22 de fevereiro de 2023

Experiências fora do corpo na Epilepsia


A epilepsia é uma doença que afeta o sistema nervoso e que se caracteriza pela existência de crises recorrentes [1]. Durante essas convulsões epiléticas pode haver perda da consciência concomitante a episódios de movimentos descontrolado do corpo. Em geral, as crises têm curta duração mas, se excederem 5 minutos, necessitam de cuidado médico especial. Crises epiléticas podem resultar em acidentes severos, basta imaginar sua ocorrência no trânsito, por exemplo. Não obstante a existência de muitas drogas avançadas, 30% dos pacientes não tem controle sobre as crises.

As causas para a epilepsia são inúmeras [2]: influência genética, traumas, anormalidades no cérebro, infecções, desordens no desenvolvimento etc. Sua ocorrência está ligada a mudanças na estrutura neural do cérebro. Também existem complicadores tais como a idade, o histórico familiar, a incidência de acidentes vasculares, infecções e demência.

O que acontece à consciência durante a crise epilética é um assunto de interesse científico recente. Há crises em que não ocorre perda da consciência e outras em que ela é afetada. Durante as crises [2], pacientes podem experimentar a sensação de dejà-vu - quando têm a nítida impressão de já terem vivenciado a situação. Ou o seu oposto ocorre: um "jamais vu", em que perdem a capacidade de reconhecer o ambiente em que estão. 

Por causa da natureza espiritual do ser humano, existem, entretanto, outras experiências "anômalas" registradas durante as crises epiléticas. Exemplos interessantes são descritos por Greyson et al (2014) [3], artigo que encontramos depois das indicações em Muito além dos Neurônios [4] do dr. Nubor O. Facure. Ao se encontrar o primeiro artigo, é possível achar outros como [5] e [6].

Experiências fora do corpo são conhecidas na literatura médica como um "fenômeno autoscópico". Nele o paciente vê a si mesmo como se estivesse fora de seu corpo. No artigo [3], os autores encontraram que, em uma amostra de 100 pacientes, 7 descreveram experiências que podem ser consideradas autoscopias em crises epiléticas. Não há correlação sobre a incidência dessas experiências com outros fatores como demografia, histórico médico, idade, frequência e duração das crises. Para cada paciente que teve a experiência, a taxa de incidência é baixa, da ordem de uma ou duas ao longo de vários anos. Dessa forma, não se pode associar sua ocorrência a outros fatores tais como medicamentos usados ou mudanças nas condições de saúde.

Recorremos a [3] para conhecer algumas das experiências vividas em crises epiléticas. Depois de descrever detalhes do quadro clínico dos casos reportados, os autores passam a sumarizar suas autoscopias:

1) Uma paciente de 28 anos que apresentou o maior número de experiências e percepções verificáveis:
Ela relatou deixar seu corpo durante cada convulsão parcial complexa: enquanto seu corpo ficava imóvel, ela sentia que estava flutuando acima dele, e que podia ver seu corpo e os arredores desde cima. No entanto, ela relatou uma dupla consciência em que, embora parecendo pairar acima de seu corpo, também permanecia consciente das sensações corporais. Relatou que, se alguém tocasse seu corpo, tinha a sensação de se "encaixar" de volta nele, o que resultava no fim da convulsão. A experiência de estar fora de seu corpo foi desagradável e alarmante, já que temia que algo pudesse acontecer ao seu corpo por estar fora de seu controle. Acreditava que suas percepções visuais extracorpóreas eram precisas e que se encontrava fisicamente separada de seu corpo. Mas não atribuiu qualquer significado espiritual a esse evento, considerando-o  "apenas algo que acontece" quando seu cérebro falha.
2) Uma paciente de 30 anos com cerca de 300 crises por mês desde os 15 anos:
Ela relatou 2–3 experiências extracorpóreas associadas a convulsões, que duraram entre 10 e 20 segundos. Afirmou que se sentiu levantar, olhando para baixo e vendo seu corpo inerte, e que podia ver e ouvir outras pessoas. Declarou se sentir leve durante a experiência que foi para ela assustadora. 
Embora a impressão realística, a experiência passada parece a ela rebuscada e vaga, confundindo-se com sua imaginação.
3) Um paciente de 43 anos que apresentou quadro de crises depois de um trauma cerebral aos 25 anos:
Ele relatou uma (única) experiência extracorpórea associada a uma convulsão: afirmou que estava acordado durante a convulsão e se viu passando por ela, inclinado sobre um dos joelhos. Percebeu que seu irmão entrou na sala e tentou dizer algo ao irmão para impedir (sua crise). Alegou ter tido dupla consciência, pois sentiu as sensações corporais de passar pela convulsão, mas também se observou passando por ela.
Esse paciente também declarou que a memória da experiência se apresenta a ele agora como um sonho.
A sensação de bicorporiedade é evidente por esses relatos, uma vez que as percepções entram por duas vias: a do corpo físico e a do corpo espiritual desdobrado durante os breves momentos de crise epilética.  Os autores em [3] consideram que, ainda que não seja "clinicamente" possível distinguir tais experiências de meras ilusões, é possível corroborar os fatos descritos pelos pacientes na experiência extracorpórea com o que de fato ocorreu durante as crises. 

