29 de outubro de 2019

Victor Hugo sobre a morte (II)

Imagem: túmulo no Cemitério de Bologna.
Quando estiver no túmulo poderei dizer, como tantos outros: 
‘terminei minha jornada’ e não ‘terminei minha vida’. 
Minha jornada recomeçará no outro dia, de manhã. 
O túmulo não é um labirinto sem saída; é uma avenida, 
que se fecha no crepúsculo e volta a se abrir na aurora. (Victor Hugo)

O fragmento de texto que segue foi extraído da referência [1], conforme discurso proferido por Vitor Hugo (1802-1885). Alguns comentários (conforme a numeração) são apresentados na sequência.  
Quem pode dizer-nos que eu não volte a encontrar-me nos séculos futuros? Shakespeare escreveu: «A vida é um conto de fada que se lê pela segunda vez». Poderia ter dito pela milésima vez. Porque não há século pelo qual eu não veja passar minha sombra (1).
Vós não acreditais nas personalidades moventes, quer dizer, nas reencarnações (2), com o pretexto de que não recordais nada de vossas existências passadas, mas como as lembranças dos séculos desvanecidos poderiam estar impressas em vós quando não vos recordais (3) nada das mil e uma cenas de vossa vida presente? Desde 1802 hei de ter tido em mim dez Victor Hugo! Creis vós que me lembro de todas as ações e de todos os seus pensamentos?
Quando houver atravessado o túmulo para voltar a encontrar outra luz, todos esses Victor Hugo me serão um pouco estranhos, mas esta será sempre a mesma alma!  (4)
Sinto em mim toda uma vida nova, toda uma vida futura; sou como a selva que muitas vezes foi derrubada; os jovens rebentos são cada vez mais fortes e vivazes. Eu subo, subo, subo até o infinito. Tudo é radiante à minha frente, a terra me dá sua seiva generosa, mas o céu me ilumina com o reflexo dos mundos entrevistos (5). 
Dizeis vós que a alma é a expressão das forças corporais: por que então minha alma é mais luminosa quando as forças corporais irão já me abandonar? O inverno está sobre minha cabeça, à primavera está em minha alma (6); aspiro aqui nesta hora às lilases e às rosas como se tivesse vinte anos. À medida em que me aproximo da velhice, melhor escuto ao meu redor as imortais sinfonias dos mundos que me chamam. É um conto de fadas, mas é uma história.
Faz meio século que escrevo meu pensamento em prosa e verso, história e filosofia, drama, novela, legendas, sátira, ode, canção; de tudo tenho tratado, mas sinto que não disse mais que a milionésima parte do que é meu. Quando estiver no túmulo poderei dizer, como tantos outros: ‘terminei minha jornada’ e não ‘terminei minha vida’. Minha jornada recomeçará no outro dia, de manhã (7). O túmulo não é um labirinto sem saída; é uma avenida, que se fecha no crepúsculo e volta a se abrir na aurora. [1]
Comentários
  1. Aqui o grande poeta torna explícito sua crença não só na continuidade da vida, mas na multiplicidade das existências. Para isso, ele usa a bela figura de linguagem "não há século pelo qual eu não veja passar a minha sombra". 
  2. Citação explícita da reencarnação. A reencarnação é definida como a 'volta do Espírito à vida corpora'. Ainda segundo Kardec: A reencarnação pode dar-se imediatamente após a morte ou depois de um lapso de tempo mais ou menos longo, durante o qual o Espírito fica errante. Pode dar-se na Terra ou em outras esferas, mas sempre num corpo humano e jamais no de um animal. A reen­carnação é progressiva ou estacionária: jamais é retrógrada. Nas novas existências cor­porais pode o Espírito decair como posição social, mas não como Espírito; por outras pa­lavras, de senhor pode tornar-se servo, de príncipe, artesão, de rico, miserável, contudo progredindo em sabedoria e moralidade. Assim, o celerado pode tornar-se homem de bem, mas o homem de bem não se tornará um celerado. (A. Kardec, "Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas", Vocabulário Espírita, REENCARNAÇÃO)
  3. Hugo se coloca aqui contra o argumento ingênuo do 'esquecimento', o de que deveríamos nos lembrar das existências anteriores se elas existem. De fato, sendo a memória humana de vários tipos, não temos acesso a todas as lembranças, algumas se conservam (como no caso das memórias de 'procedimentos', 'habilidades' etc), enquanto que a imensa maioria dos fatos vividos é esquecido. Durante a transição entre corpos, as lembranças pregressas são completamente apagadas e o novo 'eu' se forma com base na bagagem de personalidade que traz do passado com a estrutura do sistema nervoso que tem na nova vida.
  4. O que somos em realidade não se divide pelo fato de termos várias vidas. Isso é verdade mesmo dentro de uma existência e constitui um 'mistério' para as explicações materialistas da mente. Como é possível que a personalidade permaneça una, não se fragmente ou mude com o tempo, não obstante as inúmeras memórias e experiências vividas?
  5. Os 'mundos entrevistos' são os muitos planetas que existem no Universo, mundos em que a vida, em novas formas e densidades, se manifesta de forma exuberante e perene.
  6. Se a alma nada mais é que produto do corpo (cérebro), o poeta argumenta com razão que a decreptidude do corpo em nada alterou sua percepção das coisas, ao contrário, sente-se ainda como se estivesse na juventude e de posse de uma inspiração ainda mais forte.
  7. De fato, após a longa agonia da morte - para aqueles que esperaram sua lenta chegada - ela muito se assemelha a um novo despertar: é a vida que começa em um novo amanhã. Para outros, será o pavor dos que pensam erroneamente ser apenas o fim.
Referência

