1 de março de 2020

O sistema de Sírius segundo Emmanuel

Representação do Cão Maior superimposta ao mapa Stellarium. Sírius é a estrela mais brilhante do céu.

(...) Pouco depois, ei-la que aporta em portentosa esfera, inconfundível em magnificência e grandeza. O espetáculo maravilhoso de suas perspectivas excedia a tudo que pudesse caracterizar a beleza no sentido humano. A sagrada visão do conjunto permanecia muito além da famosa cidade dos santos, idealizada pelos pensadores do Cristianismo. Três sóis rutilantes despejavam no solo arminhoso oceanos de luz mirífica, em cambiâncias inéditas, como lampadários celestes acesos para edênico festim de gênios imortais. (...) Ao crepúsculo, quando se despediam no espaço os raios dos três sóis diferentes, em deslumbramento de cores, Alcione reuniu-se a numeroso grupo de amigos e orou com fervor, suplicando as bênçãos do Pai misericordioso. O firmamento enchia-se de claridades policrômicas e deslumbrantes. Satélites de prodigiosa beleza começavam a surgir na imensidade, envolvendo a paisagem divina num oceano de luz. (Emmanuel, "Renúncia", ver [1])

É comum encontrar descrições de sistemas astronômicos em mensagens mediúnicas.  Camille Flammarion, por exemplo, descreve um relato de A. Aksakof de que um médium teria feito revelações em 1859 sobre a existência de dois satélites em Marte [2], 18 anos antes da descoberta. Outros exemplos de descrições já foram abordadas neste blog [3]. Diante das dificuldades em se confirmar tais previsões, ressaltamos a cautela que devemos ter na sua interpretação. Isso porque o contexto ou ambiente não é aquele dos olhos terrenos, mas a impressão dos Espíritos. Muitas vezes, a descrição é embelezada pelo lirismo que o autor espiritual, pelo filtro mediúnico, pretende conferir às palavras, o que pode não corresponder exatamente à intenção do autor. De qualquer forma, teoricamente, os Espíritos (superiores) podem produzir descrições de objetos ainda inacessíveis a observatórios terrestres.

Tal é o caso da descrição que abre este post. Foi colhida do livro Renúncia e antecede o Capítulo II, que, como narrativa, tem seu início no ano de 1662. O autor espiritual, Emmanuel, conhecido guia de F. C. Xavier descreve o sistema estelar de Sírius ou a "estrela do cão" (ou α  Canis Majoris) como é conhecida na Terra. Os personagens principais de Renúncia são Pólux e Alcíone. Alcíone, um Espírito superior habitante do sistema de Sírius, visita alguma região inferior do Plano Espiritual para consolar e advertir um outro espírito (Pólux) a quem ela está ligada por laços afetivos. Uma vez que Pólux estava em um plano de vida inferior, não percebe a aproximação de Alcíone. Pólux, com intensas saudades dela, começa a orar e pede que seja concedida a oportunidade de se encontrar e ouvir Alcíone. Depois de confortar e orientar Pólux, Alcíone retorna ao sistema de Sírius. Tal como no caso relatado em [3], trata-se de uma descrição do Mundo Espiritual. 

A evolução de nosso conhecimento sobre Sírius

Até 1846, o nosso Sistema Solar somente ia até Urano. Nesse ano (1846), foi descoberto Netuno [4]. Plutão não era conhecido até 1930. Em 1992, um corpo foi o primeiro objeto transnetuniano descoberto depois de Plutão. Sem falar de novidades da sonda espacial New Horizons, em 2015. Então, usando de uma expressão coloquial, “se dentro do nosso quintal" ainda estamos detectando novos corpos, imaginemos no Sistema de Sírius, distante 8 anos-luz da Terra?

Novidades, de fato, vieram com o desenvolvimento de inúmeras técnicas mais recentes de detecção de planetas em outros sistemas estelares, a partir de uma primeira descoberta de um planeta a orbitar uma estrela da sequência principal, feita em 1995 [5]. Essa técnica tornou-se quase que uma área independente na Astronomia [6]. Hoje contamos com uma coleção de muitos exoplanetas conhecidos [7]. 

