10 de outubro de 2025

Sindrome de Cotard e obsessão

Pintura por Frederick S. Coburn (1871-1960).

Chamou-me a atenção uma reportagem [1] sobre a chamada "Síndrome de Cotard" (délire de Cotard) que tem sintomas bem estranhos: o paciente se sente morto e tem delírios com partes de seu corpo em decomposição ou ausentes. É um tipo de doença mental com sintomas bem peculiares e ligados à morte.

O psiquiatra francês Jules Cotard (1840–1889) foi o pioneiro na descrição dessa condição [2] a partir de um diagnóstico que, na época, estava associado à chamada "melancolia" (mais tarde rebatizado como "depressão"). Na época, ele descreveu um caso, o da "Senhorita X", que negava a existência de partes de seu corpo - um sintoma posteriormente denominado somatoparafrenia. Além disso, não via razão para se alimentar porque estava morta. Essa paciente acabou falecendo de inanição ao se submeter a uma dieta de restrição severa de alimentação.

A reportagem [1] retransmite uma opinião sobre a origem dessa doença que, essencialmente, teria causa meramente orgânica:

Lesões causadas por acidente vascular cerebral (AVC), traumatismo craniano, infecções como meningoencefalites e doenças neurodegenerativas, como Alzheimer, estão comumente relacionadas ao desencadeamento da síndrome, explica o neurologista Sergio Jordy, membro da American Academy of Neurology (AAN) e da European Academy of Neurology (EAN).

O que me chamou a atenção foi a rapidez com que condições físicas foram associadas à doença nessa reportagem. Isso leva o leitor a concluir que as causas já foram identificadas. 

Por outro lado, quem já participou de sessões de desobsessão sabe que muitos médiuns descrevem sintomas semelhantes, frutos da presença de Espíritos que se identificam como tendo falecido, sem noção de tempo, de consciência, como não mais tendo certas partes do corpo etc. 

Assim, empreendi uma busca mais detalhada na literatura sobre essa síndrome e encontrei informações que apontam para a complexidade desse estado psíquico e sua possível origem obsessiva.

Uma pequena busca na literatura especializada

Por "achados neurológicos" se entende um conjunto de evidências, encontradas em exames (p. ex., em EEG - eletroencefalogramas, IRM - Imageamento por ressonância magnética, TC - Tomografia computadorizada), que apontam para alterações perceptíveis na estrutura neurológica de um indivíduo. Esses achados podem ou não estar "associados" a uma doença, talvez a constituir uma causa provável para uma patologia mental.

No trabalho de Cipriani et al 2019 [3], os autores revisam alguns trabalhos anteriores sobre a síndrome e fazem uma associação com a demência. Pontos importantes: ela está associada a várias desordens (ver "Associated disorders"): estados psicóticos, depressão, esquizofrenia, desordens de personalidade, AVC (acidente vascular cerebral), demência etc. A incidência da síndrome entre pacientes psiquiátricos não é maior que 1% (ver Seção "Epidemiology"). Com relação à neurobiologia da síndrome (ver "Neurobiology of Cotard syndrome") os autores iniciam a seção declarando:

A neurobiologia da Síndrome de Cotard é controversa. Os achados não são consistentes e não têm utilidade diagnóstica ou prognóstica clara.

Essa seção também descreve as principais lesões observadas em alguns pacientes que apresentaram os sintomas. 

Swamy et al (2007) [4] negam que se possa interpretar a suposta síndrome (não há consenso na literatura de que se trate de uma síndrome de fato) como oriunda univocamente de causas orgânicas. Para esses autores, existem diversas limitações nas abordagens que foram feitas: viés de linguagem, de publicação e de tamanho de amostra de casos que seria muito pequeno. Na minha opinião, a mais grave limitação é, certamente, o viés de publicação: a maioria dos casos reportados são de pacientes que tiveram exames demonstrando alterações neurológicas "físicas". Porém, segundo [4]:

É importante notar que nem todos os casos de síndrome de Cotard observados por psiquiatras em sua prática diária têm probabilidade de serem descritos e publicados. É mais provável que casos de síndrome de Cotard com achados neurológicos positivos sejam publicados. Portanto, as inferências e generalizações que podem ser extraídas de uma amostra amplamente distorcida (apenas os casos com achados neurológicos anormais) em relação aos correlatos neurológicos subjacentes da síndrome de Cotard em geral são limitadas. (grifo meu)

