A aula ambiental de Aniceto
Porque a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus.
Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou, na esperança de que também a mesma criatura será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus.
Romanos 8:19-21
Conforme vimos no post anterior [1], a necessidade de educação ambiental e ecologia se impõe ao movimento espírita não como assunto de interesse meramente intelectual. Ao contrário, ela é o resultado da própria ética espírita aplicada não apenas aos semelhantes e a nossa relação com o Poder Superior, mas também com as coisas aparentemente menores que nós. Até hoje, acreditamos poder dispor e destruir essas coisas porque são "nossa propriedade". Dado que ainda não se pode forçar a lei de amor no coração da maioria dos homens, é preciso educar para essa lei, a começar talvez pela maneira como consideramos todos os seres e recursos naturais que nos cercam. Repetida milhares de vezes pela razão e compreendida pelo intelecto, quem sabe um dia essa lei finalmente encontre abrigo no coração.
Mas, poderíamos nos perguntar, existem referências explícitas na literatura espírita sobre a necessidade de preservação do meio ambiente? O assunto era demais novo para Kardec no Século XIX. Existem, entretanto, algumas referências indiretas nele como, p. ex., citado em [2] que se refere à citação de A Gênese:
Tudo no Universo se liga, tudo se encadeia, tudo se acha submetido à grande e harmoniosa lei de unidade.
Há obviamente a questão 750 de O Livro dos Espíritos, mas ainda como lição que exige dedução do leitor sobre qual lado ele deve se posicionar no debate da preservação ambiental. Conhecemos o argumento de que não é objetivo do Espiritismo se imiscuir com qualquer aspecto material da existência, mas prover lições que ajudem a alma a progredir moralmente apenas.
Porém, essa conclusão permite certas observaçoes complementares. Por exemplo, André Trigueiro escreveu recentemente Espiritismo e Ecologia [4], importante referência para esse despertar de consciência. Outros estudiosos também chamaram a atenção para a relevância do tema no Movimento Espírita [5]. Já em O Consolador, de Emmanuel [6], uma seção inteira "Biologia" (Primeira Parte) é dedicada à Natureza, com especial atenção às questões 27, 28 e 29 dessa obra.
Um tanto esquecido, mas muito mais direta é a preleção feita pelo Espírito Aniceto que pode ser lida no Cap. 42, "O evangelho no ambiente rural", de Os Mensageiros [3] de 1944. Como não assisti à versão para o cinema, não sei se foi explorada nessa nova versão para a sétima arte. Aqui analiso essa passagem dessa obra que apresenta muitos pontos de reflexão.
Depois de citar uma passagem da Epístola aos Romanos (8, 19-21, reproduzida no início deste post), Aniceto dá início a seus comentários sobre ela:
Há milênios a Natureza espera a compreensão dos homens. Não se tem alimentado tão somente de esperança, mas vive em ardente expectação, aguardando o entendimento e o auxílio dos Espíritos encarnados na Terra, mais propriamente considerados filhos de Deus. Entretanto, as forças naturais continuam sofrendo a opressão de todas as vaidades humanas. Isto, porém, ocorre, meus amigos, porque também o Senhor tem esperança na libertação dos seres escravizados na Crosta, para que se verifique igualmente a liberdade na glória do homem. (grifos meus)
É a confirmação de que há um laço de fraternidade a unir a Humanidade a todos os seres e que esse coletivo de seres (e os recursos não bióticos) aguarda sua consideração. Por enquanto, ela sofre a "opressão de todas as vaidades humanas".
Conheço-vos de perto os sacrifícios, abnegados trabalhadores espirituais do solo terrestre! Muitos de vós aqui permaneceis, como em múltiplas regiões do planeta, ajudando a companheiros encarnados, acorrentados às ilusões da ganância de ordem material. Quantas vezes, vosso auxílio é convertido em baixas explorações no campo dos negócios terrestres? (grifos meus)
É referência ao auxílio dos Espíritos nas atividades humanas (questão 459 de O Livro dos Espíritos), mas que têm sido corrompidas por meio de "baixas explorações" nos negócios da Terra. A preleção continua ainda mais vigorosa:
A maioria dos cultivadores da terra tudo exige sem nada oferecer. Enquanto zelais, cuidadosamente, pela manutenção das bases da vida, tendes visto a civilização funcionando qual vigorosa máquina de triturar, convertendo-se os homens, nossos irmãos, em pequenos Moloques de pão, carne e vinho, absolutamente mergulhados na viciação dos sentimentos e nos excessos da alimentação, despreocupados do imensa débito para com a Natureza amorável e generosa. (grifos meus)
É uma referência explícita aos métodos de cultivo exploratório e às quase insaciáveis necessidades humanas que sustentam essa exploração insustentável. A civilização, não obstante seu avanço tecnológico, ainda dispõe dos recursos naturais como uma "máquina de triturar. "Moloques de pão, carte e vinho" é uma imagem-referência a Moloque do Velho Testamento, conhecido deus aterrorizante cujo culto exigia o sacrifício de crianças. Aniceto acusa assim a sociedade moderna de "viciação de sentimentos e excessos de almentação" e falta de consideração "para com a Natureza amorável e generosa".