[1] Mariotti, H (1989). Victor Hugo Espírita. 2a Edição. EME Editora: Capivari/SP. Página 46.


29 de setembro de 2019

O fenômeno das vozes eletrônicas

Fig. 1. Imagem de um espectrograma (Audacity) com a invocação de Kedar (seta) e a 'voz' inesperada (região circular)
Um sobrinho meu que mora nos Estados Unidos estava a gravar com o celular algumas músicas no estilo "Karaoke" em junho último. Kedar é um adolescente que conhece tanto português como inglês, que é sua lingua materna. Um pouco desligado da gravação, ele deixou  o celular gravando por algum tempo a mais. Para sua surpresa, uma voz desconhecida aparece em um trecho não esperado da gravação. Ao tentar outra vez, o fenômeno estranho se repete; desta vez um claro 'yes' surge após aproximadament 15 segundos de uma pequena invocação. Uma terceira tentativa e um 'I see' também é obtido. Um pouco assustado, ele abandona os experimentos com medo do fantasma, coisa de adolescente.

Quando fiquei sabendo da ocorrência, minha irmã me enviou dois arquivos mp4 que são facilmente abertos com o Audacity, um conhecido software para edição de arquivos de som. Um espectrograma de uma das experiências obtidas por Kedar é visto na Fig. 1. O gráfico representa a decomposição espectral do som obtido no experimento, onde a invocação inicial é vista nos primeiros segundos. A voz é um 'yes' muito baixo mas indubitável, com tons entre 1000-2000Hz compatível com a modulação de uma voz humana. Na segunda gravação a intensidade da voz anômala foi ainda maior.

O fenômeno das vozes eletrônicas

Tal como no caso de Kedar em 2019, o fenômeno teve seu início com F. Jürgenson (1903-1987) em 1959 quando tentava gravar canto de pássaros. No início, pensou-se que se tratava obviamente de interferência de estações de rádio. Entretanto, a repetição dos experimentos - inclusive no interior de 'gaiolas de Faraday' (para bloqueio da radiação eletromagnética externa), confirmou que algumas pessoas, em condições insuspeitas e na presença de equipamentos de gravação, conseguem obter vozes que parecem se comunicar, respondendo a invocações. Nomes como Konstantin Raudive (1909-1974) e P. Bänder [1] estão ligados à história dos 'Electronic Voice Phenomena' (EVP, fenômenos das vozes eletrônicas). Mais do que isso, no que parecia ser uma clara aceitação de algo que já sabiam, algumas autoridades do Vaticano passaram a apoiar a realização de experimentos de EVP e de que as vozes tinham origem no Purgatório. 