Esse é um problema sério, pois ele pode se aplicar não só à Síndrome de Cotard, mas a outras doenças psiquiátricas. Ao se publicar apenas casos que têm correlatos neurológicos demonstrados por exames, cria-se a impressão de que esses casos são naturalmente causados por tais alterações. Porém, a Tabela II de [4] demonstra uma grande quantidade de casos de Síndrome de Cotard em que não há nenhuma evidência de dano neuronal (exames de eletroencefalograma e CT normais, etc). 

O trabalho [5] apresenta um estudo feito com 100 pacientes, que é considerado limitado por [6] por causa do viés de publicação. S. Dieges (2018) [6] indica a presença da síndrome em relatos de médicos antigos no Século 19 (antes de Cotard), como na obra de Etienne Esquirol (1772-1840) "Des maladies mentales: considérées sous les rapports médical, hygiénique et médico-legal" [7]. Ver, em especial, o capítulo sobre "Demonomania" (uma alteração mental que era atribuída aos "demônios" pelos próprios pacientes). 

Esses casos vazios de alterações neurológicas são um desafio enorme para a psiquiatria e toda neurociência. Pois, como é possível haver pacientes sem nenhum tipo de alteração física e, ainda assim, com a presença de sintomas? Há duas possibilidades de explicação apenas: i) a ciência presente não consegue ainda identificar uma causa física por falha nos métodos de detecção ou ii) a causa profunda da sintomatologia da Síndrome de Cotard (e de outras doenças psiquiátricas) não é fisica. A existência de casos com achados neurológicos apenas estabelece uma correlação, mas não uma relação causal inequívoca.

Contribuição espírita

De acordo com o paradigma materialista, a consciência é um produto do cérebro. Logo, não há como escapar da conclusão de que deve existir ao menos uma alteração neurológica (neuroquímica, neuromórfica etc) como causa profunda para todas as doenças mentais. Assim, a existência de casos sintomáticos sem evidências de alteração física constitui uma anomalia para esse paradigma. 

Do ponto de vista espírita, porém, é provável que os sintomas da Síndrome de Cotard sejam causados por uma "infestação psíquica": trata-se da afinidade entre o paciente e um Espírito desencarnado que faz com que o primeiro passe a experimentar as sensações mórbidas do segundo. Há uma sintonia, como no processo mediúnico, porém, o paciente "comunica" os sintomas típicos da entidade perturbada. Porém, é preciso reconhecer que o que faz com que o paciente seja atraído por esse tipo de consciência desencarnada pode ser ainda outra causa

Sim, ela pode ter origem orgânica, o que explicaria os casos em que foi possível identificar correlatos neurológicos. Esses afetam o Espírito do paciente que se desequilibra e sintoniza com algum Espírito em condições de morbidez. Nesse sentido, as alterações não geram diretamente os sintomas. Aliás, sobre isso, nada impede que um indivíduo com uma doença mental fisicamente estabelecida não sofra de uma obsessão, que é responsável por alguns de seus sintomas conforme o estágio da doença.

Porém, esses sintomas podem surgir de um desequilíbrio intrínseco da alma do paciente, com origem claramente espiritual, inclusive por causa de outra obsessão. Esse desequilíbrio conduz ao mesmo estado de sintonia espiritual que faz manifestar os mesmos sintomas. Dessa forma, podemos prever que o afastamento do Espírito obsessor apenas aliviará ou eliminará os efeitos associados à morbidez típica da Síndrome de Cotard, o que também explica o seu caráter transitório, como descrito na literatura [6]. 

Referências

[1] Karol Oliveira. Cadáver ambulante: conheça a síndrome em que a pessoa acredita estar morta. https://www.metropoles.com/saude/cadaver-ambulante-sindrome-morta . Metrópoles(acesso em 2025)

[2] Wikipedia (2025). Cotard's syndrome. https://en.wikipedia.org/wiki/Cotard%27s_syndrome (acesso em 2025).