Há diversos trabalhos acadêmicos que propõem o caráter triplo de Sírius [8,9]. A estrela principal (chamada Sírius A) foi descrita como contendo uma companheira - claramente visível em telescópios, mesmo que amadores - chamada 'Sírius B'. A descoberta de Sírius B ocorreu em 1862 e foi realizada pelo fabricante de telescópios Alvan Clark e seu filho. Essa companheira é uma estrela muito pequena (do tipo 'anã branca') e orbita a principal com período de aproximadamente 50 anos. De fato, Sírius B é descrita como a mais brilhante anã-branca visivel. Ao longo do tempo reportaram-se irregularidades no movimento de Sírius B que foram creditados à existência de um terceiro corpo. Parece que tal corpo, em alguma época anterior foi observado, mas não conclusivamente descoberto.

Concepção artística moderna de um planeta em um sistema estelar triplo.
Em artigo recente [9], os autores discutem a possibilidade de observação desse terceiro corpo com base em medidas tomadas com o telescópio espacial Hubble. Uma conclusão preliminar (não inteiramente absoluta) descarta tal corpo dentro de um intervalo de massa específico. Esse descarte, é importante ressaltar, é feito para um intervalo de massa, o que implica que, corpos com pequena massa (ainda que emitindo luz, tal como as 'anãs marrons') poderiam existir. É importante lembrar que, dado o brilho intenso de Sírius A, a observação do sistema inteiro, inclusive um terceiro corpo, é bastante difícil. 

Uma 'anã marrom' é uma estrela de pequena massa que emite pouca luz visível e uma quantidade muito grande de infravermelho. Aos olhos humanos, uma anã marrom, se existir no sistema de Sírius, seria observada como uma estrela de cor magenta, desde que o observador estivesse bem próximo do sistema. O céu de um planeta que orbitasse uma das estrelas do sistema de Sírius, seria composto de três sois: Sírius A (o principal que dominaria o brilho do céu), Sírius B (a anã branca, menos luminosa e branca) e o ainda-a-ser-descoberto Sírius C de cor rosa-avermelhada, consideravelmente menos brilhante. O brilho relativo dessas estrela como visto desde o planeta dependeria da sua posição nesse no sistema triplo.

É interessante considerar que apenas recentemente as anãs-marrons foram propostas e descobertas como objetos que preenchem a lacuna entre as estrelas e os grandes planetas como Júpiter. Uma anã-marrom pode produzir luz por fusão de Deutério [16]. Entretanto, o pico de sua emissão de energia está no infravermelho que, como radiação eletromagnética, pode ser aparente aos Espíritos como luz.

Entretanto, a observação de um corpo desse tipo, desde a Terra, seria muito difícil, dada a distância e sua pequena luminosidade. A linha de investigação de um terceiro corpo ao redor de Sirius B é promissora, no sentido de que se prevê que o excesso de infravermelho observado com estrelas anãs-brancas seja explicável [10,11] como produzido por uma companheira muito mais débil como uma anã-marrom ou por um disco de poeira. Um trabalho científico de 2008 (ver [12]) parece ter detectado um excesso de infravermelho ao redor de Sírius B que pode ser interpretado como evidência da existência de uma companheira no limite inferior de estrelas do tipo 'anãs-marrons'. Em [9] é discutido, no limite de erro do Hubble, que uma estrela desse tipo poderia existir de forma estável tanto ao redor de Sírius A como de Sírius B. Não se esgotam em [9] outras possibilidades de  órbitas estáveis, já que esse trabalho seguiu uma linha particular de investigação no sistema restrito de três corpos. 

