7 de julho de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - VII




Comentário sobre "As estrelas fixas".

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Trata-se de uma descrição precisa do que entendemos como sendo a Via-Láctea como vista desde a Terra, ou seja, como a projeção da galáxia Via-Láctea no céu. De fato, a imensa maioria das "estrelas fixas" pertencem à nossa galáxia. As que estão muito distantes fundem-se na forma de uma nuvem de estrelas - exatamente como cada molécula de vapor se funde para formar uma densa névoa. Nenhuma delas está absolutamente imóvel: a influência gravitacional entre elas é responsável pelo seu movimento, assim como a energia dinâmica herdada da nebulosa primordial que as criou confere a elas um movimento próprio.

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Destaca-se, em especial, a passagem:
Esses diversos sóis estão na sua maioria, como o nosso, cercados de mundos secundários, que eles iluminam e fecundam por intermédio das mesmas leis que presidem à vida do nosso sistema planetário. Uns, como sírio, são milhares de vezes mais magníficos em dimensões e em riquezas do que o nosso e muito mais importante é o papel que desempenham no universo. também planetas em muito maior número e muito superiores aos nossos os cercam. outros são muito dessemelhantes pelas suas funções astrais. 
que confere especial valor profético ao autor.  Na época em que essa mensagem foi dada, a existência de planetas ao redor de outras estrelas era mero tema de ficção. Ele dependia mais da crença de alguns astrônomos, com base em suposições sem qualquer base experimental ou alicerçada em dados. 

Hoje, esses novos mundos têm um nome: exoplanetas ou planetas extra-solares. Uma lista desses exoplanetas pode ser encontradas em: http://exoplanet.eu/catalog/, que conta com aproximadamente 4800 entradas em 2021. O que foi descoberto confirma a descrição do autor de Uranografia Geral, embora os tipos de planetas detectáveis dependa demais das técnicas de medida disponíveis. Estima-se em trilhões em nossa galáxia os planetas do tamanho da Terra. 


Fig 1. Concepção artística moderna da superfície de um planeta em um sistema de três estrelas. Esse assunto é tema de um comentário de Kardec na seção 38. Fonte: pixels.com. 

O autor continua e chama a atenção para os sistemas de múltiplas estrelas, ou seja, sistemas em que mais de uma estrela formam arranjos ligados por forças gravitacionais. Essa informação resultou no comentário de Kardec:
É o a que se dá, em Astronomia, o nome de “estrelas duplas”. São dois sóis, um dos quais gira em torno do outro, como um planeta em torno do seu sol. De que singular e magnífico espetáculo não gozarão os habitantes dos mundos que formam esses sistemas iluminados por duplo sol! Mas, também, quão diferentes não hão de ser neles as condições da vitalidade!
Uma representação artística moderna do "singular e magnífico espetáculo" que Kardec comenta acima pode ser visto na Fig. 1. De fato, dada a possibilidade de estrelas de cores diferentes, a superfície dos planetas que orbitam esses sistemas deve mostrar uma policromia jamais vista na Terra. Por condições de vitalidade, entendemos as condições de posição, distância e rotação que os planetas nesses sistemas devem ter para que seja possível haver vida neles. Se o tipo de vida terreno for assumido, provavelmente os planetas devem, por exemplo, se localizarem a distâncias maiores das estrelas que os abrigam para evitar o excesso de luz. Isso tornaria os anos (como revoluções em torno de uma estrela principal) bem mais longos. 

Da mesma forma como há estrelas cercadas de inúmeros planetas, "outros astros, sem cortejo, privados de planetas, receberam os melhores elementos de habitabilidade". Desnecessário dizer que a comprovação da existência de estrelas desacompanhadas de planetas é muito mais difícil. Para isso, seria necessário vencer as distâncias imensas até essas estrelas e constatar que elas não possuem planetas. 

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Reafirma-se corretamente que as estrelas fixas vistas da Terra pertencem à Via-Láctea que nada mais é do que uma das galáxias na "ordem das nebulosas" que compõem o Universo visível.

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O autor explica que as constelações (e, por derivação as ideias astrológicas ligadas a essas figuras no céu) são meras ilusões. O conteúdo do que é explicado nessa seção é ilustrado na Fig. 2.