Uma importante conclusão é feita pelos autores em [3] sobre o que parecem sugerir os dados de tais experiências produzidos por pacientes de crises epiléticas (grifo nosso):
No entanto, pode ser prematuro concluir dessas correlações sugestivas que as experiências extracorpóreas são um epifenômeno de condições neurofisiológicas particulares. Conforme observado acima, as distorções da imagem corporal provocadas pela estimulação elétrica ou magnética do cérebro diferem relevantemente e fenomenologicamente das experiências fora do corpo espontâneas. Os dados deste estudo sugerem que experiências extracorpóreas associadas a convulsões não estão ligadas a nenhuma região do cérebro. Além disso, as descobertas de que experiências fora do corpo foram relatadas com menos frequência em pacientes com epilepsia do que na população em geral, e que pacientes com epilepsia as descrevem em apenas uma pequena minoria de suas convulsões, alertam que a inferência de um nexo causal entre a atividade convulsiva e as experiências fora do corpo é problemática.
Colocando-se de outra forma:
  1. As experiências fora do corpo em crises epiléticas não são meros "epifenômenos" gerados por condições fisiológicas particulares;
  2. Não se pode associar os relatos dessas anomalias percepticas a regiões específicas do cérebro. No caso de pacientes epiléticos, as lesões ocorrem em diversas partes. Isso enfraquece a tese de que os desdobramentos seriam "gerados em regiões específicas do cérebro" e, de novo, meros epifenômenos;
  3. Não se pode ter pressa em afirmar nexo causal entre as crises e as experiências fora do corpo porque elas não ocorrem sempre, não há controle nem repetição do evento a cada crise, o que difere de outras alterações na consciência muito mais comuns durante as crises.

Mais detalhes sobre esse e outros estudos interessantes, o leitor poderá obter ao ler os trabalhos sugeridos [3-6].

Referências

[1] Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Epilepsia 

[2] Mayo Clinic (2023). Explaining epilepsy. https://www.mayoclinic.org/diseases-conditions/epilepsy/symptoms-causes/syc-20350093  (acesso em fevereiro de 2023)

[3] Greyson, B., Fountain, N. B., Derr, L. L., & Broshek, D. K. (2014). Out-of-body experiences associated with seizures. Frontiers in human neuroscience, 8, 65. Ver: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnhum.2014.00065/full (acesso em fevereiro de 2023)

[4] Facure N (2009). Muito além dos neurônios. Ed: São Paulo, FE Editora Jornalística, 5a edição.

[5] Devinsky, O., Feldmann, E., Burrowes, K., & Bromfield, E. (1989). Autoscopic phenomena with seizures. Archives of Neurology, 46(10), 1080-1088. https://jamanetwork.com/journals/jamaneurology/article-abstract/589440 

[6] Greyson, B., Broshek, D. K., Derr, L. L., & Fountain, N. B. (2015). Mystical experiences associated with seizures. Religion, Brain & Behavior, 5(3), 182-196. https://med.virginia.edu/perceptual-studies/wp-content/uploads/sites/360/2018/06/Mystical-experiences-associated-with-seizures.pdf

4 de janeiro de 2023

Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - VIII

Gorila e borboleta. Fonte: Wikipedia (Ana L. Araújo).

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - VII". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec. Última parte.

O homem corpóreo

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Do ponto de vista corpóreo e puramente anatômico, o homem pertence à classe dos mamíferos, dos quais unicamente difere por alguns matizes na forma exterior. Quanto ao mais, a mesma composição de todos os animais, os mesmos órgãos, as mesmas funções e os mesmos modos de nutrição, de respiração, de secreção, de reprodução.

Com essa descrição, Kardec coloca a Humanidade em seu devido lugar de natureza. Finalmente a Humanidade havia sido destronada como objetivo único da criação pelas mãos da ciência. Não há mais o que falar sobre qualquer privilégio natural; fisicamente o Homem não se distingue de um animal, pelo menos do ponto de vista "corpóreo". Além disso:

É tão grande a analogia que suas funções orgânicas são estudadas em certos animais, quando as experiências não podem ser feitas nele próprio.

É o caso das inúmeras pesquisas em farmacologia que resultaram em drogas importantes para o tratamento de humanos, drogas que foram experimentadas nos animais durante seu desenvolvimento. 

A questão agora é: diante desse quadro de semelhanças físicas, como é possível "resgatar" o destino espiritual do homem? A resposta passa pelo reconhecimento de que os animais têm seu princípio espiritual, o que depende de uma lei de evolução estendida também a esse princípio.

