Estudo de Dante segurando a mão de Amor. Dante Gabriel Rossetti (1828–1882) |
O assunto é complexo pois relaciona de maneira intricada questões de natureza física, cultural (ou social) e espiritual ainda pouco explorados no movimento espírita. Sobram discussões acaloradas sobre a origem de certos comportamentos sexuais, com desdobramentos e orientações relevantes de interesse público.
Em uma série de posts a partir deste, apresentaremos algumas reflexões, sem a pretensão a qualquer status de verdade absoluta.
Sexo nos Espíritos
Não é possível utilizar exclusivamente as obras de Kardec para se analisar de forma ampla, do ponto de vista espírita, as questões de sexualidade. Isso porque, no Século XIX, tais assuntos não foram tratados e nem poderiam ser tratados com a mesma liberdade que o Século XXI envolveu as questões ligadas ao sexo. Além disso, importantes conceitos biológicos ainda não eram conhecidos na época da Codificação. Considerando questões de fundamento, porém, é suficiente iniciar nossa discussão, p. ex., com a Questão 200 de O Livro dos Espíritos (LE) [1]:
200. Têm sexos os Espíritos?“Não como o entendeis, pois que os sexos dependem do organismo. Há entre eles amor e simpatia, mas baseados na semelhança dos sentimentos.”
Por óbvio, tendo em vista a "Escala Espírita" (LE, Cap. I, Parágrafo 100), não é uma regra geral que, para todos os Espíritos, "amor e simpatia" existam de forma generalizada. Há que se levar em conta o progresso feito pela alma. Portanto, a resposta dada é uma consideração de caráter geral sujeita a detalhamentos futuros, sem entretanto apresentar uma negativa absoluta (1) considerando o início da resposta: "Não como o entendeis" (Non point comme vous l'entendez...).
A grande novidade trazida pelos Espíritos na Codificação foi a informação de que "são os mesmos os Espíritos que animam os homens e as mulheres" (LE Questão 201, ce sont les mêmes Esprits qui animent les hommes et les femmes [1]). Ou seja, uma vez que o princípio inteligente é independente da matéria, não é um dos seus atributos a diferenciação sexual. Essa diferença nasceu na matéria com veremos. Tal princípio tem importantes consequências. Em uma versão mais justa da sociedade, homens e mulheres gozariam de idênticos direitos. Portanto, não foi por aderência a causas de igualdade de gênero, incipientes no Século XIX, que o movimento espírita nascente advogou essa igualdade, mas porque ela é um corolário da natureza assexual do espírito.
Com relação à igualdade, algumas pessoas podem se inconformar com a resposta à Questão 822(a) do LE "dos direitos, sim; das funções, não" (des droits, oui; des fonctions, non). Entretanto, é preciso se lembrar que, por volta de 1850, a economia no mundo não se baseava em formas de produção amplamente mecanizada (não existia sequer energia elétrica!) e os trabalhos "mais rudes" (LE, Questão 819) se destinavam naturalmente aos mais fortes fisicamente. Hoje, com máquinas e computadores a desempenharem funções mais pesadas e complexas, não há mais o que se falar sobre diferenças de funções entre homens e mulheres. O fundamento disso está na igual "inteligência e capacidade de progredir" (LE, Questão 817) que ambos possuem em igual teor.
Sexualidade nos Espíritos
É um fato derivado de milhares de descrições de aparições de Espíritos (por intermédio de médiuns especiais) que eles em sua maioria se manifestam seja como homens ou como mulheres. A aparência externa dos Espíritos é uma expressão de sua vontade, o que se aplica, inclusive, ao tipo de indumentária com que se apresentam.
Assim, do fato de não se atribuir aos Espíritos o mesmo valor biológico para o sexo, isso não significa que eles não tenham sexualidade. Por esse termo podemos entender um conjunto de pensamentos, sentimentos, atrações, repulsões, aparências e maneirismos relacionados ao sexo que são manifestações do Espírito estando ele ou não sob influência da matéria.