[3] CIPRIANI, Gabriele, et al. ‘I am dead’: Cotard syndrome and dementia. International journal of psychiatry in clinical practice, 2019, 23.2: 149-156. Link: https://www.academia.edu/download/95018853/13651501.2018.152924820221129-1-1vecjdh.pdf  (acesso em 2025)

[4] SWAMY, N. C.; SANJU, George; MATHEW JAIMON, M. S. An overview of the neurological correlates of Cotard syndrome. The European journal of psychiatry, 2007, 21.2: 99-116. Link: https://scielo.isciii.es/pdf/ejpen/v21n2/original2.pdf (acesso em 2025)

[5] BERRIOS, German E.; LUQUE, Rogelio. Cotard's syndrome: analysis of 100 cases. Acta Psychiatrica Scandinavica, 1995, 91.3: 185-188. Link: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/pdf/10.1111/j.1600-0447.1995.tb09764.x (acesso em 2025)

[6] DIEGUEZ, Sebastian. Cotard syndrome. Neurologic-Psychiatric Syndromes in Focus Part II-From Psychiatry to Neurology, 2018, 42: 23-34. 

[7] A versão original e traduzida para o inglês dessa obra de 1838 pode ser encontrada em Internet Archive.

25 de agosto de 2024

I Jornada de História do Espiritismo com tema sobre Kardec

De 29 de novembro a 30 de novembro de 2024 acontecerá a "I Jornada de História do Espiritismo" no ICH da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora). Uma descrição do evento pode ser apreciado na imagem abaixo.

O congresso tem como tema "Allan Kardec: vida, ideia, obra e influências". Houve uma atualização no formato do evento, que agora será tanto presencial como online.

O evento não é gratuito. Para o público em geral é cobrada uma taxa de R$60,00; para estudantes de graduação, R$40,00, independentemente do formato do evento, se presencial ou online.

Inscrição e mais informações desse evento estão disponíveis na página:

https://www.sympla.com.br/evento/i-jornada-de-historia-do-espiritismo/2598693

5 de maio de 2024

A mediunidade de Orlando Noronha Carneiro

 

A psicografia como fenômeno é de extraordinária versatilidade. No dizer de Kardec [1]:
De todos os meios de comunicação é a escrita o mais simples, o mais cômodo e, so­bretudo, o mais completo. É para ela que devem tender todos os esforços, pois que per­mite estabelecer com os Espíritos relações tão continuadas e tão regulares quanto as que existem entre nós. 
Essa versatilidade da psicografia ainda está por se revelar por completo. A prova disso foi a enorme quantidade de informação proveniente de desencarnados em psicografia de médiuns veteranos como Chico Xavier e Divaldo Franco. Se outros tipos de mediunidade quase que desapareceram (como é o caso da mediunidade de efeitos físicos, materializações etc), semelhante situação não aconteceu com a psicografia, cumprindo a esperança de Kardec. Esse também é o caso do médium Orlando Noronha Carneiro.

Orlando é natural de Osasco/SP e iniciou atividades dentro do Movimento Espíritas em 1980. Em suas visitas ao médium espírita Chico Xavier, esse lhe disse que Orlando continuaria na tarefa das cartas familiares. As principais informações sobre o trabalho com cartas psicografadas pode ser encontrado em diversos canais do YouTube dentre os quais se destaca o "Mensagens de Luz" [2], onde é possível acessar talvez centenas de mensagens que são lidas pelo médium diante dos parentes enlutados.  Uma entrevista recente com o médium pode ser assistida em [3].

O site "Portas do Amor" (https://www.portasdoamor.com.br/) traz informações e a agenda presencial do Orlando para o ano. Videos desse site também podem ser assistidos no Youtube pelo endereço [5].

Exemplos

A quantidade de videos já disponibilizados impressiona pela quantidade e qualidade das mensagens que trazem conteúdo altamente relevante aos parentes. Eles formam um conjunto demonstrativo importante - tanto em variedade como em quantidade - de como se processa o fenômeno. 

As informações mais relevantes passadas nas cartas são justamente os conteúdos pragmáticos (ou seja, informação dependente do contexto), que apenas fazem sentido aos parentes mais próximos e que não estão publicamente disponíveis. Também estão presentes desenhos (principalmente no caso de crianças) e assinaturas. 