Aspectos do fenômeno

O fenômeno da EVP surgiu na década de 50 e foi interpretado como uma 'Nova Hydesville', conforme descreve Bänder [1]. Sem dispor de uma teoria eletrônica que descrevesse como as vozes podem ser captadas e amplificadas, a pesquisa seguiu um caminho puramente empírico. Diversas 'receitas' de se obter vozes foram sugeridas: com um simples gravador, com um gravador e um rádio sintonizado em ondas curtas, com um gravador e um gerador de ruídos etc. Logo entusiastas criaram uma tese que seria uma consequência natural desse desenvolvimento: com o aprimoramento da técnica, as EVPs representariam uma nova maneira de se comunicar com os Espíritos, uma em que a presença de médiuns seria desnecessária.

Fig. 2 Edison em uma foto de sua entrevista a Austin Lescaboura em 1920 sobre suas pesquisas de um dispositivo para se comunicar com os Espíritos.
Esse aspecto 'amediúnico' das comunicações eletrônicas (qualquer que seja ela), é um sonho de antigos pioneiros das telecomunicações. Logo ficou claro a personalidades como Thomas Edison (1847-1931), O. Lodge (1851-1940) e Nikola Tesla (1856-1943), que talvez fosse possível usar o rádio ou um circuito variante dele para se comunicar com os Espíritos. Edison mesmo chegou a trocar correspondência com William Crookes (1832-1919) sobre a possibilidade de se obter imagens de Espíritos. Em alguns dos trechos de sua entrevista à Scientific American [2] em 1920, Fig. 2, declara Edison:
Now, what I purpose to do is to furnish psychic investigators with an apparatus which will give a scientific aspect to their work.*  
My apparatus is along those lines, in that the slightest effort which it intercepts will be magnified many times so as to give us whatever form of record we desire for the purpose of investigation.** 
Em outros trechos Edison demonstra pouco conhecer das pesquisas da fenomenologia psíquica anterior. Em um artigo de divulgação, Zarrelli (2016) [3] declara que o 'spirit phone' foi a invenção mais 'infrutífera' de Edison. Provavelmente o foi por causa da ignorância de Edison e outros pesquisadores das condições em que o fenômeno se realiza. Em outros termos: só ter o aparato não é suficiente.

O princípio da comunicação amediúnica segue a ideia de Edison que, por meio de um sensor e um amplificador poderoso seria possível registrar oscilações (voz, imagem, pulsos etc) dos Espíritos. Aparentemente, isso foi o que Jürgenson e Raudive parecem ter conseguido, além de outros entusiastas das vozes eletrônicas desde então. 

Entretanto, demonstrar que não há influência de um humano na comunicação eletrônica é bastante difícil, pois sempre qualquer pesquisa será organizada e conduzida por uma pessoa ou um grupo. Não se pode, a priori, descartar a influênciado experimentador. 

Mediunidade eletrônica?

Alguns pesquisadores no passado conseguiram registros muito nítidos de vozes eletrônicas (que desqualificam hipóteses céticas de 'pareidolia'), outros conseguiram registros a partir de modulações de ruídos, enquanto que outros jamais conseguiram nenhum tipo de voz. A que se deve esse caráter mutante e incontrolável?

Contrário ao que se pensa, somos adeptos da idea de que as EVPs e seus correlatos são manifestações do que chamamos de 'mediunidade eletrônica'. Trata-se de uma variante moderna de efeitos físicos em que  um dispositivo eletrônico está envolvido. 

Essa nova mediunidade é potencializada pelo interesse ou envolvimento do 'pesquisador-médium' no fenômeno. O fenômeno é, assim, mais frequente na presença de certas pessoas com essa habilidade especial, razão porque as EVP jamais se tornaram um método 'sistemático e independente' da mediunidade. Elas não são reprodutíveis à vontade e, como tal, são seriamente limitadas na capacidade de transmissão de informação  - não há "bidirecionalidade". Claramente, essa mediunidade 'surgiu' com o desenvolvimento tecnológico. Suas características são:
  • Ela é inconsciente,
  • Não requer 'transe',
  • Um médium eletrônico sequer saberá que é médium a não ser pelos efeitos eletrônicos que produz. Sua mediunidade é validada pela alta correlação entre sua presença e a ocorrência do fenômeno.
  • Como é uma mediunidade, há possível influência do médium no fenômeno.
  • Como se trata de efeito físico, aplicam-se todos os comentários feitos por Kardec sobre esse domínio de fenômenos [4], inclusive sobre seu caráter subsidiário de demonstração da sobrevivência.
Do ponto e vista teórico, sendo a mediunidade eletrônica peculiar, ela não se liga a outras, por isso não basta que haja a presença de qualquer médium em um recinto para que o fenômeno ocorra. Médiuns de efeitos físicos provavelmente teriam mais facilidade em provocá-lo. Existem outros fatores que devem permanecer invariantes para que o uso de aparelhos possa ser eficientemente usado. Todas as vezes que uma nova 'técnica' é criada esses fatores mudam, o que reduz a eficiência da comunicação.

