15 de janeiro de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - I

Cometa de Donati sobre uma Paris sem luz elétrica como visto em 1858.

Obra completa contendo todos os comentários e a conclusão.

Fazemos aqui alguns comentários sobre o Capítulo VI “Uranografia Geral” de "A Gênese" de A. Kardec. Nosso objetivo é comentar o conteúdo desse capítulo no contexto de sua época, e indicar algumas mudanças que aconteceram nas concepções científicas de Astronomia e Cosmologia desde que o texto desse capítulo foi publicado.

Não nos move nenhum interesse em “atualizar” a Gênese, o que seria algo absurdo, mas apenas informar o leitor sobre o que teria eventualmente mudado em nossas concepções científicas desde o Século XIX. O uso da 5ª edição não afetará quaisquer conclusões a respeito do que apresentamos aqui sobre a Uranografia. Isso porque o referido capítulo tem como base em textos de C. Flammarion (como médium) que foram produzidos na Sociedade Espírita de Paris entre 1862 e 1863.

No que segue, pare evitar que o texto do post fique muito longo, comentamos as passagens identificando-as conforme o parágrafo em que aparecem na referência [4]. Quando necessário é feita citação expressa da passagem. É importante dizer que o relato da "Uranografia Geral" se refere a detalhes que pouco afetam o caráter da Revelação Espírita e sua importância. Entretanto, Kardec provavelmente resolveu incluir esse capítulo, pois ele seria uma "síntese" do que se conhecia na época no tema em consonância com a nova doutrina então nascente.


Comentários sobre “O Espaço e o tempo”

1

Atenção: chamamos de "seção" os itens numerados conforme a denominação de "parágrafos".

Essa seção se inicia com uma definição e alguns comentários sobre concepções antigas de espaço na forma da “extensão que separa dois corpos”. O autor do texto declara que o espaço é “infinito, pela razão de ser impossível imaginar-se lhe um limite qualquer”. O argumento é que é mais fácil imaginar um espaço em que se avança “eternamente” do que algo que chegue a um fim, o que seria a “fronteira do Universo” além da qual nada existiria. Essa concepção de espaço (que tem implicações para o tamanho do Universo) é, de fato, bem antiga e já aparecia aos antigos gregos. 

O que sabemos hoje: do ponto de vista científico apenas podemos afirmar que o Universo observável é limitado, mas não fazemos ideia se ele é finito ou não. Alguns teóricos, movidos pelas novas concepções de “curvatura do espaço” da Relatividade Geral acreditaram ser possível dizer que o Universo é “finito, mas ilimitado”. Com isso, um caminhante jamais atingiria limite algum ao percorrer uma superfície curva (fechada sobre si), que, apensar disso é finita. A realidade é que não sabemos a resposta para essa questão porque ela depende de forma crucial do avanço do conhecimento em Cosmologia. 

A partir do 4º parágrafo da seção, o autor usa de uma analogia para explicar o que ele entende por infinitude do espaço. Nessa figura, a “velocidade da centelha elétrica” é usada para descrever o movimento de um observador a “milhões de léguas por segundo”. Hoje sabemos que essa velocidade é da ordem de 100 mil quilômetros por segundo (ou 1/3 da velocidade da luz) [5]. A palavra “légua” refere-se a uma unidade antiga usada antes do sistema métrico e que correspondia a uma distância entre 5 ou 6 quilômetros (a légua imperial tem 4,82 quilômetros). Ou seja, nessa unidade, a velocidade do relâmpago seria algo como 16 mil léguas por segundo. 

A velocidade mais rápida que existe é a velocidade da luz no espaço livre: cerca de 300 mil quilômetros por segundo. Esse valor, ou algo próximo dele, já era conhecido desde, pelo menos, 1676 quando Olaf Römer [6] mediu o valor de 211 mil quilômetros por segundo. E, já em 1848, H. Fizeau [7] foi capaz de medir um valor mais próximo do atual. 

Chama a atenção este trecho:
Ora, há apenas poucos minutos que caminhamos e já centenas de milhões de milhões de léguas nos separam da Terra, bilhões de mundos nos passaram sob as vistas e, entretanto, escutai! Em realidade, não avançamos um só passo que seja no Universo.
Mesmo viajando a velocidade da luz, para “passar de vista” bilhões de mundos, seriam necessários centenas ou milhares de “anos-luz” e não “poucos minutos” (pelo menos para os encarnados...). Embora a imprecisão na descrição (?), o autor teve como objetivo passar a ideia de que, por mais que se caminhe em qualquer direção no Universo (isotropia) a partir de qualquer ponto (homogeneidade) muito pouco se avança diante de um universo infinito. Se o Universo for realmente infinito, essa conclusão é correta.

2

O autor do texto repete nessa seção por três vezes a definição: “o tempo é apenas uma medida relativa da sucessão de tempo das coisas transitórias”, o que o torna indistinguível da ideia de “duração”. Numa época em que espaço e tempo não poderiam ser vistos com aspectos de uma mesma realidade, o autor conclui acertadamente que, se o espaço é infinito, então o tempo também deve ter duração infinita. A infinitude do espaço exige a eternidade do tempo: “Imensidade sem limites e eternidade sem limites, tais as duas grandes propriedades da natureza universal”. 

Para a noção de eternidade o autor usa da mesma figura da infinitude do Universo:
O inconcebível amontoado de séculos que nos passaria sobre a cabeça seria como se não existisse: diante de nós estaria sempre toda a eternidade.
Junto a tal conclusão, a Seção 2 descreve uma imagem para a origem do tempo que nos lembra uma descrição bíblica:
Mas, silêncio! soa na sineta eterna a primeira hora de uma Terra insulada, o planeta se move no espaço e desde então há tarde e manhã. Para lá da Terra, a eternidade permanece impassível e imóvel, embora o tempo marche com relação a muitos outros mundos.
Com isso o autor quis dizer que a noção de tempo se prende a um local, o tempo terreno (como medida de sucessão das coisas) começou assim que a Terra se formou e terminará quando ela tiver o seu último dia. Isso não impede que existam “outros tempos” em outros mundos: “tantos mundos na vasta amplidão, quantos tempos diversos e incompatíveis”. Essa ideia diferia da concepção então vigente na época – a noção clássica de simultaneidade universal porque o tempo era considerado absoluto. Para ver isso, relembramos a definição de Newton [8]:
O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si mesmo e da sua própria natureza, flui uniformemente sem relação com qualquer coisa externa e é também chamado de duração.
Hoje sabemos, com a teoria da Relatividade Restrita, que a noção de tempo “como sucessão das coisas” é, de fato, uma medida local e que não há compatibilidade entre as “medidas de tempo” entre referenciais diferentes que não estão “sincronizados”.  