A narrativa dos Dogons

Ainda sobre Sírius, é preciso citar ao menos de passagem o trabalho feito pelo africanista Marcel Griaule (1893-1956) junto ao grupo étnico dos Dogons e publicado em 1950 [12b] em parceria com G. Diertelen. Segundo Griaule, esse povo teria cultuado Sírius e conhecido seu caráter triplo, mesmo sem contar com telescópios. O conhecimento avançado dos Dogons sobre Sírius seria um importante ingrediente da religão desse povo. A referência [12b] é uma descrição pormenorizada da crença Dogon sobre Sírius feita por esses pesquisadores.

O trabalho de Griaule alimentou especulações mais recentes, como as do livro de R. Temple "O Mistério de Sírius" [13], que creditou o conhecimento dos Dogons a avançadas raças alienígenas provenientes de Sírius (consoante a tese dos 'deuses astronautas' de von Däniken). Toda essa história serviu para fomentar um intenso debate entre ufologistas e céticos (inclusive com contribuições por Carl Sagan) que, no afã de desqualificar a tese ufológica, lançaram dúvidas sobre todo o trabalho de Griaule.

De acordo com recentes reinterpretações [14,15], Griaule teria na verdade tomado de forma exagerada descrições passadas aos Dogons por meio de europeus ainda no Século XIX ou depois, dado o conhecimento do pesquisador em astronomia. De fato, edições posteriores do livro de Temple afirmam que Sírius C teria sido descoberta em 1995 e citam o trabalho de Benest e Duvent [8] que é, na verdade, um estudo teórico. Entretanto, a descrição cética do trabalho de Griaule-Diertelen pode ser uma 'conspiração' para desqualificar esses pesquisadores. Infelizmente para nós não é possível lançar dúvidas no trabalho do africanista Griaule (e Diertelen). Apenas registramos que invenção de fatos  pode existir em ambos os lados do debate.

Conclusão

É possível que a busca por uma terceira componente em Sírius tenha sido sugerida aos astrônomos pelos estudos de Griaule e a controvérsia com os céticos. Por outro lado, hoje (em 2020) ainda não é possível afirmar que um terceiro corpo com luz própria orbite o sistema duplo Sirius A-B. Com o avanço das técnicas de medida, a situação pode mudar radicalmente. Esse mesmo avanço na técnica permitiu concluir que uma provável Sírius C como previsto por  Benest e Duvent [8] (que orbitaria Sírius A a cada 6 anos) não deve existir, deixando abertas outras possibilidades.

A narrativa de Emmanuel oferece uma segunda opção de informação que pode gerar futuras buscas. Seria possível refinar estudos em astrodinâmica e propor novas possíveis órbitas que estão fora dos limites de massa deduzidos por estudos recentes? Seria possível confirmar que o excesso de infravermelho na luz de Sírius B se deve a uma companheira minúscula? Quais são as regiões do sistema Sírius A-B em que um terceiro corpo inacessível à óptica do Hubble pudesse ser encontrado?

Este post sugere que uma possível Sírius C seria uma "anã-marrom" como são conhecidas estrelas de massa reduzida. Foi uma descoberta relativamente recente que tais objetos podem produzir luz própria pela fusão de Deutério [16].

Colaboração

Texto escrito em colaboração com Maurício Brito que sugeriu o tema e chamou a atenção para a controvérsia dos Dogons.

Mauricio Brito: Jornalista - Bacharel em Comunicações Sociais, espírita atuante na Comunhão Espírita de Brasília e Centro Espírita da Fraternidade Cícero Pereira-CECIPE, ambos em Brasília/DF. Aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada/IPEA - Brasília/DF. email: mauriciobrit@gmail.com

Referências

[1] F. C. Xavier. Renúncia - História real. Século de Luís XIV. Em França, Espanha, Irlanda e Américas. Heroísmo e Martírio de Alcíone. Cap. I, "Sacrifícios do Amor", p. 25, Ed. FEB. 27a Ed. (1944)

[2] C. Flammarion. Mysterious Psychic Forces: An Account of the Author's Investigations in Psychical Research, Together with Those of Other European Savants. Small, Maynard and Company (1907).


[4] Smart, W. M. (1947). John Couch Adams and the discovery of Neptune. Popular Astronomy, 55, 301. http://adsabs.harvard.edu/full/1947PA.....55..301S

[5] Discovery of Exoplanets. Wikipedia. Acesso em Fevereiro de 2020.

