12 de março de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - III

Mapa do universo observável como concebido em 1875.
A posição do sol é indicada cuidadosamente fora do "centro".

Continuação do post anterior: Comentários sobre "Uranografia geral" de "A gênese" de A. Kardec - II.


Comentários sobre "A criação primária".

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O autor apresenta um planejamento para sua discussão sobre a origem do Universo.

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A distinção entre a noção de tempo e eternidade é relembrada. Essa última é um conceito único, anterior ao próprio tempo e responsável pela “fecundação do espaço”. Ela se associa ao Criador que tem poder infinito. Para o autor de “Uranografia Geral”, não é possível um começo para o Universo – ou seja, ele sempre existiu – nem sua manifestação presente é aquela que sempre existiu.

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Existindo, naturalmente, desde toda a eternidade, Deus criou por toda esta eternidade e não poderia ser de outro modo, visto que, por mais longínqua que seja a época a que recuemos, pela imaginação, os supostos limites da criação, haverá sempre, além desse limite, uma eternidade...
Aqui é retomada ideia semelhante à da invariância em relação à extensão do espaço, que foi assunto tratado em “O espaço e o tempo”. Mas, agora, uma invariância do tempo. Se o Universo não tem fim espacialmente, ele não deve ter tido começo no tempo – o que leva à ideia de um universo que “sempre existiu”. A palavra “hipóstase” é usada na Seção 14 no seu sentido religioso: a substância ou estado subjacente como realidade a alimentar tudo que existe. Assim, as “divinas hipóstases” jamais teriam permanecido inativas no passado, uma “eternidade de morte aparente para o Pai eterno”, ou “mutismo indiferente do Verbo”. De novo: o autor não reconhece a existência de um princípio definível para o início do Universo.

A Cosmologia moderna afirma que o Universo teve um início há 13 bilhões de anos segundo a chamada teoria da “grande explosão” (Big Bang). A ideia está baseada em parte no “desvio para o vermelho” observado nas galáxias, que seria uma prova de que o Universo está em expansão e que, portanto, houve uma época em que toda a matéria estaria confinada em um único ponto: a “grande singularidade”. 

Entretanto, essa não é a única teoria que existe. Recentemente, uma equipe de astrônomos indianos [15] desafiou a hipótese ao mostrar que, usando uma base de dados maior, os desvios para o vermelho exibem, de fato, uma oscilação que torna a ideia de expansão em larga escala inviável. Pode-se dizer assim que, modernamente, as teorias repousam sobre medidas experimentais [16] que podem ser refeitas e resultar na modificação dessas mesmas teorias. 

Fig. 1 Como seria o fim do Universo? Em uma teoria cosmológica, depois da "fase de expansão" ocorreria a "grande contração" (Big Crunch) e o Universo voltaria ao seu estágio super denso original. Na verdade, assim, não haveria uma "origem" do Universo, mas nossa época é apenas uma em uma infinidade de "universos sucessivos".

Ainda que o “universo presente” tenha tido sua origem na singularidade postulada, nada impede que nosso universo seja apenas uma de suas inúmeras fases. Isso seria possível se, depois da “grande expansão” viesse a “grande contração” como algumas teorias cosmológicas afirmam (Fig. 1). Dessa forma, a questão da “origem última” ou o “fiat lux do início” permanece inacessível.

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Considerado como sem origem no tempo, nosso universo, entretanto, teve uma infância. Aparentemente apoiado na ideia de “criações sucessivas” (“as sucessivas aparições delas no domínio da existência constituem a ordem da criação perpétua”), o autor apresenta uma descrição da época quando o “Universo nasceu criança”:
Que mortal poderia dizer das magnificências desconhecidas e soberbamente veladas sob a noite das idades que se desdobraram nesses tempos antigos, em que nenhuma das maravilhas do universo atual existia; nessa época primitiva em que, tendo-se feito ouvir a voz do senhor, os materiais que no futuro haviam de agregar-se por si mesmos e simetricamente, para formar o templo da natureza, se encontraram de súbito no seio dos vácuos infinitos...
Houve um tempo assim em que nosso Universo não existia como o vemos hoje, a matéria estava desagregada no espaço – ainda que criada a partir da aglomeração de uma substância primitiva (o fluido universal). As leis físicas já existentes deram “impulso” a essa matéria primitiva de forma a criar “turbilhões” e “amontoados de matéria nebulosa” que se dividiram e se modificaram ao longo do tempo. Foram inúmeros os “centros de criações simultâneas e sucessivas” que se produziram no espaço. As diferenças de densidade produziram centros que haveriam de dar à luz a “focos de uma vida especial”, não, porém, na mesma intensidade.