Comentários sobre "A matéria"

3

Essa seção se inicia chamando a atenção para a diversidade de aparências da matéria. Disso concluímos que, “à primeira vista”, matéria é aquilo que sensibiliza diretamente aos sentidos humanos. Mas, logo no segundo parágrafo, o autor anuncia um “princípio absoluto” pelo qual:
Todas as substâncias, conhecidas e desconhecidas, por mais dessemelhantes que pareçam, quer do ponto de vista da constituição íntima, quer pelo prisma de suas ações recíprocas, são, de fato, apenas modos diversos sob que a matéria se apresenta; variedades em que ela se transforma sob a direção das forças inumeráveis que a governam. 
Para entender isso, é preciso rever a questão, p. ex., 30 de “O Livro dos Espíritos” [9] onde se lê que a matéria é formada “de um só elemento primitivo”. Esse é um conceito fundamental no Espiritismo de Kardec, que contrastava com o conhecimento da Química e da Física do Século XIX. Sua origem está na definição de matéria, que é dada na questão 22a em “O Livro dos Espíritos” e no desenvolvimento subsequente que podemos ler nas questões 32 e 33. 

4

O texto chama a atenção para as descobertas recentes da Química, de que se poderia reduzir a matéria a combinações de elementos. Na p. 110 de [4], há uma nota com a relação dos elementos conhecidos então. Na época em que “A Gênese” foi lançada, os estudos sobre pesos atômicos já indicavam a “natureza quantizada” das massas dos elementos químicos, o que era uma indicação de que eles seriam formados por unidades discretas. Mas, tão só pela manipulação química, nunca foi possível decompor ainda mais nenhum dos elementos. A intenção do autor foi indicar possíveis “reduções adicionais” uma vez que declara que:
(a ciência da época)...os considera primitivos e indecomponíveis e que nenhuma operação, até hoje, pode reduzi-los a frações relativamente mais simples do que eles próprios. 
O ponto fundamental, que deve prender a atenção o leitor, é que ainda não havia sido descoberta a radioatividade. Essa nova área da Física permitiria a “redução a frações mais simples” dos elementos químicos então conhecidos. A história da radioatividade [10] se iniciou com a descoberta por H. Becquerel em 1895 de raios específicos gerados por determinados materiais, a partir da busca por “novos raios” como o Raio-X feita por W. Röntgen em 1895. Destacam-se ainda as descobertas do elétron (por J. J. Thomson em 1897) e da fissão nuclear (por L. Meitner e O. R. Frisch em 1938). 

Imagem de um antigo laboratório de farmácia. Na época de "A Gênese", a química tinha reduzido a matéria a um conjunto de "elementos químicos" irredutiveis. Nossa situação presente é a mesma: a matéria foi reduzida a um conjunto de "partículas e subpartículas elementares" (quarks, elétrons etc) que também são "irredutíveis".

Hoje podemos afirmar que todos os elementos químicos são de certa forma redutíveis a combinações de: o hidrogênio ionizado H+ (também conhecido como próton, que é o elemento mais leve e abundante no Universo conhecido), o nêutron (sem carga e com massa equivalente ao próton), além do elétron, de carga negativa, necessário para dar estabilidade ao conjunto. Cada elemento químico seria então formado por combinações dessas "substâncias mais primitivas". 

Mas prótons, nêutrons e elétrons não podem ser decompostos? A ideia de continuar a decomposição teve que esperar inúmeros outros desenvolvimentos na física de partículas. Chegamos hoje, por exemplo, à “teoria dos quarks” (de Gell-Mann e Zweig em 1964 [11]) que seriam os blocos fundamentais dos “hádrons” (prótons e nêutrons). Entretanto, essas partículas não podem ser “isoladas” e seus efeitos são inferidos indiretamente. 

Portanto, voltamos à mesma situação da Química do século XIX que não conseguia decompor os elementos então conhecidos em unidades ainda menores...Em certo sentido, isso é um retorno à "teoria dos quatro elementos" de que fala o autor de "Uranografia Geral". Embora os conceitos sejam muito diferentes e não possam ser comparados, a ideia é reduzir todas as variedades possíveis de matéria à combinações de elementos primitivos, no caso presente, partículas e subpartículas atômicas.

5

O autor reafirma a crença de que a matéria é formada de apenas um elemento: a "matéria cósmica primitiva" que participa, por associação aos corpos, da constituição desses. Como toda matéria, para existir, precisa de certa energia para se formar, a afirmação pode hoje ser interpretada como uma referência à energia primordial de que o Universo foi dotado desde sua criação, sem a qual não seria possível ter todas as variedades de matéria. Para "formar o Universo" não seria suficiente dotá-lo de matéria apenas, mas também de energia. Por causa das transformações nucleares, as duas coisas - matéria e energia  - acabam se confundindo. 

Hoje sabemos que essa energia existe disseminada em todo o espaço e, de suas flutuações, a matéria é  "criada".

6

O autor espiritual confessa o estado de ignorância em que ele se encontra para emitir opiniões sobre determinadas questões (de caráter científico). Isso é uma demonstração de sua humildade, talvez a razão de Kardec ter incluído a  "Uranografia Geral" em "A Gênese". Ele reafirma então sua crença na "unicidade da matéria", no sentido que ele conferiu anteriormente.

7

Outros argumentos são fornecidos para a ideia da matéria cósmica primitiva: a de que as diversidades observadas da matéria tangível se devem a um "número ilimitado de forças" que atuam transformando seus constituintes, o que foi plenamente verificado pelo desenvolvimento científico. 

A referência aos "fluidos propriamente ditos" não diz respeito somente aos "fluidos magnéticos" ou de natureza "espiritual" que encontramos em "O Livro dos Espíritos" e que fundamentam o Espiritismo, mas também a outros, que, no século XIX eram responsáveis pela atuação de "forças a distância" (como o fluido elétrico e o magnético propriamente dito). 

Hoje sabemos que, o Universo, mesmo onde ele é considerado "vazio", está repleto de um tipo de matéria que nos escapa à apreensão direta. Das flutuações nesse vazio, a matéria pode nascer, o que não era conhecido na época em que "A Gênese" foi lançada.