Em um vídeo de 2018, os pais de Gabriel, desencarnado em maio de 2018, relatam sua experiência com a psicografia que receberam. De seu depoimento destamos em síntese: "Tudo bateu...Tudo o que ele descreveu, realmente é do Gabriel." De acordo com os pais, inúmeros detalhes na carta demonstraram a eles a procedência de seu filho, inclusives acontecimentos familiares simples, mas que só eram conhecidos dos familiares mais próximos. Outros depoimentos também podem ser encontrados relatando detalhes em cartas que muito confortaram parentes próximos diante do drama da morte e as dores do luto.

A importância das cartas psicografadas particulares

Nunca será demais reler o que diz Kardec sobre a "utilidade das evocações particulares", que está no Capítulo 25 de "O Livro dos Médiuns" (1):
Ora, os Espíritos superiores são as sumidades do mundo espírita; a própria elevação em que se acham os coloca de tal modo acima de nós, que nos assusta a distância a que deles estamos. Espíritos mais burgueses (que se nos relevem esta expressão) nos tornam mais palpáveis as circunstâncias da nova existência em que se encontram. Neles, a ligação entre a vida corpórea e a vida espírita é mais íntima, compreendemo-la melhor, porque ela nos toca mais de perto. Aprendendo, com eles mesmos, em que se tornaram, o que pensam e o que experimentam os homens de todas as condições e de todos os caracteres, assim os de bem como os viciosos, os grandes e os pequenos, os ditosos e os desgraçados do século, numa palavra, os que viveram entre nós, os que vimos e conhecemos, os de quem conhecemos a vida real, as virtudes e as fraquezas, bem lhes compreendemos as alegrias e os sofrimentos, a umas e outros nos associamos e destes e daquelas tiramos um ensinamento moral, tanto mais proveitoso, quanto mais estreitas forem as nossas relações com eles. Mais facilmente nos pomos no lugar daquele que foi nosso igual, do que no de outro que apenas divisamos através da miragem de uma glória celestial. 
Há outro ponto importante que se formará, inexoravelmente, com o acúmulo de cartas. Dado que muitas delas trazem citação de nomes, seu histórico formará um grande registro de intercâmbio, cujo objetivo é cumprir a função consoladora do Espiritismo no esclarecimento sobre a vida após a morte e sustentação aos parentes em luto.

Sobre isso, lançamos mão de um paralelo. No primeiro episódio de "Harry Potter" de autoria da escritora Britânica J. K. Rowling, Harry, o personagem principal é convidado à iniciação como mago na escola de Hogwarts por meio de uma carta enviada em correio especial, usando corujas. Acontece que seus parentes invejosos interceptavam as missivas. Não foi uma nem dez cartas que foram interceptadas, na tentativa inútil de impedir que Harry seguisse seu destino. O contra ataque foi devastador: não apenas centenas, mas milhares de cartas foram enviadas a Harry, até que uma fosse lida por ele. Assim acontece com as cartas psicografadas particulares: se algumas cartas não são suficientes para convencer da realidade maior da vida após a morte, o que dizer de milhares delas? Nada poderá impedir que elas continuem a vir e prover consolação aos que choram seus entes queridos provisoriamente transferidos para o mais além.

Referência

Nos links abaixo, referências acessíveis em abril de 2024.

1 -  A. Kardec. "Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas", Capítulo V – Dos médiuns, Médiuns escreventes ou psicógrafos. "O Livro dos Médiuns". Versão Ipeak, www.ipeak.com.br.
2 - https://www.youtube.com/@MensagensdeLuz-Oficial/videos 


3 de abril de 2024

Por que educação ambiental e ecologia são relevantes para o movimento espírita? (Parte II)

A aula ambiental de Aniceto


Porque a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus. 
Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou, na esperança de que também a mesma criatura será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. 

Romanos 8:19-21

Conforme vimos no post anterior [1], a necessidade de educação ambiental e ecologia se impõe ao movimento espírita não como assunto de interesse meramente intelectual. Ao contrário, ela é o resultado da própria ética espírita aplicada não apenas aos semelhantes e a nossa relação com o Poder Superior, mas também com as coisas aparentemente menores que nós. Até hoje, acreditamos poder dispor e destruir essas coisas porque são "nossa propriedade". Dado que ainda não se pode forçar a lei de amor no coração da maioria dos homens, é preciso educar para essa lei, a começar talvez pela maneira como consideramos todos os seres e recursos naturais que nos cercam. Repetida milhares de vezes pela razão e compreendida pelo intelecto, quem sabe um dia essa lei finalmente encontre abrigo no coração.