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E também houve um tempo em que a Terra não existia. Curiosamente, o autor declara que, nessa época,
...já esplêndidos sóis iluminam o éter; já planetas habitados dão vida e existência a uma multidão de seres, nossos predecessores na carreira humana; que as produções opulentas de uma natureza desconhecida e os maravilhosos fenômenos do céu desdobram, sob outros olhares, os quadros da imensa criação.
Isso está absolutamente de acordo com a opinião científica moderna, de que outras civilizações já existiam muito antes da Terra ter sido criada. Essa, com uma idade de “apenas” 4 bilhões de anos, foi um dos últimos mundos a florescer em um Universo que já era velho quando ela se formou. Por outro lado, muitos desses mundos antigos não mais existem, “já deixaram de existir esplendores que muito antes fizeram palpitar o coração de outros mortais”. E, da mesma forma como a humanidade encarnada crê erroneamente estar perdida em um único ponto do espaço, ela também acreditar ser a última fase da evolução do Universo,  "nos cremos contemporâneos da criação”.

Para o leitor desatento, a leitura do último parágrafo da Seção 16 parece repetir algum assunto já colocado pelo autor de "Uranografia geral". Na verdade esse último parágrafo é muito interessante, porque nele o autor expões sua opinião sobre a "controvérsia da nebulosas", que não foi resolvida antes de 1920 com o chamado "Debate Shapley-Curtis" (Fig. 2). 

Fig. 2 H. Shapley (esquerda) e H. Curtis protagonizaram um debate sobre a "controvérsia das nebulosas". Curiosamente, o assunto é esclarecido também no "Uranografia Geral" de "A Gênese".

Primeiro o contexto: até o desenvolvimento de placas fotográficas sensíveis, a observação das chamadas “nebulosas”, mesmo que feita com telescópio potente, nunca pôde revelar sua verdadeira origem. Também contava o fato de que não existiam métodos confiáveis de se medir distâncias estelares. Apenas algumas estrelas (mais próximas) tinham permitido cálculos precisos de distância. A imensa maioria delas permanecia fixada em um “fundo” aparentemente equidistante da Terra, porque se localizavam a uma distância muito superior ao que a técnica podia medir.

Na época de “A Gênese” (e mesmo depois), formaram-se dois grupos rivais na astronomia:
  • Um grupo que acreditava que todas as nebulosas pertenciam a nossa “Via-Lactéa” que representava tudo o que existiria em nosso Universo.
  • Outro grupo achava que algumas nebulosas, principalmente aquelas que se mostravam como espirais ou “redemoinhos” como se dizia na época, eram, na verdade outras “Vias-Lácteas” (essa ideia foi defendida desde o Séc. XVIII por I. Kant [17]).
O problema era nitidamente de resolução ou limitação experimental, mas também implicava visões distintas do universo. Acreditar que algumas nebulosas eram “universos-ilhas” iria muito além do concebível para a visão do final do Século XIX.

A controvérsia somente foi resolvida a favor da ideia das galáxias em um debate público [18] promovido pelo Museu Smithsonian de História Natural em abril de 1920, quando argumentos favoráveis e contra a noção de galáxias foram colocados por dois grandes expoentes da astronomia do Século XX: H. Shapley (1885-1972) e H. Curtis (1872-1942). 

Shapley era contra a ideia de galáxias e achava que a Via-Láctea era tudo que existia no Universo. Curtis era favorável à teoria dos “universos-ilhas”. Curtis aparentemente venceu o debate mostrando que se podiam observar muitas “novas estrelas” na nebulosa de Andrômeda, o que não seria o caso se essa se localizasse na Via-Láctea. A controvérsia somente foi definitivamente resolvida quando E. Hubble (1889-1953) mediu finalmente as distâncias das nebulosas espirais, mostrando que elas estavam muito mais distantes do que as estrelas da Via-Láctea.

