29 de outubro de 2019

Victor Hugo sobre a morte (II)

Imagem: túmulo no Cemitério de Bologna.
Quando estiver no túmulo poderei dizer, como tantos outros: 
‘terminei minha jornada’ e não ‘terminei minha vida’. 
Minha jornada recomeçará no outro dia, de manhã. 
O túmulo não é um labirinto sem saída; é uma avenida, 
que se fecha no crepúsculo e volta a se abrir na aurora. (Victor Hugo)

O fragmento de texto que segue foi extraído da referência [1], conforme discurso proferido por Vitor Hugo (1802-1885). Alguns comentários (conforme a numeração) são apresentados na sequência.  
Quem pode dizer-nos que eu não volte a encontrar-me nos séculos futuros? Shakespeare escreveu: «A vida é um conto de fada que se lê pela segunda vez». Poderia ter dito pela milésima vez. Porque não há século pelo qual eu não veja passar minha sombra (1).
Vós não acreditais nas personalidades moventes, quer dizer, nas reencarnações (2), com o pretexto de que não recordais nada de vossas existências passadas, mas como as lembranças dos séculos desvanecidos poderiam estar impressas em vós quando não vos recordais (3) nada das mil e uma cenas de vossa vida presente? Desde 1802 hei de ter tido em mim dez Victor Hugo! Creis vós que me lembro de todas as ações e de todos os seus pensamentos?
Quando houver atravessado o túmulo para voltar a encontrar outra luz, todos esses Victor Hugo me serão um pouco estranhos, mas esta será sempre a mesma alma!  (4)
Sinto em mim toda uma vida nova, toda uma vida futura; sou como a selva que muitas vezes foi derrubada; os jovens rebentos são cada vez mais fortes e vivazes. Eu subo, subo, subo até o infinito. Tudo é radiante à minha frente, a terra me dá sua seiva generosa, mas o céu me ilumina com o reflexo dos mundos entrevistos (5). 
Dizeis vós que a alma é a expressão das forças corporais: por que então minha alma é mais luminosa quando as forças corporais irão já me abandonar? O inverno está sobre minha cabeça, à primavera está em minha alma (6); aspiro aqui nesta hora às lilases e às rosas como se tivesse vinte anos. À medida em que me aproximo da velhice, melhor escuto ao meu redor as imortais sinfonias dos mundos que me chamam. É um conto de fadas, mas é uma história.
Faz meio século que escrevo meu pensamento em prosa e verso, história e filosofia, drama, novela, legendas, sátira, ode, canção; de tudo tenho tratado, mas sinto que não disse mais que a milionésima parte do que é meu. Quando estiver no túmulo poderei dizer, como tantos outros: ‘terminei minha jornada’ e não ‘terminei minha vida’. Minha jornada recomeçará no outro dia, de manhã (7). O túmulo não é um labirinto sem saída; é uma avenida, que se fecha no crepúsculo e volta a se abrir na aurora. [1]
Comentários
  1. Aqui o grande poeta torna explícito sua crença não só na continuidade da vida, mas na multiplicidade das existências. Para isso, ele usa a bela figura de linguagem "não há século pelo qual eu não veja passar a minha sombra". 
  2. Citação explícita da reencarnação. A reencarnação é definida como a 'volta do Espírito à vida corpora'. Ainda segundo Kardec: A reencarnação pode dar-se imediatamente após a morte ou depois de um lapso de tempo mais ou menos longo, durante o qual o Espírito fica errante. Pode dar-se na Terra ou em outras esferas, mas sempre num corpo humano e jamais no de um animal. A reen­carnação é progressiva ou estacionária: jamais é retrógrada. Nas novas existências cor­porais pode o Espírito decair como posição social, mas não como Espírito; por outras pa­lavras, de senhor pode tornar-se servo, de príncipe, artesão, de rico, miserável, contudo progredindo em sabedoria e moralidade. Assim, o celerado pode tornar-se homem de bem, mas o homem de bem não se tornará um celerado. (A. Kardec, "Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas", Vocabulário Espírita, REENCARNAÇÃO)
  3. Hugo se coloca aqui contra o argumento ingênuo do 'esquecimento', o de que deveríamos nos lembrar das existências anteriores se elas existem. De fato, sendo a memória humana de vários tipos, não temos acesso a todas as lembranças, algumas se conservam (como no caso das memórias de 'procedimentos', 'habilidades' etc), enquanto que a imensa maioria dos fatos vividos é esquecido. Durante a transição entre corpos, as lembranças pregressas são completamente apagadas e o novo 'eu' se forma com base na bagagem de personalidade que traz do passado com a estrutura do sistema nervoso que tem na nova vida.
  4. O que somos em realidade não se divide pelo fato de termos várias vidas. Isso é verdade mesmo dentro de uma existência e constitui um 'mistério' para as explicações materialistas da mente. Como é possível que a personalidade permaneça una, não se fragmente ou mude com o tempo, não obstante as inúmeras memórias e experiências vividas?
  5. Os 'mundos entrevistos' são os muitos planetas que existem no Universo, mundos em que a vida, em novas formas e densidades, se manifesta de forma exuberante e perene.
  6. Se a alma nada mais é que produto do corpo (cérebro), o poeta argumenta com razão que a decreptidude do corpo em nada alterou sua percepção das coisas, ao contrário, sente-se ainda como se estivesse na juventude e de posse de uma inspiração ainda mais forte.
  7. De fato, após a longa agonia da morte - para aqueles que esperaram sua lenta chegada - ela muito se assemelha a um novo despertar: é a vida que começa em um novo amanhã. Para outros, será o pavor dos que pensam erroneamente ser apenas o fim.
Referência

[1] Mariotti, H (1989). Victor Hugo Espírita. 2a Edição. EME Editora: Capivari/SP. Página 46.


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