Fig. 2 Constelações são projeções sem perspectiva na esfera celeste de conjunto de estrelas que podem estar, na verdade, muito distantes entre si.

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O autor reintroduz o assunto do movimento das estrelas que compõem a Via-Láctea afirmando que essas estrelas:
Rolam, não segundo roteiros traçados pelo acaso, mas segundo órbitas fechadas, cujo centro um astro superior ocupa.
ou seja, que "em parte nenhuma existe o repouso absoluto". No que segue, é dado como exemplo o movimento do sol.

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O movimento do sol descrito pelo autor é chamado modernamente de "movimento solar próprio". Todas as estrelas têm também um "movimento estelar próprio", o que foi descoberto por E. Halley  em 1677 em suas observações na Ilha de Santa Helena [1]. Esse movimento modifica o aspecto do céu ao longo de milhares de anos, visto que ele é imperceptível no tempo médio de uma vida humana. Isso é ilustrado na Fig. 3.

Fig. 3 Animação do movimento próprio na constelação da Ursa Maior conforme os anos gravados na parte superior em verde. Como tempo, o aspecto do céu muda pois cada estrela está dotada de um movimento particular.

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Considerando a influência gravitacional mútua exercida entre as estrelas, o autor pondera que nosso sol é um corpo secundário a se mover conforme a força exercida por outro corpo maior. Hoje sabemos que o movimento do sol - e de sua vizinhança estelar - é regido por forças que se dirigem para o centro da galáxia, ou seja, esse movimento se dá em torno dela. Isso resulta no conceito de "ano galático" como o tempo que o sol leva para dar uma volta completa em sua órbita em torno do centro galático, que é da ordem de 230 milhões de anos. Em torno desse centro, o sol se move à velocidade de 830.000 km/h ou 1/13000 da velocidade da luz.  Essas medidas não eram conhecidos no Sec. XIX. 

Repete-se o número de estrelas do sistema "Via-Láctea" já apresentado anteriormente:
...uma trintena de milhões de sóis se pode contar na Via Láctea.
Esse número é uma estimativa baseada nas estrelas visíveis, ou seja, acessíveis por meio da tecnologia óptica e não fotográfica. O número de estrelas visíveis a vista desarmada em uma noite límpida é da ordem de 6000. Ao se usar instrumentos, esse número cresce consideravelmente, pelo que se chega ao valor de 30 milhões. Com a descoberta do formato real da Via-Láctea [2] e de que a maior parte dela está oculta de nossa observação, esse número subiu consideravelmente, embora não seja possível conhecer o número exato ou mesmo com marge de erro inferior a, digamos, 10%. Estima-se, entretanto, como 300-400 bilhões o número dessas estrelas.

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À guiza de conclusão e introdução do próximo assunto, o autor relembra que: 
Em parte nenhuma há imobilidade, nem silêncio, nem noite! O grande espetáculo que então se nos desdobraria ante os olhos seria a criação real, imensa e cheia da vida etérea, que no seu imenso conjunto o olhar infinito do criador abrange. 
Isso para introduzir o conceito de que a Via-Láctea é apenas um dos sistemas perdidos na imensidade do Universo. Apoiado em uma ideia que não tinha comprovação na época em que A Gênese foi escrita, o autor defende vivamente a "hipótese dos universos-ilhas" pela qual nossa Via-Láctea é apenas uma "ilha no arquipélago infinito". 

Para ver isso, basta consultar a referência [3] para a qual a ideia era considerada "audaciosa e pitoresca, que falava alto à imaginação de escritores populares de astronomia e que foi mantida pela literatura astronômica por muitos anos". Isso até 1870 e, por volta de 1900, diversas descobertas tornaram a teoria de "universos-ilhas"  suspeita.

Mas isso será assunto de um próximo post.
 
Referências

[1] Brandt, J. C. (2010). St. Helena, Edmond Halley, the discovery of stellar proper motion, and the mystery of Aldebaran. Journal of Astronomical History and Heritage, 13, 149-158.
[2] Xu, Y., Reid, M., Dame, T., Menten, K., Sakai, N., Li, J., ... & Zheng, X. (2016). The local spiral structure of the Milky Way. Science Advances, 2(9), e1600878.
[3] MacPherson, H. (1919). The problem of island universes. The Observatory, 42, 329-334.





