22 de fevereiro de 2023

Experiências fora do corpo na Epilepsia


A epilepsia é uma doença que afeta o sistema nervoso e que se caracteriza pela existência de crises recorrentes [1]. Durante essas convulsões epiléticas pode haver perda da consciência concomitante a episódios de movimentos descontrolado do corpo. Em geral, as crises têm curta duração mas, se excederem 5 minutos, necessitam de cuidado médico especial. Crises epiléticas podem resultar em acidentes severos, basta imaginar sua ocorrência no trânsito, por exemplo. Não obstante a existência de muitas drogas avançadas, 30% dos pacientes não tem controle sobre as crises.

As causas para a epilepsia são inúmeras [2]: influência genética, traumas, anormalidades no cérebro, infecções, desordens no desenvolvimento etc. Sua ocorrência está ligada a mudanças na estrutura neural do cérebro. Também existem complicadores tais como a idade, o histórico familiar, a incidência de acidentes vasculares, infecções e demência.

O que acontece à consciência durante a crise epilética é um assunto de interesse científico recente. Há crises em que não ocorre perda da consciência e outras em que ela é afetada. Durante as crises [2], pacientes podem experimentar a sensação de dejà-vu - quando têm a nítida impressão de já terem vivenciado a situação. Ou o seu oposto ocorre: um "jamais vu", em que perdem a capacidade de reconhecer o ambiente em que estão. 

Por causa da natureza espiritual do ser humano, existem, entretanto, outras experiências "anômalas" registradas durante as crises epiléticas. Exemplos interessantes são descritos por Greyson et al (2014) [3], artigo que encontramos depois das indicações em Muito além dos Neurônios [4] do dr. Nubor O. Facure. Ao se encontrar o primeiro artigo, é possível achar outros como [5] e [6].

Experiências fora do corpo são conhecidas na literatura médica como um "fenômeno autoscópico". Nele o paciente vê a si mesmo como se estivesse fora de seu corpo. No artigo [3], os autores encontraram que, em uma amostra de 100 pacientes, 7 descreveram experiências que podem ser consideradas autoscopias em crises epiléticas. Não há correlação sobre a incidência dessas experiências com outros fatores como demografia, histórico médico, idade, frequência e duração das crises. Para cada paciente que teve a experiência, a taxa de incidência é baixa, da ordem de uma ou duas ao longo de vários anos. Dessa forma, não se pode associar sua ocorrência a outros fatores tais como medicamentos usados ou mudanças nas condições de saúde.

Recorremos a [3] para conhecer algumas das experiências vividas em crises epiléticas. Depois de descrever detalhes do quadro clínico dos casos reportados, os autores passam a sumarizar suas autoscopias:

1) Uma paciente de 28 anos que apresentou o maior número de experiências e percepções verificáveis:
Ela relatou deixar seu corpo durante cada convulsão parcial complexa: enquanto seu corpo ficava imóvel, ela sentia que estava flutuando acima dele, e que podia ver seu corpo e os arredores desde cima. No entanto, ela relatou uma dupla consciência em que, embora parecendo pairar acima de seu corpo, também permanecia consciente das sensações corporais. Relatou que, se alguém tocasse seu corpo, tinha a sensação de se "encaixar" de volta nele, o que resultava no fim da convulsão. A experiência de estar fora de seu corpo foi desagradável e alarmante, já que temia que algo pudesse acontecer ao seu corpo por estar fora de seu controle. Acreditava que suas percepções visuais extracorpóreas eram precisas e que se encontrava fisicamente separada de seu corpo. Mas não atribuiu qualquer significado espiritual a esse evento, considerando-o  "apenas algo que acontece" quando seu cérebro falha.
2) Uma paciente de 30 anos com cerca de 300 crises por mês desde os 15 anos:
Ela relatou 2–3 experiências extracorpóreas associadas a convulsões, que duraram entre 10 e 20 segundos. Afirmou que se sentiu levantar, olhando para baixo e vendo seu corpo inerte, e que podia ver e ouvir outras pessoas. Declarou se sentir leve durante a experiência que foi para ela assustadora. 
Embora a impressão realística, a experiência passada parece a ela rebuscada e vaga, confundindo-se com sua imaginação.
3) Um paciente de 43 anos que apresentou quadro de crises depois de um trauma cerebral aos 25 anos:
Ele relatou uma (única) experiência extracorpórea associada a uma convulsão: afirmou que estava acordado durante a convulsão e se viu passando por ela, inclinado sobre um dos joelhos. Percebeu que seu irmão entrou na sala e tentou dizer algo ao irmão para impedir (sua crise). Alegou ter tido dupla consciência, pois sentiu as sensações corporais de passar pela convulsão, mas também se observou passando por ela.
Esse paciente também declarou que a memória da experiência se apresenta a ele agora como um sonho.
A sensação de bicorporiedade é evidente por esses relatos, uma vez que as percepções entram por duas vias: a do corpo físico e a do corpo espiritual desdobrado durante os breves momentos de crise epilética.  Os autores em [3] consideram que, ainda que não seja "clinicamente" possível distinguir tais experiências de meras ilusões, é possível corroborar os fatos descritos pelos pacientes na experiência extracorpórea com o que de fato ocorreu durante as crises. 