Eis, porém, o que havia colocado o Espírito de Galileu em um trecho do último parágrafo da Seção 16:
Tais nebulosas, que mal percebemos nos mais longínquos pontos do céu, são aglomerados de sóis em vias de formação; tais outras são vias lácteas de mundos habitados; outras, finalmente, sedes de catástrofes e de perecimento.
Ele esclarece corretamente, que algumas das nebulosas eram “aglomerados de sóis em vias de formação” ou “sedes de catástrofes e de perecimento” – o que corresponde às nebulosas pertencentes à Via-Láctea (respectivamente, tanto os “berçários estelares” como as “nebulosas de explosão de estrelas”), enquanto que “outras são vias-lácteas de mundos habitados”, ou seja, correspondem à noção moderna de “galáxias”.

Para o autor de “Uranografia Geral”, há uma simetria entre nossa posição entre uma “infinidade de mundos” e o fato de nos colocarmos no meio de uma infinidade de “durações, anteriores e ulteriores”, tudo porque “atrás de nós, como à nossa frente, está a eternidade”.

Referências

[15] Mal, A., Palit, S., Bhattacharya, U., & Roy, S. (2020). Periodicity of quasar and galaxy redshift. Astronomy & Astrophysics, 643, A160. https://www.aanda.org/articles/aa/abs/2020/11/aa30164-16/aa30164-16.html 
[16] Arp, H. (2001). O Universo Vermelho: desvios para o vermelho, cosmologia e ciência acadêmica. Ed. Perspectiva.
[17] Schultz, D. (2012). The Andromeda Nebula and the Great Island-Universe Debate. In The Andromeda Galaxy and the Rise of Modern Astronomy (pp. 135-155). Springer, New York, NY.
 


14 de fevereiro de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - II

Aparelho para produção de espectros (1878).



Comentários sobre "As leis e as forças"


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O autor faz uso de uma bela comparação (que faz eco à alegoria da "caverna de Platão" [12]) para descrever o estado de conhecimento da ciência. Uma imagem em que seres oceânicos, deixando o fundo do mar, tomam conhecimento da realidade acima da superfície. O conhecimento que podemos fazer da Natureza que nos cerca está ainda no primeiro estágio, em que ainda apenas exploramos as cercanias das profundezas do oceano em que vivemos, muito longe da realidade acima da superfície. A comparação é clara e se aplica mesmo ao estágio de conhecimento em que chegamos. Por mais que tenhamos avançado, os passos são pequenos diante da grandiosidade do Universo. Kardec faz um comentário relevante sobre essa comparação em que ele a estende ao estado do conhecimento humano sobre a vida além da morte.

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Explica-se aqui o escopo da discussão sobre "as leis e as forças". Como desencarnado, o autor está em uma posição privilegiada para estudar fenômenos inacessíveis para os encarnados. Mas, ao mesmo tempo, é um "ser relativamente ignorante em face da ciência real", o que reafirma seu despojamento e modéstia: ele não se apresenta como autoridade do assunto.

10 

Há um "fluido etéreo que enche o espaço e penetra os corpos". Hoje, algumas pessoas poderiam entender isso como ecos da "teoria do éter" de que falava os “eletricistas” do século XIX. Essa teoria soçobrou no início do século XX com a relatividade, que dispensou o "éter luminífero" para explicar o comportamento da luz e da radiação. Entretanto, cremos que se trata de uma interpretação precipitada e literal. O texto sequer toca em outros detalhes relevantes que conduziriam a essa conclusão. O éter luminífero postulado pela Física do século XIX era algo inerte, passivo, apenas imaginado como meio que facultava a propagação da radiação e nada mais.

Ao contrário, o autor descreve o fluido como uma substância em que:
...são inerentes as forças que presidiram às metamorfoses da matéria, as leis imutáveis e necessárias que regem o mundo.
Conceitos dominantes posteriormente, como a ideia de "campos", estavam em fase embrionária de desenvolvimento. O éter universal é aqui descrito como responsável pela "gravidade, coesão, afinidade, atração, magnetismo, eletricidade ativa", além de ser capaz de presidir "às metamorfoses da matéria". Isso seria, certamente, algo fantasioso para a época, mas hoje faz muito mais sentido. Para entender  isso, é preciso apreciar para onde conduziram as investigações da Física desde as descobertas da radioatividade no final do século XIX. 

Depois das investigações iniciais, ficou claro que os constituintes da matéria, os átomos, poderiam ser divididos em partículas menores. Essas, por sua vez, mostraram-se igualmente fluidas: por meio de colisões feitas em equipamentos especiais (aceleradores de partículas), uma vasta e complexa rede de “interações elementares” entre as partículas foi revelada. Algumas dessas interações ocorriam de forma espontânea: alguma coisa no “espaço vazio” provocava a decomposição “automática” das partículas que começaram a ser interpretadas como “estados ligados” de uma matéria ainda mais elementar [13]. 