Entretanto, enquanto encarnado, ele sofre forte influência da matéria, que faz com que sua sexualidade oscile no tempo. Separado do corpo (como desencarnados) consideramos que os Espiritos têm uma "sexualidade residual" que se torna um traço mais ou menos marcante de sua personalidade integral conforme seu grau de adiantamento.
Essa influência forte da matéria sobre o espírito em matéria de sexo existe porque ele foi "inventado" ao longo do processo de evolução como um mecanismo eficiente de perpetuação das espécies. Tal informação precisa ser desenvolvida e incorporada a uma descrição espírita mais moderna do assunto. Embora sem referência ao instinto sexual, essa influência da matéria é prevista no LE. Para ver isso, consideremos a resposta da Questão 605(a) [1] (grifos nossos):
De modo que, além de suas próprias imperfeições de que cumpre ao Espírito despojar-se, tem ainda o homem que lutar contra a influência da matéria?
Sim; quanto mais inferior é o Espírito, tanto mais apertados são os laços que o ligam à matéria. Não o vedes? O homem não tem duas almas; a alma é sempre única em cada ser. São distintas uma da outra a alma do animal e a do homem, a tal ponto que a de um não pode animar o corpo criado para o outro. Mas, conquanto não tenha alma animal, que, por suas paixões, o nivele aos animais, o homem tem o corpo que, às vezes, o rebaixa até ao nível deles, visto que o corpo é um ser dotado de vitalidade e de instintos, porém ininteligentes estes e restritos ao cuidado que a sua conservação requer.
A biologia moderna acrescentou uma grande quantidade de detalhes sobre essa influência que não mais podemos desprezar.
Origem do sexo
É preciso se lembrar que, por meio da revelação científica da evolução natural e da genética (que não eram conhecidas na época em que o LE foi publicado), sabemos hoje que os organismos precisam aumentar sua variabilidade genética para sobreviverem (2). Esse material genético é representado pela molécula de DNA (ácido desoxiribonucleico) que traz em si informação sobre como "montar" um organismo vivo por meio de processos complexos de síntese de proteínas e outras substâncias.
A inserção de material genético em outra célula ocorre de diversas formas e tem como objetivo aumentar essa biodiversidade. Dessa forma, organismos de uma determinada espécie conseguem sobreviver frente a mudanças do ambiente (basta ver como operam os vírus). Uma das maneiras de fazer isso é por meio do sexo que nada mais é do que a inserção de material genético de uma célula em outra de uma mesma espécie [2] observando determinadas regras que permitem o desenvolvimento de uma progênie (descendência) viável, ou seja, que seja capaz de se reproduzir.
Enquanto permaneciam no seio tépido e mais ou menos estável de muitos ambientes primitivos, células procariontes (que não têm núcleo distinto) se reproduziam de forma assexuada, por meio da divisão celular. Crê-se que, por causa de mudanças no ambiente, tais células primitivas "descobriram por acaso" o sexo há vários bilhões de anos. Essa descoberta é um dos mistérios na biologia e um dos vários "elos perdidos" na árvore de evolução dos seres primitivos.
O ancestral comum de toda a vida moderna, tronco principal do diagrama, é uma entidade hipotética deduzida do fato de que todas as formas de vida moderna compartilham muitas características complexas - por exemplo, genomas baseados em DNA, código genético em tripleto, síntese de proteínas baseadas em ribosomos, caminhos metabólicos - e, portanto, devem ter evoluído de um ancestral que também possuía tais características complexas.
Dobadas longas faixas de tempo, em que bactérias e células são experimentadas em reprodução agâmica, eis que determinado grupo apresenta no imo da própria constituição qualidades magnéticas positivas e negativas que lhes são desfechadas pelos Orientadores Espirituais encarregados do progresso devido ao Planeta.
Pressente-se a evolução animal em vésperas de nascer...
Eras imensas transcorreram; e esse princípio inteligente, destinado a crescer para a glória da vida, em dois planos distintos de experiência, quando se mostra ativado em constituição mais complexa, recebe desses mesmos Arquitetos da Sabedoria Divina os dons da reprodução mais complexa...
