5 de julho de 2016

Como alguns animais podem encontrar o caminho de casa?

Permanece um mistério para a ciência como alguns animais conseguem encontrar seu caminho de volta para casa uma vez tendo se perdido. Um caso interessante foi o do cão Pero (1), da raça Sheepdog, que voltou para casa depois de perdido a 400 quilômetros de distância. Diversos outros casos semelhantes a esse acumulam-se com cães e gatos, e são narrados por famílias surpreendidas com a capacidade desses animais. Como eles conseguem? 

De acordo com o conhecimento científico presente, animais possuem diversos tipos de "sensores" (2) que podem ser usados na localização e na realização de viagens. Esses sensores não só representam sentidos muito superiores aos dos humanos (cães, por exemplo, tem olfato e audição muito superiores, gatos enxergam muito bem no escuro etc), mas também modalidades novas de sentidos, como, por exemplo, sensores magnéticos. Pássaros e abelhas possuem verdadeiras "bússolas" internas capazes de auxiliar o voo entre pontos distantes. Recentemente, uma molécula (chamada Criptocromo 1, Ref. 3), associada à recepção de "campos magnéticos", foi encontrada na retina de vários animais, cães inclusive. Será então que cães e outros mamíferos se guiam pelos campos magnéticos? Essas são apenas conjecturas, e, ainda que ficasse demonstrado que eles conseguem detectar a orientação da linha norte-sul, muito mais do que isso é necessário para guiar um animal em um trajeto complexo e distante de sua origem, como no caso de Pero. Para ver isso, basta se imaginar perdido em um local distante, sem poder se comunicar com quem quer que seja, tendo apenas uma bússola ou quiça um detector de odores...

Um ajuda do Espiritismo

Em um ensaio em "O Livro dos Espíritos", Cap. XXII "Da Mediunidade dos animais", Kardec apresenta uma dissertação atribuída ao Espírito Erasto, que também aparece na "Revue Spirite" de Agosto de 1861, sob o título "Os animais médiuns". O texto foi motivado por discussões na Sociedade Espírita de Paris, assim como diversas cartas que Kardec recebeu de pessoas que narravam feitos incríveis de seus animais. O leitor poderá reler a argumentação apresentada por Erasto, seguindo o link que colocamos abaixo (4). Essencialmente, na acepção pela qual ficou conhecida a palavra "médium", não se pode falar verdadeiramente em "mediunidade dos animais". A mediunidade é um fenômeno complexo que exige certa ressonância entre mentes que não pode estar distantes "evolutivamente" uma da outra. Assim, por uma questão de clareza no sentido do termo e seu significado dentro do Espiritismo, não podemos atribuir à mediunidade as narrativas desses fenômenos estranhos.

Mas, isso não significa que eles não possam detectar a presença e, quiça, até receber orientações dos Espíritos (4): 
Certamente os espíritos podem tornar-se visíveis e tangíveis para os animais, e muitas vezes o pavor súbito que os toma, e que vos parece sem motivo, é causado pela visão de um ou de muitos desses Espíritos, mal intencionados em relação aos indivíduos presentes ou aos seus donos. Muito freqüentemente se vêem cavalos que se recusam a avançar ou recuar, ou que se empinam diante de um obstáculo imaginário. Pois bem! Podeis estar certos de que o obstáculo imaginário é quase sempre um Espírito ou um grupo de Espíritos que se comprazem em detê-los. Lembrai-vos da mula de Balaão, que, vendo um anjo pela frente e temendo sua espada flamejando, não queria avançar. É que antes de se manifestar visivelmente a Balaão, o anjo quis torna-se visível apenas para o animal. Mas, quero repeti-lo: não mediunizamos diretamente nem os animais nem a matéria inerte. Precisamos sempre do concurso consciente ou inconsciente de um médium humano, porque necessitamos da união dos fluidos similares, que não encontramos nos animais nem na matéria bruta. (grifos meus)
O episódio da mula de Balaão, como narrado
em Números 22:23 e citado por Erasto em (4).
Segundo essa passagem, é possível aos animais perceberem a presença de Espíritos, o que se dá por intermédio de médiuns, que são sempre humanos. Esses, por sua vez, não precisam sequer ter consciência de que agem como intermediários (ou seja, o fenômeno não é provocado, mas espontâneo). Nesses episódios, os Espíritos podem permanecer invisíveis aos humanos, porém, serem percebidos pelos animais, aproveitando-se da superioridade de seus sentidos aprimorados.

É importante considerar que a ideia de que animais podem, em certas circunstâncias, ver e ouvir Espíritos é algo que pode ser validado experimentalmente. Para isso, podemos imaginar a seguinte situação: o dono de um cão falece. Sabe-se que, em sua presença, o cão exibe determinado comportamento. Da constatação de repetição completa ou parcial do comportamento do cão, sob a presença do Espírito do dono conforme indicado pelo médium, valida-se a tese, e esse é apenas um dos experimentos possíveis. 

Não é difícil imaginar assim que Espíritos possam estar envolvidos nos episódios de retorno de cães e gatos a seus donos. Esse é pelo menos um mecanismo plausível, já que a ajuda dos sentidos, mesmo que bastante desenvolvidos, não parece ser suficiente para explicar completante todos os casos de animais que conseguem encontrar o retorno de seus lares por centenas de quilômetros. Para tanto, eles devem contar com alguns "amigos" a mais entre os invisíveis. 

Notas e referências

1 - Ver (acesso em maio de 2016)
2 - http://www.sciencealert.com/how-dogs-find-their-way-home-without-a-gps

3 - Ver http://www.nature.com/articles/srep21848

4 - Kardec. A. "O livro dos Médiuns". Trad. Herculano Pires. Extraído da versão online:


1 de junho de 2016

A mediunidade de Eugênia von der Leyen

"Foi muito esquisito o que aconteceu. O sacristão continuou andando 
e passou através do vigário, como se fosse apenas uma sombra. 
Vi claramente os dois. Pouco depois, o pároco sumiu e 
nunca mais o vi." (Eugênia descrevendo seu contato com 
o pároco Schmuttermeier na igreja, p. 49 de (2))

Se se quiserem desembaraçar da obsessão de semelhantes Espíritos, 
será fácil, orando por eles. É o que sempre esquecem de fazer.
 Preferem aterrá-los com fórmulas de exorcismos, que os divertem muito.
("História de um danado", Revue Spirite, 1860)

Um de nossos leitores (1) comentou sobre um interessante livro ao ler nosso texto "Os vivos e os mortos na sociedade medieval" (3). Trata-se de "Meine Gespräche mit Armen Seelen" (2), que podemos traduzir livremente como "Minhas conversações com almas penadas". É um diário escrito pela princesa Eugenie von der Leyen und zu Hohengeroldseck (1867-1929) entre 1921 e 1929. Nascida em Munique, Eugênia vivera praticamente enclausurada em vários castelos de sua família (Fig. 1) na região de Landsberg na Baviera. De formação fervorosamente católica, Eugênia ou "Eschi" compôs, sob sugestão de seu confessor, relatos periódicos em que atestou "visões" e conversas com falecidos. Obviamente, o círculo social onde Eugênia viveu jamais permitiria qualquer outra interpretação para suas "visões" do que o contato direto com as "almas penadas" do purgatório, o que possibilitou a sobrevivência de seus escritos, confiados totalmente a seu confessor.

Comentamos alguns trechos de seu diário que foi publicado e proibido na Alemanha de Hitler. Citações a essa obra foram avançados por Hermínio de Miranda em seu livro "A reinvenção da morte" (4). Consideramos relevante seus escritos, pois referem-se a uma descrição fora do contexto do conhecimento espírita, o que atesta a universalidade desses mesmos ensinos. Trata-se também de uma ideia interessante, que pode ser adotada por médiuns de variadas sensibilidades: a de se escrever a impressão do fenômeno até suas menores particularidades. 