[6] Perryman, M. (2012). The history of exoplanet detection. Astrobiology, 12(10), 928-939.

[7] A questão da encarnação em diferentes mundos: um novo tipo de matéria?

[8] Benest, D., & Duvent, J. L. (1995). Is Sirius a triple star?. Astronomy and astrophysics, 299, 621. Ver http://articles.adsabs.harvard.edu//full/1995A%26A...299..621B/0000621.000.html

[9] Bond, H. E., Schaefer, G. H., Gilliland, R. L., Holberg, J. B., Mason, B. D., Lindenblad, I. W., ... & Young, P. A. (2017). The Sirius system and its astrophysical puzzles: Hubble Space Telescope and ground-based astrometry. The Astrophysical Journal, 840(2), 70. Ver: https://iopscience.iop.org/article/10.3847/1538-4357/aa6af8/pdf

[10] Zuckerman, B., & Becklin, E. E. (1992). Companions to white dwarfs: very low-mass stars and the brown dwarf candidate GD 165B. The Astrophysical Journal, 386, 260-264. Ver: http://adsabs.harvard.edu/full/1992ApJ...386..260Z 

[11] Farihi, J., Becklin, E. E., & Zuckerman, B. (2005). Low-luminosity companions to white dwarfs. The Astrophysical Journal Supplement Series, 161(2), 394. Ver: https://iopscience.iop.org/article/10.1086/444362/pdf

[12] Bonnet-Bidaud, J. M., & Pantin, E. (2008). ADONIS high contrast infrared imaging of Sirius-B. Astronomy & Astrophysics, 489(2), 651-655.Bonnet-Bidaud, J. M., & Pantin, E. (2008). ADONIS high contrast infrared imaging of Sirius-B. Astronomy & Astrophysics, 489(2), 651-655. Ver: https://www.aanda.org/articles/aa/abs/2008/38/aa8937-07/aa8937-07.html

[12b] Griaule, M. and G. Dieterlen (1950). "Un systeme soudanais de Sirius," Journal de la Societe des Africanistes 20: 273-294. Ver: https://www.persee.fr/doc/jafr_0037-9166_1950_num_20_2_2611

Sobre o 'Enigma de Sírius', um vídeo recente pode ser acessado aqui: https://www.youtube.com/watch?v=nTDSt9niRfI (Acesso em fevereiro de 2020).

[13] Temple, R. (1976). O mistério de Sirius. Madras, 2005. Trad. S. Maria Spada.

[14] Coppens, P. (2020). Dogon shame. Ver: https://www.eyeofthepsychic.com/dogonshame/

[15] de Montellano, B. R. O . The Dogons Revisitedhttp://www.ramtops.co.uk/dogon.html

[16] LeBlanc, F.  (2010). An Introduction to Stellar Astrophysics. United Kingdom: John Wiley & Sons.

5 de janeiro de 2020

Comentários a uma tirinha sobre como é ser ateu.


Premissa 1: Há uma distinção entre a crença que se tem na maneira como o mundo é e aquilo que o mundo verdadeiramente é. Mas, em relação a quais temas de crença essa diferença é capaz de mais impactar a vida do indivíduo, observado certo intervalo de tempo?

É perfeitamente possível ter uma crença sobre como o Universo é e existe, mas o Universo em si ser completamente diferente.

Isso implica que, para a vida prática, manter crenças muito diferentes do 'real' com fatos da Natureza, por exemplo, têm pouco ou nenhuma influência sobre o bem-estar e a adaptabilidade do indivíduo que manifesta essa crença. 

É por isso que é possível ser ateu e viver muito bem, ou acreditar que a terra é 'plana' sem que isso tenha qualquer efeito mais grave na vida do indivíduo que crê nisso.

Premissa 2: Em geral se assume que quanto mais próximo do 'real' estiver tudo aquilo que se crê, tanto mais certo estará a vida do indivíduo. Portanto, tanto mais preferível será sua crença (em relação à outra menos real). Entretanto, essa correlação é falsa.