Não sabemos, entretanto, se os constituintes das partículas elementares podem ser decompostos ainda mais. Recentemente, inúmeros outros problemas - como o da "matéria escura" [12] - apareceram e desafiam as teorias vigentes. Entretanto, todos esses fluidos, para existir, necessitam de energia, o que é uma razão para associar esse elemento primitivo à energia primordial. Como o espaço considerado "vazio" (o vácuo) está cheio de energia [13] de onde pode nascer a matéria, talvez possamos dizer que a afirmativa do autor se concretizou em certo sentido.

Continua no próximo Post com "As leis e as forças".

A conclusão de nosso estudo será publicada no último post. 

Referências

[4]  A. Kardec (1991). A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. 34ª Edição, Trad. G. Ribeiro a partir da 5ª Edição de 1868. FEB. 

[5]  Idone, V. P., Orville, R. E., Mach, D. M., & Rust, W. D. (1987). The propagation speed of a positive lightning return stroke. Geophysical research letters, 14(11), 1150-1153.

[6]  Van Helden, A. (1983). Roemer's speed of light. Journal for the History of Astronomy, 14(2), 137-141.

[7] Aparelho de Fizeau-Foucault - Wikipedia Fizeau–Foucault apparatus 

[8] I. Newton (1990). Principia: princípios matemáticos de filosofia natural - Vol.I (Trad. Trieste Ricci et al.), São Paulo: Nova Stella / EDUSP,pp. 6-7.

[9] A. Kardec (1991). “O Livro dos Espíritos”. 71ª Edição traduzida por Guillon Ribeiro. FEB.

[10] Xavier, A. M., De Lima, A. G., Vigna, C. R. M., Verbi, F. M., Bortoleto, G. G., Goraieb, K., ... & Bueno, M. I. M. S. (2007). Landmarks In The History Of Radioactivity And Current Tendencies [marcos Da História Da Radioatividade E Tendências Atuais]. Química Nova.

[11] Quark – Wikipedia https://pt.wikipedia.org/wiki/Quark

[12] Matéria escura - Wikipedia https://pt.wikipedia.org/wiki/Mat%C3%A9ria_escura

[13] Sidharth, B. G. (2005). The universe of fluctuations (pp. 73-115). Springer Netherlands.



31 de dezembro de 2020

O idioma da esperança para um novo mundo


Comecei a sentir que talvez a morte não fosse um desaparecimento, 
mas um milagre, e que há um tipo de lei na Natureza 
que nos guie para algum destino... L. L. Zamenhof [1b]

Essas foram algumas dos últimos escritos de Zamenhof, o criador do Esperanto, registrado em sua obra Mi estas homo (“Eu sou uma pessoa”, [1c] conforme citado em [1]). Esse trecho sintetiza um dos últimos pensamentos antes da morte de Zamenhof em 1917. Não é novidade que diversas línguas artificiais foram criadas para motivar a comunicação internacional humana. Entretanto, nenhuma delas teve maior apoio internacional do que o Esperanto, criado por Ludwik Lejzer Zamenhof (1859-1917). Neste post exploramos algumas das razões para isso.

Quase sempre quando se fala em uma língua internacional, todos nos lembramos que já dispomos de uma: o inglês. Por isso, a proposta de uma nova língua sempre enfrenta críticas aparentemente robustas. No mais, o desenvolvimento sem precedentes de sistemas de inteligência artificial projeta a possibilidade de sistemas de tradução em tempo real que tornariam – em tese – desnecessário sequer a existência de uma língua universal. Não obstante isso, pessoas continuam a escolher e estudar um idioma para sua comunicação internacional, porque não parece fazer sentido se comunicar face a face via aparelhos.

Entretanto, de tempos em tempos, perturbações mais ou menos severas na ordem econômica e social chamam a atenção mais uma vez para o problema linguístico entre nações. A ameaça do deslocamento do eixo econômico do mundo para o oriente dispara um alerta: com base no poderio econômico, seria possível ao inglês perder seu status de língua internacional, assim como aconteceu ao Grego, ao Latim, ao Francês para citar os casos mais famosos? Estaríamos nossos filhos fadados a ter que aprender o Mandarim [5] como próxima língua dos negócios e da técnica?

Visto como um “divertimento” inconsequente por uns ou como perda de tempo por outros, por razões diversas o Esperanto sobreviveu a perseguições e zombarias. Recentemente, recebeu um grande impulso: a plataforma Duolingo de aprendizado de línguas online disponibilizou as duplas Inglês-Esperanto, Português-Esperanto e Espanhol-Esperanto. Ao todo aproximadamente 2,9 milhões de pessoas começaram a aprender Esperanto por meio desta plataforma, 1,6 milhões do Inglês, 870 mil do Espanhol e 366 mil do Português. [2]. Esses números referem-se aos komencantoj (iniciantes), não necessariamente os que terminam os cursos.


Se toda língua humana carrega uma bagagem cultural e se impõe com base na economia (todos queremos imitar os povos mais adiantados economicamente), qual poderia ser a força do Esperanto? Sem nenhum país a apoiá-lo e nem recursos financeiros, o Esperanto se apresenta como uma proposta de comunicação, mas ligada ao desejo de seu criador: o de um meio de propagação da fraternidade universal.

A origem superior do Esperanto

Se nós, os primeiros defensores do Esperanto, 
somos forçados a evitar qualquer coisa espiritual em nossas atividades, 
seria melhor que rasgássemos e queimássemos 
tudo o que temos escrito para o Esperanto, que desfizéssemos dolorosamente 
o trabalho e o sacrifício de nossas vidas, 
que arremessássemos longe de nós 
a estrela verde que ostentamos em nosso peito para gritar com repugnância: 
"Nada temos a ver com esse Esperanto, que existirá apenas a serviço do comércio e das coisas práticas". (L. L. Zamenhof, citado em [1], p. 31.