Alguns relatos

Os relatos de Eugênia parecem ser autênticos, uma vez que a médium nunca mencionou sua ocorrência em vida. Conforme atesta seu confessor:
Eu conheci a vidente durante seus últimos doze anos de vida; todos os dias tinha conhecimento de seus encontros com almas. A meu conselho, ela anotava o que via num diário. Nem ela e, no início, nem eu, tivemos a intenção de publicá-lo... A vidente levava uma vida santa. Era de uma piedade autêntica, humilde como São Francisco, zelosa na prática do bem e desmedidamente generosa: sempre prestativa e pronta a renunciar à própria vontade, disposta aos maiores sacrifícios, querida por Deus e por todos que a cercavam. Quem a conhecia, venerava-a. Jamais desejou atrair a atenção de quem quer que fosse. Tinha um talento especial para prestar favores e proporcionar surpresas agradáveis aos outros. O caráter da princesa é a mais sólida garantia de que merece crédito. Declaro, sob juramento, que a aconselhei a anotar, clara e integralmente, suas experiências reais, mas nunca, e em parte alguma, lhe sugeri quaisquer opiniões minhas. (p. 41)
Fig. 1 Schloss Unterdieβen, onde Eugênia viveu
a partir de 1925. 
A julgar por suas descrições, o convívio de Eugênia com os desencarnados era constante, mas limitado à visão e audição. Seu diário traz exclusivamente contatos com desencarnados. Poucos, porém, chegavam a responder seus questionamentos (todos os grifos são meus):
Cinco horas da tarde. Vi no jardim, entre duas árvores, uma freira. Parecia estar me esperando. Pensei tratar-se de uma velha conhecida e apressei-me a ir ao seu encontro. De repente, ela desapareceu sem deixar vestígios. (p. 45).
24 de fevereiro — Às quatro da manhã acordo e acendo a luz. Junto à minha cama está Crescência e, a seu lado, aquela desconhecida. Perguntei: “Crescência, querida, donde vens?” — “Do espaço intermediário.” — “Como me encontraste?” Ela fez um gesto como para dizer que veio pelo ar. (p. 52)
23 de março — De noite. Outra vez aquela gente. Dezesseis pessoas. Demoraram longo tempo. Cinco deles eu conheço: Viktor, Maria M..., Perpétua R..., aquele sapateiro que vivia dizendo: “Ai, meu Deus!” , Baptista B...; perguntei-lhes: “O que querem vocês?” Nenhuma resposta. Então eu disse: “Vamos rezar por vocês. Não precisam voltar mais.” Aí, diz o Viktor: "Temos de vir!” “Quem o quer?”, perguntei. Não responderam. Ficaram mais um pouco; todos cravaram os olhos em mim, e se foram. Aparecem noite após noite, mas não posso fazer nada; rezo e depois de pouco tempo, todos eles se retiram. (p. 54)
A primeira citação mostra um fenômeno bastante comum em  sua narrativa: o desaparecimento repentino de imagens de pessoas que Eugênia aprende a distinguir das "pessoas de carne e osso". Isso não acontece em um ambiente reservado (e nem sob invocação, o que seria inaceitável para Eugênia), mas a qualquer horário, que ela prefere seja de dia. Na segunda descrição, a médium recebe uma resposta "Do espaço intermediário" e o Espírito afirma que veio pelo ar. Na terceira citação, Eugênia quer saber porque almas do purgatório a procuram. A resposta de um Espírito chamado Viktor é "temos que vir". Eugênia também descreve a presença de dezesseis Espíritos em seu quarto, que tinha, segundo os editores de (2), cinco metros quadrados!

Apesar de seu caráter católico fervoroso, não existem dúvidas em Eugênia de que ela está, quase sempre, cercadas de "almas em sofrimento", Ou seja, ela jamais interpreta o que vê como uma manifestação "do demônio", opinião que é compartilhada por seu confessor. O fenômeno é espontâneo e intermitente. A médium não tem controle dele, embora reconheça que, em algumas situações, perdeu contato com as almas:
Durante alguns dias, sempre à noite, tive febre. Não conseguia conciliar o sono. Nessas ocasiões, nada via e nada escutava. Agora que estou boa, parece que voltam. (p. 55, grifos meus)
A que se deve isso? A mediunidade, segundo Kardec, encontra-se fundada na estrutura do organismo:
79. A faculdade mediúnica é uma propriedade do organismo e não depende das qualidades morais do médium; ela se nos mostra desenvolvida, tanto nos mais dignos, como nos mais indignos. Não se dá, porém, o mesmo com a preferência que os Espíritos bons dão ao médium. ("O que é o Espiritismo?" Cap. II: qualidade dos médiuns.)
Explica-se assim porque a sensibilidade mediúnica pode se enfraquecer durante as enfermidades  do corpo físico do médium.

Um fato curioso sobre a "sensibilidade" de animais (4b) também é relatado por Eugênia:
Vi sentada no cercado de galinhas aquela mulher. Seu jeito é sempre amável. Mas ela não responde. Tendo ido ao galinheiro, pude observá-la bem. Um gato veio andando em direção a ela. Ao enxergá-la, deu um pulo, assustado, para o lado. Senti-me feliz por constatar que, ao menos, o gato vê o que eu vejo. (p. 60)
Mas, para onde iriam as "almas" que Eugênia ajuda? Lemos o seguinte diálogo entre a médium e uma delas:
20 de junho — Estando eu para me flagelar por Weiss, apareceu ele, ao meu lado, com uma expressão feliz e disse: “Tu me remiste.” — “Não fui eu, foi a misericórdia de Deus.” — “Servindo-se de ti!” — “Aonde vais agora?” — “A uma esfera superior.” (p. 125) 
Licantropia

Algumas descrições recentes em livros espíritas falam do fenômeno da Licantropia - algo que aconteceria a Espíritos desencarnados com delitos graves - como um processo de deformação do perispírito. O livro "Libertação" (5) descreve um caso de um Espírito feminino que assassinou seus filhos e que foi deformado sob sugestão hipnótica "à forma de uma loba". A licantropia não aparece em nenhuma obra de Kardec (6), mas o fenômeno é confirmado nos relatos de Eugênia:
19 de dezembro — Chegou o Monstro. Posso vê-lo distintamente. É mais alto que os homens comuns. Tem cabelos hirsutos, negros; resfolga de um modo asqueroso. Protegi-me com a relíquia da Santa Cruz e aspergi água benta na aparição. Fixou-me o olhar algum tempo e depois foi embora pela janela. Nunca em minha vida tinha visto algo tão nauseabundo, a não ser em jardins zoológicos. E esse Monstro, nojento e asqueroso, esteve no meu aposento! (p. 90)
24 de abril— Faz três dias que me visita toda noite um animal  todo preto, intermediário entre búfalo e carneiro. Fiquei muito assustada. Pulou no meu leito. Para remediar minha covardia, recorri à água batismal e o quadrúpede me deixou em paz. (p. 140)
E não apenas nele. Segundo (2), há outras referências (7):
José de Gorres, o grande especialista em mística da Universidade de Munique, escreve em sua obra "Mística cristã" sobre a Irma Francisca do Santíssimo Sacramento, da Ordem das Carmelitas,  que “apareciam, às vezes, a essa Irmã, pessoas falecidas sob formas terríveis, mais parecendo um animal do que gente". (p. 25)
Concordando com André Luiz,  conforme conclui Eugênia, as "almas" nessas condições cometeram delitos muito graves. Por meio da presença da médium, o Espírito passa por uma transformação pelo qual reassume uma forma humana.

Por que eu? Paralelos com as descrições de Yvonne Pereira.

Uma das grandes questões de Eugênia era: por que ela? Por que as "almas" a procuravam? Em seus contatos, elas estão sempre a fitar profundamente seus olhos. Outros buscam tocá-la:
Algo tocou-me no ombro e senti muito medo. (p. 55) 
Aproximou-se de mim, e antes que o pudesse impedir, o dedo dele tocou na minha mão. (p. 63) 
23 de janeiro — Henrique mudou bastante. Nem sei dizer como ou em que, mas já não me inspira tanto nojo. Estou feliz porque não me tocou. (p. 102)
Disse-lhe: “Prefiro que não me toques, embora eu tenha muita vontade de ajudar-te.” (p. 95)
A impressão que temos é que a médium era uma "fonte" (de fluidos) em contato com a qual as "almas" se beneficiavam e transformavam profundamente.
Yvonne Pereira (1900-1984), a grande 
médium brasileira. Impressiona alguns 
paralelos que se pode fazer entre suas 
descrições com as de Eugênia 
von der Leyen.