Uma importante conclusão é feita pelos autores em [3] sobre o que parecem sugerir os dados de tais experiências produzidos por pacientes de crises epiléticas (grifo nosso):
No entanto, pode ser prematuro concluir dessas correlações sugestivas que as experiências extracorpóreas são um epifenômeno de condições neurofisiológicas particulares. Conforme observado acima, as distorções da imagem corporal provocadas pela estimulação elétrica ou magnética do cérebro diferem relevantemente e fenomenologicamente das experiências fora do corpo espontâneas. Os dados deste estudo sugerem que experiências extracorpóreas associadas a convulsões não estão ligadas a nenhuma região do cérebro. Além disso, as descobertas de que experiências fora do corpo foram relatadas com menos frequência em pacientes com epilepsia do que na população em geral, e que pacientes com epilepsia as descrevem em apenas uma pequena minoria de suas convulsões, alertam que a inferência de um nexo causal entre a atividade convulsiva e as experiências fora do corpo é problemática.
Colocando-se de outra forma:
  1. As experiências fora do corpo em crises epiléticas não são meros "epifenômenos" gerados por condições fisiológicas particulares;
  2. Não se pode associar os relatos dessas anomalias percepticas a regiões específicas do cérebro. No caso de pacientes epiléticos, as lesões ocorrem em diversas partes. Isso enfraquece a tese de que os desdobramentos seriam "gerados em regiões específicas do cérebro" e, de novo, meros epifenômenos;
  3. Não se pode ter pressa em afirmar nexo causal entre as crises e as experiências fora do corpo porque elas não ocorrem sempre, não há controle nem repetição do evento a cada crise, o que difere de outras alterações na consciência muito mais comuns durante as crises.

Mais detalhes sobre esse e outros estudos interessantes, o leitor poderá obter ao ler os trabalhos sugeridos [3-6].

Referências

[1] Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Epilepsia 

[2] Mayo Clinic (2023). Explaining epilepsy. https://www.mayoclinic.org/diseases-conditions/epilepsy/symptoms-causes/syc-20350093  (acesso em fevereiro de 2023)

[3] Greyson, B., Fountain, N. B., Derr, L. L., & Broshek, D. K. (2014). Out-of-body experiences associated with seizures. Frontiers in human neuroscience, 8, 65. Ver: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnhum.2014.00065/full (acesso em fevereiro de 2023)

[4] Facure N (2009). Muito além dos neurônios. Ed: São Paulo, FE Editora Jornalística, 5a edição.

[5] Devinsky, O., Feldmann, E., Burrowes, K., & Bromfield, E. (1989). Autoscopic phenomena with seizures. Archives of Neurology, 46(10), 1080-1088. https://jamanetwork.com/journals/jamaneurology/article-abstract/589440 

[6] Greyson, B., Broshek, D. K., Derr, L. L., & Fountain, N. B. (2015). Mystical experiences associated with seizures. Religion, Brain & Behavior, 5(3), 182-196. https://med.virginia.edu/perceptual-studies/wp-content/uploads/sites/360/2018/06/Mystical-experiences-associated-with-seizures.pdf

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