Esse conhecimento finalmente transformou a ideia do antigo éter estático da propagação da luz na noção do "vácuo quântico" como uma substância que permeia todo o Universo, que não pode ser "esvaziado" de nenhum lugar e que tem papel fundamental na criação da matéria. O qualificativo "quântico" modifica completamente a noção de vazio como uma região do espaço onde toda a matéria tenha sido retirada e em que apenas propriedades geométricas podem ser associadas. Para a Física Quântica não é possível anular o conteúdo de energia de um sistema. Assim, o vácuo quântico é definido como o estado de menor energia possível para um "campo", o novo conceito que substituiu a noção de matéria clássica. Por isso, embora vazio de partículas "físicas", esse novo vácuo permite a criação incessante de partículas "reais " a partir de sua "energia de ponto zero".

O "efeito Casimir" é uma fraca força mecânica que aparece entre placas paralelas pela presença do vácuo quântico.

Além de suas ricas propriedades dinâmicas, como exemplo, citamos um dos efeitos notáveis do vácuo : "efeito Casimir" [14].  Esse efeito é uma força mecânica de atração que aparece quando placas metálicas são colocadas face a face. O vácuo quântico é responsável pelo aparecimento dessa força. Esse novo vazio é, na verdade, uma nova substância, que, se modificada ou excitada de forma particular, pode gerar a enorme variedade de partículas e campos que compõe a matéria tangível. Nosso despretensioso estudo conduz naturalmente assim para uma possível interpretação do "fluido cósmico" de que fala o autor de "Uranografia Geral" para essa nova noção de vácuo. Ainda assim, é preciso cautela porque é bem possível que não tenhamos conhecimento científico "final" sobre esse estado primitivo da matéria cósmica fundamental. 

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Esta seção se apresenta como uma conclusão da exposição sobre "as leis e as forças": a síntese  se encontra na unidade observada das leis universais (algo que, modernamente, tem relação com a possibilidade de "unificação" das leis da Física) que são eternas. É um sonho antigo - ainda não plenamente realizado - descrever todas as leis e forças a partir de uma única lei. A causa dessa incapacidade em se chegar até a lei mais fundamental de todas é que "são restritas e limitadas as forças que a representam no campo das vossas observações". Há, portanto, outras manifestações de força ainda ocultas à observação da ciência da época e, provavelmente, mesmo da nossa. 

Além da dualidade "unidade-variedade", o texto também faz referência ao princípio de conservação: "Percorrendo os degraus da vida, desde o último dos seres até Deus, patenteia-se a grande lei de continuidade". A aplicação das leis universais "secundárias" (em oposição à lei primária "universal") é descrita como agindo:
...necessariamente em tudo e em toda parte, modificando suas ações pela simultaneidade ou pela sucessividade, predominando aqui, apagando-se ali, pujantes e ativas em certos pontos, latentes ou ocultas noutros, mas, afinal, preparando, dirigindo, conservando e destruindo os mundos em seus diversos períodos de vida, governando os maravilhosos trabalhos da Natureza, onde quer que eles se executem, assegurando para sempre o eterno esplendor da criação.
Então, a partir de modificações e gradações de aplicação dessa, surgem "leis secundárias" e outros princípios que atuam como causas para a enorme variedade de manifestações observadas no Universo. Essa conclusão corresponde à ideia moderna de que podemos "reduzir" as variedades de fenômenos observados a causas mais fundamentais. Porém, nossa incapacidade em reconstruir essa redução repousa em nossa limitação de observação. Como nossos sentidos são limitados, não temos acesso a todo conjunto de fenômenos que existem. Portanto, não temos informação suficiente para se remontar à causa mais fundamental da lei universal. 

Continua no próximo Post com "A criação primária".

A conclusão de nosso estudo será publicada no último post. 

Referências

[12] Wright, J. H. (1906). The origin of Plato's Cave. Harvard Studies in Classical Philology, 17, 131-142.
[13] Moreira, M. A. (2009). O modelo padrão da física de partículas. Revista Brasileira de Ensino de Física, 31(1), 1306-1.
[14] M. V. Cougo-Pinto, C. Farina e A. Tort (2000). O Efeito Casimir. Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 22, n. 1.