É difícil deixar de comparar os contatos de Eugênia com as descrições de Yvonne Pereira. Exemplos encontramos no livro "Recordações da Mediunidade" (em azul abaixo, 8), seguido do equivalente quase idêntico com Eugênia (em verde). De novo, os grifos são meus:
Mesmo assim, como não enlouqueci de pavor, ou não me deixei obsidiar, nos momentos em que via o infeliz suicida deixar o sótão, flutuar no espaço atraído pelas minhas forças afins, sem mesmo disso se aperceber, e atingir o escritório para se deter junto de mim e continuar suas eternas convulsões? (8, Cap. 6, "Testemunho")
22 de junho — Desde à uma hora da noite até depois das cinco, esteve “ele” no meu quarto. Foi medonho. Curvou-se sobre mim diversas vezes e sentava-se junto ao meu leito. Chorei de tanto pavor. (2, p. 60)
O ruído provindo do mundo invisível é muito mais impressionante do que a visão, e senti-me chocada. Ainda hoje prefiro ver os Espíritos, qualquer que seja a sua categoria moral, a ouvir os ruídos que eles produzam, pois quaisquer ruídos ou sons provindos do  Além são assaz diferentes dos conhecidos na Terra, são como que difusos pelo ar, cavos, surdos, ocos. (8, Cap. 6, "Testemunho")
Tenho a sensação de que há muitas almas junto a mim, mas nada vejo; ouço, porém, passos e respiração arquejante pertinho de mim; em seguida, um barulho estranho, como se alguém batesse na parede. Apenas ouço e percebo esses ruídos, o que, para mim, é pior do que ver e assistir seja ao que for. (2, p. 55)
A explicação para a atração dos Espíritas por Eugênia pode ser talvez a mesma descrita pela grande medianeira do Brasil:
Se, outrora, como suicida que também eu teria sido, me vi socorrida por almas generosas do Espaço, as quais me ajudaram o reerguimento moral pelo amor de Deus, a lei suprema de mim exigiria agora que, por minha vez, eu socorresse a outrem, pois sabemos que essa lei determina a solidariedade entre as criaturas de Deus, e jamais receberemos favores ou auxílios de outrem sem que, posteriormente, deixemos de transmiti-los também à pessoa do próximo. (8, Cap. 6, "Testemunho")
...que também aparece em Eugênia:
Aproxima-se uma luta que tenho travado já tantas vezes: devo amar esse pobre coitado e não o consigo. Só quando chegar a amar essa alma embrulhada em execração serei capaz de fazer sacrifícios. (2, p. 94)
9 de agosto — Passei por algo pavoroso. Um estrondo me despertou. Acendi a luz e algo de horripilante se inclinava sobre mim. Constantemente meus pensamentos voltam àquilo: uma cabeça gigantesca com olhos tão apunhalantes que não parecem existir, ou antes: o rosto todo era um só olho que me fixava. “Vai-te!" — exclamei — o que procuras comigo?” — “A paz.” — “Não sou eu quem pode dá-la.” — “Mas tu deves!” — “O que me pode obrigar a isso?” — “Amarás o teu próximo como a ti mesmo. (p. 127)
Há muitas outras semelhanças. Por exemplo, a maior parte dos contatos de Eugênia dá-se durante o período da madrugada. Yvonne Pereira também afirma a mesma coisa e fornece, inclusive, uma explicação para esse fato.

Conclusões

É importante entender que a mediunidade de Eugênia é raríssima. Eugênia cai na categoria de médiuns de vigília, conforme a questão 1 no Cap. VI de "O Livro dos Médiuns" de A. Kardec. A espontaneidade, intermitência e falta de controle da médium demonstram sua mediunidade como de caráter neutro e absolutamente independente da crença de Eugênia ou de qualquer ato ou circunstância capaz de provocar os fenômenos.

Entretanto, Eugenia parece não compreender completamente a dinâmica do fenômeno que hoje podemos analisar graças à chave fornecida pelo Espiritismo e informes mais recentes da literatura espírita. Em particular, a atração das "almas" pela presença de Eugênia se deve a sua mediunidade peculiar, sua crença fervorosa no poder superior e sua inclinação para fazer o bem, não obstante a repulsa que descreve sentir pelos seres que a procuram. Ela convenceu-se gradativamente que era sua obrigação ajudá-los. Pouco a pouco, eles melhoram de condição, conforme ela mesma descreve.

Isso é reforçado por outra conclusão interessante: seus rituais (aspersão de água benta, sinais, presença da relíquia da cruz etc) parecem inócuos (9). O benefício conseguido para as "almas" deve-se à atuação de seu fluido por meio de sua vontade: quanto mais passa a amar os infelizes que a procuram, a interessar-se por eles, tanto mais eles conseguem ter seus sofrimentos abrandados.

É provável que outras descrições (7) existam de testemunhos semelhantes que aguardam melhores análise e estudos. Particularmente interessante também é o contexto católico que aprova e recomenda a leitura do diário de Eugênia. Não se fala em visões infernais ou ação demoníaca. O contexto piedoso e de fé que envolvia Eugênia fez sobreviver seus relatos, que não diferem das descrições de médiuns espíritas. E nem poderia deixar de ser, pois o fenômeno é o mesmo.
Referências e comentários

1 - José Ricardo Basílio a quem agradeço a sugestão do livro que deu origem a este post.

2 - E. von der Leyen (1994). "Conversando com as Almas do Purgatório". AM Edições, São Paulo. ISBN 85-276-0305-5.

3 - "Os vivos e os mortos na sociedade medieval".
4 - Conforme indicado por José Ricardo Basílio.

4b - Ver o Capítulo 22 de "O Livro dos Médiuns" de A. Kardec.

5 - Xavier F. C. (1992) "Libertação". 15a Edição. FEB.

6 - Sobre a possibilidade de Espíritos aparecerem em forma de animais, ver "O Livro dos Médiuns", Cap. VI, "Manifestações visuais", questão 35. Também, ao se ler "A história de um danado", na Revue Spirite de 1860, por exemplo, deparamos com interessantes relatos (grifos meus):
(A São Luís) ─ Teríeis a bondade de nos dar algumas informações sobre este Espírito, já que ele não pode ou não quer dá-las?
─ É um Espírito da pior espécie, um verdadeiro monstro. Fizemo-lo vir, mas não foi possível obrigá-lo a escrever, malgrado tudo quanto lhe foi dito. Ele tem seu livre-arbítrio, do qual o infeliz faz triste uso.
14. ─ Esse Espírito é sofredor e infeliz. Podeis descrever o gênero de sofrimento que experimenta?
─ Ele está persuadido de que terá de ficar eternamente na situação em que se encontra. Vê-se constantemente no momento em que praticou o crime. Qualquer outra lembrança lhe foi apagada e qualquer comunicação com outro Espírito foi interdita. Na Terra, só pode ficar naquela casa, e quando no espaço, nas trevas e na solidão.
62. ─ Podeis descrever seu gênero de suplício?
─ É-lhe atroz. Como sabeis, foi condenado a ficar no local do crime, sem poder dirigir o pensamento a outra coisa senão ao crime, sempre ante os seus olhos, e julga-se eternamente condenado a essa tortura.
Tais descrições se assemelham ao que André Luiz descreveu em outros termos (influência hipnótica etc).

7 - Joseph von Gorres (1840). Mística cristã, v. III, p. 476. Editora Manz, Regensburg. O leitor interessado poderá, talvez, estudar do ponto de vista espírita a vida de outros místicos católicos citados na obra incluem:
  • (S) Catarina de Gênova (1447-1510)
  • (S) Teresa D'Ávila (1515-1582)
  • Crescentia Höss de Kaufbeuren (1682-1744)
  • Maria Ana Lindmayr (1657-1726)
  • Heinrich Seuse (1295-1366)
  • Margarete Schäffner (?-1949)
  • Ana Caterina Emmerich (1774-1824)
8 - Pereira Y. (1992). Recordações da mediunidade. Ditado pelo Espírito de A. B de Menezes. 7a Edição. Feb.

9 - Conforme esclarece A. Kardec: 
Nenhum objeto, medalha ou talismã tem a propriedade de atrair ou repelir os Espíritos; a matéria não tem nenhuma ação sobre eles. Um bom Espírito nunca aconselha semelhantes absurdos. A virtude dos talismãs nunca existiu a não ser na imaginação das pessoas crédulas. ("O Livro dos Médiuns", cap. XXV.)

4 de maio de 2016

Conceitos básicos de Física Quântica VIII

Imagem de uma chama de um fósforo. 
Esse fenômeno extremamente vulgar e macroscópico 
tem sua explicação na Física Quântica.
É comum ouvir relatos de que a física quântica (FQ) foi feita para explicar fenômenos microscópicos e está cercada de mistérios.  Por exemplo, Hélio Schwartsman publicou recentemente (1):
Quando alguém apela a efeitos quânticos para explicar qualquer fenômeno em escala um pouco maior do que a de partículas subatômicas, são grandes as chances de que estejamos diante de um picareta "new age".
Isso é, entretanto, uma afirmação equivocada.

É verdade que existem ainda questões relacionadas a interpretações mais profundas dos fundamentos da FQ. É também verdade, conforme discutimos em posts anteriores (2), que existem fenômenos quânticos que não possuem equivalentes em nosso mundo "clássico". Talvez o formalismo quântico não ajude muito a tirar esse impressão porque as relações entre grandezas na FQ exigem tratamento em espaços matemáticos diferentes daqueles da chamada "Física Clássica". Porém, no nosso entendimento, o problema é pouco motivado por esses mistérios, mas sim por uma visão de mundo simplificada, em que tudo o que é "observável" (3) é considerado "ordinário" e o que não é "misterioso". 

O macroscópico é ordinário, o microscópio é misterioso

Em suma: tudo aquilo que consigo ver, tocar, cheirar etc, e que está sob a classificação de "fenômeno macroscópico", é considerado da alçada das explicações comuns. Isso está bastante difundido em textos populares que tentam explicar física quântica, inclusive na avaliação de Hélio Schwartzman. O que não é visível ou detectável não existe, é mistério ou é assunto para mentes privilegiadas. De acordo com esse raciocínio, a FQ seria aplicada apenas ao que não se vê, como é o caso de átomos ou partículas subatômicas, pequenas demais para serem detectadas pelos sentidos humanos.

