9 de outubro de 2013

Kardec: sobre o misticismo

O dia 3 de Outubro marca o aniversário de H. L. Denizard Rivail (1804-1869), cognominado Allan Kardec, cuja obra monumental é um edifício erigido em nome da lógica e do bom senso, no tratamento de problemas milenares relativos à vida futura do ser humano.   

Se formos atentar para a maneira como tal edifício foi construído, não podemos deixar de notar o cuidado e sofisticação com que Kardec o revestiu. Temas extremamente relevantes para a humanidade, tal como a possibilidade de sua continuação, a sobrevivência do ser, a sua comunicação além da morte física e pre-existência foram sistematicamente separados por Kardec de qualquer tentativa de enquadramento nos mesmos referências e filosofias disponíveis em sua época. Em particular, Kardec teve cuidado em separar os princípios da sua metodologia de tratamento desses problemas das antigas tradições fundadas no misticismo ou conhecimento antigo, embora Kardec reconhecesse o progresso que os antigos atingiram no entendimento de muitos dos fenômenos psíquicos.

Em particular, salta aos olhos o distanciamento com o misticismo, entendido nesta acepção, comum à época e ainda hoje, conforme algumas passagens:
Antes de entrarmos em matéria, pareceu-nos necessário definir claramente os papéis respectivos dos Espíritos e dos homens na elaboração da nova doutrina. Essas considerações preliminares, que a escoimam de toda ideia de misticismo..." ("A Gênese, Introdução, ref. 1, grifo nosso)
Em geral, desconfiai das comunicações que trazem um caráter de misticismo e de singularidade, ou que prescrevem cerimônias e atos extravagantes. Há sempre, nesses casos, motivo legítimo de suspeição. ("O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap.XXI, 'Os falsos profetas da erraticiade, ref. 1, grifo de Kardec)
Parece que algumas pessoas temeram que a qualificação de messias espalhasse sobre a Doutrina um verniz de misticismo. (Revista Espírita, março de 1868, Comentário sobre os messias do Espiritismo, ref. 1, grifo nosso)
Considerado desta maneira, o Espiritismo perde o caráter de misticismo que lhe censuram seus detratores, pelo menos aqueles que não o conhecem. Não é mais a ciência do maravilhoso e do sobrenatural ressuscitada, é o domínio da Natureza...(Revista Espírita, novembro de 1864, O Espiritismo é uma ciência positiva, ref. 1, grifo nosso) .
De qualquer forma, o sentido para misticismo nessas passagens é de uma atitude extravagante, irracional e não logicamente justificada. Ela certamente afasta o 'homem de bom senso' de toda e qualquer revelação, doutrina religiosa ou filosofia que se acredite verdadeira usando métodos ou raciocínio fundamentados em afirmações questionáveis ou em atitudes, elas mesmas extravagantes e flagrantemente inócuas. 

No mesmo texto que segue a passagem copiada da Revue Spirite de março de 1868 ("Comentários sobre os messias do Espiritismo") encontramos essa passagem elucidativa:
Para quem conhece a Doutrina, ela é, de ponta a ponta, um protesto contra o misticismo, pois que tende a reconduzir todas as crenças para o terreno positivo das leis da Natureza. Mas, entre os que não a conhecem, há pessoas para as quais tudo o que escapa da Humanidade tangível é místico. Para estas, adorar Deus, orar, crer na Providência é ser místico. Nós não temos que nos preocupar com a sua opinião. (grifo nosso)
Portanto, o termo místico ou misticismo nunca foi entendido por ele em um sentido positivo e, pelo que se infere do trecho acima, a noção de religiosidade exposta por Kardec dispensa o seu uso. Isso acontece porque Kardec descobriu que se poderia fundamentar o conhecimento sobre a vida futura ou sobre as consequências dos atos com base na observação de fenômenos da Natureza (as comunicações mediúnicas), da mesma forma como podemos aplicar determinados princípios de física - eles mesmos também fundamentados em fenômenos naturais - para prever o que irá acontecer entre arranjos e estados de corpos materiais.

A experiência mística: uma variedade de fato mediúnico?