Assim, pessoas usam suas próprias crenças para se distinguirem das outras. Determinados credos políticos - que pouco tem a ver com a vida prática - podem impactar na vida social e separar as pessoas, o que é um grave erro.

O ateu vive muito bem sem acreditar em Deus e o terraplanista igualmente bem sem acreditar na Terra esférica: cada um se acha mais certo do que o outro, porque pensam que suas próprias vidas dão prova da correção de suas crenças. 

A realidade é que não existe tal correlação.

Onde está o problema

O problema aparece quando o indivíduo mantem crenças muito diferentes da 'realidade' em relação aos fatos e coisas que estão perto dele, ou seja dos fatos e coisas que podem em curto prazo prejudicar muito o próprio indivíduo, seu corpo ou sua condição de vida. 

Assim, não convém discordar ou se inconformar com a realidade financeira da vida, ou manter ideias heterodoxas ou pouco confiáveis sobre as motivações reais das pessoas. Isso pode resultar em problemas graves de relacionamento ou em dificuldades financeiras que logo surgem. Da mesma forma, não convém discordar da opinião do médico ou especialista em saúde em se tratando do bem-estar do corpo.

Mas, o maior impacto, sem dúvida, existe quando o indivíduo passa a manter crenças errôneas em relação a ele mesmo. Por exemplo: falha em perceber que poderia ter conseguido um alvo de vida, mas se sentiu incapaz para isso.

Em suma: essa diferença entre realidade e crença pessoal é mais grave com as coisas ou fatos do mundo psicológico, relacionamento pessoal, vida afetiva, profissional etc. Dai a enorme literatura de auto-ajuda, que pretende 'reprogramar' a crença pessoal de acordo com a realidade.

O problema do prazo de verificação das crenças

Por outro lado, qual o impacto de se manter determinadas crenças relaciadas ao mundo espiritual?

É certo que, para a vida prática, desde que ela não impacte a relação entre as crenças sociais e a realidade social, mental e de saúde, pouco ou nenhum efeito será observado. Esse é uma as grandes motivações dos indivíduos anti-religiosos.

Mas é preciso considerar o prazo em que se observa os efeitos.

Pois a manutenção de crenças errôneas pode impactar em diferentes prazos: curto, médio e longo. Alguém que fume moderamente pode não sofrer em poucos meses dos males do tabaco. Lenta mas inexoravelmente esses males virão, mais a frente, quando seu corpo envelhecido não mais conta com os recursos necessários para contrabalançar os efeitos do fumo.

Porém, o reconhecimento disso depende fortemente da própria crença que se tem no mundo. Para o ateu e materialista, não há que se preocupar como o 'longo prazo', pois a vida termina com a morte. É por isso que se vêem tantos ateus e materialistas dedicados à defesa de determinadas crenças políticas, visto que a única sobrevivência futura que entendem é a da própria sociedade que se pensa poder ser melhorada por meio de doutrinas políticas. 

Mas e se não for assim? Uma das razões de existir das religiões é esta: dar ao indivíduo uma crença do mundo espiritual que traga consequências práticas para a sua vida futura.

Houve um tempo no passado em que toda a estrutura da sociedade foi montada com o fim único em garantir a salvação do indivíduo. Tão forte era a crença nessa necessidade que a arte, a ciência e a política se voltavam exclusivamente para esse objetivo de longo prazo.

Entretanto, em matéria de religião há uma multiplicidade muito grande de propostas e, em uma visão 'realista do mundo' (a de que existe uma e apenas uma realidade externa), é impossível que todas estejam corretas ao mesmo tempo.

Em particular é grave erro acreditar que só porque se mantém uma determinada crença em Deus, ele deve obrigações ou benesses de curto prazo ao crente. É quase que um princípio lógico, que pode ser enunciado de forma independente que, existindo Deus, as consequências para a vida do indivíduo não devem depender de sua sorte em acreditar na imagem correta de Deus. Primeiro porque acreditar no  que seria o 'certo' não está equitativamente distribuido nem no espaço, nem no tempo, de forma que seria uma contradição com a própria justiça de Deus.   