Mas, na verdade, isso esconde dificuldades ainda maiores no processo de explicação na ciência. A base da explicação em qualquer ciência não necessariamente envolve aquilo que se vê, porque devemos separar as causas das consequências. Assim, em muitos fenômenos ordinários os efeitos são visíveis, mas as causas não são. Do contrário, crê-se que, para que haja explicação, as causas devem estar igualmente acessíveis, o que raramente é o caso. Exemplos não faltam:
  • Em genética: os efeitos das anomalias, doenças e outras disconformidades observadas facilmente por exame de seres orgânicos está, muitas vezes, nos genes, que são causas inacessíveis diretamente;
  • Em física: a temperatura dos corpos (que podemos sentir por toque) está relacionada à velocidade de partículas minúsculas que compõem o material que são causas inacessíveis diretamente;
  • Na medicina: a temperatura e os sintomas dos pacientes acometidos por uma doença podem ser causados pela influência de minúsculos organismos (bactérias ou vírus) que são inacessíveis diretamente (3b);
  • Em geologia: a explosão de lava observada em vulcões se deve à movimentação oculta de magma nas profundezas da terra, que são inobserváveis. 
É quase que uma regra geral na ciência que causas sejam sempre ocultas, não diretamente observáveis ou apenas inferidas indiretamente por meio de outras medidas, frequentemente envolvendo complexas teorias e relações causais. Isso também é verdade para a FQ.

Já discutimos aqui e em outros trabalhos os diversos níveis de explicação que os fenômenos estão sujeitos. Explicações ordinárias frequentemente envolvem causas simples. Assim, se ocorre um problema no meu carro e acho que pode ser por "superaquecimento da água no radiador", a causa aventada é um evento observável (água aquecida). Em ciência, a maior parte das explicações não são desse tipo. Elas envolvem descer até outras causas, ainda mais fundamentais, que devem ser inferidas indiretamente (3).

A Física Quântica e o problema da consciência.

Como a manifestação da consciência é considerada uma coisa "misteriosa", então somente a FQ, um mistério igual, talvez forneça alguma explicação para a mente. Essa é a linha de raciocínio seguida por uma imensa literatura - frequentemente bastante entusiasta (4) - que busca aplicar conceitos, noções e resultados da FQ em problemas da mente. É uma linha aparentemente natural de inquérito, já que a FQ é uma teoria extremamente bem sucedida (paradigma científico), que fornece explicações para uma ampla classe de fenômenos materiais. Não seria natural que ela também explicasse a mente?

Uma lista de fenômenos macroscópicos (ver abaixo) com causas quânticas (ou seja, explicados pela FQ) pode ser levantada como uma excelente motivação para a crença da generalidade da FQ em contraposição ao que clama o autor da referência (1). Assim, não duvidamos que exista um fundamento microscópio para a movimentação de matéria no cérebro associada aos fenômenos da consciência. Acreditamos ser até mesmo trivialmente verdade que a FQ tenha um papel importante a desempenhar no sistema nervoso, ainda que muitos neurocientistas, por falta de conhecimento no assunto, continuem a propor explicações que dispensem a FQ. Mas, com o desenvolvimento normal da ciência, acreditamos que FQ eventualmente fará parte do currículo de cursos de biologia (5), uma vez que seus fundamentos subsidiam a compreensão de inúmeros fenômenos físicos ordinários.

Porém, isso é bastante diferente de se afirmar que a FQ irá solucionar o problema da consciência. Aqui há dois pontos de vista que vale a pena detalhar:
  1. A noção de que a FQ é importante, que tem uma lógica diferente da ordinária, que não está naturalmente integrada ao senso comum e que não dispõe ainda de uma interpretação absolutamente consensual sobre seus princípios pode despertar nos neurocientistas a ideia de que a consciência necessite de outra abordagem, de um tratamento especial, que não se beneficie tanto de paralelos "clássicos" ou que novas técnicas de medida sejam necessárias para a exploração dos fenômenos da consciência;
  2. A assunção direta de que a FQ seja responsável pela consciência, atropela o debate sobre as diferenças marcantes entre aspectos da matéria e aqueles associadas à "coisa pensante", resultando em uma extrapolação sem bases suficientes em nosso conhecimento presente.   
Um materialismo travestido

A afirmação de que a FQ é responsável pela consciência é uma forma de materialismo que não é considerada de forma correta por espiritualistas que defendem explicações quânticas da consciência como uma maneira de se libertar do materialismo.

De fato, ao se propor que a mente é quântica não se pode deixar de atribuir aos átomos - que têm reconhecidamente natureza quântica - a causa última de sua manifestação. De outra forma, a física quântica apenas introduz uma lógica diferente, onde a incerteza é incorporada nas relações entre seus elementos (função de onda) que se reduzem, quando analisados de forma isolada, a entidades sem nenhum dos atributos reconhecidos publicamente como característicos da mente. Em suma:  o uso puro e simples da FQ no tratamento aparente do problema de consciência, em que pese o formalismo extravagante que introduz, pouco ou nada contribuirá fundamentalmente para o problema da consciência, a menos que se considere essa uma entidade separada do cérebro por princípio, conforme descrevem algumas interpretações quânticas do famoso "problema da medida".

Assim, embora seja bastante comum que espiritualistas defendam abertamente a FQ e sua relação com a mente, não se pode deixar de notar os grandes obstáculos à implementação prática dessa relação e até mesmo as consequências negativas para o desenvolvimento do dualismo. E, retornando ao assunto inicial desse post, propostas de teorias sobre o problema da mente ou da consciência de novo terão que enfrentar um fenômeno cuja causa não é observável, embora os efeitos o sejam. Mas, continuarão céticos a negar a existência do problema ?

Lista de fenômenos ordinários que são explicados pela Física Quântica

A lista abaixo é uma pequena compilação que está longe de ser completa. Explicar como cada um desses fenômenos ocorre obviamente não caberia no espaço deste blog. O leitor deve entender que as causas desses fenômenos caem na classificação de entidades não observáveis. A FQ explica como essas entidades se relacionam (como elas interagem) e criam as impressões que são, por sua vez, observáveis. Assim, por exemplo, a relação entre a temperatura e a cor de uma estrela (que são observáveis) está ligada à estrutura de distribuição de energia das partículas ou átomos que geram a luz. Para uma referência adicional a essa fenomenologia ver (6). 

Astrofísica
  1. Propriedades de estrelas de nêutrons e anãs-brancas;
  2. O funcionamento das estrelas (cor, brilho, dimensão, evolução e idade etc);
Fenômenos luminosos
  1. Cor dos objetos;
  2. Emissão de luz das chamas;
  3. Mudança de cor de reagentes em reações químicas;
  4. Transparência de materiais;
  5. A curva de luz do corpo negro;
Eletricidade e magnetismo
  1. O comportamento de condutores elétricos, isolantes, semicondutores;
  2. O transistor;
Fenômenos térmicos e fluídicos
  1. A supercondutividade elétrica de materiais a baixas temperaturas;
  2. A superfluidez de materiais a baixas temperaturas;
Química
  1. A razão da matéria ordinária (atômica) ser estável;
  2. A estrutura da tabela periódica;
  3. As ligações químicas;
Energia
  1. Tempo de vida de substâncias radioativas;
  2. Reações nucleares;
  3. Usinas atômicas;
Biologia
  1. A eficiência energética da foto síntese (5)
Referências e notas

Agradeço ao Alexandre Caroli pela referência e citação de (1).

1)  H. Schwartsmann. "Mente quântica". Acesso em Fevereiro de 21016. http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2016/02/1737578-mente-quantica.shtml


3) As inferências envolvem, inclusive, a busca por fenômenos diversos que comprovariam o efeito das causas admitidas;

3b) É verdade que foram desenvolvidos mecanismos ou equipamentos que permitem observar o que não pode ser acessado diretamente pelos sentidos. Mas, aqui, o leitor deve atentar para a arapuca lógica que dispensa a noção de que o funcionamento desses equipamentos exigem a crença em muitas explicações ou teorias. Portanto, esse estado aumentado de observação, embora utilize os sentidos, não dispensa a crença, o que torna inviável a fundamentação de nosso conhecimento exclusivamente nos sentidos humanos.

4) O próprio Helio Schwartsman cita o texto de Wendt, A. (2015), Quantum mind and social science, Cambridge University Press, como "uma obra séria que trata de ontologia sem recorrer a deuses". Outras referências são:
  • Mindell, A. (2012). Quantum mind: The edge between physics and psychology. Deep Democracy Exchange.
  • Lockwood, M. (1989). Mind, brain and the quantum: The compound'I.'. Basil Blackwell.
  • Penrose, R. (1994). Shadows of the Mind (Vol. 4). Oxford: Oxford University Press.
  • Stapp, H. P. (2004). Mind, matter, and quantum mechanics (pp. 81-118). Springer Berlin Heidelberg.
  • Clayton, P. (2004). Mind and emergence: From quantum to consciousness.
  • Stapp, H. P. (2001). Quantum theory and the role of mind in nature. Foundations of Physics, 31(10), 1465-1499.
  • Goswami, A. (1990). Consciousness in quantum physics and the mind-body problem. Journal of Mind and Behavior.
  • Woolf, N. J., & Hameroff, S. R. (2001). A quantum approach to visual consciousness. Trends in cognitive sciences, 5(11), 472-478.
  • Bass, L. (1975). A quantum mechanical mind-body interaction. Foundations of Physics, 5(1), 159-172.
A principal revista que explora essa abordagem é a Neuroquantology (acesso em fevereiro de 2016). 