Esse princípio aponta para a importante orientação de que, não importará muito qual o tipo de circuito ou sistema eletrônico seja usado, desde que as experimentações sejam feitas na presença das pessoas capazes de intermediar o efeito. É provável, assim, que a ideia do 'spirit-phone' de Edison e tantos outros funcione, desde que sejam testados pelo experimentador certo.

Traduções

* Agora, o que pretendo fazer é prover aos investigadores psíquicos um aparato que conferirá um aspecto científioc ao trabalho que fazem.

** Meu aparato é nesse sentido: a menor perturbação que o interceptar será amplificada muitas vezes, de forma a nos dar qualquer registro para o objetivo da investigação.

Referências


1- P. Bänder (1976). "Os Espíritos Comunicam-se por Gravadores", São Paulo: Edicel, 2a Edição. 

2- A. C. Lescarboura (1920), "Edison's Views on Life and Death", Scientific American, Vol. 123, No. 18, pp. 446, 458-460


4 - Ver: "O Livro dos Médiuns" de A. Kardec, 2a Parte, Das Manifestações Espíritas", Cap. IV e Cap. V. 

24 de agosto de 2019

A resposta ao Paradoxo de Fermi


Assim, tudo é povoado no Universo. 
A vida e a inteligência estão por toda parte: 
em globos sólidos, no ar, nas entranhas da Terra, 
e até nas profundezas etéreas. (A. Kardec, Revue Spirite, 1858)
Imaginemos um Universo repleto de vida tanto quanto podemos entender materialmente esse conceito. Vida animal, vegetal, inumeráveis seres, todos eles existindo conosco no mesmo espaço e tempo. Composição bioquímica semelhante aos seres vivos que conhecemos. Temperatura, densidade e mistura da atmosférica, se diferentes, não muito das condições que existem em nosso planeta.

Um cosmo cheio de vida quase em tudo semelhante à terrena. Civilizações que chegaram à idade da razão há muitos bilhões de anos. Todas evoluidas tecnologicamente ao ponto de vencerem as distâncias imensas que separam as estrelas. Outros mundos em que as viagens interestelares se tornaram plenamente possíveis. 

Com um Universo tão grande, é razoável imaginar que essas civilizações antigas levaram muito tempo para 'explorar' inúmeras estrelas, tanto na proximidade dos sistemas estelares onde floresceram, como em todos os outros. Por maior que o Universo seja, a multiplicidade de 'habitats' da vida é tão grande que é inevitável concluir que essas civilizações entraram em contato entre si. Formando vastas redes de vida inteligente entre as estrelas, essas civilizações avançadíssimas eventualmente também encontraram a Terra...

Para eles esse planeta, perdido em algum ponto de seu sistema solar, é um repositório retardatário de vida, onde seres ainda pouco avançados sonham em galgar os mesmos passos dos mundos mais elevados. 

Se assim é, então porque a existência desses outros mundos não foi definitivamente provada? O Paradoxo de Fermi resume esse quadro como
"a aparente contradição entre as altas estimativas de probabilidade de existência de civilizações extraterrestres e a falta de evidências para, ou contato com, tais civilizações." [1]
De nada adianta leitores mais convictos da visita de extraterrestres afirmarem que o Paradoxo já foi resolvido com as evidências providas pela Ufologia, que é imensamente rejeitada por acadêmicos. O Paradoxo de Fermi afirma que, se o Universo estivesse repleto de vida como a nossa, hoje estaríamos cercados por eles, a ponto de nossa vida e a deles ser uma coisa só. Esse é o ponto essencial do paradoxo que também guarda a chave para sua solução.