Todos conhecemos o apoio dado pelo movimento espírita ao ensino do Esperanto no Brasil. Esse apoio se estabeleceu principalmente com as palavras de Emmanuel [3] em uma mensagem em 1940:
Também o Esperanto, amigos, não vem destruir as línguas utilizadas no mundo para o intercâmbio dos pensamentos. A sua missão é superior, é da união e da fraternidade rumo à unidade universalista. Seus princípios são os da concórdia e seus apóstolos são igualmente companheiros de quantos se sacrificaram pelo ideal divino da solidariedade humana, nessas ou naquelas circunstâncias. A língua auxiliar é um dos mais fortes brados pela fraternidade, que ainda se ouve nesse Planeta empobrecido de valores espirituais, neste instante de isolacionismo, de autarquia, de egoísmo e de nacionalismo adulterado. 
Para compreender a justificativa desse apoio, basta consultar a história do desenvolvimento do idioma. Muito antes de se tornar oftalmologista, Zamenhof apresentou um “proto versão” de sua língua universal em dezembro de 1878 aos seus alunos. A “canção do batizado”, entoada como um hino por eles depois de aprenderem seus fundamentos, dizia:
Caiam, caiam as barreiras hostis entre as pessoas. 
É chegado o tempo! 
Toda Humanidade deve se reunir como uma única família. [1, p. 8].
Mais tarde, quando o Esperanto já se encontrava na forma como o conhecemos presentemente, no primeiro congresso universal de Esperanto de dezembro de 1905 na França com participantes de vinte países, Zamenhof fez um discurso bastante emocionado em que declarou:
...Pela primeira vez na história da humanidade, nós, cidadãos das mais diversas nações, permanecemos lado a lado, não como estrangeiros, nem competidores, mas como irmãos que, compreendendo-se mutuamente sem forçar nosso próprio idioma entre nós, não nos consideramos com suspeição porque a ignorância não nos divide, mas nos amamos uns aos outros; e apertamos nossas mãos, não com a insinceridade de um estrangeiro para com outro, mas de forma sincera, de um humano para com outro humano. Que não haja dúvida sobre a importância deste dia, pois hoje, dentro das fronteiras hospitaleiras de Boulogne-sur-mer, não testemunhamos o encontro de franceses com ingleses, de russos com poloneses, mas de seres humanos com outros seres humanos. Louvado seja este dia, assim como grandes e gloriosos sejam os dias que virão! [1, p. 24]

O caminho futuro do projeto de Zamenhof e sua língua haveria, porém, de colher muitos dissabores. As tensões começaram desde o início, quando Zamenhof pretendeu dar esse “aspecto espiritual” ao Esperanto, o que foi imediatamente interpretado como suspeito por causa de sua origem judaica. De fato, o idioma artificial era apenas uma parte de um projeto maior de Zamenhof para os povos, o que incluía uma nova religião: o Hilelismo. Tendo vivido em um lugar de conflitos raciais constantes, Zamenhof abominava toda e qualquer forma de discriminação, inclusive a de origem religiosa. O Hilelismo se baseava nos seguintes princípios:
  1. Sentimos e acreditamos na existência de uma “força superior” que governa o mundo e que chamamos “Deus”;
  2. Deus escreveu sua lei no coração de cada pessoa, por meio da sua consciência;
  3. A essência de todas as leis dadas por Deus é expressa pela regra áurea: Amar ao seu próximo e fazer aos outros o que gostaria que fosse feito a si mesmo; nunca se envolver com atos que sua voz interna diga estar em desacordo com os desejos de Deus.
  4. Quaisquer outros ensinos que se ouçam de professores ou guias religiosos e que não estejam de acordo com esses três princípios anteriores são construções meramente humanas que podem estar certas ou erradas.
      Zamenhof raciocinava que seria necessário reformar o Judaísmo pelo Hilelismo de forma a abrir aquele para todas as etnias, tal como já se abriram as grandes religiões, o Cristianismo, o Budismo e o Islamismo. 

      Desnecessário dizer que essa motivação religiosa à linguagem se tornou um estorvo: para ateus ela era muito religiosa, para religiosos não-judeus, era muito judaica e, para judeus, constituía uma negação do Judaísmo. Por isso, Zamenhof mudou seu nome para Homaranismo que poderíamos traduzir como “Humani-ismo”, um credo que teria a pessoa humana como elemento central. Os “Homaranistas” seriam membros da “raça humana”, despidos de qualquer diferença étnica, cultural ou religiosa. 

      Colocado dessa forma, é possível entender as palavras de Emmanuel que citamos acima. Movido por um ideal claramente superior, Zamenhof não conseguiu fazer do Homaranismo a religião praticada pelos esperantistas. Entretanto, seu idioma iria se tornar a língua artificial mais querida e aprendida no mundo, em parte por um esforço incansável de seus seguidores igualmente movidos pelo mesmo ideal. 

      Uma língua para um novo contexto internacional?

      O Esperanto foi o único idioma artificial que "pegou" de fato. Porém, na atualidade, as intenções de Zamenhof continuam a aquecer debates, principalmente se mal colocadas por pessoas preconceituosas ou incapazes de entender seus motivos superiores. É fácil misturar esses objetivos com movimentos políticos. 

      Historicamente, porém, foram registradas perseguições a esperantistas em países com os mais variados credos políticos [4]. A existência de pessoas que falam uma língua desconhecida em uma comunidade é terreno fértil para incontáveis teorias de conspiração. E Zamenhof, assim como muitos esperantistas, foram acusados de conspiração.

      Além disso, toda ideia original se torna corrompida quando sofre com supostos adeptos que pretendem torná-la exclusiva e que são incapazes de entender a pureza dos objetivos originais. Frequentemente, esses adeptos mal intencionados se tornam maioria e desviam o movimento completamente. Nesse sentido, a revelação do Esperanto também foi corrompida por atos e condutas divisionistas dentro do movimento original, como resultado da inferioridade do espírito humano. Até aqui, nada de novo.

      Importa, hoje em dia, que nos concentremos nas vantagens que o aprendizado do Esperanto pode ter, porque as “coisas práticas” podem ser decisivas para o sucesso futuro de uma proposta de língua universal efetiva. Alguns pontos recentemente observados na literatura, estão resumidos abaixo:

      • O ensino do Esperanto tem sido descrito na literatura como promotor do aprendizado multilinguístico [4c, 4d]. Ele é, portanto, uma excelente ferramenta de aprendizado de línguas;
      • Soa suspeito dizer que o “Inglês é fácil” depois de se ter investido décadas no seu aprendizado, de se ter consumido milhares de horas ouvindo músicas, filmes e discursos nessa língua. É preciso fazer realmente as contas de quanto países investem de recursos próprios [4a] no aprendizado do Inglês como uma contabilidade necessária de planejamento futuro. Além disso, as distancias linguística entre o Inglês para os idiomas não anglo-saxões tornam seu aprendizado, de fato, difícil.
      • A acusação de “falta de neutralidade” do Esperanto é consequência da opção de ação política de alguns grupos esperantistas, porém, nenhuma língua humana estará isenta da mesma acusação, que também pode se estender a presente língua franca, o Inglês. A recente saída do Reino Unido da Comunidade Europeia reaviva debates sobre o uso do Esperanto como língua dessa comunidade [4a].
      • O uso do Esperanto obedece a um princípio de “justiça linguística” [4b] pela não imposição de uma cultura associada a uma língua. Sua “falta de contexto” – como colocam os críticos – é justamente sua maior vantagem [2b]. Por outro lado, seu contexto é a fraternidade universal que tem com base a justiça, primeiramente a linguística.
      • Considerando tudo isso, também não é verdade que o Esperanto seja uma “língua fácil”. É um idioma com regras simples, mas isso não se traduz em facilidade imediata de aprendizado como muitos esperantistas afirmam. Como ferramenta de comunicação, sua eficiência já está provada. Como mecanismo de propagação da fraternidade universal, até agora, o Esperanto também demonstrou sua relevância [2b].

      Em tese o Esperanto poderia ser usado para promover relações internacionais em um cenário em que uma língua nacional perdesse sua importância por questões econômicas. A imagem mostra o Décimo Congresso Nacional de Esperanto, realizado na Província de Shandong, na China. Para saber mais sobre a curiosa trajetória e interesse dos Chineses pelo Esperanto, consulte [6].

      Conclusão

      Que uma língua só ajuda na administração de um vasto território não há dúvida: basta ver a praticidade de se usar o Português por 200 milhões de habitantes em um gigantesco país como o Brasil, ou o inglês nos Estados Unidos com idêntico território. Não se contesta o benefício de uma língua comum disseminada entre os povos. 

      Porém, preconceitos e hostilidades não desaparecem entre as pessoas pelo fato de adotarem uma língua única. Essas barreiras, entretanto, são reduzidas entre povos se eles passam a se compreender. Um idioma universal é, portanto, um primeiro passo para a concretização da fraternidade universal que exigirá nada menos que a reforma do coração humano. Contribui para essa reforma, antes de tudo, a educação.

      Nesse sentido, é importante considerar que o Esperanto não tem como objetivo substituir qualquer língua. Ele sempre será uma língua auxiliar. Passado tanto tempo do uso do inglês – que cumpre, por enquanto, o papel de língua franca e os objetivos previstos por Zamenhof – a proposta do Esperanto se apresenta num contexto de “justiça linguística” e de ameaças de perda do eixo econômico do mundo, o que enfraqueceria o Inglês (como aconteceu no passado com outros idiomas internacionais). 

      Isso resgata a necessidade de se planejar globalmente o ensino de idiomas, ou seja, é uma atividade a ser feita com base na cooperação entre os povos, o uso de um só idioma. Por outro lado, todos os outros idiomas usados internacionalmente se impuseram com base em poderio econômico ou influência política. 

      De qualquer forma, o Esperanto somente vingará em um ambiente onde a educação seja valorizada. Ou seja, desde que se prevejam todos os recursos típicos de educação de qualidade, onde seja possível estudar um idioma como complemento de sua familia lingvo (língua familiar, como diria Zamenhof), e onde haja boa vontade e prazer em estudar. Nesse sentido a combinação “Esperanto-internet” com todos os recursos de comunicação em plataformas rápidas ainda devem demonstrar seus efeitos. O Duolingo é um exemplo recente do poder da tecnologia no aprendizado de idiomas e poderá popularizar o Esperanto como nunca visto antes. 

      Restará, porém, tornar evidente a mensagem de fraternidade universal imaginada pelo seu criador, que contribuiu para que o sonho do Esperanto como língua universal não se extinguisse. Em um mundo em transição como a Terra, temos certeza que a mensagem de fraternidade imprimida por Zamenhof ao Esperanto se faz completamente necessária e disputará sua importância bem acima de qualquer outra motivação de ordem política ou econômica.

      Referências

      [1] A. Korzhenkov (2009) Zamenhof: the life, works, and ideas of the author of Esperanto. Mondial; Abridged Edition (4 maio 2010).

      [1b] Citado em [1], p. 50.

      [1c] Zamenhof L.-L. Mi estas homo / Komp., koment. A. Korĵenkov. Kaliningrado: Sezonoj, 2006.

      [2] R. Nielsen (2020). Kie estas la Duolinganoj?   https://www.liberafolio.org/2020/03/31/kie-estas-la-duolinganoj/

      [2b] P. Murphy. A Language for Idealists. Princenton Alumni Weekly. Janeiro de 2017.

      [3] “A missão do Esperanto. Mensagem psicografada por Francisco Cândido Xavier na cidade de Pedro Leopoldo (MG), em 19 de janeiro de 1940. Disponível em: https://www.febnet.org.br/blog/geral/estudos/a-missao-do-esperanto/

      [4] Lins, U., & Tonkin, H. (2016). Dangerous language: Esperanto under Hitler and Stalin. London: Palgrave Macmillan.

      [4a] Utri, R., & Warszawski, U. Could Esperanto be the Common Language in TheEuropean Union? Researchgate.net

      [4b] Brosch, C., & Fiedler, S. (2018). Esperanto and Linguistic Justice: An EmpiricalResponse to Sceptics. In Language Policy and Linguistic Justice (pp. 499-536). Springer, Cham.

      [4c] Roehr-Brackin, K., & Tellier, A. (2018). Esperanto as a tool in classroom foreign language learning in England. Language Problems and Language Planning, 42(1), 89-111.

      [4d] Tellier, A. (2012). Esperanto as a starter language for child second-language learners in the primary school. Esperanto UK.

      [5] "China deve se tornar a maior economia do mundo em 2028, diz centro de estudos britânico". Jornal "O Estado de São Paulo". Notícia de 26 de dezembro de 2020.

      [6] Chan, G. (1986). China and the Esperanto movement. The Australian Journal of Chinese Affairs, (15), 1-18.

      2 de novembro de 2020

      Comentários a um trabalho recente sobre psicografias


      Fazemos aqui alguns comentários ao trabalho recente de Freire et al "Testando a alegada escrita mediúnica: um estudo experimental controlado", apresentado na lista de referências como a Ref. [1] e citado em [1b]. Nosso objetivo é fazer uma apreciação inicial dele, sobre como seus resultados podem ser interpretados diante de eventuais críticas ou contra-críticas - tanto espíritas como céticas.