5) Quantum mechanics explains efficiency of photosynthesis. Ver http://phys.org/news/2014-01-quantum-mechanics-efficiency-photosynthesis.html (acesso em março de 2016)

6) R. Healey. How Quantum Theory Helps us Explain. Disponível em: http://arxiv.org/ftp/arxiv/papers/1110/1110.6554.pdf. Acesso em Fevereiro de 2016.

2 de abril de 2016

Ruprecht Schulz: estranho caso de uma suposta "reencarnação"

Seria isto um porco voador?
Pesquisas em reencarnação são ainda consideradas "temas tabus" entre as linhas acadêmicas, justamente por implicarem em algo que não está de acordo com o consenso geral sobre o ser humano e sua existência no mundo, uma criatura que fatalmente morre e aparentemente desaparece. As diversas áreas da ciência não preveem nenhum objeto de estudo onde se possa incorporar o assunto "reencarnação", logo a imensa maioria dos acadêmicos torce o nariz para algo que identificam como não "científico" e que lhes parece uma ideia excêntrica.

Não se admira assim que relatos e evidências de reencarnação caiam na categoria de "anomalias". Mas, não é uma tarefa simples separar o "joio do trigo" em se tratando de qualquer anomalia, o que se aplica obviamente à reencarnação.  Há casos descritos como anomalias que são prejudiciais a própria tese, por se apresentarem como "anomalias dentro de anomalias". Naturalmente, essas ocorrência animam céticos que rapidamente "throw the baby out with the bathwater" (1) e invalidam toda a tese com base em alguns casos mais que suspeitos.

Evidências sobre reencarnação como anomalia têm origem em duas fontes principais: i) informes de crianças que se lembram de vidas anteriores e ii) relatos de memórias via regressão hipnótica. Se o primeiro caso é considerado bastante forte pelo caráter "acima de qualquer suspeita" dos relatos infantis, o mesmo não se pode dizer do segundo, onde a total inexistência de uma "teoria da mente" dificulta separar lembranças de sonhos de eventuais memórias anteriores, inviabilizando a aceitação das descrições. Além disso, ocasionalmente, existem relatos excepcionais de adultos que dizem se recordar de vidas anteriores mesmo em estado de vigília, isto é, sem nenhum apelo ao hipnotismo ou sonhos.

Tudo isso indica que é preciso redobrado cuidado por parte daqueles que pretendem "provar" a tese da reencarnação - ou extrair regras para seu mecanismo - com base na busca exaustiva e empilhamento sistemático de casos. Em particular, salta aos olhos a necessidade de se estabelecer métodos de pesquisa apropriados, de examinar se os dados obtidos são confiáveis e sobre a consistência metodológica aplicada à pesquisa. Mais ainda, partindo-se de uma contexto ateórico (ou seja, sem a orientação de uma teoria), é provável que evidências sejam mal interpretadas, uma vez que já se mostrou há muito que uma evidência é contaminada pela visão que se tem de seu contexto (2).

O cenário é bastante complicado porque, como dissemos, inexiste uma "teoria da mente" que permita estabelecer claramente as origens e as consequências para eventos mentais com base em evidências colhidas de memórias de longo prazo sequer dentro de uma existência, quem dirá entre existências.

O caso Ruprecht Schulz (RS)

Os pesquisadores de reencarnação mais conhecidos na atualidade são I. Stevenson (1918-2007) e Jim Tucker (ver nosso post sobre ele aqui). Entre as inúmeras evidências estudadas por Stevenson, o livro "Casos Europeus" (3) descreve ocorrências tiradas de relatos não orientais, numa tentativa por Stevenson de mostrar que a reencarnação é um fenômeno "universal" (4).

Em particular, nessa obra existe um caso que exorbita dos relatos quase uniformes de crianças que se lembram de vidas anteriores. Trata-se do "caso Ruprecht Schulz" (ver também 5) que está longamente descrito no livro. Aqui apresentamos um resumo por simplicidade e destacamos os prontos problemáticos do caso.
Ruprecht Schulz, nascido em Berlim, a 19/10/1887, comerciante, declarou a I. Stevenson, em entrevista feita em agosto de 1960, ter tido memórias (ver abaixo) de uma vida pregressa por volta do início da década de 1940 (início da II Guerra Mundial). Nessa descrição, via-se como um rico comerciante, ligado a atividades portuárias, que cometeu suicídio. A força dessas lembranças fez RS escrever a diversas cidades portuárias da Alemanha, a partir de julho de 1952. Uma resposta veio da cidade de Wilhelmshaven afirmando ter sido palco do suicídio de um tal Helmut Kohler (HK), corretor marítimo, em 23/11/1887. Segundo informações colidas por RS com parentes de HK, este teria se suicidado depois de se ver em condições econômicas difíceis e de ter sido roubado por um funcionário mais próximo que fugiu para os Estados Unidos. 
As informações tabuladas por Stevenson nas páginas 272-274 de (3) são parte de um relatório construído parcialmente com as informações que RS conseguiu de Wilhelmshaven, quando ele já estava com mais de 50 anos de idade. O que chama a atenção no caso RS é a inconsistência entre a data do suicídio de HK e o nascimento de RS, indicando uma aparente violação da relação "causa efeito" - a personalidade anterior ainda estava encarnada quando seu novo corpo já vivia em outro lugar.

Natureza peculiar das "memórias" de RS.

Longe do problema das datas, o que mais me chamou a atenção no caso RS é o caráter muito especial de suas memórias. O que se espera de alguém que se lembre de sua vida passada? Que suas memórias - se se referem realmente a algo experimentado - acompanhem o sujeito e não dependam de onde ele se encontra. Mas isso não aconteceu com RS.

Antes, porém, consideremos como RS descreve suas "memórias". Na p. 266, no final de sua descrição de como teria se vestido e se matado ele afirma:
"Podem chamar essas imagens de clarividência, mas para mim elas são lembranças". (grifos nossos)
RS parece confundir lembranças com visão de imagens pois, no meio da descrição declara:
"O sentimento foi ficando mais forte e então - não em um transe ou estado de sono - como algo quase visível aos olhos, pude me observar como eu naquela época." (grifos meus)
Tomando com base que ele não tenha inventado nada, sua descrição aparentemente em terceira pessoa não deixa dúvidas que ele teve uma "visão". E mais ainda, essa visão apenas ocorria se ele estivesse em contato com determinado ambiente. Conforme atestam as anotações de I. Stevenson sobre as memórias de RS, em 2 de maio de 1964 (p. 266 e 267):
"Ele nunca as tinha a não ser quando estava no escritório durante o seu turno aos domingos. Estava completamente acordado nessas vezes. Ele experimentou novamente as emoções da situação lembrada e viu as lembranças como uma imagem interior, não como uma visão projetada." (Grifos meus)
Depois enfatizar que RS não estaria em um estado "alterado" de consciência, Stevenson parece ter "reinterpretado" a descrição ao anotar que o sujeito "via lembranças como uma imagem interior" (admitindo nenhum erro de tradução em relação ao original). Esse ponto é de fundamental importância, pois fica clara aqui o papel das ideias preconcebidas do pesquisador. Por que é importante afirmar que RS teve as "lembranças" em estado de vigília? A razão é simples: Stevenson (e provavelmente RS) acreditava que lembranças comuns só podem ocorrer se o sujeito não estiver em "estado alterado de consciência" (leia-se, "mediunidade" ou "hipnotismo").