6 de junho de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - VI

 

Continuação do post anterior: Comentários sobre "Uranografia geral" de "A gênese" de A. Kardec - V.

Obra completa contendo todos os comentários e a conclusão.

Comentário sobre "Os cometas" e "A Via-Láctea".

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Cometas, também conhecidos com "astros errantes", dado o seu movimento inusitado pelo céu, sempre chamaram a atenção, quase sempre pelo medo. Esclarecida sua verdadeira origem, como pequenos astros dotados de movimento próprio, em órbitas muito diferentes das dos planetas, cometas podem ser vistos como relíquias de um passado muito distante, quando o sistema solar ainda estava em formação.

Como suas órbitas podem chegar até os confins do sistema solar, o autor os descreve como "guias que nos ajudarão a transpor os limites do sistema a que pertence a Terra". Na verdade, seu estudo pode tanto no levar para bem longe como, principalmente, para bem distante no tempo.

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O autor resume de forma breve as diversas teorias antigas sobre os cometas. Ele cita de passagem algumas ideias sobre a natureza dos cometas, como a de que eles seriam "mundos nascentes", como "mundos em estágio de destruição" ou como mundos "pressagiadores de desgraças", todas já obsoletas na época de "A Gênese".

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Depois de criticar as concepções que os antigos fizeram dos cometas, o autor declara que eles

...não têm por destinação, como estes, servir de habitação a humanidades. Eles vão sucessivamente de sóis em sóis, enriquecendo-se, às vezes, pelo caminho, de fragmentos planetários reduzidos ao estado de vapor, buscar, nos seus centros, os princípios vivificantes e renovadores que derramam sobre os mundos terrestres.

Em suma, para o autor, os cometas podem ir de estrela em estrela, de forma a trasportar "princípios vivificantes e renovadores" que são "derramados" sobre os mundos. Essa ideia está ligada à ainda misteriosa origem dos cometas. 

Concebida em 1950 [22] por J. Oort, a hipótese moderna é que os cometas têm sua origem principal em uma gigantesca nuvem que envolve o sistema solar, a chamada "nuvem de Oort". Por causa de perturbações de diversos tipos - principalmente encontros com outras estrelas - essa nuvem pode se agitar, o que causa a precipitação dos cometas em direção ao sol. Assim, eles se tornam conhecidos, visto que na imensidão da distância dessa nuvem, eles não podem ser vistos. Note que isso faz da própria ideia da nuvem de Oort uma hipótese, já que ela não pode ser observada diretamente desde a Terra. 

A ideia de que cometas poderiam estar ligados a "princípios vivificantes e renovadores que derramam sobre os mundos" está ligado ao conceito de panspermia [23]. Segundo essa hipótese, a vida na Terra não teve origem nela, mas foi "semeada" por cometas que trouxeram os princípios da vida de fora. 

Fig. 1 Concepção artística do objeto Oumuamua cuja origem foi determinada como externa ao sistema solar.  Embora, a princípio, não seja um cometa (pois nenhuma cauda foi observada), cometas também podem se originar fora do sistema solar. 

Que cometas possam passar de uma estrela a outra é muito difícil de ser demonstrado, embora isso  seja possível para alguns cometas - conforme previsto pela teoria da nuvem de Oort. Recentemente, um corpo estranho, descoberto e batizado Oumuamua [24] (Fig. 1), se aproximou do sol com velocidade muito grande e teve sua origem confirmada como sendo externa ao sistema solar.

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Partindo dessa ideia, de que cometas podem vagar entre as estrelas, o autor descreve o que veríamos se pudéssemos acompanhar em pensamento a marcha dos cometas. Descreve corretamente que observações incompletas não seriam capazes de prever seu retorno, se um cometa fosse capturado por alguma outra estrela a exercer uma força em seu ponto mais afastado - o afélio (a tradução usa as palavras "perigeu" e "apogeu", entretanto, periélio e afélio são os termos mais precisos que descrevem sua posição mais próxima e distante do sol, respectivamente, e não da Terra). 