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A referência da Wikipedia apresenta a classificação (árvore) científica moderna dos humanos: 

  1. Reino: Animalia, 
  2. Filo: Cordata, 
  3. Classe: Mamalia, 
  4. Ordem: Primata, 
  5. Subordem: Halorfini, 
  6. Infraordem: Simiforme, 
  7. Família: Hominidae, 
  8. Subfamília: Homininae, 
  9. Tribo: Hominini, 
  10. Genus (Gênero): Homo, 
  11. Espécie: Sapiens.

Essa classificação apresenta o elo comum dos humanos com os símios como pertencente à Ordem dos primatas e com ramificações até a Infraordem "simiforme" ou antropóides. A Família dos hominídeos inclui  4 Gêneros: Pongo, Gorila, Pan e Homo. Para ficar mais clara essa classificação, a Fig. 1 apresenta uma representação dos ramos a partir de Hominidae.

Fig. 1 Posição do Gênero Homo a partir da Família Hominidae. Fonte Wikipedia.

Hoje acredita-se que a espécie Homo Sapiens surgiu entre 300 mil e 200 mil anos atrás e não foi a única. Habilis, Erectus,  Ergaster, Naledi, Neanderthalensis e outras todas desaparecidas precederam os humanos modernos. Entre esses não mais existem quaisquer espécies. Não obstante a variedade de tons de pele e de outras características, tais diferenças não justificam a classificação em mais de uma espécie e nem mesmo a ideia de raça. Todos os quase 8 bilhões de indivíduos no mundo pertencem rigorosamente ao mesmo tipo humano.

Sobre os símios, Kardec comenta:
Como o homem, esses macacos caminham eretos, usam cajados, constroem choças e levam à boca, com a mão, os alimentos: sinais característicos.
Esses são sinais de inteligência, uma evidência do elemento espiritual a eles associado.

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Kardec reconhece a existência de um princípio de evolução nas formas como um aperfeiçoamento entre as espécies:
Acompanhando-se passo a passo a série dos seres, dir-se-ia que cada espécie é um aperfeiçoamento, uma transformação da espécie imediatamente inferior.
Com isso ele ecoa noções de evolução pré-Darwinistas [1] de sua época que já reconheciam uma mudança gradual entre as espécies de animais, ainda que não se soubesse exatamente o mecanismo responsável por isso. Essas noções tiveram início com a constatação de que as espécies não eram fixas. Pioneiros dessas ideias foram Georg L. Leclerc (Comte de Buffon 1707-1788); Erasmus Darwin (1731-1802), avô de Charles Darwin; Jean-Baptiste C. de Lamarck (1744-1829); Charles Lyell (1797-1875) e George Cuvier (1769-1832). 

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Ainda que isso lhe fira o orgulho, tem o homem que se resignar a não ver no seu corpo material mais do que o último anel da animalidade na Terra. Aí está o inexorável argumento dos fatos, contra o qual seria inútil protestar.
Muitos  têm o orgulho ferido, pois alguns cristão ainda hoje se recusam a aceitar a evolução das espécies como o mecanismo que resultou na formação da espécie humana. Acreditam que a Humanidade tem um lugar especial, se não exclusivo, na Criação. 

É o excessivo valor dado ao corpo que leva a esse preconceito. Ao contrário, o corpo é a plataforma física a partir da qual se eleva sem fim o espírito imortal. 

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O Espiritismo, entretanto, reconhece as descobertas da ciência sobre a evolução corpórea e as incorpora em seus ensinos. Estende, porém, essa compreensão ao princípio espiritual que colhe da evolução das formas os elementos para seu aprimoramento. Assim, o Espiritismo descortina "um mundo novo" que permite a nós compreender também a existência dos animais como companheiros de jornada evolutiva, o derradeiro golpe à vaidade humana.
Pois bem! o Espiritismo, a loucura do século XIX, segundo os que se obstinam em permanecer na margem terrena, nos patenteia todo um mundo, mundo bem mais importante para o homem, do que a América, porquanto nem todos os homens vão à América, ao passo que todos, sem exceção de nenhum, vão ao dos espíritos, fazendo incessantes travessias de um para o outro.
Esclarecida de alguma forma o aparecimento do elemento material, permance a questão da origem do princípio espiritual.  Ao colher informes e vivências em sua associação com a matéria, segue por tempo desconhecido a evoluir até o destino final ainda inacessível ao nosso grau de entendimento presente. 