      Resumo

      Por ser bastante elucidativo como apresentação, traduzimos abaixo o resumo de [1]:

      Contexto: a mediunidade é entendida como um tipo de experiência espiritual em que uma pessoal (isto é , um médium) diz estar em comunicação com, ou sob o controle de seres espirituais. Nas últimas décadas, ressurgiram estudos sobre aspectos psicológicos, psiquiátricos e neurocientíficos da mediunidade, assim como estudos avaliando alegações de que médiuns podem obter informação anômala de pessoas falecidas.

      Objetivo: avaliar a evidência da recepção de informação anômala de pessoas falecidas em textos produzidos através da alegada mediunidade de escrita (cartas psicografadas) sob rigorosas condições eperimentais de controle.

      Método: oito médiuns e 94 consulentes participaram no estudo. Dezoito sessões de escrita mediúnica foram realizadas usando consulentes organizados em protocolo duplo-cego. Depois, cada consulente recebeu uma carta alvo e cinco cartas de controle pareadas por gênero e idade. Os consulentes pontuaram às cegas a acurácia das seis cartas tanto com conforme uma escala global como para cada um dos itens objetivamente verificáveis de informação apresentada nas cartas. Pontuações de cartas de controle e tratamento foram comparadas. 

      Resultados: não houve diferenças na avaliação global e adequação específica das pontuações entre cartas de controle e alvo. Os médiuns envolvidos na pesquisa não foram capazes de mostrar evidências de fornecer informação anômala sobre pessoas falecidas sob condições de controle rigoroso. Discutimos sobre o estabelecimento de um compromisso razoável entre condições ecologicamente válidas e de controle.  

      ​Não foram poucos as pesquisas desde a época de Kardec que provaram que a mediunidade "não existe" com base em resultados negativos de experimentos. Mas, cada nova negativa sempre foi pontuada por manifestações mais ou menos extraordinárias, obtidas em condições de "inexistência de controle" ou com médiuns igualmente extraordinários que são, entretanto, muito raros.  O consenso presente, envolvendo as chamadas "ciências psi" é de que não é possível reproduzir facilmente (leia-se "replicar à vontade") o fenômeno. De qualquer forma, não foi objetivo do trabalho [1] "provar" qualquer coisa em relação à realidade do fenômeno ou demonstrar sua inexistência.

      A seção "Discussão" de [1] discorre sobre três possíveis causas para o resultado negativo: i) que a mediunidade não existe; ii) que os médiuns usados não são, de fato, (bons) médiuns para produzir  fenômeno e; iii) não observância das "condições ecológicas" da manifestação pelo uso das condições de controle rigoroso. Os autores de [1] tomam a maior parte do espaço da seção citada discutindo sobre tais condições ecológicas, e sobre a influência negativa da presença dos consulentes "representantes" (proxy sitters).

      Os autores propõem ser desnecessário usar de tais representantes porque "não há realimentação imediata enquanto um médium está escrevendo uma carta psicográfica", ou seja, não ocorreria "cold reading" (leitura fria), supostamente existente em sessões em que médiuns, estando face a face com seus consulentes, "leem mensagens ocultas" nas expressões e gestos  desses últimos, o que permitiria aos primeiros escreverem sobre os parentes falecidos. 

      Em síntese: o protocolo usado é uma exigência da teoria cética da leitura fria como causa da mediunidade. Obviamente que isso gerou consequências para o resultado da pesquisa.

      O problema da replicabiliade de "psi"

      No contexto da parapsicologia, fenômenos psíquicos são explicados pela chamada "hipótese psi". Psi é concebido como uma causa difusa e desconhecida, que é supostamente captada pela mente humana nos "sensitivos".  Alguns parapsicólogos associam faculdades praticamente oniscientes a psi, que pode acessar o passado, o presente e o futuro, e é independente da distância. 

      Além disso, psi se comporta como um deus caprichoso: não é possível garantir que atuará da mesma forma em todos os experimentos em que supostamente atuou, nem mesmo se agirá de fato. No trabalho "Porque a maior parte das descobertas em psi são falsas: a crise da replicabilidade, o paradoxo de psi e o mito de Sísifo" [2],  T. Rabeyron explora e fornece uma descrição atualizada das principais interpretações e trabalhos sobre psi. 

      O problema da replicabilidade é a tendência observada em estudos (não só em parapsicologia, mas em psicologia e em medicina) de um determinado efeito "deixar de ser observado" ao se tentar replicá-lo posteriormente. Uma das causas imaginadas para isso são as chamadas "práticas de pesquisa questionáveis" que existiriam nos trabalhos iniciais de um pesquisa e deixariam de existir - com o suposto efeito - em trabalhos aprimorados posteriores. 

      Conforme analisado por Rabeyron, esse não é, entretanto, o problema de psi. Houve muitas tentativas de replicação em parapsicologia, algumas em que o fenômeno se manifestou, enquanto outras não. O problema parece se relacionar com uma interferência do "observador" (ou experimentador), porque psi supostamente também interage com ele. O experimento do artigo [1], se interpretado segundo psi, seria mais uma instância do problema da replicabilidade. A situação é tão grave que o autor de [2] conclui ser impossível, simplesmente por repetição exaustiva de experimentos (dai a referência ao "Mito de Sísifo"), demonstrar de forma satisfatória o efeito e nem sua causa:

      O problema subjacente é que, mesmo se um efeito significativo seja encontrado a cada passo, não há como concluir nada sobre a natureza do efeito e, consequentemente, não há como se produzir conhecimento científico sobre a fonte de psi: ele provém dos participantes? Do experimentador? Ele tem origem em cada experimentador separadamente? Ou ele é uma influência mais forte do primeiro que analisa os dados? Ou, talvez, daquele que projetou o experimento? [2]
      O "efeito do declínio" ou "desparecimento de "psi" é então entendido como um problema de replicabilidade genuíno devido à interação do experimento com o experimentador:  
      Um experimento de psi é como um ovo onde a casca encerra um sistema organizado fechado. Pode ser possível manter o efeito psi desde que esse envólucro organizacional não seja rompido, isto é, desde que o ovo não seja quebrado para ver o que há dentro. Nessa interpretação, as interações de psi são possíveis desde que o observador não interfira no sistema. Uma vez feito isso, "o jogo acabou". Isso explicaria porque a fonte de psi não pode ser determinada precisamente porque o processo de determinação destruiria as condições necessárias para a emergência de psi. [2]

      É importante reconhecer que, em nenhum momento, o trabalho [1] considera a hipótese "psi". Porém, para a comunidade científica em que ele se insere, o resultado podem ser interpretados em função da replicabilidade de psi (ou seja, fora da "hipótese da sobrevivência").