Mas seria esse o caso? O Espiritismo abre um leque grande de possibilidades. Primeiro porque não se pode afirmar absolutamente o caráter "normal" da consciência de RS uma vez excitada por certos detalhes do ambiente.  Ao contrário, o fato do "fenômeno" apenas ocorrer quando em contato com certo objetos, cria fortemente a impressão de mudança desse estado. Depois porque acessar as lembranças como algo "quase visível aos olhos" permite inúmeras interpretações dentro da fenomenologia mediúnica. Finalmente, a exigência de "estado alterado" não é condição sequer necessária para a mediunidade ou "obtenção de informação anômala". Em "O Livro dos Médiuns", II Parte, Capítulo 15, Parágrafo 182, "Médiuns inspirados", podemos ler:
Todo aquele que, tanto no estado normal, como no de êxtase, recebe, pelo pensamento, comunicações estranhas às suas idéias preconcebidas, pode ser incluído na categoria dos médiuns inspirados. Estes, como se vê, formam uma variedade da mediunidade intuitiva, com a diferença de que a intervenção de uma força oculta é aí muito menos sensível, por isso que, ao inspirado, ainda é mais difícil distinguir o pensamento próprio do que lhe é sugerido. A espontaneidade é o que, sobretudo, caracteriza o pensamento deste último gênero. (grifos nossos)
São registradas descrições de "sensitivos", com variados graus de faculdade, que podem "ver imagens" ao contato com objetos, inclusive tendo sensações relacionadas aos envolvidos na "cena" (o que implica em algum grau de "psicometria"). Contra isso seria possível antepor o argumento de que RS não era médium ou não teria manifestado nenhum tipo de mediunidade em sua vida (o que também é avançado por Stevenson). Mas isso se fundamenta exclusivamente na palavra do sujeito como o próprio Stevenson reconhece (ver abaixo). Ou de outra forma, é possível que RS tivesse tido outras experiências "anômalas" em sua vida, mas deixou-se influenciar por aquela que mais lhe atraiu dentro de sua crença em reencarnação.

De qualquer forma, estamos diante de um problema metodológico que depende da existência de outra teoria sobre memórias e visões. Stevenson desprezou certos detalhes que a ele não pareciam relevantes, mas que, na verdade, são cruciais para determina a "origem" das informações.

Inconsistências em algumas afirmações

Parece que Stevenson deixou de considerar a consistência entre os relatos dispersos como declarados por RS. Por exemplo, na p. 265 de (3, edição em Português), podemos ler a declaração dada por RS a Stevenson em 1960:
"As memórias começaram a surgir para mim na época dos ataques de bombardeios em Berlim durante a guerra."
De acordo com Stevenson, RS cita a data de 1942, quando ele estaria com mais de 50 anos. Porém, na p. 268 da mesma referência, há a citação de uma carta de RS ao filho de Kohler (datada de 1952), dizendo que suas lembranças começaram na infância, "desde muito novo". Qual das versões corresponde ao que teria acontecido?

Com relação às memórias alegadamente atribuídas à infância, elas podem ter sido criadas à posteriori, depois que RS se convenceu que era mesmo a reencarnação de HK. Por exemplo, sobre a cidade de sua alegada desencarnação, RS afirma na carta "me pareceu mais tarde e mais claramente, que essa cidade era Wilhelmshaven" (ainda na p. 268). Só que, segundo Stevenson (conforme está na p. 263), ele apenas tivera a impressão de que sua suposta vida anterior teria sido em "uma pequena cidade portuária", tendo escrito para várias cidades (existiam poucas "pequenas cidades portuárias" na Alemanha no final do Século XIX, e teria sido óbvio incluir Wilhelmshaven). De qualquer forma, o caso RS, no quesito "memória", é muito diferente se comparado a outros estudados por Stevenson.
Wilhelmshaven, cidade da suposta vida anterior de RS. Nela, RS afirmou ter "reconhecido" prédios (de sua vida no Séc. XIX), mesmo tendo sido destruída na II Guerra Mundial. 
Outra afirmações de RS aceitas sem contestação por Stevenson é o "reconhecimento" de prédios em Wilhemlshaven:
Em outubro de 1956, Ruprecht e Emma Schulz foram até Wilhelmshaven, onde se encontraram com Ludwig Kohler. A cidade tinha sido muito danificada pelos bombardeios durante a então recente guerra. Ruprect acreditou reconhecer a Prefeitura e um antigo arco. 
Sem que se garanta que as construções "reconhecidas" por RS tenham sido reconstruídas, é difícil acreditar que isso pudesse acontecer com um cenário que foi destruído com a guerra. Com relação ao seu comportamento "ex suicida" de infância, o caso se contamina pela ausência de "comprovações" (como Stevenson tipicamente insiste em outros casos) por parte de terceiros já que, segundo o pesquisador (p. 277):
"Ruprecht permanece quase que totalmente o único informante das declarações antes de elas serem confirmadas" (grifos nossos).   
O problema da quebra da relação "causa-efeito"

No nosso entendimento, o problema teórico mais grave levantado pelo caso RS é a aparente quebra de causalidade no relaxamento da relação entre Espírito e seu corpo por uma questão de problema de data. Vê-se que essas extrapolações levam a imaginar que um Espírito possa reencarnar nos moldes de uma "possessão", depois que seu outro corpo já esteja formado e vivo.  Existem três caminhos ilógicos possíveis :
  1. Aceitar isso como uma possibilidade "de fato", o que implica em acreditar em que até o momento da "possessão", o corpo existente tenha vida meramente material ou;
  2. Imaginar algum cenário mais exótico (e, por isso, esdrúxulo) de "quebra de causalidade" (tipo "viagem no tempo"). Incluo essa consideração aqui, pois acho difícil que alguém não tente "salvar as aparências" com explicações desse tipo.
  3. "Divisão do Espírito" (conforme se acredita na ref. 5). Durante as cinco semanas que separam o nascimento de RS e a desencarnação de HK, o Espírito de HK estaria ao mesmo tempo reencarnado em dois corpos (!)
Então, o preço a se pagar por aceitar o caso RS como reencarnação é relaxar a coerência e lógica da ideia das vidas sucessivas, com prejuízo grande para toda a tese e reforço considerável das explicações céticas. Seria realmente esse o caso?

Nossas conclusões
  1. Tão só com base nos relatos levantados por I. Stevenson, não é possível afirmar a identificação de HK como a reencarnação anterior de RS;
  2. Isso é, de fato, manifestado por Stevenson, que classifica seus casos como "sugestivos", dentro de sua prudência acadêmica;
  3. Ao contrário, a impressão que temos é de 'algo faltando' no caso, possivelmente associado às alegadas "memórias" de RS que mais se parecem com "visões";
  4. O maior problema do caso RS é a caracterização de suas "memórias". Por dependerem de um "lugar" e "horário", é provável que estejam associadas à informação externa que lhe foi passada por outro agente "psíquico";
  5. É provável que o caso RS tenha sido interpretado forçadamente por Stevenson como de reencarnação. Stevenson chega a falar em um dos mais "fortes" que investigou, a despeito da marcante diferença na maneira como as "evidências" foram obtidas, na inconsistência nas datas e do tipo de relato feito por RS; 
  6. Por que Stevenson teria feito isso? Aventamos a hipótese de que ele não quisesse descartar - segundo sua abordagem - casos europeus, que se mostraram escassos frente aos orientais. A busca por tais casos era uma questão "de honra" para Stevenson, que enfrentou heroicamente ataques do ceticismo. Ou, de outra forma, é provável que, no contexto oriental, algo parecido ao caso RS tivesse sido facilmente descartado por Stevenson;
  7. A data de nascimento do suposto reencarnante é anterior à desencarnação da personalidade pregressa. Isso constitui uma contradição à lei de causa e efeito e cria uma anomalia dentro de outra que é facilmente explorada (com razão) por céticos;
  8. Por uma questão de consistência com todos os outros casos e como resultado lógico da "conservação" da personalidade em outro corpo, não faz sentido sustentar uma "hipótese ad-hoc" (6) que permita ao Espírito desencarnar tempo depois que seu "corpo físico" esteja vivo ou coisa ainda mais fantástica. Stevenson não se preocupou muito com essas consequências e isso faz eco com outras críticas (céticas) às conclusões de Stevenson;
  9.  A "força" desse caso é maior para crentes que colocam fatos mal interpretados acima da importância da teoria e sua consistência interna;
  10. A suposto reencarnante não teve sequelas do suicídio: indiretamente isso cria um problema na aceitação do método de Stevenson porque ele mesmo descreve casos em que mínimas marcas de nascença seriam provocadas por agressões físicas no corpo do indivíduo no instante da morte. Stevenson considera a existência dessas marcas importantes sinais de validação de seu método. Se uma agressão compulsória pode deixar uma marca, como é possível um caso em que o suposto reencarnante tenha se matado com um tiro na cabeça e não tenha nenhuma marca, mas apenas lembranças que se parecem com "visões"? 
  11. Uma vez aceito o caso RS, resta evidente questionar todos os outros em que marcas de nascença são observadas, já que, se inexiste relação "causa-efeito" em apenas um caso, fica fácil desqualificar essa necessidade nos outros;
  12. Outras causas podem ter sido responsáveis pelas "visões" alegadas por RS e associadas a suas lembranças posteriormente.  Com a confirmação dessas visões, RS conseguiu levantar uma personalidade equivalente em sua busca obsessiva (quiça impulsionada por essas causas), que deu origem a todas as outras "evidências" que Stevenson ressalta a apoiar o caso;
  13. O caso RS ressalta a importância de uma teoria que integre tanto informações de fatos históricos associados a existências anteriores como memórias em diversos estados da consciência. A pesquisa da reencarnação não terá êxito se desacompanhada de considerações sobre a fenomenologia psíquica, que representa outra fonte para a aquisição "anômala" de informação.
Referências

(1)  "Jogam o bebê fora junto com a água do banho".