Referências

[1] Pre-Darwinian Theories: https://www2.palomar.edu/anthro/evolve/evolve_1.htm













1 de dezembro de 2022

Bens, direitos, deveres e obrigações da alma


Nada do que se expressa sobre Jesus nos Evangelhos se refere a coisas terrenas​, ​mas a um conjunto de “negócios espirituais” da alma, seus direitos e obrigações. Emmanuel referiu-se a isso quando comentou em “Vê como vives” [1]:
Com a precisa madureza do raciocínio, compreenderá o homem que toda a sua existência é um grande conjunto de negócios espirituais e que a vida, em si, não passa de ato religioso permanente, com vistas aos deveres divinos que nos prendem a Deus.
Guardados os inúmeros problemas de tradução, textos apócrifos e interpolações mal-intencionadas feitas ao longo do tempo ​que modificaram os Evangelhos originais, é a única interpretação possível para muitos dos ensinos de Jesus no Novo Testamento.

Entretanto, nunca foi intenção de Jesus “reformar” o sistema legal de seu tempo, que tinha regulamento próprio, pois tudo o que Jesus ensinou dizia respeito aos interesses da alma. Assim, por trazer uma nova revelação, seus ensinamentos frequentemente usavam recursos alegóricos. Esses recursos se mostraram eficientes, pois os ensinos morais atravessaram quase que intactos as inumeras versões do Novo Testamento. Neste post, tecemos algumas observações sobre parte da revelação da Justiça Divina trazido por Jesus conforme se pode ler em Mateus 5.

Interpretação espírita de alguns ensinamentos em Mateus 5.

Atenção: para unificar as referências aos textos do Evangelho, em complementação aos versículos extraídos da versão "Almeida revisada", citamos alguns termos equivalentes conforme versão em latim da Vulgata: http://www.drbo.org/lvb/chapter/47005.htm
Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. (Mateus 5:19)
A vida futura da alma é o “reino dos céus” não como lugar, mas como conjunto de bens e direitos a que o Espírito tem acesso após muitos estágios de sua vida encarnada.

Os bens ou direitos ​resultam do cumprimento de obrigações da alma que também são de natureza espiritual. Assim, o “será chamado o menor no reino dos céus” (minimus vocabitur in regno caelorum) ​é um estado possível da alma na vida futura. É “situação processual” perante a Lei Maior de onde se derivam os bens a que tem direito, bem como seus deveres e obrigações.

Com o tempo mudam os interesses e as ações da alma. Seus direitos e deveres precisam refletir suas decisões, conforme ela se aproximar ou se afastar da Lei.  Assim, os que “violam um destes mandamentos, por menor que seja” (qui ergo solverit unum de mandatis istis minimis) e “assim ensinam aos homens” (et docuerit sic homines), ou seja, dão testemunho do erro, são rebaixados por Jesus.   Por outro lado, ele eleva de posição aqueles que os cumprem e que também assim “ensinam aos homens”, ou seja, que os defendem como verdade. E “ensinar aos homens” não é mais relevante que realizar a ação: para Jesus, por óbvio, não basta simplesmente dizer o que deve ser feito, mas dar o exemplo pelo cumprimento correto da lei (qui autem fecerit et docuerit).

As Bem-aventuranças compõem a parte principal de seus mandamentos anunciados por ele no Sermão do Monte. Se a posição pode ser abaixada ou elevada é porque não há posições absolutamente eternas e imutáveis nos estágios da alma. Disso resulta que não há penas eternas igualmente.
Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus. (Mateus 5:20)
A justiça dos “escritas e fariseus” (scribarum et pharisaeorum) representa o sistema jurídico de todos os tempos, tomado por Jesus como comparação para a Justiça Divina. Mas, essa justiça se baseava na lei de Moises que supostamente provinha do próprio Deus. Ela é, porém, imperfeita e incompleta. E mais: não corresponde à lei Divina anunciada em parte como revelação por Jesus. Portanto, adverte que a nova justiça entre seus reais seguidores deve “exceder” àquela dos escribas (quia nisi abundaverit justitia vestra plus quam scribarum), ainda que essa última fosse considerada de origem divina. 
Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo. (Mateus 5:21)
O cânone existente proibia o assassinato (non occides). Ocorrendo esse e verificado os fatos, o indivíduo culpado se tornava “réu no juízo” (reus erit judicio) e deveria ser julgado pela justiça. Mas qual justiça? Exatamente a dos “escritas e fariseus”, ou o sistema jurídico que define tipos de punição conforme o crime realizado.
Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno. (Mateus 5:22)
Assim interpôs três possíveis “penas” a três crimes que, na verdade, resume-se a um só a partir da postura mental do Espírito. O rol das “transgressões imputáveis” é expandido na lei Divina, ainda que a morte não lhes suceda como consequência.  Posteriormente, essas transgressões seriam estendidas por Jesus ao incluir o pensamento no mal