Como a validade do Paradoxo se fundamenta em determinados princípios, o mais fundamental deles, o de que a vida (terrena) tenha evoluído de forma 'onipresente' no Universo, não pode ser válido. O materialismo, entretanto, pode conduzir a uma negação muito forte da possibilidade de vida, que é a razão para que muitos céticos da vida extraterrestre afirmarem que a Terra é o único planeta habitado no Universo. O argumento contrário já foi bem explorado por Kardec:
Por que a Terra, pequeno globo imperceptível na imensidade do Universo, que não se distingue dos outros planetas nem por sua posição, nem por seu volume, nem por sua estrutura, pois nem é a maior, nem a menor, nem está no centro, nem nos extremos, por que, dizia eu, entre tantas outras, seria ela a única residência de seres racionais e pensantes? [2]
Como a estatística rejeita a unicidade da vida terrena, uma resposta possível seria enfraquecer outros principios auxiliares do paradoxo. Talvez a vida extraterrestre, desenvolvida tecnologicamente até certo ponto, tenha eliminado a si mesma em algum grande conflito estelar [3]. Talvez as inúmeras civilizações tenham se aniquilado quando se encontraram. Ou talvez vida exista, mas o único planeta onde ela desenvolveu alguma tecnologia para viagens espaciais foi a Terra. 

A resposta do Paradoxo pode assim ser dada enfraquecendo-se uma série de suas suposições.

Um novo conceito de vida

A revelação espírita, entretanto, afirma de forma categórica que todos "os globos que se movem no espaço são habitados":
55. São habitados todos os globos que se movem no espaço?
“Sim e o homem terreno está longe de ser, como supõe, o primeiro em inteligência, em bondade e em perfeição. Entretanto, há homens que se têm por espíritos muito fortes e que imaginam pertencer a este pequenino globo o privilégio de conter seres racionais. Orgulho e vaidade! Julgam que só para eles criou Deus o Universo.”
que esclarece, conforme os própros Espíritos, as palavras atribuídas a Jesus:
Não se turbe o vosso coração. – Credes em Deus, crede também em mim. Há muitas moradas na casa de meu Pai; se assim não fosse, já eu vo-lo teria dito, pois me vou para vos preparar o lugar. (João 14, 1-2)
A afirmação não só confirma a existência de vida disseminada no Universo, mas também o seu caráter inteligente. Isso reforça algunas das hipóteses do Paradoxo de Fermi. 

Entretanto, o problema maior é o próprio conceito de vida. Limitados às expressões materiais da Terra, a vida orgânica é apenas um subconjunto das possibilidades de ambientes onde a consciência pode se manifestar. E, obviamente, a extensão do conceito de vida (que é algo ainda a ser plenamente aceito) atua como obstáculo para entender porque "supercivilizações alienígenas" teriam qualquer interesse em explorar sistemática e materialmente a Terra. 

Assim, o primeiro óbice é entender que, constatada a existência desencarnada, com suas infinitas possibilidades de manifestação, faz pouco sentido imaginar que civilizações avançadas teriam interesse em 'explorar materialmente' a Terra. O planeta, dependente de inúmeros recursos delicadamente arranjados para que a vida orgânica possa existir, é mais um vasto mas restrito ambiente para o aprendizado de criaturas materiais em um estágio muito limitado de evolução - o que inclui inclusive os animais da Terra (desde bactérias até o homem).

A existência de vida em formas "não observáveis" não só garante infinitas possibilidades de vida, mas permite sua coexistência espacial e temporal conosco. Assim, o espaço em que vivemos é também a morada de inúmeros seres que não podemos ainda perceber. As 'moradas' de que fala o evangelista não se referem apenas a outros planetas, mas também a outros 'planos' de existência paralelos ao nosso.