(2) Fácil entender isso. Para um cético, alguém que afirme ter uma vida anterior será interpretado como doente mental, seus sonhos como criações da fantasia etc. Como se vê neste post, a interpretação de qualquer relato como "prova" de vida anterior não considera a possibilidade da informação anômala ter sido obtida por outras vias psíquicas, que não a da memória propriamente dita. Isso só é possível se se dispuser de uma teoria abrangente, que permita separar os fatos em categorias que devem ser, elas próprias, previstas na teoria.

(3) Stevenson, I. (2003). European cases of the reincarnation type. McFarland. No Brasil, há uma edição traduzida desse livro com o título "Casos Europeus de Reencarnação". Ed. Vida e Consciência. 1a, Edição, 2010. No que é citado neste post, seguimos a versão em Português.

(4) Uma das críticas levantadas contra a ideia de reencarnação com base em evidência de fatos é o número muito grande de casos (de crianças) em países que aceitam tacitamente a noção como a Índia. Críticos levantaram a hipótese de uma raiz "cultural" para o fenômeno, o que reduziria sua importância como evidência.


(6) Uma "hipótese ad-hoc" é uma explicação criada com um determinado objetivo. No caso aqui, aceitar a possibilidade de que o Espírito possa ter um corpo em outro lugar enquanto ainda não desencarnado é uma explicação criada para "salvar as aparências" ou acomodar os dados disponíveis com a tese principal.  O que supostamente dizem "os fatos", interpretados de acordo com determinados pressupostos e sob risco de falhas (erro de data, falsas memórias etc), é salvo pela adoção da hipótese.


9 de março de 2016

Anomalias possíveis na psicologia de pacientes transplantados


O magnetismo animal pode assim ser definido: 
ação recíproca de dois seres vivos por meio de 
um agente especial chamado fluido magnético. 
(A. Kardec, Instruções práticas 
sobre as manifestações espíritas. 
Vocabulário Espírita. Magnetismo animal.

Todos os objetos que você vê 
emoldurados por substâncias fluídicas 
acham-se fortemente lembrados 
ou visitados  por aqueles que os possuíram. 
(André Luiz, "Nos domínios da mediunidade".)

Quero um coração. Pois cérebros não nos fazem felizes
 e a felicidade é melhor coisa do mundo. 
L. Frank Baum, "O mágico de Oz".


Este texto complementa o artigo "Mudança de personalidades em transplantados cardíacos" que foi publicado no site "O Consolador".
Quase sempre as evidências para a natureza espiritual do ser humano são encontradas em fenômenos invulgares, onde menos se espera. Esse é o caso de reportes sobre mudanças inesperadas de gostos ou "traços" psicológicos em pessoas que receberam órgãos transplantados. Numa época em que se diz que tudo é "gerado pelo cérebro", no mínimo essa anomalia é bastante bizarra a ponto de atrair a rejeição feroz de céticos que dizem ser o fenômeno irreal.

O fenômeno é raro, mas nem por isso pouco notado. Além disso, é mais comum em pacientes que receberam transplantes de coração. Tornou-se famoso o caso de Claire Sylvia (1,2):
No dia 29 de maio de 1988 uma mulher norte-americana chamada Claire Sylvia recebeu um coração transplantado no hospital de Yale, em Connecticut. A ela foi dito apenas que seu doador foi um homem de dezoito anos de idade, residente no Maine (nos Estados Unidos) e que morreu de um acidente de motocicleta. Logo após a operação, Sylvia declarou sentir como se tivesse bebido cerveja, algo que ela nunca teve atração. Mais tarde, passou por uma vontade incontrolável de comer nuggets de frango e uma tendência inesperada de vistar restaurantes da cadeia KFC. Também desenvolveu interesse por pimenta verde, o que, particularmente, ela nunca tinha gostado antes. Começou então a ter sonhos recorrentes, onde aparecia um nome, Tim L, que ela imaginou ser o dono do coração. Com base em uma pista que lhe foi concedida, buscou no obituário e jornais da região do Maine e pôde identificar o jovem cujo coração ela tinha recebido. Seu nome, de fato, era Tim. Depois de visitar a família de Tim, teve confirmado seu gosto por nuggets de frango, pimenta verde e cerveja. (Itálicos nossos).
Outros casos podem ser lidos em (3), registrando-se, inclusive, mudança de orientação sexual (ver caso 5 na ref. (3)). No Brasil, uma novela foi feita explorando o fenômeno (3b).  Obviamente existem muitas explicações céticas para ele (4), desde aquelas que desqualificam esses relatos (com o título odioso de "evidência anedótica"), que o tornam irrelevante pela sua raridade ou que explicam tudo por efeitos de medicação. Segundo esse proposta cética, ainda que existam tais relatos, eles são tão raros que são esperados estatisticamente e seriam frutos de impressões errôneas nos pacientes, ou seja, ocorreram mudanças de gostos etc, mas elas foram erroneamente atribuídas ao transplante (4).

Do ponto de vista puramente materialista, a explicação de tais memórias anômalas é dependente da existência de "memórias celulares", o que é frequentemente adotado pelos que consideram esses relatos (5). Essencialmente: a informação sobre gostos, tendências etc estaria registrada em algum mecanismo celular, dependente ou não da genética, e essa informação seria acessada pelo corpo do paciente transplantado gerando a mudança de comportamento.  

Influência magnética do órgão transplantado ?

Do ponto de vista espírita, não esperamos que tais ocorrências sejam comuns mesmo. Para existirem, provavelmente um conjunto mais extenso de condições deve prevalecer, e não somente um transplante.  Uma delas é uma sensibilidade do receptor ou indivíduo sobre o qual a influência se estabelece. Essa sensibilidade não está distribuída de maneira uniforme e frequente na população.  

Sabe-se que as fontes de influência sobre a personalidade de um Espírito (esteja ele encarnado ou não) são múltiplas e, envolvem, segundo o Espiritismo, um meio de transporte conhecido como fluido. Esse conceito não é o mesmo encontrado em física - o de uma substância sobre a qual não persistem forças de cisalhamento etc - mas tem uma concepção integralmente nova. 

Um fluido é uma substância de natureza "semi-material" que, tanto quanto nos é possível inferir pela literatura espírita, é produzida pelo perispírito (que não existe, alias, desacompanhado de seu espírito) em combinação com fluidos ambientes - ou todas as coisas com as quais o Espírito entra em contato. É através do perispírito que a mente sente o mundo a sua volta:
O perispírito é o órgão sensitivo do Espírito, por meio do qual este percebe coisas espirituais que escapam aos sentidos corpóreos. Pelos órgãos do corpo, a visão, a audição e as diversas sensações são localizadas e limitadas à percepção das coisas materiais; pelo sentido espiritual, ou psíquico, elas se generalizam: o Espírito vê, ouve e sente, por todo o seu ser, tudo o que se encontra na esfera de irradiação do seu fluido perispirítico. ("A Gênese", Capítulo XIV. Os fluidos II. Parágrafo 22.)
A ação dos fluidos é bastante discutida por A. Kardec nas suas diversas obras e é um componente importante para a teoria espírita da mediunidade, em particular nas suas explicações para a mediunidade curadora. Não são incomuns, durante as incorporações, que médiuns descrevam sensações, impressões e até mesmo lembranças associadas à Entidade comunicante. Essa influenciação se dá por meio dos fluidos da Entidade que atuam sobre o perispírito do médium.

Entende-se assim um fluido espiritual como um elemento intermediário, capaz de transportar características que são tipicamente associadas ao Espírito (gostos, impressões e memórias), porém, por meio de algo que  é localizado no espaço e no tempo e que pode ficar impregnado em coisas materiais, inclusive objetos. As sensações dilatadas do Espírito são assim explicadas de forma independente dos cinco sentidos ordinários, o que permite entender uma grande quantidade de fenômenos psíquicos.

Obsessão ?

 Ação fluídica desse tipo estabelece-se particularmente nas chamadas "obsessões":
Nos casos de obsessão grave, o obsidiado fica como que envolto e impregnado de um fluido pernicioso, que neutraliza a ação dos fluidos salutares e os repele. É daquele fluido que importa desembaraçá-lo. ("A Gênese", Capítulo XIV. Os fluidos II. Parágrafo 45.)
Porém, não há porque sustentar que, depois de um transplante, exista qualquer influência obsessiva do desencarnado doador com o transplantado. Certamente, tal possibilidade existe, mas seria sempre provocada por outros fatores, todos eles comumente associadas aos processos típicos de obsessão, jamais por causa do novo órgão. Se fosse obsessão, por que a mudança seria mais observada com o coração ? Não seria ela ligada a todos os órgãos? 