Um dos maiores paradoxos para os crentes religiosos é constatar a existência de ateus endurecidos que se deram muito bem na vida. Como pode Deus ser tão bom para eles? Pensam que a vida de delícias do descrente é uma cilada ou antecâmara dos tormentos que o aguardam na vida futura. Mas, na realidade, é a própria ideia que fazem de Deus é que está errada.

É ai que está a maior importância da descoberta de Kardec da comunicabilidade dos Espíritos. Para não espíritas trata-se de uma crença. Mas, na realidade,  Kardec descobriu um caminho de investigação que conduziu a descobertas surpreendentes. Tão surpreendentes que conseguiu unir ateus e cristão rigorosos, os primeiros a exigir 'evidências' sem teoria e os segundos em um grito de blasfêmia.

Uma vez verificada a existência do Espírito e sua possibilidade de comunicação, é possível inspecionar o impacto em longo prazo da manutenção de determinadas crenças, inclusive aquelas sobre o mundo espiritual. E esse é uma das maiores contriuições do Espiritismo, ainda que não reconhecido talvez mesmo entre a maioria dos espíritas.

Nessa investigação, Kardec descobriu que as consequências para a vida futura do homem não dependem da crença que ele mantem na Divindade. Essa correlação, se existir, advem da chance de seus atos serem impactados por tais crenças. 

O destino de felicidade ou não dos humanos depende inteiramente do compromisso que têm para com o bem. Para isso, Deus dotou o homem da capacidade de discernir entre o bem e o mal em um prazo de tempo que não se restringe apenas a uma vida.  

Essas descobertas abrem um mundo completamente novo. Primeiro porque torna cientificamente irrelevante a crença específica em Deus, mesmo porque isso muda conforme as várias existências que o indivíduo tem. É uma marca da consistência interna do Espiritismo com Kardec que seus princípios se reforcem e não se contradigam uns aos outros. 

Depois porque se conclui que, mesmo diferentes, todas as religiões estão corretas ao mesmo tempo. O caminho de vida do agnóstico ou do não religioso pode ser apenas um pouco mais espinhoso do que a do crente. Ao constatar que as consequências para a nossa vida futura dos nossos atos não dependem de nossas crenças, mas dos nossos atos, abre-se um caminho igualitário para todos. As eventuais diferenças estão todas nos aspectos externos da existência, o que inclui nossas crenças. 

A linha de evolução da vida é dupla: há uma que constantemente se renova a cada nova existência e outra que permanece perene além dessa vida. A cada oportunidade, independentemente dos aspectos transitórios (condições materiais, crenças, educação herdada, oportunidades etc), o Espírito tem a chance de se reinventar marcando na linha perene as suas escolhas. Conforme assim procede ele colhe, mais para frente, as consequências. 
Tal deve ser, para ele, a vida futura, quando esta não estiver mais perdida nas nuvens da abstração, mas uma atualidade palpável, completamente necessária da vida presente, uma das fases da vida geral, como os dias são fases da vida corpórea; quando verá o presente reagir sobre o futuro, pela força das coisas, e sobretudo quando compreenderá a reação do futuro sobre o presente : quando, em uma palavra, verá o passado, o presente e o futuro se encadeando por uma inexorável necessidade, como a véspera, o dia e o dia seguinte na vida atual, oh! então as suas ideias mudarão completamente, porque verá, na vida futura, não somente um objetivo, mas um meio; não um efeito distante, mas atual; será então, também, que essa crença exercerá, forçosamente, e por uma consequência muito natural, uma ação preponderante sobre o estado social e a moralização. 
Tal é o ponto de vista sob o qual o Espiritismo nos faz encarar a vida futura. [1]

Referências

[1] A. Kardec. I Parte, "A Vida Futura", Óbras Póstumas. https://obraspostumasak.wordpress.com/a-vida-futura/