do Espírito) deixe de exercer seus efeitos sobre a alma. 

Assim, dois regramentos sujeitam as ações: o dos homens (de natureza terrena) e a do "céu" (de natureza Divina).  No primeiro caso, extinta a vida do corpo, extintos são os bens e os direitos, deveres e obrigações. No segundo, bens, direitos, deveres e obrigações subsistem, mas de uma natureza inteiramente diversa daquela concebida pela justiça de qualquer época da Humanidade.

Em seus ensinamentos e por meios figurados, Jesus revelou parte das regras dessa nova justiça maior. Antes de tudo, ensinou ele que, para agir conforme tais princípios (ainda que de modo imperfeito), é necessário "exceder" à justiça dos homens. 

Dentre as lições está a da oposição ao "pensamento no mal". Mas, é impensável, em qualquer regramento jurídico humano, pretender punir alguém por simplesmente pensar mal de outrem. Pensar no mal, mesmo sem agir, indica natureza ainda pouco adiantada da alma (o que é verdade para a imensa maioria dos humanos!). Porém, é quando o pensamento no mal se torna ação no mal que o próximo é comprometido e se adquire uma nova obrigação. Surge então o dever de reparação, que é ensinada por Jesus na alegoria do pagamento posterior a um julgamento conforme a gravidade da pena.

Mas, sejamos claros: faz Jesus referência a um pagamento pecuniário?  Obviamente que não, antes isso é uma confirmação do caráter figurado das comparações que usou e que foram captadas quase que sem distorções pelos evangelistas. Esse pagamento é obrigação de natureza espiritual, que não se extingue, portanto, "na vida eterna" –  entendida como a própria vida maior e imperecível da alma em oposição a sua vida terrena ou encarnada – até que seja quitada em sua totalidade.

Naturalmente, só é possível compreender esse sistema de bens, direitos, deveres e obrigações transcendentes em um juízo mais dilatado da existência humana. 

Nesses termos Jesus ensinou como geralmente se sai do terrível Geena. Ao cumprir seus ensinamentos, porém, instruiu a seus seguidores como nunca entrar lá. 

Na nova revelação trazida pelo Espiritismo, o pagamento é realizado em inúmeras existências e o Geena e seu fogo são aqui mesmo na Terra. Dessa forma se regulam na eternidade da vida das almas os crimes, dos mais simples aos mais complexos e graves, já cometidos em toda a Humanidade.

Referências

[1] Emmanuel. Vinha de Luz. Psicografia de F. C. Xavier Ed. FEB, 
[2] Negev, A e Gibson, S. (2001). Hinnom (Valley of). Archaeological Encyclopedia of the Holy Land. Nova Iorque e Londres: Continuum. p. 230. ISBN 0-8264-1316-1.
[3] Wikipedia. Valley of Hinnom (Gehenna). https://en.wikipedia.org/wiki/Valley_of_Hinnom_(Gehenna)
[4] Kardec. O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo VIII (Bem-aventurados os que têm puro o coração: escândalos). Parágrafo 17. Versão IPEAK: https://www.ipeak.net/pt/6479
[5] Kardec. O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo VIII (Sede Perfeitos. Caracteres da perfeição). Versão IPEAK: https://www.ipeak.net/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=6518&&idioma=1