O dia 3 de Outubro marca o aniversário de H. L. Denizard Rivail (1804-1869), cognominado Allan Kardec, cuja obra monumental é um edifício erigido em nome da lógica e do bom senso, no tratamento de problemas milenares relativos à vida futura do ser humano.
Se formos atentar para a maneira como tal edifício foi construído, não podemos deixar de notar o cuidado e sofisticação com que Kardec o revestiu. Temas extremamente relevantes para a humanidade, tal como a possibilidade de sua continuação, a sobrevivência do ser, a sua comunicação além da morte física e pre-existência foram sistematicamente separados por Kardec de qualquer tentativa de enquadramento nos mesmos referências e filosofias disponíveis em sua época. Em particular, Kardec teve cuidado em separar os princípios da sua metodologia de tratamento desses problemas das antigas tradições fundadas no misticismo ou conhecimento antigo, embora Kardec reconhecesse o progresso que os antigos atingiram no entendimento de muitos dos fenômenos psíquicos.
Em particular, salta aos olhos o distanciamento com o misticismo, entendido nesta acepção, comum à época e ainda hoje, conforme algumas passagens:
Antes de entrarmos em matéria, pareceu-nos necessário definir claramente os papéis respectivos dos Espíritos e dos homens na elaboração da nova doutrina. Essas considerações preliminares, que a escoimam de toda ideia de misticismo..." ("A Gênese, Introdução, ref. 1, grifo nosso)
Em geral, desconfiai das comunicações que trazem um caráter de misticismo e de singularidade, ou que prescrevem cerimônias e atos extravagantes. Há sempre, nesses casos, motivo legítimo de suspeição. ("O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap.XXI, 'Os falsos profetas da erraticiade, ref. 1, grifo de Kardec)
Parece que algumas pessoas temeram que a qualificação de messias espalhasse sobre a Doutrina um verniz de misticismo. (Revista Espírita, março de 1868, Comentário sobre os messias do Espiritismo, ref. 1, grifo nosso)
Considerado desta maneira, o Espiritismo perde o caráter de misticismo que lhe censuram seus detratores, pelo menos aqueles que não o conhecem. Não é mais a ciência do maravilhoso e do sobrenatural ressuscitada, é o domínio da Natureza...(Revista Espírita, novembro de 1864, O Espiritismo é uma ciência positiva, ref. 1, grifo nosso) .
De qualquer forma, o sentido para misticismo nessas passagens é de uma atitude extravagante, irracional e não logicamente justificada. Ela certamente afasta o 'homem de bom senso' de toda e qualquer revelação, doutrina religiosa ou filosofia que se acredite verdadeira usando métodos ou raciocínio fundamentados em afirmações questionáveis ou em atitudes, elas mesmas extravagantes e flagrantemente inócuas.
No mesmo texto que segue a passagem copiada da Revue Spirite de março de 1868 ("Comentários sobre os messias do Espiritismo") encontramos essa passagem elucidativa:
Para quem conhece a Doutrina, ela é, de ponta a ponta, um protesto contra o misticismo, pois que tende a reconduzir todas as crenças para o terreno positivo das leis da Natureza. Mas, entre os que não a conhecem, há pessoas para as quais tudo o que escapa da Humanidade tangível é místico. Para estas, adorar Deus, orar, crer na Providência é ser místico. Nós não temos que nos preocupar com a sua opinião. (grifo nosso)
Portanto, o termo místico ou misticismo nunca foi entendido por ele em um sentido positivo e, pelo que se infere do trecho acima, a noção de religiosidade exposta por Kardec dispensa o seu uso. Isso acontece porque Kardec descobriu que se poderia fundamentar o conhecimento sobre a vida futura ou sobre as consequências dos atos com base na observação de fenômenos da Natureza (as comunicações mediúnicas), da mesma forma como podemos aplicar determinados princípios de física - eles mesmos também fundamentados em fenômenos naturais - para prever o que irá acontecer entre arranjos e estados de corpos materiais.
A experiência mística: uma variedade de fato mediúnico?