Se consultarmos definições filosóficas modernas (ref. 2) para o termo misticismo, encontramos:
O termo 'misticismo' vem do grego μυω, que significa 'ocultar'. No mundo helênico, 'místico' se referia a rituais religiosos 'secretos'. No cristianismo primitivo, o termo veio a ser usado para se referir a interpretações 'ocultas' das Escrituras e a presenças ocultas, tais como Jesus na Eucaristia. Somente mais tarde o termo veio a ser usado para designar a 'teologia mística', o que incluiu experiência direta com o divino. Tipicamente, místicos, sejam eles teístas ou não, vêem a experiência mística como parte de uma iniciativa maior de transformação humana e não como o fim dos esforços. Assim, em geral, 'misticismo' deve ser compreendido como uma constelação de práticas distintas, discursos, textos, instituições, tradições e experiências que visam a transformação humana, que é definida de forma variada em diferentes tradições. (ref. 2)
Um bom exemplo de mística foi Teresa D'Ávila que descreveu suas experiências extáticas. A possibilidade de se desprender da realidade e entrar em contato com outra bem diferente (que estaria na raiz dessa concepção positiva para o misticismo) é constante em muitas tradições religiosas. A Kardec, não poderia ser possível acreditar nessas narrativas sem antes estudá-las e enquadrá-las como uma variedade de experiência mediúnica, afinal é isso que ocorre quando os laços que prendem o Espírto ao corpo são flexibilizados. Talvez, fenômenos tais como o desdobramento espontâneo (como o que ocorre nas chamadas 'Experiências de quase morte ou, em inglês, 'Near Death Experiences') se assemelham a experiências que, em outras épocas e culturas, seriam descritas como relatos místicos. 

Portanto, mais uma vez, Kardec esteve adiantado em sua época e o Espiritismo, longe de reduzir a importância dessa concepção de misticismo, veio para dar-lhe uma nova visão e interpretação.

Discussão final

Talvez a experiência mística se enquadre na categoria das ocorrências de desdobramento do Espírito, quando ele readquire capacidades que jazem adormecidas ou apenas latentes na sua forma encarnada, de forma que, ao regressar ao seu corpo, essa realidade maior é vivenciada como uma experiência mística. Não apenas isso, muitas vivências ou experiências místicas podem ser descritas como aplicação de leis ainda desconhecidas tais como projeções da vontade, materializações, exteriorização da sensibilidade etc.

De qualquer forma, outras noções de misticismo podem ser encontradas na obra da codificação. Por exemplo, na Revue Spirite podemos ler a seguinte mensagem:
Não vos demoreis mais tempo agarrados aos batentes já carcomidos do pórtico, e penetrai corajosamente no santuário celeste, levando com firmeza a bandeira da filosofia moderna, na qual inscrevei sem medo: misticismo, racionalismo. Fazei ecletismo no ecletismo moderno; fazei-o como os Antigos, apoiando-vos na tradição histórica, mística e legendária, sempre, porém, com o cuidado de não sair da revelação, facho que nos faltou a todos, recorrendo às luzes dos Espíritos superiores, votados missionariamente à marcha do espírito humano. Esses Espíritos, por mais elevados que sejam, não sabem tudo. Só Deus o sabe. Além disso, de tudo quanto sabem, nem tudo podem revelar. (ref 3 e 1, grifo nosso)
O afastamento de Kardec de noções mais arraigadas de misticismo foi suficiente para desqualificar o Espiritismo na visão de muitos autores místicos. Por exemplo, muitos deles (como é o caso de Helena Blavatisky criadora da Teosofia) simplesmente consideram  o Espiritismo como um 'tipo inferior de ciência oculta'. Mas, o posicionamento de Kardec é altamente justificado: em uma sociedade cada vez mais técnica, em que a ciência atingiu um prestígio nunca antes visto, o misticismo está em baixa e o ponto de vista de Kardec é simples e prático o suficiente para reconduzir as 'ovelhas desgarradas' pelo materialismo em moda, no seu retorno às considerações profundas do ser e de sua verdadeira essência e destino futuro.  

Referências

1 - Todas as referências foram obtidas no site do IPEAK (www.ipeak.com.br)
2 -  Mysticism (11 de novembro de 2004; revisado em fevereiro de 2010, Stanford Encyclopedia of Philosophy). Original em inglês (as referências no texto traduzido foram suprimidas):
The term ‘mysticism,’ comes from the Greek μυω, meaning “to conceal.” In the Hellenistic world, ‘mystical’ referred to “secret” religious rituals. In early Christianity the term came to refer to “hidden” allegorical interpretations of Scriptures and to hidden presences, such as that of Jesus at the Eucharist. Only later did the term begin to denote “mystical theology,” that included direct experience of the divine (See Bouyer, 1981). Typically, mystics, theistic or not, see their mystical experience as part of a larger undertaking aimed at human transformation (See, for example, Teresa of Avila, Life, Chapter 19) and not as the terminus of their efforts. Thus, in general, ‘mysticism’ would best be thought of as a constellation of distinctive practices, discourses, texts, institutions, traditions, and experiences aimed at human transformation, variously defined in different traditions.
3 - Revista Espírita, Fevereiro de 1860, Ditados Espontâneos, "Filosofia" (ref.1 )




28 de setembro de 2013

O que a genética e a astrologia têm em comum ?