      Apelo a Kardec

      Numa época em que se fala tanto de Kardec nos meios espíritas (o que é muito bom), como ele procedia nesse tipo de pesquisa? Certamente, não usava o método de "grupo de controle e tratamento" para analisar mensagens psicografadas. Seu procedimento foi desenvolvido ao longo de 15 anos de investigações. Consistia essencialmente  na observação comparada do ambiente onde o fenômeno ocorria na presença de médiuns. Kardec sempre esteve ciente de que o fenômeno, para acontecer, depende de inúmeros detalhes e não apenas do(s) médiun(s). 

      Sua advertência justificada em fatos é:

      Os fenômenos espíritas diferem essencialmente dos das ciências exatas: não se produzem à vontade; é preciso que os colhamos de passagem; é observando muito e por muito tem­po que se descobre uma porção de provas que escapam à pri­meira vista, sobretudo, quando não se está familiarizado com as condições em que se pode encontrá-las, e ainda mais quando se vem com o espírito prevenido. (Grifos nossos) [3]
      Ao longo de mais de uma década, Kardec desenvolveu uma espécie de intuição ou sensibilidade sobre quem seria um bom médium para cada tipo de mediunidade possível. Então, passou a convidar pessoas que ele julgava por essa intuição para as sessões da Sociedade Espírita. É óbvio que, dispondo de bons médiuns desde essa perspectiva e conhecendo as condições de ocorrência do fenômeno [3b], ele conseguiu resultados extraordinários. 

      Finalmente, é importante ressaltar a postura de Kardec em suas pesquisas. Ele não considerava a sobrevivência como uma mera "hipótese de trabalho", nem buscou orientar seu trabalho de forma a ressaltar a comunicação com "supostos falecidos". O impacto que essa postura tem sobre o sucesso das manifestações ainda merece ser estudado.

      Os médiuns julgados

      Recomendamos vivamente ao leitor a leitura do artigo "Médiuns julgados" na Revue Spirite de janeiro de 1858 [4]. Nele Kardec analisa um caso de não replicabilidade obtida com médiuns americanos (ou seja, isso não acontece apenas com "médiuns brasileiros" como destacado em [1b]). Para não cansar nosso leitor, destacamos desse artigo um importante comentário de Kardec:
      Essa experiência prova, uma vez mais, da parte de nossos adversários, a absoluta ignorância dos princípios sobre os quais repousam os fenômenos das manifestações espíritas. Entre eles há a idéia fixa de que tais fenômenos devem obedecer à vontade e reproduzir-se com a precisão de uma máquina. Esquecem completamente ou, melhor dizendo, não sabem que a causa deles é inteiramente moral e que as inteligências, que lhes são os agentes imediatos, não obedecem ao capricho de ninguém, sejam médiuns ou outras pessoas. Os Espíritos agem quando e na presença de quem lhes agrada; freqüentemente, quando menos se espera é que as manifestações ocorrem com mais vigor, e quando as solicitamos elas não se verificam. (Grifos nossos) [4]
      Eis ai boa parte da razão para a não replicabilidade dos fenômenos psi dada por Kardec em 1858. O leitor deve notar que não estamos a falar nada novo, mas de algo que, logo nas primícias da Codificação, era conhecido. 

      Essa descoberta original de Kardec confirma as conclusões do trabalho de Rabeyron [2], porque nunca se produzirá conhecimento sobre a verdadeira causa de psi enquanto não se souber exatamente o que ele é. E não há como saber o que ele é, pois, em grande parte dos experimentos "projetados" para isso, ele se recusa a manifestar...

      Conclusão

      Com relação ao trabalho [1] nossa conclusão, baseada na seção "Discussão", é que os autores consideram relevante o problema da manutenção das "condições ecológicas" para a replicação positiva do efeito buscado. Tais condições ecológicas concordam com a necessidade de observar ou medir o fenômeno onde ele ocorre, sem amarras metodológicas e sem impor condições que possam destruir a manifestação. Isso concorda com as conclusões de Kardec logo no início da Codificação.

      O que então aconteceu? Pode ser que o resultado negativo não se deve à presença dos consulentes proxy (como grupo) sem força de vontade suficiente para permitir comunicação, mas à própria tentativa de forçar comunicações, o que não agradou aos responsáveis "do lado de lá". Pode ser também que alguém (uma única pessoa) tenha atuado como escolho ao experimento (ou várias pessoas). Dado a descrição que fazem dos médiuns (de que eles são considerados bons em relatos "anedóticos" de sessões), a ideia de que a culpa seria deles é mais remota. A "hipótese da sobrevivência" é um fundamento que gera inúmeras consequências: se há comunicação, pode não ser o caso que ela seja possível no intervalo de tempo projetado para o experimento: "é preciso que sejam colhidas de passagem", como diria Kardec.

      Se existem problemas de percepção da excelência mediúnica em grupos espíritas no Brasil, eles não serão resolvidos pela aplicação da metodologia do trabalho comentado aqui. Como na época de Kardec, não será simplesmente pela separação entre grupos em "controle" e "tratamento" dos recipientes das mensagens que se resolverá esses problemas. 

      Do ponto de vista epistemológico, um experimento é sempre um resultado de uma teoria que tem determinadas hipóteses subjacentes. É importante, entretanto, prever ou considerar o risco de que uma metodologia, baseada em hipóteses que não correspondem à realidade do fenômeno, pode se tornar um escolho para a manifestação dele. Portanto, deve-se considerar protocolos que anulem todas efeitos que não a "hipótese nula", porém, não demais ao ponto de destruir todas as condições para a manifestação dessa mesma hipótese.  

      De forma geral: é plenamente justificável em algumas ciências (como é o caso da fisiologia, medicina, sociais etc) estabelecer controles para tornar evidente um efeito. A ideia é que, a aleatorização de amostras e a separação entre grupo de controle e tratamento, elimine todas as condições externas que não aquelas ligadas ao efeito que se pretende tornar relevante. Mas, o que acontece se o fenômeno depender de condições externas para ocorrer? É uma consequência lógica (ou seja, independente da ciência em particular) que, nesse caso, o efeito a ser pesquisado desaparece, não se observando diferenças entre grupo de controle e de tratamento. 