O termo 'misticismo' vem do grego μυω, que significa 'ocultar'. No mundo helênico, 'místico' se referia a rituais religiosos 'secretos'. No cristianismo primitivo, o termo veio a ser usado para se referir a interpretações 'ocultas' das Escrituras e a presenças ocultas, tais como Jesus na Eucaristia. Somente mais tarde o termo veio a ser usado para designar a 'teologia mística', o que incluiu experiência direta com o divino. Tipicamente, místicos, sejam eles teístas ou não, vêem a experiência mística como parte de uma iniciativa maior de transformação humana e não como o fim dos esforços. Assim, em geral, 'misticismo' deve ser compreendido como uma constelação de práticas distintas, discursos, textos, instituições, tradições e experiências que visam a transformação humana, que é definida de forma variada em diferentes tradições. (ref. 2)
Um bom exemplo de mística foi Teresa D'Ávila que descreveu suas experiências extáticas. A possibilidade de se desprender da realidade e entrar em contato com outra bem diferente (que estaria na raiz dessa concepção positiva para o misticismo) é constante em muitas tradições religiosas. A Kardec, não poderia ser possível acreditar nessas narrativas sem antes estudá-las e enquadrá-las como uma variedade de experiência mediúnica, afinal é isso que ocorre quando os laços que prendem o Espírto ao corpo são flexibilizados. Talvez, fenômenos tais como o desdobramento espontâneo (como o que ocorre nas chamadas 'Experiências de quase morte ou, em inglês, 'Near Death Experiences') se assemelham a experiências que, em outras épocas e culturas, seriam descritas como relatos místicos.
Portanto, mais uma vez, Kardec esteve adiantado em sua época e o Espiritismo, longe de reduzir a importância dessa concepção de misticismo, veio para dar-lhe uma nova visão e interpretação.
Discussão final
Discussão final
Talvez a experiência mística se enquadre na categoria das ocorrências de desdobramento do Espírito, quando ele readquire capacidades que jazem adormecidas ou apenas latentes na sua forma encarnada, de forma que, ao regressar ao seu corpo, essa realidade maior é vivenciada como uma experiência mística. Não apenas isso, muitas vivências ou experiências místicas podem ser descritas como aplicação de leis ainda desconhecidas tais como projeções da vontade, materializações, exteriorização da sensibilidade etc.
De qualquer forma, outras noções de misticismo podem ser encontradas na obra da codificação. Por exemplo, na Revue Spirite podemos ler a seguinte mensagem:
De qualquer forma, outras noções de misticismo podem ser encontradas na obra da codificação. Por exemplo, na Revue Spirite podemos ler a seguinte mensagem:
Não vos demoreis mais tempo agarrados aos batentes já carcomidos do pórtico, e penetrai corajosamente no santuário celeste, levando com firmeza a bandeira da filosofia moderna, na qual inscrevei sem medo: misticismo, racionalismo. Fazei ecletismo no ecletismo moderno; fazei-o como os Antigos, apoiando-vos na tradição histórica, mística e legendária, sempre, porém, com o cuidado de não sair da revelação, facho que nos faltou a todos, recorrendo às luzes dos Espíritos superiores, votados missionariamente à marcha do espírito humano. Esses Espíritos, por mais elevados que sejam, não sabem tudo. Só Deus o sabe. Além disso, de tudo quanto sabem, nem tudo podem revelar. (ref 3 e 1, grifo nosso)
O afastamento de Kardec de noções mais arraigadas de misticismo foi suficiente para desqualificar o Espiritismo na visão de muitos autores místicos. Por exemplo, muitos deles (como é o caso de Helena Blavatisky criadora da Teosofia) simplesmente consideram o Espiritismo como um 'tipo inferior de ciência oculta'. Mas, o posicionamento de Kardec é altamente justificado: em uma sociedade cada vez mais técnica, em que a ciência atingiu um prestígio nunca antes visto, o misticismo está em baixa e o ponto de vista de Kardec é simples e prático o suficiente para reconduzir as 'ovelhas desgarradas' pelo materialismo em moda, no seu retorno às considerações profundas do ser e de sua verdadeira essência e destino futuro.