Eles oprimem as criaturas inferiores, ferem as forças benfeitoras da vida, são ingratos para com as fontes do bem, atendem às indústrias ruralistas, mais pela vaidade e ambição de ganhar, que lhes são próprias, que pelo espírito de amor e utilidade, mas também não passam de infelizes servos das paixões desvairadas. Traçam programas de riqueza mentirosa, que lhes constituem a ruína; escrevem tratados de política econômica, que redundam em guerra destruidora; desenvolvem o comércio do ganho indébito, colhendo as complicações internacionais que dão curso à miséria; dominam os mais fracos e os exploram, acordando, porém, mais tarde, entre os monstros do ódio! (grifos meus)
Essa parece ser uma análise bastante real da situação presente, ainda que feita em 1944. Desde então, somente pioraram as condições ambientais, e nosso mundo já está sofrendo com possíveis rupturas climáticas imprevisíveis. A corrupção que leva à poluição e ao desequilíbrio ambiental é fruto dessas forças inferiores em busca de "ganho indébito". Nessa passagem, Aniceto também descreve as consequências da "colheira obrigatória" a que exploradores desenfreados das forças naturais estão sujeitos pela exploração sem considerações para os recursos da Natureza.
Por fim, considera o destino espiritual dos "seres sacrificados":
O Senhor reserva acréscimos sublimes de valores evolutivos aos seres sacrificados. Não olvidará Ele a árvore útil, o animal exterminado, o ser humilde que se consumiu em benefício de outro ser!
Arrisco dizer que essas são as declaraçõeos mais diretas feitas na literatura espírita sobre as questões relacionadas à preservação do meio ambiente e ao respeitos aos recursos naturais.
Conclusões
A relação de propriedade formal como direito, ainda que transitória, tem como dever correspondente a obrigação de preservação. Presevar o meio ambiente e viver em estado de sustentabilidade é portanto, uma manifestação da lei de amor aplicada aos "mais fracos".
Da mesma forma como a geração presente sofre no clima a consequência de ações ambientais destrambelhadas do passado, o Espírito encarnado ou não, não poderá fazer jus a uma morada mais aprimorada no futuro com desprezo a esses novos princípios. Se podemos falar em "lei de causa e efeito" para as relações entre os homens, essa mesma lei atua com relação a esses e o meio ambiente.
Se em parte podemos atribuir a nossa ignorância a falhas no entendimento do respeito ao meio-ambiente, hoje isso não é mais possível. Tanto pela provas científicas dos impactos da exploração desenfreada do lado material, como pela negação do materialismo, que desconhece a relação de afinidade que liga todos os seres.
Se a missão do Espiritismo é destruir o materialismo, também é sua missão ensinar porque é relevante respeitar o todas os seres e recursos naturais pela redução da viciação de sentimenos e excessos de alimentação. Para o materialista, a preservação importa como meio de sobrevida presente; para o espiritualista, como chance de novas oportunidades no futuro além da morte que atesta sua fraternidade e seus laços de ligação com todas as coisas e seres viventes.
Referências
[1] Por que educação ambiental e ecologia são relevantes para o movimento espírita? (Parte I). Ver: https://eradoespirito.blogspot.com/2024/03/por-que-educacao-ambiental-e-ecologia.html
[2] FEB (2023). O Espiritismo e a consciência ecológica. Acessado conforme disponível em março de 2024: https://www.febnet.org.br/portal/2023/04/22/o-espiritismo-e-a-consciencia-ecologica/
[3] Xavier F. C. (2023). Os Mensageiros, Ed. FEB. 47a Edição.
[4] Trigueiro A. (2022). Espiritismo e Ecologia. FEB Editora; 5ª edição.ISBN-13 : 978-6555704372
[5] Miguel S. H. (2023). Espiritismo e desenvolvimento sustentável: caminhos para a sustentabilidade.Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano XV, n. 45
[6] Xavier F. C (1940). O Consolador. 4a Edição, FEB