Recentemente, o JEE (Jornal de Estudos Espíritas) republicou um trabalho com 10 anos de nossa autoria 'O que a genética e a astrologia têm em comum?' (1) e que foi revisado para esta edição especial. Apesar da idade, as conclusões dessa pequena dissertação continuam válidas. Tanto interpretações e extrapolações da genética moderna como da astrologia levam, de uma forma ou de outra, a uma limitação no livre arbítrio do homem. Embora possamos alegar que essa limitação não é 'taxativa', sua existência está em desacordo com o conhecimento espiritualista, com a noção da sobrevivência e com o fato de que a personalidade humana encontra-se assentada em uma entidade independente da matéria chamada espírito.

Embora nosso texto seja de 2003, de lá para cá apareceram serviços de busca por 'anscestrais genéticos' que tem sido comparados à astrologia por cientistas. Um exemplo que nos fala sobre esses exageros é o texto de Pallab Ghosh: "Some DNA ancestry services akin to 'genetic astrology' '' (2) (6) ou "Alguns serviços de busca por ancestrais de DNA se assemelham a 'astrologia genética' ". Em paticular comenta Ghosh:
Cientistas dizem que os perfis genéticos não podem fornecer informação precisa sobre a ancestralidade de um indivíduo.  
Eles dizem que "o negócio da ancestralidade genética explora um fenômeno bem conhecido de outras áreas, tais como os horóscopos onde informação geral é interpretada com sendo mais pessoal do que ela, de fato, é".
Na referência (6) podemos ler:
Sabe-se bem que horóscopos usam afirmativas vagas que os leitores acham que é mais específica e aplicável a eles do que realmente são (o chamado efeito Forer). Testes de ancestralidade genética fazem algo semelhante e extrapolam o que se conhece sobre a origem humana. Você não pode olhar para o DNA e fazer uma leitura como se ele fosse um livro ou mapa de uma estrada. Na maioria das vezes, esses testes não estariam autorizados a dizer o que clamam: não passam de astrologia genética.
Ficamos muito contentes com essa análise e a ocorrência desse 'fenômeno', uma vez que isso demonstra a exatidão de nossas despretensiosas palavras no texto de 2003, que se baseiam no conhecimento contido em 'O Livro dos Espíritos' de Allan Kardec. 

Não obstante isso, há quem defenda os serviços de busca de ancestrais pelo material genético (4). Por isso, a questão está longe de ser resolvida na opinião tanto de especialistas como do público e, talvez, não haja interesse numa solução que desconsidere o serviço, uma vez que ele é pago (5) e abre a possibilidade de um novo mercado, assim como faziam (e ainda fazem) os horóscopos desde a mais remota antiguidade.

Sobre o JEE

O Jornal de Estudos Espíritas é uma publicação eletrônica, totalmente gratuita, voltada para o movimento espírita e que publica artigos no formato acadêmico, buscando incentivar a escrita de trabalhos sobre a temática espírita e seus princípios. Contribuições ao jornal estão abertas no volume I, o volume de 2013.

Referências e notas.


(2) Pallab Ghosh (2013), Some DNA ancestry services akin to 'genetic astrology', BBC News. Acessado em 2013.

(3) Original em inglês: 
"The scientists say that genetic profiles cannot provide accurate information about an individual's ancestry. 
They say "the genetic ancestry business uses a phenomenon well-known in other areas such as horoscopes, where general information is interpreted as being more personal than it really is".

(5) Segundo a Ref. 2, o serviço custa cerca de 220 libras esterlinas.

(6) A publicação acadêmica que critica os testes de ancestralidade genética pode ser encontrada aqui (Acesso em 2013):
  1. http://www.senseaboutscience.org/resources.php/119/sense-about-genetic-ancestry-testing
  2. http://www.senseaboutscience.org/data/files/resources/119/Sense-About-Genetic-Ancestry-Testing.pdf
Original em inglês:
It is well known that horoscopes use vague statements which recipients think are more tailored than they really are (referred to as the ‘Forer effect’). Genetic ancestry tests do a similar thing, and many exaggerate far beyond the available evidence about human origins. You cannot look at DNA and read it like a book or a map of a journey. For the most part these tests cannot tell you the things they claim to – they are little more than genetic astrology. (David Balding, Mark Thomas and Tabitha Innocent, Sense About Genetic Ancestry Testing, ref 6-2)