      A história da fenomenologia mediúnica mostra que médiuns extraordinários são muito raros. A regra geral é que mesmo excelentes médiuns não podem ser encontrados facilmente. E mais, ainda na presença desses, eles não são capazes de fornecer comunicações conforme desejos ou caprichos dos sitters

      Dos problemas discutidos aqui, o mais grave, segundo nosso entendimento, é tentar forçar comunicações. É provável que, mesmo médiuns medianos, comunicações excelentes sejam possíveis, desde que observadas as condições naturais e não forçadas de ocorrência. 

      É quando se pretende encerrar o fenômeno dentro de um quadro ou contexto pré-definido que ele deixa de ocorrer. E isso é válido tanto nos ambientes de pesquisa acadêmica do assunto como provavelmente nos muitos ambientes espíritas (independente da nacionalidade) em que comunicações são buscadas "a qualquer preço". 

      Referências e comentários adicionais

      [1] E. S. Freire et al. Testing alleged mediumistic writing: An experimental controlled study. EXPLORE, 2020. https://doi.org/10.1016/j.explore.2020.08.017

      [1b] J. Sampaio (2020). Muitos resultados negativos na análise de cartas psicografadas por médiuns brasileiros. Disponível em: http://espiritismocomentado.blogspot.com/2020/10/muitos-resultados-negativos-na-analise.html (acesso em outubro de 2020)

      [2] Rabeyron, T. (2020). Why most research findings about psi are false: the replicability crisis, the psi paradox and the myth of Sisyphus. Frontiers in Psychology, 11, 2468. https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpsyg.2020.562992/full (Acesso em outubro de 2020)

      [3] A. Kardec. O que é o Espiritismo? Capítulo I - Pequena conferência Espírita, Primeiro diálogo - O crítico. Versão www.ipeak.com

      [3b] Tanto isso é verdade que, em inúmeras passagens da Revue Spirite, Kardec registra sempre ter pedido autorização a S. Luís para invocar os Espíritos. Ela sabia muito bem que não se pode forçar comunicações, pois são vários os impecilhos para sua ocorrência genuína.

      [4]  A. Kardec (1858). Revue Spirite. Os Médiuns julgados. Janeiro de 1858, p. 50. Versão FEB disponível em https://www.febnet.org.br/ba/file/Downlivros/revistaespirita/Revista1858.pdf (acesso em outubro de 2020).


      19 de outubro de 2020

      O Halloween e comemoração do dia dos mortos


      A chamada festa de Halloween ou a  "vigília de todos os santos" é comemorada na véspera do chamado "Dia dos Mortos", que a tradição colocou no início de novembro. Como acontece com todas as festas religiosas - o que inclui a data de Natal, considerada a mais "cristã" de todas, mas que na verdade nasceu dentro do Paganismo - o Halloween tem sua origem em tradições muito mais antigas. No Brasil, dada a influência dos Estados Unidos, os costumes têm se modificado para "festejar" tal data quando então as pessoas e as crianças vestem fantasias horripilantes, algumas criativas outras ridículas. Em outra visão, o Halloween é um grande festa comercial, onde muitos negócios e oportunidades de ganhos financeiros prosperam [1].

      A tradição do Halloween se iniciou com a festa de Samhaim dos celtas, ou povos que viviam na Europa, e que tinham a tradição de acender fogueiras, assim diz a lenda, para afastar "espíritos". Uma suposta "abertura" das comunicações e relações com as criaturas do além celta ocorreria no final de outubro, o que explicaria a festa. Segundo [2], essa interpretação é incorreta e não corresponde ao verdadeiro sentido da festa de Samhaim, que nada tinha de relação com os mortos. A razão era muito mais banal: a data coincidia com meados do outono, um tempo de colheita e prenunciava uma época de menores ganhos agrícolas, com a chegada do inverno e dias mais curtos. Os celtas dividiam o ano em verão e inverno; com início em 1 de maio para o verão e começo do inverno em 1 de novembro. O nome Samhaim significava "quando o verão acaba".

      Por volta do ano 1000, com a Europa completamente cristianizada, o papa Gregório III decretou a data de 2 de novembro como o dia final do tempo em honra aos santos, que se extendia de 13 de maio a 1 de novembro. A data do dia 13 tem a ver com a festividade de "Lemuria", uma festa romana de homenagem aos mortos. A data de 2 de novembro se deve a Santo Odilo, um monge de Cluny que decretou em 998 que todos os monastérios ligados a Cluny deveriam homenagear os mortos no dia seguinte ao dia 1 de novembro (provavelmente sob influencia ainda da data celta ou romana). 

      A festa, portanto, teve origem em um conjunto de sincretismos de difícil identificação, com contribuições de inúmeros povos diferentes. Seu relacionamento com a intervenção dos "mortos" tem origem cristã, provavelmente na tradição Clunisiana. Além disso, os Druidas, que se diz influenciaram as tradições do Halloween dos celtas, não permitiram que suas crenças fossem escritas e apenas compartilhavam conhecimento por via oral [2]. Em suma: pouco do que sabemos da contribuição dos Druidas ao Halloween pode ser confiado.

      Muitos podem se perguntar: qual a relação entre o Espiritismo e o Halloween? A resposta mais correta é: nenhuma. Quem hoje identifica qualquer relação, o faz sem qualquer base na história, mesmo das tradições, e apenas estabelece uma relação a posteriori que nunca existiu.

      Com o advento da compreensão espírita, sabemos que as forças mais próximas de nós no além são única e exclusivamente as almas dos homens (e mulheres que são de  mesma natureza que a dos homens), e que não podem ser destruídas, além, obviamente, de Deus e dos espíritos superiores que presidem ao destino dos mundos. Muitas aguardam novas oportunidades de renascimento em nosso mundo material. Dispondo da compreensão do Evangelho e do esclarecimento sobre a verdadeira natureza da vida humana, sabemos hoje que somos muito favorecidos pelas amizades que guardamos no Além dos que partiram antes de nós. Fora disso, não se confirma a existência independente de nada representado na festividade do Halloween. 

       Referências

       [1] BELK, Russell W. Halloween: An evolving American consumption ritual. ACR North American Advances, 1990.

       [2] GEORGE, Arthur. Halloween: Eve of Transformation. In: The Mythology of America's Seasonal Holidays. Palgrave Macmillan, Cham, 2020. p. 149-173.