- A imagem científica moderna da evolução a partir de elos primitivos comuns,
- O aparecimento e ramificação das espécies a partir da seleção de características vantajosas,
- O surgimento do sexo no início do desenvolvimento de seres unicelulares após "eras imensas",
- A origem comum dos homens e dos seres vivos que são "irmãos de jornada evolutiva" (3).
Continua no próximo post.
Referências
Referências como disponíveis em abril-maio de 2023.
[1] Kardec (1860). A. O Livro dos Espíritos. 2a Edição segundo a versão original em Francês disponível aqui: https://www.cesakparis.fr/wp-content/uploads/2010/02/allankardec-esprits.pdf
[2] Goodenough, U. (2007). The emergence of sex. Zygon, 42(4), 857-872. Ver link: https://openscholarship.wustl.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1098&context=bio_facpubs
[3] A. Luiz (1958). Evolução em dois mundos. 4a Edição. FEB (Federação Espírita Brasileira).
[4] Otto, S. (2008). Sexual Reproduction and the Evolution of Sex. Nature Education 1(1):182. Ver link: https://www.zoology.ubc.ca/~otto/Reprints/Otto2008.pdf
Comentários
(1) A pergunta da Questão 200 do LE é um dos mais interessantes e relevantes questionamentos do LE. Com isso Kardec elimina qualquer possibilidade futura de que o "sexo dos Espíritos" se tornasse tão inútil como a do "sexo dos anjos" cuja expressão é sinônimo de debate irrelevante.
(2) De acordo com os princípios da evolução natural, as espécies precisam gerar organismos com algum tipo de diferenciação para que possam se adaptar a mudanças e variações sempre presentes na Natureza. O princípio da "sobrevivência dos mais aptos" é um dos mais relevantes fundamentos da evolução das formas na matéria.
(3) Essa informação é de grande relevâncias para distinguir a maneira como o Espiritismo considera as questões sexuais de outras doutrinas religiosas. Sendo a Humanidade um subproduto da evolução natural dos seres (a inteligência do homem tem origem no desenvolvimento da inteligência dos animais), não é o homem um "ser a parte" ou "especialmente criado por Deus" para o qual os animais são apenas "outras criaturas" para servir ao homem. É nos animais que vamos encontar muitas explicações para o comportamento humano ainda ligado ao instinto onde o sexo é um dos principais indutores.
(4) Com comentário final ressaltamos que, segundo o LE, a origem dos Espíritos é considerada um mistério (ver resposta à Questão 81). Entretanto, na época de lançamento do LE, não havia uma ideia clara sobre o aparecimento dos seres vivos (ver Questão 44 com uma descrição sobre a origem dos seres vivos na Terra que nos lembra das teorias de geração espontânea), estando muitas respostas dadas dependentes do vitalismo característico da época de Kardec. Porém, índícios de elementos comuns entre os homens e os animais pode ser lidos, por exemplo, na resposta à Questão 606 e em outras partes do LE. O assunto é interessante para estudos mais amplos sobre ideias passadas pelos Espíritos a favor da evolução do elo de ligação da Humanidade com os seres vivos. Tais estudos entretanto desviam do assunto principal deste texto.
Isso me fez lembrar daquela pergunta que Kardec fez aos espíritos, de onde estavam os elementos necessários à vida na Terra. Eles então responderam que estavam no espaço, no limo da terra e meio dos espíritos. Esses três ingredientes são a base da vida no planeta.
ResponderExcluirOs elementos orgânicos se aglutinam espontaneamente, por forças naturais de atração(magnetismo?),quando há o ambiente necessário para que isso aconteça, como o clima e o relevo. Adicione a isso a influência direta dos engenheiros espirituais que tiveram ação direta nos fenômenos de criação e evolução da vida. O Cristo e seus prepostos espirituais estavam agindo desde muito, muito tempo.
Não é a toa aquela passagem do Evangelho, quando ele diz:
"Antes de Abraão, o pai da fé andar por esta terra; Eu Sou!
Exatamente Wanderson. É interessante observar que o mundo espírita preexiste ao mundo material. Sendo assim, não há como não se considerar a influência dos espíritos nos chamados "processos de criação", o que preenche muitas lacunas inexplicadas ainda com base em teorias que apenas usam as forças cegas da matéria.
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