As violações enumeradas e suas penas crescem a partir de um impulso violento de oposição: a cólera “contra seu irmão” (quia omnis qui irascitur fratri suo), a agressão verbal simbolizada pelo “Raca” e, depois, “Louco” (fatue).  E, para cada uma delas, os julgamentos: 
réu no juízo (reus erit judicio), 
réu no sinédrio (reus erit concilio) e 
réu no fogo do inferno (reus erit gehennae ignis). 
Essa última comporta a tradução opcional “réu no fogo do Geena”, entendido como uma localidade na Jerusalém antiga que havia se tornado um depósito de lixo. É uma referência ao lugar “mais ínfimo” de uma cidade, não necessariamente ao “fogo eterno”, mesmo porque Jesus posteriormente esclarece como sair de lá (ver mais adiante). Quem preferir a interpretação da eternidade das penas está preparado para o “fogo eterno” ao chamar seu irmão de “Louco”? O Geena correspondia ao Vale de Hinom (Geh Ben-Hinom) na Jerusalém dos tempos de Jesus [2]. Esse era o local onde, em uma época mais remota, crianças eram sacrificadas no fogo em adoração ao deus Moloch [2][3]. 
Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti. (Mateus 5:23)
Reconciliar-se com o próximo é a primeira obrigação antes de se buscar adorar a Deus. Importa se lembrar se “teu irmão tem alguma coisa contra ti” (quia frater tuus habet aliquid adversum te), do contrário de nada valem as oferendas. É estado da mente que pede o exame da consciência: há alguém que tenha algo contra mim? E o "opositor" não é menos que um irmão (frater) para Jesus, pois não pode haver oposição senão em razão de um desentendimento transitório. Portanto, como todos são irmãos em essência, todos deverão agir como irmãos. Mas quando? Depois da reparação.
Deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta. (Mateus 5:24)
O “deixa ali diante do altar a tua oferta” (relinque ibi munus tuum ante altare) é mera ação ritual ou mecânica se apartada do cuidado com os próprios atos e suas consequências para quem quer que seja.
Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão. (Mateus 5:25)
Trecho de relevância ímpar, pois confere a alma o poder de se "livrar do julgamento" ao se reconciliar "depressa" com seu adversário. Não só implicitamente não condena o homem a qualquer eternidade penal, mas o exime de juízo verificado sua capacidade de congraçamento e concórdia com seu irmão transformado em inimigo. A alegoria é clara na imagem do "adversário que te entrega ao juiz, e o juiz te entrega ao oficial" (ne forte tradat te adversarius judici, et judex tradat te ministro).
Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil. (Mateus 5:26)
Porém, uma vez "condenado", tão pouco Jesus afirma ser impossível sair de lá, mas que a saída se condiciona ao pagamento do “último ceitil” (novissimum quadrantem), desde que, como visto, não se reconcilie antes com o adversário.

Portanto, não há penas eternas, mas multa calculável e exigível como pagamento pelos delitos listados, até o último “ceitil”, ou seja, “até o último centavo”. É obrigação executada de forma parcelada, em caráter compulsório embora possa ser abrandada conforme o grau de reconciliação. 
Eu, porém, vos digo, que qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, em seu coração, já cometeu adultério com ela. (Mateus 5:28)
O regramento da época instituía uma pena para o adultério (non moechaberis). Jesus porém anuncia que o mero pensamento de cobiça já é adultério, um princípio que pode ser estendido para todo o sentimento no mal que se abriga no coração (in corde suo). Porém, qualquer código de justiça moderno considera inimputáteis quem cometer delitos "apenas pelo pensamento". Uma vez mais os reais seguidores de Jesus devem "exceder" a justiça comum da sociedade em que vivem.
Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. (Mateus 5:29) 
E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. (Mateus 5:30)
Note-se bem: essa não é uma pena imposta sobre a alma. Do contrário, é o corpo que sofre quando Jesus afirma que "todo o teu corpo (seja) lançado no inferno" (totus corpus tuum mittatur in gehennam). É o Vale de Hinom novamente figurado como local de julgamento e pena, tal como nos delitos de Mateus 5:22. Se o corpo sofre é porque a pena é aplicada durante a vida, mas quantos crimes ficaram impunes pela finitude da vida humana se considerada como uma só? 

Sobre essas passagens, comenta Kardec [4]:
Figura enérgica esta, que seria absurda se tomada ao pé da letra, e que apenas significa que cada um deve destruir em si toda causa de escândalo, isto é, de mal; arrancar do coração todo sentimento impuro e toda tendência viciosa. Quer dizer também que, para o homem, mais vale ter cortada uma das mãos, antes que servir essa mão de instrumento para uma ação má; ficar privado da vista, antes que lhe servirem os olhos para conceber maus pensamentos. Jesus nada disse de absurdo, para quem quer que apreenda o sentido alegórico e profundo de suas palavras. Muitas coisas, entretanto, não podem ser compreendidas sem a chave que para as decifrar o Espiritismo faculta. (grifos nossos)
O vale de Hinom da Jerusalém moderna.
Foto: wikipedia.
Os judeus do tempo de Jesus tinham como lei a necessidade de  conceder divórcio (libellum repudii) à esposa abandonada, numa época em que a mulher era considerada propriedade do marido. Em oposição a isso, Jesus ensina:
Eu, porém, vos digo que qualquer que repudiar sua mulher, a não ser por causa de prostituição, faz que ela cometa adultério. (Mateus 5:32)
pelo que se aprende que o delito se inicia no repúdio (rejeição, desprezo, desamparo), muito mais sutil, e não pelo abandono. Como Jesus sabia que os homens não se casavam em regime de amor incondicional, assinalou uma exceção "a não ser por causa de prostituição" (excepta fornicationis causa). 