A explicação que nos parece mais plausível para essas raras mudanças de personalidade com os transplantes estão fundamentadas na impregnação do tecido do órgão com o fluido do desencarnado, fluido esse que pode influenciar o perispírito do transplantado, fazendo surgir nele alguns traços associados à personalidade desencarnada. Não se trata, porém, de uma mudança integral de personalidade, o que exigiria um estado completamente passivo do transplantado. Se isso for possível, sua ocorrência seria bastante transitória e ainda mais rara.

Assim, tudo se passa como em um fenômeno de psicometria (7). Esse termo não pode ser encontrado na obra de A. Kardec, mas seu conceito é anterior a ele (6). Kardec chama de "dupla vista" uma grande variedade de fenômenos psíquicos dentre os quais se inclui a psicometria (6b). Portanto, a raridade das ocorrências de alteração de personalidade em transplantados fica estabelecida sobre uma sensibilidade peculiar, que talvez não seja tão rara como no caso da psicometria clássica, mas que não deixa de se manifestar de forma continuada, por causa da influência do objeto imantado de fluido do desencarnado, em seu novo recipiente. Esse contato é de tal natureza (trata-se da conexão de um órgão vital) que a modificação se estabelece de maneira bastante perceptível pelo transplantado.

Não é difícil imaginar também, para que a intensidade do efeito seja maior, que deva existir uma afinidade entre o fluido impregnado no órgão e o do perispírito do paciente transplantado. Aqui apenas especulamos com base em um paralelo que podemos fazer entre esse fenômeno e o da própria mediunidade, que exige essa afinidade em outra ordem de fenomenologia. 

E por que o coração?
"E, naturalmente, o cérebro não é absolutamente
responsável por qualquer sensação.
A visão correta é que a sede e a fonte
das sensações é a região do coração."
(Aristóteles, 8b)

É crença comum que o principal órgão responsável pela sensibilidade é o cérebro. Em consonância com a tese materialista, tudo é produto do cérebro e o coração é apenas uma bomba de sangue. Porém, mesmo numa descrição puramente material, neurônios (ou células nervosas) não existem exclusivamente no cérebro.

Recentemente descobriu-se que o coração é sede de aproximadamente 40 mil neurônios (8), o que foi chamado "pequeno cérebro do coração". Essa descoberta fez crescer a importância dos relatos de mudanças de personalidade em transplantados cardíacos, como a Ref. 9 mostra, e relembra a explicação Aristotélica da sede das sensações (8b).

O cérebro provavelmente é a interface mais importante, do lado material, para o Espírito, que armazena muitos fluidos a se relacionar com o perispírito e facultar à mente suas sensações. Isso implica, do ponto de vista espírita, que tais fluidos espirituais, capazes de produzir modificações parciais ou completas na personalidade no Espírito sob sua influência, bem como em suas sensações, encontram-se disseminados por todo o corpo, provavelmente mais adensados no sistema nervoso central (11).

Não é verdade, porém que, com o transplante, as conexões neurais preexistentes sejam restabelecidas (10). Isso não acontece, ou seja, os "neurônios cardíacos" do coração transplantado ficam sem função. Uma possível via de compreensão maior desse fenômeno é através de estruturas no corpo espiritual, conforme descritas por vários autores como André Luiz em "Evolução em dois mundos" (12). Portanto, a mudança de personalidade e surgimento de novas sensações (que precisam ser melhor caracterizadas e descritas) abre espaço potencial para a validação da tese da existência de órgãos no perispírito.

Outra conclusão é que, enquanto o sucesso físico do transplante de um órgão exige condições entre doador e recipiente, para que um "pedaço" ou "traço" da personalidade seja "transplantado", deve existir uma condição de sintonia entre fluidos, assim como algum grau de passividade no transplantado.

Teste seu conhecimento

A partir deste post, apresentamos algumas questões para participação dos leitores, que podem enviar suas respostas pela seção de comentários. Não há prazos nem limites de participação. Nas suas respostas, faça referência  à numeração das questões.

Participe!
  1. De acordo com a tese dos fluidos espirituais: elabore uma explicação ou predição sobre o que se espera com relação à mudança de personalidade de transplantados com a idade do paciente. O fenômeno seria mais comuns em crianças ou adultos?
  2. Imagine o seguinte caso: um paciente que recebeu um transplante de coração vive durante muito tempo com ele, mas vem a falecer por outra causa. Seu coração é então transplantado em outro paciente. Se as condições forem satisfeitas, elabore o que se esperaria com relação à mudança de personalidade: (a) Usando a teoria materialista de "memória celular"; (b) Usando a teoria espírita. (Dica: seria possível a coexistência de traços de duas personalidades no segundo transplantado?)
  3. Elabore uma discussão sobre a validação da tese espírita dos fluidos magnéticos impregnados no órgão doado usando a resposta da questão anterior;
  4. Usando o conhecimento espírita e o comentário (10) abaixo, disserte sobre a via de influência sobre o perispírito em transplantados cardíacos. Quem mecanismos perispirituais poderiam substituir as vias rompidas para o transporte das sensações a partir do coração? 
Referências

1 Sylvia, Claire. A Change of heart: a memoir. New York; Warner Books, 1997. O que descrevemos aqui é um comentário algo hilário, mas que reflete a forma direta que americanos costumam fazer em textos populares.

2 http://galileu.globo.com/edic/102/con_transp1.htm (acesso em janeiro de 2015).

http://www.paulpearsall.com/info/press/3.html (acesso em janeiro de 2015).


4. Em http://bigthink.com/neurobonkers/dont-be-taken-in-by-the-bad-science-of-cell-memory-theory (acesso em janeiro de 2016) encontramos um texto que se opõe (corretamente) às explicações do tipo "memória celular", mas que faz isso negando as evidências. Uma desqualificação mal feita pode ser constatada ao se ler isto:
"Only 6% (three patients) felt their personality had changed due to their new heart — a finding that could clearly be due to either random chance, or the patients misattributing the real cause of any change in their personality. Both of the studies are approximately two decades old, if this is the best evidence for a claim that would have such profound implications for our understanding of the workings of the human body, then I think we can safely assume the theory is bunk." "Tradução: Apenas 6% (três pacientes) sentiram suas personalidades mudar com o novo coração - uma descoberta que pode claramente ser explicada por pura sorte ou pelo paciente atribuir erroneamente ao transplante a causa real da mudança. Ambos estudos têm aproximadamente duas décadas de existência e, se essas são as melhores evidências para uma alegação que teria tamanha implicância no nosso conhecimento do funcionamento do corpo humano, acho que podemos seguramente refutar a teoria.  
5 Pearsall, P., Schwartz, G. E., & Russek, L. G. (2000). Changes in heart transplant recipients that parallel the personalities of their donors. Journal of Near-Death Studies, 20(3), 191-206.  http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/10882878

6. Uma descrição recente de psicometria foi feita por Jader Sampaio em http://espiritismocomentado.blogspot.com.br/2013/01/o-que-e-psicometria.html

6b. A "Revue Spirite de janeiro de 1866 traz, por exemplo, a descrição de uma jovem cataléptica da Suábia, com manifestações típicas de psicometria.

7. Dissemos "como em um" e não "exatamente como".  A mudança de gostos com o transplante parece ser algo novo que merece melhores estudos.

8. Armour, J. A. (2007). The little brain on the heart. Cleveland Clinic journal of medicine, 74, S48.

8b. Gross, C. G. (1995). Aristotle on the brain. The Neuroscientist, 1(4), 245-250.

9 . Your Second Brain is in your Heart Neurons. Trust your Gut Feelings. Acesso em janeiro de 2016. http://hubpages.com/education/your-second-brain-is-in-your-heart

10. De fato, em uma explicação para pre-transplantados, a referência da clínica Vanderbilt:


podemos ler
"The transplanted heart fills with blood and pumps as any other normal heart. However, the transplanted heart is "denervated." This means that the nerves from the central nervous system that supplied connections to your other heart do not supply connections to your transplanted heart. These nerves were divided upon removal of your own heart." Tradução: O coração transplantado se preenche de sangue que é bombeado como qualquer outro coração normal. Entretanto, o coração transplantado é "desenervado". Isso significa que os nervos do sistema nervoso central, que fornecem as conexões para o outro coração, não vão fazer o mesmo com o coração transplantado. Esses nervos foram rompidos com a remoção de seu coração original.
O esclarecimento prossegue informando que transplantados cardíacos não sofrem jamais de angina porque as conexões neurais foram, de fato, rompidas. Isso torna suspeitas as explicações de mudança de personalidade com base em "memórias celulares", e caracteriza o fenômeno como de uma natureza bastante diferente, que pensamos pode estar ligada à influência dos fluidos espirituais. 

11. Não se poderia excluir também o fato de transplantes de coração serem bastante comuns (dai porque os relatos de alteração de personalidade são mais comuns com eles). Porém, mais comuns ainda são os de rins e fígado.

12. C. Xavier e W. Vieira. Evolução em Dois Mundos. Uma versão em pdf pode ser encontrada em:
http://www.luzespirita.org.br/leitura/pdf/l17.pdf