Dito isso, de forma alguma fechamos uma conclusão de que apenas criaturas invisíveis ou não observáveis formam vida alienígena. Vida material como a nossa também evoluiu conforme o quadro que descrevemos no início deste texto. Só que ela, tendo ultrapassado a fronteira da razão e se dirigido à angelitude, provavelmente compreende que não há nenhum sentido na dominação em massa de mundos materiais que lhe são mais atrasados e que cumprem a lei universal da evolução estabelecida por Deus, que elas bem sabem preside a tudo. Assim, é  bem possível que evidências de sua presença entre nós já existam, porém, acomodadas muito bem a sua própria linha evolutiva e segundo conceitos de fraternidade Universal, ocultam-se no concerto de forças naturais que nos rodeiam, sem quaisquer pretenção em se mostrarem exaustivamente a nós. 

Ver também

A questão da encarnação em diferentes mundos: um novo tipo de matéria?

Referência

[2] A. Kardec (1858), Revista Espírita, Março, A pluralidade dos mundos.   http://ipeak.net/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=518&&idioma=1 
[3] Um exelente vídeo sobre o Paradoxo de Fermi do ponto de vista materialista pode ser visto no youtube:



https://www.youtube.com/watch?v=sNhhvQGsMEc

17 de junho de 2019

Crenças Céticas XIX: casos modernos e seus paralelos

Cristo carregando a cruz (detalhe). H. Bosch (~1500).
Abrimos um parêntese na nossa exposição aos espíritas sobre o problema da aceitação da existência dos espíritos. Lembramos nossos antigos posts sobre crenças céticas [1][2], considerando os debates populares em redes sociais sobre a 'Terra plana' e do 'geocentrismo'. Lembramos tudo isso, e não podemos deixar de fazer um paralelo com o problema da aceitação de alguns princípios espiritualistas. Jamais imaginaríamos que o ceticismo ingênuo poderia se revestir de aspectos tão dramáticos na atualidade.

Se em pleno Séc. XXI temos gente que defende "Terra Plana", que esperança há na Humanidade em aceitar as realidades maiores do espírito? 

Do ponto de vista espírita, penso que as manifestações aparentemente grandes dos crentes modernos em Terra Plana e no geocentrismo se explicam pelo retorno ainda tardio de milhões de Espíritos que não tiveram a chance de entender melhor o assunto. Têm eles dificuldades enormes de raciocínio a ponto de serem incapazes de compreender abstrações mesmo que bem simples. Mas, nas redes sociais, talvez pela primeira vez em suas vidas imortais, encontraram a chance de manifestar publicamente uma opinião, capitaneados por gente inescrupulosa que lhes exploram as deficiências intelectivas.

Princípio unificador X conspiração

O que caracteriza a ciência modera sempre foi a descoberta de um princípio ou fundamento unificador muitas vezes inacessível aos sentidos ordinários. Tomemos o caso da 'Terra esférica': esse princípio unifica e coordena a explicação de um grande grupo de fenômenos celestes (as variações de luz entre dia e da noite, a posição do sol em vários lugares, etc). Entretanto, não é possível ver com os próprios olhos a esfericidade da Terra, a menos que se vá para o espaço exterior, o que é possível, mas não a todas as pessoas do mundo. Da mesma forma, a gravitação universal: por meio do uso de uma única expressão de força entre corpos massivos (dai sua universalidade), um vasto conjunto de fenômenos celestes foi explicado. Entretanto, não se sente nem se vê a força de gravitação que o Sol exerce sobre a Terra e os outros planetas. 

Assim, quase sempre no final da maturação de um paradigma científico, leis ou princípios são declarados, mas não são sensorialmente acessíveis. Sua força como ciência vem da sua capacidade de explicar e unificar fenômenos, a ponto de ser possível classificá-los em domínios diversos, bem como prever outros ainda desconhecidos. Para fazer ciência, eles são admitidos desde o início a fim de se prover tal unificação e previsão fenomenológica.

Com os crentes céticos, entretanto, o único princípio unificador que existe é a conspiração sobre o mundo, que é a base de sua crença. Tomamos 'mundo' aqui não como o planeta inteiro, mas como um aspecto da realidade. Assim, um crente cético necessariamente é um crente na conspiração e um cético em relação a uma realidade, seja ela bem estabelecida cientificamente ou não. É por isso que crentes na Terra Plana, por exemplo, rejeitam qualquer evidência que, de outra forma, é prova do princípio unificador da esfericidade da Terra. Ao invés disso, cada evidência é explicada por causas independentes entre si ou se invocando a conspiração, que é um gigantesco conluio entre agentes mal- intencionados para justamente enganar o crente cético.