Mas, poderíamos nos perguntar, existem referências explícitas na literatura espírita sobre a necessidade de preservação do meio ambiente? O assunto era demais novo para Kardec no Século XIX. Existem, entretanto, algumas referências indiretas nele como, p. ex., citado em [2] que se refere à citação de A Gênese:

Tudo no Universo se liga, tudo se encadeia, tudo se acha submetido à grande e harmoniosa lei de unidade.
Há obviamente a questão 750 de O Livro dos Espíritos, mas ainda como lição que exige dedução do leitor sobre qual lado ele deve se posicionar no debate da preservação ambiental. Conhecemos o argumento de que não é objetivo do Espiritismo se imiscuir com qualquer aspecto material da existência, mas prover lições que ajudem a alma a progredir moralmente apenas. 

Porém, essa conclusão permite certas observaçoes complementares.  Por exemplo, André Trigueiro escreveu recentemente Espiritismo e Ecologia [4], importante referência para esse despertar de consciência. Outros estudiosos também chamaram a atenção para a relevância do tema no Movimento Espírita [5]. Já em O Consolador, de Emmanuel [6], uma seção inteira "Biologia" (Primeira Parte) é dedicada à Natureza, com especial atenção às questões 27, 28 e 29 dessa obra.

Um tanto esquecido, mas muito mais direta é a preleção feita pelo Espírito Aniceto que pode ser lida no Cap. 42, "O evangelho no ambiente rural", de Os Mensageiros [3] de 1944. Como não assisti à versão para o cinema, não sei se foi explorada nessa nova versão para a sétima arte. Aqui analiso essa passagem dessa obra que apresenta muitos pontos de reflexão.

Depois de citar uma passagem da Epístola aos Romanos (8, 19-21, reproduzida no início deste post), Aniceto dá início a seus comentários sobre ela:

Há milênios a Natureza espera a compreensão dos homens. Não se tem alimentado tão somente de esperança, mas vive em ardente expectação, aguardando o entendimento e o auxílio dos Espíritos encarnados na Terra, mais propriamente considerados filhos de Deus. Entretanto, as forças naturais continuam sofrendo a opressão de todas as vaidades humanas. Isto, porém, ocorre, meus amigos, porque também o Senhor tem esperança na libertação dos seres escravizados na Crosta, para que se verifique igualmente a liberdade na glória do homem. (grifos meus)

É a confirmação de que há um laço de fraternidade a unir a Humanidade a todos os seres e que esse coletivo de seres (e os recursos não bióticos)  aguarda sua consideração. Por enquanto, ela sofre a "opressão de todas as vaidades humanas". 

Conheço-vos de perto os sacrifícios, abnegados trabalhadores espirituais do solo terrestre! Muitos de vós aqui permaneceis, como em múltiplas regiões do planeta, ajudando a companheiros encarnados, acorrentados às ilusões da ganância de ordem material. Quantas vezes, vosso auxílio é convertido em baixas explorações no campo dos negócios terrestres? (grifos meus)

É referência ao auxílio dos Espíritos nas atividades humanas (questão 459 de O Livro dos Espíritos), mas  que têm sido corrompidas por meio de "baixas explorações" nos negócios da Terra. A preleção continua ainda mais vigorosa:

A maioria dos cultivadores da terra tudo exige sem nada oferecer. Enquanto zelais, cuidadosamente, pela manutenção das bases da vida, tendes visto a civilização funcionando qual vigorosa máquina de triturar, convertendo-se os homens, nossos irmãos, em pequenos Moloques de pão, carne e vinho, absolutamente mergulhados na viciação dos sentimentos e nos excessos da alimentação, despreocupados do imensa débito para com a Natureza amorável e generosa. (grifos meus)