Até que a sociedade aprendesse o regime de reciprocidade que existe no casamento como produto de direitos e obrigações iguais entre os cônjuges, 2000 anos se passariam. Porém, a recomendação de Jesus continua intacta: o repúdio ao parceiro, sistemático e talvez diário, é produto de um estado mental que se inicia muito antes da separação.

O regramento judaico proibia o "falso testemunho" (non perjurabis), e exigia o fiel cumprimento do que fosse prometido "diante do Senhor" (autem Domino).
Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos ao Senhor. (Mateus 5:33)
Jesus elimina a necessidade desse juramento e simplifica consideravelmente a atitude  do indivíduo diante dos outros:
Seja, porém, o vosso falar: sim, sim; não, não; porque o que passa disto provém do mal. (Mateus 5:37)
Além de condenação da mentira, é uma lição difícil aos que se consideram em "íntimo contato com Deus" e que o tomam como fiador nas ações ordinárias da vida.

O ápex da Lei Divida sintetizado por um novo mandamento.

E assim se chega ao topo dos ensinamentos de Jesus em Mateus 5:44:
Eu, porém, vos digo: amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem, (Mateus 5:44)
que é lição em flagrante oposição ao que se aprende seja desde o berço ou por instinto: "amar nosso próximo e odiar nossos inimigos" (diliges proximum tuum, et odio habebis inimicum tuum). É novísima e suprema lei áurea revelada aos homens e justificada por Jesus como esforço necessário para se "aproximar de Deus":
Sede vós, pois, perfeitos,como é perfeito o vosso Pai, que está nos céus. (Mateus 5:48)
Mas, no "sede vós, pois, perfeitos" (estote ergo vos perfecti) ninguém atinge o estado final de uma hora para outra. Por trás dessa imagem está o imenso caminho que a alma percorre até alcançar seu destino. Kardec comenta seu verdadeiro significado na medida do grau de caridade contido nas ações da alma [5]:
Não podendo o amor do próximo, levado até ao amor dos inimigos, aliar-se a nenhum defeito contrário à caridade, aquele amor é sempre, portanto, indício de maior ou menor superioridade moral, donde decorre que o grau da perfeição está na razão direta da sua extensão. 
Cumprir a lei de caridade  é suprema obrigação que a alma não se livra em sua vida maior, pois essa lei condensa em si todos os mandamentos. É um princípio universal que regula a vida do Espírito.

Em conclusão

Ao se (re)encarnar, participa-se de uma nova vida na Terra, sem que a vida real (a "vida eterna" do Espírito) deixe de exercer seus efeitos sobre a alma. 

Assim, dois regramentos sujeitam as ações: o dos homens (de natureza terrena) e a do "céu" (de natureza Divina).  No primeiro caso, extinta a vida do corpo, extintos são os bens e os direitos, deveres e obrigações. No segundo, bens, direitos, deveres e obrigações subsistem, mas de uma natureza inteiramente diversa daquela concebida pela justiça de qualquer época da Humanidade.

Em seus ensinamentos e por meios figurados, Jesus revelou parte das regras dessa nova justiça maior. Antes de tudo, ensinou ele que, para agir conforme tais princípios (ainda que de modo imperfeito), é necessário "exceder" à justiça dos homens. 

Dentre as lições está a da oposição ao "pensamento no mal". Mas, é impensável, em qualquer regramento jurídico humano, pretender punir alguém por simplesmente pensar mal de outrem. Pensar no mal, mesmo sem agir, indica natureza ainda pouco adiantada da alma (o que é verdade para a imensa maioria dos humanos!). Porém, é quando o pensamento no mal se torna ação no mal que o próximo é comprometido e se adquire uma nova obrigação. Surge então o dever de reparação, que é ensinada por Jesus na alegoria do pagamento posterior a um julgamento conforme a gravidade da pena.

Mas, sejamos claros: faz Jesus referência a um pagamento pecuniário?  Obviamente que não, antes isso é uma confirmação do caráter figurado das comparações que usou e que foram captadas quase que sem distorções pelos evangelistas. Esse pagamento é obrigação de natureza espiritual, que não se extingue, portanto, "na vida eterna" –  entendida como a própria vida maior e imperecível da alma em oposição a sua vida terrena ou encarnada – até que seja quitada em sua totalidade.