Referências
1 - Todas as referências foram obtidas no site do IPEAK (www.ipeak.com.br)
2 - Mysticism (11 de novembro de 2004; revisado em fevereiro de 2010, Stanford Encyclopedia of Philosophy). Original em inglês (as referências no texto traduzido foram suprimidas):
The term ‘mysticism,’ comes from the Greek μυω, meaning “to conceal.” In the Hellenistic world, ‘mystical’ referred to “secret” religious rituals. In early Christianity the term came to refer to “hidden” allegorical interpretations of Scriptures and to hidden presences, such as that of Jesus at the Eucharist. Only later did the term begin to denote “mystical theology,” that included direct experience of the divine (See Bouyer, 1981). Typically, mystics, theistic or not, see their mystical experience as part of a larger undertaking aimed at human transformation (See, for example, Teresa of Avila, Life, Chapter 19) and not as the terminus of their efforts. Thus, in general, ‘mysticism’ would best be thought of as a constellation of distinctive practices, discourses, texts, institutions, traditions, and experiences aimed at human transformation, variously defined in different traditions.3 - Revista Espírita, Fevereiro de 1860, Ditados Espontâneos, "Filosofia" (ref.1 )
Muito bom
ResponderExcluirLindo texto
Ademir Xavier, lendo seu texto fiquei profundamente chocada, há erros graves de abordagem em seu texto, não vou pô-loa qui, porque são muitos do começo ao fim. Peço desculpas se estou escrevendo estas duras palavras, que certamente o estão deixando muito ofendido, mas é o resultado de minha leitura. Eu escreveria de forma diferente o texto, o seu texto em minhas mãos ficaria totalmente cheio de anotações.
ResponderExcluirCara Heliana: de forma alguma me ofendi com suas palavras, que estão longe de serem "duras". Provavelmente, não compartilhamos as mesmas ideias com relação ao papel do misticismo nesses assuntos de espiritualidade, o que é bastante comum. Se tiver interesse, pode escrever neste espaço a suas críticas, tenho certeza que elas serão importantes para o nosso conhecimento do seu ponto de vista. Grato por seu comentário.
ExcluirExcelente texto! Lúcido, fundamentada, referenciado. Muito interessante seu comentário em relação ao codificador. Parabéns pelo artigo!
ResponderExcluirNão sei como era o misticismo da europa no século 19, mas a definição de misticismo não tem nada a ve com o que Kardec critica.
ResponderExcluirEntão de três uma: ou ele não entendia do assunto, ou a tradução pra portugues está errado e traduziu mistificação pra misticismo, ou ele estava criticando o esoterismo (que no Brasil o espiritismo é ultraesotérico).
Realmente, sem que se definam palavras, é difícil qualquer interlocução. P. ex., não se do que se trata o termo 'ultraesotérico'. O que li de críticos do Espiritismo é que ele seria uma espécie de 'baixo ocultismo' (seja lá o que isso significa). Infelizmente, parece que nada disso conduz a qualquer esclarecimento ou progresso, já que as concepções são imiscíveis mesmo no nível mais semântico, das palavras.
ExcluirÉ o texto que foi redigido como artigo para este blog que está muito mal elaborado.
ExcluirPois então, Heliana Staut, pode usar este espaço para apontar onde estão os erros. Quanto ao comentário do corajoso 'anônimo', é bom olhar a versão original da segunda citação colocada no texto acima: "Pour qui connaît la doctrine, elle est d'un bout à l'autre une protestation contre le MYSTICISME, puisqu'elle tend à ramener toutes les croyances sur le terrain positif des lois de la nature. Mais, parmi ceux qui ne la connaissent pas, il y a des gens pour lesquels tout ce qui sort de l'humanité tangible est mystique ; pour eux, adorer Dieu, prier, croire à la Providence c'est être mystique. Nous n'avons pas à nous préoccuper de leur opinion." Do que se conclui, segundo ao opinião do 'anônimo' (que confunde 'mistificação 'com 'misticismo') que Kardec não entenderia do assunto.
ExcluirEntão, eu peço aos 'entendidos' que expliquem os erros.
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