É uma referência explícita aos métodos de cultivo exploratório e às quase insaciáveis necessidades humanas que sustentam essa exploração insustentável. A civilização, não obstante seu avanço tecnológico, ainda dispõe dos recursos naturais como uma "máquina de triturar. "Moloques de pão, carte e vinho" é uma imagem-referência a Moloque do Velho Testamento, conhecido deus aterrorizante cujo culto exigia o sacrifício de crianças. Aniceto acusa assim a sociedade moderna de "viciação de sentimentos e excessos de almentação" e falta de consideração "para com a Natureza amorável e generosa".
Eles oprimem as criaturas inferiores, ferem as forças benfeitoras da vida, são ingratos para com as fontes do bem, atendem às indústrias ruralistas, mais pela vaidade e ambição de ganhar, que lhes são próprias, que pelo espírito de amor e utilidade, mas também não passam de infelizes servos das paixões desvairadas. Traçam programas de riqueza mentirosa, que lhes constituem a ruína; escrevem tratados de política econômica, que redundam em guerra destruidora; desenvolvem o comércio do ganho indébito, colhendo as complicações internacionais que dão curso à miséria; dominam os mais fracos e os exploram, acordando, porém, mais tarde, entre os monstros do ódio! (grifos meus)

Essa parece ser uma análise bastante real da situação presente, ainda que feita em 1944. Desde então, somente pioraram as condições ambientais, e nosso mundo já está sofrendo com possíveis rupturas climáticas imprevisíveis. A corrupção que leva à poluição e ao desequilíbrio ambiental é fruto dessas forças inferiores em busca de "ganho indébito". Nessa passagem, Aniceto também descreve as consequências da "colheira obrigatória" a que exploradores desenfreados das forças naturais estão sujeitos pela exploração sem considerações para os recursos da Natureza. 

Por fim, considera o destino espiritual dos "seres sacrificados":

O Senhor reserva acréscimos sublimes de valores evolutivos aos seres sacrificados. Não olvidará Ele a árvore útil, o animal exterminado, o ser humilde que se consumiu em benefício de outro ser!
Arrisco dizer que essas são as declaraçõeos mais diretas feitas na literatura espírita sobre as questões relacionadas à preservação do meio ambiente e ao respeitos aos recursos naturais.

Conclusões

A relação de propriedade formal como direito, ainda que transitória, tem como dever correspondente a obrigação de preservação. Presevar o meio ambiente e viver em estado de sustentabilidade é portanto, uma manifestação da lei de amor aplicada aos "mais fracos".

Da mesma forma como a geração presente sofre no clima a consequência de ações ambientais destrambelhadas do passado, o Espírito encarnado ou não, não poderá fazer jus a uma morada mais aprimorada no futuro com desprezo a esses novos princípios. Se podemos falar em "lei de causa e efeito" para as relações entre os homens, essa mesma lei atua com relação a esses e o meio ambiente.

Se em parte podemos atribuir a nossa ignorância a falhas no entendimento do respeito ao meio-ambiente, hoje isso não é mais possível. Tanto pela provas científicas dos impactos da exploração desenfreada do lado material, como pela negação do materialismo, que desconhece a relação de afinidade que liga todos os seres.

Se a missão do Espiritismo é destruir o materialismo, também é sua missão ensinar porque é relevante respeitar o todas os seres e recursos naturais pela redução da viciação de sentimenos e excessos de alimentação. Para o materialista, a preservação importa como meio de sobrevida presente; para o espiritualista, como chance de novas oportunidades no futuro além da morte que atesta sua fraternidade e seus laços de ligação com todas as coisas e seres viventes.

Referências

[1] Por que educação ambiental e ecologia são relevantes para o movimento espírita? (Parte I). Ver: https://eradoespirito.blogspot.com/2024/03/por-que-educacao-ambiental-e-ecologia.html

[2] FEB (2023). O Espiritismo e a consciência ecológica. Acessado conforme disponível em março de 2024:  https://www.febnet.org.br/portal/2023/04/22/o-espiritismo-e-a-consciencia-ecologica/

[3] Xavier F. C. (2023). Os Mensageiros, Ed. FEB. 47a Edição.

[4] Trigueiro A. (2022). Espiritismo e Ecologia. FEB Editora; 5ª edição.ISBN-13 ‏ : ‎ 978-6555704372

[5] Miguel S. H. (2023). Espiritismo e desenvolvimento sustentável: caminhos para a sustentabilidade.Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano XV, n. 45

[6] Xavier F. C (1940). O Consolador. 4a Edição, FEB