Naturalmente, só é possível compreender esse sistema de bens, direitos, deveres e obrigações transcendentes em um juízo mais dilatado da existência humana. 

Nesses termos Jesus ensinou como geralmente se sai do terrível Geena. Ao cumprir seus ensinamentos, porém, instruiu a seus seguidores como nunca entrar lá. 

Na nova revelação trazida pelo Espiritismo, o pagamento é realizado em inúmeras existências e o Geena e seu fogo são aqui mesmo na Terra. Dessa forma se regulam na eternidade da vida das almas os crimes, dos mais simples aos mais complexos e graves, já cometidos em toda a Humanidade.

Referências

[1] Emmanuel. Vinha de Luz. Psicografia de F. C. Xavier Ed. FEB, 
[2] Negev, A e Gibson, S. (2001). Hinnom (Valley of). Archaeological Encyclopedia of the Holy Land. Nova Iorque e Londres: Continuum. p. 230. ISBN 0-8264-1316-1.
[3] Wikipedia. Valley of Hinnom (Gehenna). https://en.wikipedia.org/wiki/Valley_of_Hinnom_(Gehenna)
[4] Kardec. O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo VIII (Bem-aventurados os que têm puro o coração: escândalos). Parágrafo 17. Versão IPEAK: https://www.ipeak.net/pt/6479
[5] Kardec. O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo VIII (Sede Perfeitos. Caracteres da perfeição). Versão IPEAK: https://www.ipeak.net/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=6518&&idioma=1

18 de novembro de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - VII

Artforms of Nature, 1899–1904, Ernst Haeckel.

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - VI". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

Escala dos seres orgânicos

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Fora ainda do contexto da teoria da evolução (que se consolidaria muito depois da publiação de "A Gênese"), Kardec pinta um quadro descritivo da variedade dos seres vivos apontando para uma crescente especialização das formas.

Um exemplo que econtramos neste Parágrafo é a referência aos zoófitos. Mas a palavra "zoófito" se tornou obsoleta com o tempo e designava "animais-plantas" ou seres que, não obstante considerados como animais, têm aparência de planta. Sua existência dava aos antigos biologistas um elo de ligação entre animais e plantas. Ela explicava como certas espécies dessas últimas (como o algodão) produziam coisas que animais também pareciam produzir. O termo e o que ele implicava foi assunto de inúmeros debates [1]. Kardec ecoa esse conhecimento antigo ao declarar que:

O zoófto tem a aparência exterior da planta. Como planta, mantém-se preso ao solo; como animal, a vida nele se acha mais acentuada: tira do meio ambiente a sua alimentação.

É importante considerar que mesmo Darwin utilizou o termo. Modernamente se sabe que não existe essa ligação. Os zoófitos dos antigos são hoje encontrados em muitos seres marinhos como as anêmonas e outras criaturas de "simetria radiada", ou seja, que apresentam estruturas distribuídas em torno de um centro.

Kardec apresenta uma escala de seres na seguinte ordem: pólipos, helmintos, moluscos, crustáceos, insetos, vertebrados e mamíferos:

Pólipos representam hoje o filo Cnidaria dentro os quais se encontram as medusas e as anêmonas. 

Helminto é o termo derivado do grego para "verme". Kardec cita os "vermes intestinais" em uma referência ao uso dessa palavra na medicina. Modernamente "se entende como verme o animal com o corpo alongado e/ou achatado e sem esqueleto interno ou externo" (ver ref. Wikipedia: Verme). Eles são quase que onipresentes na Natureza. Englobam vários tipos de organismos, mas o termo antigo caiu em desuso. 

Os moluscos são classificados modernamente como pertencentes ao filo Mollusca e representam animais invertebrados, tanto de água doce e marinha como também terrestres (p. ex., os caracóis). 

Os crustáceos são invertebrados (sem coluna vertebral) artrópodes (com exoesqueleto duro) dentre os quais se destacam os siris, caranguejos e camarões (mas não somente animais marinhos). 

Insetos também pertencem ao filo Arthropoda e são invertebrados com características morfológicas únicas como possuirem um exoesquelo quitinoso. Representam mais de 70% em termos de multiplicidade de espécies animais. 

Ao desenvolverem uma coluna vertebral e um sistema nervoso, os vertebrados formam uma subdivisão dos animais cordados. Em termos temporais, sua origem remonta ao aparecimento dos primeiros fósseis de vertebrados há 450 milhões de anos. O que caracteriza os vertebrados é a presença de uma coluna vertebral, crânio, a presença de um sistema muscular e um sistema nervoso. 

Finalmente, como uma subdivisão do ramos dos vertebrados, chegamos aos mamíferos. Kardec os descreve como animais com uma "organização mais completa". Em termos descritivos, os mamíferos são animais com temperatura interna regulada (endotérmico), cujas fêmeas produzem leite por meio de glândulas mamárias. 