No caso em que o ceticismo é contrário ao que está bem estabelecido, os céticos se comportam de forma ridícula para os que participam da crença compartilhada escorada na ciência. Porém, a reação negativa de uma maioria ao conspiracionismo e à crença cética pueril constituem, na cabeça desses crentes, a própria prova da conspiração. Assim, o conspiracionismo se torna uma 'profecia autorealizada', afinal a maioria não tem condições de oferecer contra-evidências 'simples' ou 'práticas' às crenças pueris céticas, as pessoas apenas repetem o que aprenderam. Mas, para os crentes céticos, tudo acontece como se, de fato, estivesse em curso uma conspiração.

No segundo caso, porém, a situação é muito mais complicada porque não é fácil distinguir cada grupo. A comparação aqui cai bem, pois a ideia da sobrevivência da alma - assim como sua existência e continuidade tal como apresentada por A. Kardec - é um princípio unificador que pode explicar uma variedade imensa de fenômenos e paradoxos de natureza religiosa ou filosófica. Porém, ele não está disseminado como crença compartilhada (a menos pelos espíritas obviamente), porque popularmente não tem o selo de  'cientificamente provado' e não é propagado por meio da educação formal. 

Entretanto, o paralelo se aplica porque:
  • O princípio unificador explica inúmeros fenômenos, e está, por isso, harmonicamente relacionado a eles que formam sua base empírica;
  • A fenomenologia, mesmo que publicamente acessível, somente pode ser compreendida de posse do princípio unificador;
  • O princípio unificador envolve certo grau de abstração, pois ele não pode ser acessado diretamente pelos sentidos ordinários. Em particular, para compreender esse estado de coisa, é necessário estudar toda a teoria do princípio unificador, inteirar-se de detalhes de sua ação etc. Isso requer muito esforço, boa-vontade e tempo;
  • A conspiração aqui é criada contra os fatos, contra os que os apoiam ou geram ou contra o princípio unificador. Para os céticos endurecidos, todos os médiuns mentem - uma prova da conspiração dos que geram. Para outros, qualquer fato ou fenômeno têm uma explicação pronta (quase sempre na base do 'engano', 'erro', 'experimento mal feito' etc), como uma conspiração de falhas. Para outros céticos mais sofisticados, ideias do senso comum, crenças compartilhadas ou próprias, má vontade no estudo etc, obstam o pleno entendimento do princípio unificador. 
Dessa forma, o tipo de 'prova' que crentes céticos nos fatos psíquicos exigem não pode ser obtido se não se percorrer exaustivamente toda a explicação que eles justamente querem refutar a qualquer custo. Isso implica em conhecer o assunto melhor do que o mais fervoroso adepto, coisa que crentes céticos nunca o fazem, seja porque têm má-vontade ou porque são simplesmente incompetentes

Podem ser grandes os prejuízos à educação que ceticismo cético traz com questões já resolvidas cientificamente - como a esfericidade da Terra ou sua posição no sistema solar. Poderíamos citar ainda outras controvérsias algo mais sofisticadas, como o Darwinismo ou a teoria do 'Big Bang' [3]. 

Nosso paralelo, porém, facilita muito entender e defender a ideia de que o ceticismo cético, se aplicado a questões que não se consideram cientificamente resolvidas, tem um efeito ainda mais deletério. Com essas questões, o ceticismo cético é indistinguível, muitas vezes, de uma postura supostamente científica ou rigorosa. É por isso que não se veem avanços em muitas áreas do conhecimento consideradas  'limítrofes' ao bem estabelecido, porque o 'conhecimento compartilhado' se confunde com esse ceticismo e impede sua livre investigação. 

Referências

[1] Primeiro post sobre 'crenças céticas': Crenças Céticas I: Introdução (2010)  

[2] Último post sobre 'crenças céticas': Crenças céticas XXVII: a Navalha de Ockham (2017) 

[3] Tanto quando sei, crentes céticos não se revoltaram ainda contra a noção moderna dos átomos e a física quântica  - todos exemplos de princípios unificadores inacessíveis aos sentidos ordinários (tal como os espíritos). Provavelmente é uma questão de tempo para que isso aconteça.