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É uma introdução onde o autor descreve a aparência leitosa da Via-Láctea à vista desarmada como uma ilusão, enquanto que o telescópio decompôs esse rastro em milhares de estrelas. Tal fato somente pode ser compreendido depois da invenção do telescópio (por volta de 1609).

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O autor define a Via-Láctea como uma coleção de estrelas e planetas em que o sol e seu cortejo de planetas é apenas um dos integrantes. Estima em 30 milhões o número de estrelas constituintes da Via-Láctea. Estima também a distância entre as estrelas em mais de 100.000 vezes o raio da órbita terrestre (que forma a "unidade astronômica" ou U. A., da ordem de 150 milhões de quilômetros). A estrela mais próxima do sol está localizada a 4,4 anos-luz de distância ou aproximadamente 280.000 U. A. Os valores dados pelo autor são estimativas: as distâncias corretas entre as estrelas mais próximas já era conhecida na época de "A Gênese". 

Hoje essa noção foi substituída pela da "galáxia". O que vemos como sendo a Via-Láctea é a projeção do disco galático na esfera celeste, sendo que a maior parte da galáxia está oculta da nossa visão na Terra. O número exato de estrelas que compõem a galáxia Via-Láctea não é conhecido, mas estimativas vão desde 100 a 400 bilhões de estrelas. As distâncias médias entre as estrelas na Via-Láctea é da ordem de várias centenas de anos-luz.

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Mesmo aproximados, os valores permitem saber como o sistema solar - e, portanto, a Terra - é pequeno:

...pode-se igualmente julgar da exiguidade do domínio solar e, a fortiori, do nada que é a nossa pequenina terra. Que seria, então, se se considerassem os seres que a povoam!

O cálculo das distâncias e dos números "astronômicos" têm como objetivo mostrar o quão pequeno é o nosso mundo, em vários sentidos, inclusive em seu aspecto moral. Por outro lado, lá na imensidão de incontáveis mundos povoados de inteligência prodigiosa, temos as provas da criação "em toda a sua majestade".

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Concordando com o que havia de ser ainda demonstrado (a saber, que muitas nebulosas eram, de fato, outras vias-lácteas), para o autor nossa Via-Láctea:

não representa mais do que um ponto insensível e inapreciável, vista de longe, porquanto ela não é mais do que uma nebulosa estelar, entre os milhões das que existem no espaço.

Ele estaria falando das muitas galáxias que existem em nosso universo observável. Modernamente, não se sabe o número exato delas, que é, não obstante, estimado entre 200 bilhões a dois trilhões de galáxias. Portanto, as conclusões do autor de "Uranografia geral" continuam bastante válidas. 

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Como fechamento do tema, o autor relembra a "hierarquia de escalas" que existe entre os diversos sistemas estelares, que demonstra a incrível pequenez da Terra:

...a Terra nada é, ou quase nada, no sistema solar; que este nada é, ou quase nada, na via láctea; esta por sua vez é nada, ou quase nada, na universalidade das nebulosas e essa própria universalidade é bem pouca coisa dentro do imensurável infinito, começa-se a compreender o que é o globo terrestre.

Em suma, apenas quando essas escalas são justapostas é que podemos compreender o real significado de nossa vida no concerto universal, o que nos livra da ilusão de achar que tudo se limita à nossa Terra - em todos os sentidos, inclusive moral...

Referências

[22] Oort, Jan Hendrik. "The structure of the cloud of comets surrounding the Solar System and a hypothesis concerning its origin". Bulletin of the Astronomical Institutes of the Netherlands, v. 11, p. 91-110, 1950.
[23] Hoyle, F., & Wickramasinghe, C. (1981). Comets-a vehicle for panspermia. In Comets and the Origin of Life (pp. 227-239). Springer, Dordrecht.
[24] Bannister, M. T., Bhandare, A., Dybczyński, P. A., Fitzsimmons, A., Guilbert-Lepoutre, A., Jedicke, R., ... & Ye, Q. (2019). The natural history of ‘Oumuamua. Nature Astronomy, 3(7), 594-602.