Os humanos pertencem a essa subclasse. Os humanos são assim descritos modernamente como seres do domínio Eukariota, no reino Animalia, com filo Chordata e subfilo Vertebrada, subdivididos na superclasse dos Tetrapoda, de classe Synapsida e subclasse Mammalia. Porém, a classificação não termina aqui. Até o gênero Homo da espécie Sapiens, há ainda mais 11 subdivisões...

Fig. 1 Linha do tempo simplificada em bilhões de anos mostrando os principais eventos naturais conforme a visão moderna da evolução. Nesse quadro imenso, destacam-se: a formação dos organismos com núcleo celular (Eucariontes), a "revolução Cambriana" e o aparecimento dos primeiros hominídeos. O uso do fogo, por exemplo, ocorreu em um milésimo de bilhão de anos atrás, ou seja, há aproximadamente 1 milhão de anos. Fonte original: wikipedia. (clique na imagem para ampliar)

Em termos atuais essa escala pode ser apreciada por meio das classificações taxonômicas modernas. Essas objetivam reduzir a variabilidade observada entre diferentes animais agrupando-os em "taxa" que acabam por formar uma grande árvore. Partindo-se de uma divisão em "reinos", esses são subdivididos em "filos". Os filos são subdividios em "classes", essas em "ordens", essas em "famílias", as famílias são separadas por "gêneros" e, finalmente, os gêneros são subdivididos em espécies. Dentro de cada espécie admite-se também subdivisões em "subespécies".  

O aumento da complexidade nos mamíferos (chamada frequentemente "diversidade") se manifesta pela existência de um número grande de espécies, e os ramos da árvore se tornam mais preenchidos. Entretanto, essas classificações refletem muito aspectos morfológicos, tanto que os insetos acabam por formar o maior ramo da árvore dos animais pela enorme diversidade com que se manifestam. 

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A noção de que os organismos com funções e organizações complexas são modificações gradativas de espécies anteriores é descrito por Kardec:

Compreende-se então a possibilidade de que os animais de organização complexa não sejam mais do que uma transformação, ou, se quiserem, um desenvolvimento gradual, a princípio insensível, da espécie imediatamente inferior e, assim, sucessivamente, até o primitivo ser elementar.

Uma imagem resumida da evolução ao longo de bilhões de anos pode ser vista na Figura 1.  Nada se sabia na época sobre como tais transformações ocorriam. Ao questionamento de Kardec:

Ora, se a glande encerra em latência os elementos próprios à formação de uma árvore gigantesca, por que não se daria o mesmo do ácaro ao elefante?

podemos responder hoje que os "elementos próprios" que unificam a escala dos seres, do ponto de vista material, está no material genético que os compõem.  Assim, o grande elo de ligação reconhecido entre todos os seres, dos mais primitivos aos mais complexos e especializados, são seus constituintes genéticos.

Como vimos anteriormente [2], a tese da geração espontânea era aceita por grande parte dos acadêmicos na época de Kardec. Ele reporta esse estado ao comentar que essa teoria "é a que tende evidentemente a predominar hoje na ciência". Neste Parágrafo, Kardec segue assim a ciência de seu tempo e considera a ideia das "transformações gradativas" entre os seres diante da noção de geração espontânea. As transformações seriam assim um modo alternativo da Natureza de gerar novas espécies porque cada uma delas adquiriu "a faculdade de reproduzir-se" e "os cruzamentos acarretaram inúmeras variedades". Os seres mais simples se reproduziriam espontaneamente, enquanto que os organismos mais complexos transformavam-se com o tempo.

Essas noções sofreram mudanças profundas com a teoria da evolução de Darwin, o mutacionismo e a moderna genética. A geração espontânea foi expurgada da Biologia enquanto que o único mecanismo possível de criação de novas espécies está na evolução e nos inúmeros detalhes que operam seu mecanismo. As provas da evolução com organismos muito simples foram amplamente coletadas e constantemente monitoradas. Um exemplo que se tornou popular são as descrições da evolução do vírus da Covid-19, ver por exemplo, um trabalho recente em [3]. 

Essa mudança na maneira de se descrever o surgimento dos seres vivos não altera uma compreensão maior que devemos ter sobre a ligação espiritual que os une e que, um dia, também será reconhecida. Talvez seja possível dizer que uma consequência dessa ligação espiritual seja o elo material na forma das estruturas comuns que os conectam em uma grande hierarquia de criaturas. 

Referências

[1] Gibson, S. (2012). On Being an Animal, or, the Eighteenth-Century Zoophyte Controversy in Britain. History of science, 50(4), 453-476.

[2] Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - VI

[3] Li, F. (2016). Structure, function, and evolution of coronavirus spike proteins. Annual review of virology, 3(1), 237.